APRESENTAÇÃO
Todo
profissional da educação experiente sabe que os resultados de seu trabalho
junto aos alunos são influenciados pelo apoio que estes recebem ou não por
parte de seus familiares. Este saber intuitivo é corroborado por inúmeras
pesquisas nacionais e internacionais que têm demonstrado que a origem e os
apoios familiares – que vão desde as expectativas positivas até investimentos
de tempo e financeiros na carreira escolar dos filhos – impactam decisivamente
no desempenho escolar de crianças e jovens.
Pesquisas
também têm demonstrado que, se a percepção de um professor sobre cada um de
seus alunos é decisiva para a promoção de uma boa relação escola-aluno, um
diagnóstico baseado em suposições e não em evidências sobre os fatores que
estão interferindo nos problemas de aprendizagem pode gerar intervenções
pedagógicas pouco eficazes e com resultados possivelmente desastrosos.
A mera
constatação dessa estreita correlação entre mundo familiar e mundo escolar não
basta para mudar o quadro tão antigo e atual da conversão das desigualdades
sociais em desigualdades escolares. Na perspectiva de uma educação de qualidade
para todos, essa situação precisa ser enfrentada, pois a escola pública eficaz
deve ser capaz de ajudar a garantir a cada um de seus alunos, independentemente
das condições de seu grupo familiar, o direito de aprender.
O presente
estudo, realizado pela UNESCO, em parceria com o Ministério da Educação, elege
como prioridade, dentre tantas funções importantes que a aproximação das
escolas e das famílias pode ter, a recuperação da singularidade do aluno visto
no seu contexto mais amplo. Percebeu-se por meio da análise de experiências
concretas identificadas juntamente com a leitura de um conjunto expressivo de
pesquisas e ensaios sobre o tema, produzidas no Brasil, que, quando a escola
melhora seu conhecimento e compreensão sobre os alunos, sua capacidade de
comunicação e adequação das estratégias didáticas aumenta e, em consequência,
aumentam as chances de um trabalho escolar bem-sucedido. Nesse sentido, a
conquista da tão desejada participação das famílias na vida escolar dos alunos
deve ser vista como parte constituinte do trabalho de planejamento educacional.
Ao mesmo
tempo, é preciso reconhecer que a aproximação do universo social dos alunos
traz desafios que extrapolam as atribuições e competências dos profissionais da
educação.
O
planejamento educacional que leve em conta a realidade dos alunos e a
participação dos representantes de cada instância do sistema público de ensino
na articulação e manutenção da rede de proteção social às crianças e
adolescentes deve ser objeto de profunda reflexão e tomada de posição ao
pensarmos nas políticas e práticas de interação com a família de todos os
alunos.
Essa não é
uma questão apenas de solidariedade, mas também de responsabilidade e
compromisso com a vida de milhares de meninos e meninas e de seus professores e
professoras que precisam ultrapassar seus desencontros e alcançar uma educação
realmente de qualidade.
Neste
contexto, a UNESCO e o Ministério da Educação, por meio da Secretaria de
Educação Básica, esperam que as informações e reflexões sistematizadas na
presente publicação contribuam com os profissionais da educação para o
cumprimento do desafio assumido em Dacar de oferecer uma educação de qualidade
para todos.
Finalmente,
devemos um agradecimento especial aos gestores do sistema municipal, diretores,
coordenadores e professores das escolas pela disponibilidade e carinho com que
nos receberam e aos pesquisadores, e também pela paixão e confiança demonstrada
pela possibilidade em compartilhar com a família a educação de seus filhos.
Representação
da Ministério da UNESCO no Brasil Educação
I –
INTRODUÇÃO
Professoras
da rede pública de uma típica cidade de periferia metropolitana começam a
visitar as casas de seus alunos para ver mais de perto a vida das crianças e de
seus pais. Conhecendo o ambiente doméstico, esperam compreender melhor seus
alunos e passar a contar com a ajuda dos familiares para melhorar o desempenho
escolar das crianças. Como toda visita gentil, cada professora leva para a
família uma lembrança: uma muda de árvore. Os educadores optaram por este
brinde porque o município perdeu quase toda a sua cobertura vegetal. Eles
consideram válida qualquer iniciativa para tentar reflorestá-lo. Mesmo honrada
com o presente, a mãe (ou o pai ou a avó ou outro responsável), dias depois, é
obrigada a devolvê-lo à escola porque simplesmente não há onde plantar a
árvore. Lembrem-se: é uma típica periferia de nossas grandes cidades, onde se
amontoam, de forma desordenada, milhares de pequenas moradias. Sem quintal,
jardim, muro, portão ou mesmo rua. Nos poucos dias em que, hesitantes, os
responsáveis pelas crianças decidiam que destino dar à nobre mudinha, ela
murchou e desfolhou. Estava seca, quando chegou de volta ao pátio da escola. E
foi colocada ao lado de outras centenas como ela. Nas várias escolas
municipais, o mesmo se repetiu: via-se um mundo de arvorezinhas raquíticas em
saquinhos pretos, um quase cemitério de plantinhas recém-nascidas...
Como esta
história poderia continuar? Há diferentes possibilidades de desfecho,
dependendo das escolhas feitas pelos principais personagens. Podemos partir da
mais previsível: desolado com o insucesso de suas boas intenções, o pessoal das
escolas põe-se a procurar o erro e a buscar culpados. Algumas professoras
veteranas acharam que tudo aquilo evidenciava a conhecida má vontade e
desinformação dos familiares. Pois certamente, se procurassem com carinho,
encontrariam um lugarzinho para plantar a mudinha. Diante de tal ingratidão,
era melhor não tentar mais esse tipo de aproximação, defenderam. Outro grupo de
professoras tratou de apontar suas críticas para a coordenação, a direção da
escola e a Secretaria Municipal de Educação pela ideia da planta. Como
esqueceram que estamos na área mais pobre e densamente povoada do Estado?,
repreendiam. Claro que ninguém tem onde plantar uma árvore, todas foram
cortadas justamente para dar espaço para mais gente.
Enquanto o
debate prosseguia, a sobrevivência das mudas estava por um triz. Será que
morreria toda a promessa de floresta? Os muitos saquinhos pretos enfileirados,
como que prontos para o funeral, chamaram a atenção de um grupo de alunos. Eles
perguntaram aos adultos: o que vocês vão fazer com as plantas? Fez-se silêncio.
Todos sabiam que também na escola não havia onde plantar todas aquelas árvores.
Nem em seu entorno, com poucas ruas urbanizadas. Devolvê-las a quem fez a
doação seria uma prova cabal de incompetência. Abandoná-las, um ato insensível
e totalmente antieducativo. Como proceder? Alguém então sugeriu que se tentasse
saber o que a escola mais próxima pensava em fazer, já que o problema era
comum.
Na procura
por soluções, descobriram que o último grande terreno existente na região
acabara de ser desapropriado pela prefeitura – para que se construísse ali
perto uma área integrada de equipamentos sociais. Conversa vai, conversa vem,
gestores municipais, diretores de escola, professores, pais, avós, tios e
alunos conseguiram liberar parte do terreno para o plantio das mudas e assim
iniciaram o que viria a se transformar na maior área verde do município. Até
lá, compartilhariam, sem perceber, o equivalente a muitas e muitas aulas de
Ciências e aprenderiam bem mais do que uma lição de Ecologia. E não pararam por
aí: depois de garantir que as mudas crescessem, as famílias e os profissionais
da escola abandonaram antigos hábitos e renovaram seu dia a dia – tudo para
que, todos os anos, continuasse a florescer em seus filhos/alunos o desejo de
aprender.
PARA ALÉM DAS SEMELHANÇAS E COINCIDÊNCIAS
Esta
história, uma ficção de final feliz, levemente inspirada em fatos reais,
espelha o que vem acontecendo na rede de ensino das pequenas ou grandes cidades
brasileiras: Como construir cada vez mais as redes de escolas públicas buscam,
por diferentes meios, uma relação entre aproximar-se das famílias de seus
alunos, conhecer suas condições de vida e escola e família envolvê-las na
produção de bons resultados educacionais. Projetos, ideias e que favoreça a práticas
inovadoras, como a visita domiciliar da história, nascem nos gabinetes das
aprendizagem
Secretarias, nas salas de aula e até em iniciativas isoladas de professores.
das crianças
O presente trabalho faz parte de um esforço de gerar conhecimentos e adolescentes?
educacionais, por meio de estudos, pesquisas, avaliação e projetos piloto, que
Esta pergunta contribuam para as práticas educativas em sala de aula e para a
formulação de é o fio condutor projetos e políticas públicas. A participação
das famílias na vida escolar de seus deste estudo.
filhos,
sobretudo nos primeiros anos do ensino fundamental, é destacada como estratégia
importante de apoio à aprendizagem em publicações técnicas e nas cartas e
declarações internacionais resultantes de reuniões e conferências convocadas
pela UNESCO desde os anos 1980. Entre elas, vale lembrar como marcos a
Declaração Mundial sobre Educação para Todos (JOMNTIEN,1990), reafirmada pela
Conferência de Dacar (2000), que estabeleceu como um de seus objetivos assegurar,
até 2015, o atendimento das necessidades de aprendizado de todas as crianças,
jovens e adultos em processo equitativo. Como país-membro da UNESCO, o Brasil,
por meio do Ministério da Educação, também tem renovado, ano a ano, este
compromisso.
O presente estudo
– uma iniciativa da UNESCO e do MEC – tem como objetivo oferecer aos gestores
educacionais e escolares informações qualificadas para o desenvolvimento de
projetos e políticas de interação escola-família em função da sua missão de
garantir aos alunos o direito de aprender.
Como
construir uma relação entre escola e família que favoreça a aprendizagem das
crianças e adolescentes? Esta pergunta é o fio condutor deste estudo.Partimos
de duas crenças: a primeira é que, para entender o que se passa no presente, é
necessário um mergulho na nossa história. A segunda é que o Brasil é muito
grande e diverso para caber em uma única fórmula ou receita1. O desafio ao qual
nos propusemos foi organizar informações disponíveis em pesquisas acadêmicas,
articuladas a algumas iniciativas relevantes que vêm sendo desenvolvidas nos
municípios, em escolas isoladas ou em coordenação com as Secretarias Municipais
de Educação, e apresentá-las de forma acessível.
A fim de
identificar as iniciativas que já estão ocorrendo no Brasil, foi feita uma
chamada via internet para que as Secretarias Municipais de Educação (SMEs) e
escolas relatassem suas boas experiências de parceria com famílias. Além de uma
breve explicação sobre o propósito deste projeto, apresentamos uma ficha para coleta
de informações nos sítios da UNESCO e da União Nacional dos Dirigentes
Municipais de Educação (Undime), entre 28 de outubro e 28 de novembro de 2008.
O Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) enviou correspondência
a todos os seus filiados. Assim foi possível disponibilizar, para a totalidade
dos municípios brasileiros, a oportunidade de apresentar sua iniciativa.
Outras
formas de prospecção das experiências foram: contatos com redes de
pesquisadores, professores universitários, gestores públicos e avaliadores que
conhecessem várias SMEs e pudessem indicar experiências de interação
escola-família; pesquisa junto a bancos de experiências de organismos
governamentais, internacionais ou privados e busca direta na internet.
Conseguimos localizar 2 18 experiências coordenadas por Secretarias Municipais
de Educação e 14 realizadas por escolas sem a intervenção direta das SMEs.
As
informações sobre tais experiências foram obtidas por meio de fichas
preenchidas por Secretarias Municipais e escolas e de entrevistas por telefone.
O passo seguinte foi selecionar experiências a serem visitadas, para uma
análise mais aprofundada daquela iniciativa3. Adotaram-se como critérios de
seleção: projetos centrados no tema da relação escola-família, articulados com
a aprendizagem dos alunos e coordenados pelas Secretarias Municipais de
Educação. Privilegiamos experiências que tivessem estratégias distintas entre
si para obter um repertório mais amplo. Os municípios visitados foram: Iguatu
(CE), Itaiçaba (CE), Taboão da Serra (SP) e Teresina (PI).
Belo
Horizonte (MG), embora não tenha sido visitada naquela ocasião, acabou
impondo-se como experiência importante para os objetivos pretendidos. Ao longo
deste trabalho, tivemos contato direto com os gestores estratégicos do Programa
Família-Escola e, como já havia informações qualificadas sobre o histórico
desta iniciativa4, foi possível incluí-la no estudo.
A fim de
identificar o que as pesquisas e ensaios dizem sobre as interações
escola-família, fizemos um levantamento documental, selecionando principalmente
textos nacionais produzidos a partir de 1990. O campo priorizado foi o da
Sociologia da Educação, no qual a questão da relação escola-família entre essas
duas instâncias é um tema recorrente. Selecionamos cerca de 100 títulos entre
relatos de pesquisa, ensaios e notas de síntese. Estes foram classificados e
lidos de forma a destacar os principais achados que pudessem ser incorporados
ao presente trabalho. Para facilitar a leitura por um público amplo, optamos por
utilizar as informações sem mencionar a cada frase ou parágrafo sua origem. Ao
final, apresentamos a bibliografia utilizada.
Outro
aspecto metodológico a destacar é a interlocução com diferentes leitores e
especialistas antes de finalizar o estudo. Sua primeira versão foi submetida à
leitura das instituições proponentes – MEC e UNESCO – e, em seguida,
apresentada em seminários com dirigentes educacionais; equipes técnicas das
SMEs5; diretores de escolas, coordenadores pedagógicos e professores. Participaram
ainda especialistas6 que têm contribuído significativamente para a construção
de conhecimento sobre o tema. Desta forma, podemos dizer que este trabalho foi
escrito a muitas mãos.
Assim,
depois de entrevistar e ouvir os que criam e os que executam projetos nas
escolas de ensino fundamental Brasil afora, interagir com especialistas e
pesquisar a literatura acadêmica, entendemos que o melhor a fazer seria
compartilhar uma série de reflexões e desejar que elas inspirem nos educadores
ações inovadoras e responsáveis.
Embora nossa
intenção seja direcionada à construção de novas práticas, este documento não é
nem um guia, nem um manual. A relação escola-família é complexa e os assuntos a
ela relacionados são extensos e polêmicos demais para serem abordados numa
única publicação. Assim, fizemos recortes, escolhas e decidimos propor um
trabalho que é, em boa medida, aberto ao necessitar de adaptações de acordo com
cada realidade local. Todo esse esforço pretende provocar mudanças positivas
nas condições de aprendizagem de crianças e adolescentes, posicionando a escola
também como local estratégico para a construção de uma efetiva rede de proteção
integral de seus alunos.
O estudo
está organizado em três partes. A primeira traz reflexões históricas e conceituais,
além de localizar os marcos legais que pautam esta relação. A segunda articula
os conceitos com as lições da prática, destacando elementos para a construção
de uma política de interação escola-família. A terceira apresenta um cardápio
de políticas em curso que podem compor a estratégia de intersetorialidade, além
da bibliografia que serviu de base para as afirmações aqui colocadas.
Boa leitura!
II –
CAMINHOS E ESCOLHAS
A
perspectiva deste trabalho coloca no centro da cena os alunos da escola pública
que estão nos anos iniciais do ensino fundamental. Ao olharmos com cuidado para
esses meninos e meninas, vemos que é impossível entendê-los sem considerar seu
contexto familiar de referência. Como dizia José Ortega y Gasset “eu sou eu e
minhas circunstâncias”, ou seja, não é possível dizer quem é o aluno sem
considerar suas circunstâncias sociais.
Na nossa
sociedade, a responsabilidade pela educação das crianças e dos adolescentes
recai, legal e moralmente, sobre duas grandes agências socializadoras: a família
e a escola7.
A educação
abrange os processos formativos amplos que se desenvolvem na convivência humana
ao longo da vida. Trataremos aqui especialmente da educação escolar
obrigatória, tendo o Estado a responsabilidade de oferta primária e as famílias
o dever de matricular e enviar seus filhos à escola.
DEFININDO OS TERMOS
Escola: Parte do sistema público de ensino que
é responsável primário pela educação escolar. Segundo a LDB (1996), a educação
escolar tem como objetivo, no ensino fundamental, “a formação básica do cidadão
compreendida como: I – o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como
meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II – a
compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia,
das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III – o
desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de
conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; IV – o
fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de
tolerância recíproca em que se assenta a vida social”9.
Família: Utilizamos aqui o conceito amplo de
família, no sentido de quem exerce as funções de cuidados básicos de higiene,
saúde, alimentação, orientação e afeto, mesmo sem laços de consanguinidade.
No mundo
familiar as crianças são filhos; no mundo escolar elas são alunos. A passagem
de filho a aluno não é uma operação automática e, dependendo da distância entre
o universo familiar e o escolar, ela pode ser traumática. Dentro da escola, o
responsável direto pela condução dos alunos é o professor, um adulto que também
passou por um processo de formação para alcançar a condição de profissional da
educação.
As crianças
que chegam à escola são membros-dependentes de um núcleo familiar que lhes dá
um nome e um lugar no mundo. Os professores, conectados ou não com o lugar
social deste aluno, têm como principal função garantir o direito educacional de
cada menino e menina, guiando-se pelas diretrizes do sistema/estabelecimento de
ensino com o qual tem vínculo de trabalho. O conjunto de professores,
funcionários, coordenadores pedagógicos, diretores escolares e familiares
configura uma comunidade escolar, que tem funções deliberativas sobre vários
aspectos do projeto da escola.
As famílias
estão inseridas em uma comunidade, localizada em determinado território, com
seus costumes, valores e histórias a que chamaremos de contexto social. As
escolas fazem parte de um sistema ou rede de ensino, sob coordenação da Secretaria
Municipal de Educação, que compartilha um mesmo marco regulatório (leis,
decretos, atos normativos do Conselho Nacional de Educação etc.) com as
Secretarias de Estado e o Ministério da Educação. A essas relações
denominaremos contexto institucional.
A comunidade
local se organiza como sociedade civil para exercer direitos e deveres,
enquanto o sistema de ensino representa o poder público que, em um Estado
democrático de direito, tem obrigação de cobrar deveres e garantir o exercício
da cidadania também pela oferta de serviços sociais a toda a população.
No mundo
globalizado e complexo em que vivemos, as relações entre setores, instituições
e atores sociais estão muito imbricadas. Fica cada vez mais difícil entender os
problemas educacionais apontando apenas para as dificuldades originadas fora da
escola ou somente pelos processos internos a ela. Se, por um lado, não podemos
desconsiderar a influência da situação socioeconômica, da violência, das
mudanças de costumes sobre o comportamento e desempenho dos alunos, por outro,
não podemos admitir que a escola se transforme numa agência de assistência
social e negligencie sua função específica de zelar pela aprendizagem escolar.
É
recomendável optar por uma abordagem relacional entre educação e contexto social.
Sempre com foco nos processos de ensino-aprendizagem, enxergamos as relações
professor-aluno em uma perspectiva ampliada que considera a cadeia de relações
que está por trás e entre esses dois atores, conforme sugere o esquema da
página seguinte.
Podemos
dizer que a relação entre escola e família está presente, de forma
compulsória10, desde o momento em que a criança é matriculada no
estabelecimento de ensino. De maneira direta ou indireta, essa relação continua
viva e atuante na intimidade da sala de aula. Assim, sempre que a escola se
perguntar o que fazer para apoiar os professores na relação com os alunos,
provavelmente surgirá a necessidade de alguma interação com as famílias. Nesta
corrente, cabe aos sistemas de ensino o estabelecimento de programas e
políticas que ajudem as escolas a interagir com as famílias, apoiando assim o
processo desenvolvido pelos professores junto aos alunos.
Apesar de
ser uma atribuição formal e inevitável da escola, a interação escola-família
não será tratada neste estudo como um fim em si mesmo. Sabemos que ela pode
estar a serviço de diversas finalidades, tais como: o cumprimento do direito
das famílias à informação sobre a educação dos filhos; o fortalecimento da gestão
democrática da escola; o envolvimento da família nas condições de aprendizagem
dos filhos; o estreitamento de laços entre comunidade e escola; o conhecimento
da realidade do aluno; entre outras.
As ideias
aqui expostas não devem ser entendidas como “mais um pacote pronto” que cai na
cabeça de quem está nas salas de aula. Pelo contrário: ao começar a elaborar
projetos e políticas, cada município ou escola estaria criando e estruturando
suas próprias ações, conectadas ao conjunto das demais práticas educacionais
consideradas válidas para a sua realidade.
A
possibilidade de várias abordagens e usos da interação escola-família exige que
explicitemos algumas reflexões e escolhas que norteiam o estudo:
• A
expressão interação escola-família se baseia na ideia de reciprocidade e de
influência
mútua, considerando as especificidades e mesmo as assimetrias existentes
nessa
relação.
• O
Dicionário Houaiss traz definições da palavra interação: a) atividade ou
trabalho
compartilhado,
em que há trocas e influências recíprocas e b) comunicação entre
pessoas que
convivem; diálogo, trato, contato.
• A
assimetria das posições está vinculada também às diferentes responsabilidades
que a família e o Estado têm em relação à educação escolar das crianças e
adolescentes. Para assegurar a oferta de educação escolar, o Estado institui um
sistema de ensino operado por profissionais especializados, encarregados de
transmitir saberes socialmente validados. A família, por sua vez, desempenha
seu papel educacional a partir de um contexto sociocultural específico.
• O
reconhecimento dessa diferença é fundamental para a interação: o desafio é
fazer com que essa assimetria produza complementaridade, e não exclusão ou
superposição de papéis.
• Outro
detalhe que faz toda a diferença é a ordem escolhida para descrever a relação:
escola-família e não família-escola. Estamos assumindo que a aproximação com as
famílias é parte do trabalho escolar, uma vez que as condições familiares estão
presentes de forma latente ou manifesta na relação professor-aluno e constituem
chaves de compreensão importantes para o planejamento da ação pedagógica.
• É preciso
colocar a interação escola-família em uma perspectiva processual que estabeleça
horizontes de curto, médio e longo prazos. No primeiro momento faz-se o
conhecimento mútuo; no segundo são estabelecidas as condições de negociação das
responsabilidades específicas sobre a educação das crianças, e, por fim, no
terceiro, são construídos espaços de corresponsabilidade, abertos também à
participação de outros atores importantes no processo de educação dos
filhos/alunos. Percebemos neste estudo que geralmente o processo escola-família
é desencadeado sem os devidos e desejáveis cuidados preliminares: é muito comum
os sistemas de ensino e escolas partirem direto para a negociação/cobrança de
responsabilidades das famílias, antes de compreenderem as condições dos
diversos grupos de familiares dos alunos. Ao suprimir a etapa inicial, os
projetos de aproximação podem gerar mais desencontros. Por essa razão,
enfatizamos especialmente o movimento inicial de aproximação para
(re)conhecimento mútuo, tendo em mente que ele deve ser apenas o início de uma
longa relação.
Este
trabalho pretende refletir como a interação das escolas com as famílias pode
ser apoiada pelas redes de ensino para incidir sobre a relação professor-aluno
(que estrutura a relação aluno-saber escolar).
Por isso,
priorizamos, dentre todas as finalidades que a interação escola-família pode
ter, o conhecimento do aluno no seu contexto social como insumo para revisão
das práticas pedagógicas, escolares e educacionais.
DO ALUNO ESPERADO AO ALUNO REAL
Voltemos a
pensar no que é necessário para que uma criança incorpore a identidade de
aluno. Será que todos têm as mesmas condições de fazer essa passagem? Quais
características uma criança precisa trazer consigo para transitar bem pelos
códigos e regras escolares? Que tipo de situação familiar facilita a entrada e
permanência das crianças e adolescentes na escola e que tipo dificulta?
Assumimos
que a educação é para todos e, sob a perspectiva inclusiva, não podemos usar
características individuais ou sociais para negar o acesso e progresso de
qualquer um na escola. No entanto, não podemos ignorar que o trabalho escolar,
em geral, pressupõe que uma criança chegue à escola com uma série de
características: físicas – deve estar saudável e bem alimentada; linguísticas –
precisa entender bem a língua usada pelos professores e pelos colegas; e
atitudinais – tem de respeitar os professores, cumprir acordos, assumir
compromissos, saber se controlar etc.
Parte das
características fundamentais para o sucesso escolar, no entanto, não é ensinada
pela ou na escola: ela deve vir como pré-requisito do aluno, desde o seu
primeiro dia de aula. Se a criança não está desde cedo no sistema educacional,
por falta, por exemplo, de acesso à educação infantil, espera-se que ela
aprenda estes comportamentos no convívio familiar.
Uma família
cujos membros mais velhos frequentaram a escola por um tempo significativo
tende a entender e valorizar o que acontece nesta instituição. Isso facilita a
transmissão das regras escolares aos seus membros mais jovens. A importância do
uniforme, a capacidade de esperar a vez de falar, por exemplo, são normas que
têm de ser aprendidas. O acompanhamento do dever de casa é outro exemplo de
como a escola requisita espaço e tempo do cotidiano familiar. Entretanto,
muitas famílias simplesmente não sabem ou não conseguem realizar esse
acompanhamento com a disponibilidade e/ou competência que se espera delas.
Assim, os
alunos cujas famílias têm experiências e valores próximos aos da escola, além
de recursos para investir no apoio a sua carreira escolar, ocupam o lugar do
“aluno esperado”. Já os alunos cujas famílias têm culturas, valores diferentes
dos da escola e têm poucos recursos para empregar no suporte à escolarização
dos filhos são, muitas vezes, classificados simplesmente pela distância que os
separa do aluno esperado. Esta identidade marcada pelo que falta à criança para
se transformar no aluno dentro dos “moldes desejados” tende a afetar sua
relação com os professores, coordenadores escolares e diretores. Como os
projetos político-pedagógicos – e as práticas deles decorrentes – irão
considerar essa criança, se a comunidade escolar só a conhece pelo que ela não
é e não conhece seu rosto? É difícil incluir e valorizar o que não se conhece.
Historicamente,
as práticas pedagógicas na instituição escolar baseiam-se com frequência na
homogeneização do grupo de alunos: os que se encaixavam no padrão esperado
seguiam em frente, enquanto os que não se encaixavam fracassavam até desistir.
Convivemos, durante muito tempo, com a produção do insucesso escolar em massa,
sem nos escandalizarmos.
Com a
conquista paulatina de direitos infanto-juvenis, a simples exclusão de alunos
do sistema de ensino passou a ser uma via institucionalmente bloqueada. Os
educadores começaram a perceber a magnitude do problema: com a população
infanto-juvenil toda dentro do sistema de ensino, muitas crianças não sabiam
transitar pelas regras institucionais, não dispunham de recursos materiais
necessários ou nem podiam contar, fora da escola, com apoio de um adulto que
tivesse tempo, afeto e conhecimento para lhes oferecer.
Entretanto,
o conhecimento da realidade precária, que comprometia as condições de
escolarização de uma grande parcela do alunado, em vez de abrir caminho para
novas práticas educacionais, acabou sendo usado, muitas vezes, como álibi:
sentindo-se sobrecarregada, a escola eximiu-se de responsabilidades e jogou
sobre as crianças e suas famílias o ônus do fracasso. Muitos professores e
diretores apostaram que, elegendo e reforçando os alunos bem-sucedidos,
estariam incitando os demais a se esforçar para seguir o mesmo modelo. Neste
movimento, desvalorizaram aqueles que não traziam em sua bagagem familiar os
comportamentos e recursos necessários para enfrentar a vida escolar. As
diferenças (étnicas, culturais, sociais, corporais etc.) foram convertidas em
carências e déficits que deviam ser compensados e ultrapassados até que o aluno
real se transformasse no “aluno ideal”.
A tese do
déficit cultural gerou programas que ofereciam às crianças das classes sociais
marginalizadas condições para recuperar o seu “atraso”. Aplainando as carências
afetivas, nutricionais, linguísticas, todos os alunos se transformariam no
aluno esperado e a escola poderia seguir seu projeto sem grandes mudanças. As
críticas à educação compensatória denunciaram que ela contribuía para reforçar
e difundir uma visão preconceituosa sobre o modo de vida das camadas populares,
retratando-as como uma cultura inferior.
Passadas
algumas décadas, a situação de desigualdade social no Brasil ainda permanece
grave, mas consolida-se cada vez mais a compreensão sobre as formas de se
alcançar justiça social e se manter a conquista de direitos.
Chegamos
então a uma questão que é crucial na perspectiva deste trabalho: a equidade
educacional.
Desde o
final dos anos 1980, as lutas pelos direitos das minorias e em defesa da
diversidade
confrontaram
os discursos consolidados sobre a igualdade vigentes até então. A fórmula
“somos todos
iguais” começou a ser revista a partir do reconhecimento de que somos
todos
diferentes: a igualdade não deve ser tomada como um ponto de partida, mas sim
como um horizonte a ser alcançado. Coloca-se assim a noção de equidade como
base de um projeto político de igualdade que parte do reconhecimento das
desigualdades iniciais.
Mas como
essa noção se aplica à educação? Inicialmente, é preciso reconhecer que a
concepção de que todos somos iguais, por desconsiderar as diferenças de origem,
contribuiu para converter desigualdades sociais em desigualdades escolares. A
oferta educativa homogênea, pensada para atender o grupo dos alunos esperados,
reforçava a desvantagem inicial dos alunos que se distanciavam desse perfil.
No Brasil,
com a quase universalização do acesso ao ensino fundamental, a desigualdade nas
condições de aprendizagem e no alcance dos resultados educacionais está sendo
assumida como um problema de qualidade da escola/sistema – além de ser uma
questão prioritária na agenda social nacional.
A busca pela
qualidade com equidade, ou seja, todos os alunos aprendendo e progredindo na
carreira escolar na idade certa, está presente na pauta das políticas, nos
projetos e também nos programas de pesquisa na área da Educação.
Na
empreitada pela equidade, a relação escola-família ressurge como um
fator-chave. Mesmo que não haja uma comprovação científica da influência direta
da interação escolafamília na melhoria do aprendizado dos alunos, inúmeras
pesquisas no Brasil e no mundo todo têm mostrado que as condições
socioeconômicas, as expectativas e a valorização da escola e o reforço da
legitimidade dos educadores são fatores que emanam da família e estão altamente
relacionados com o desempenho dos alunos.
A proposta
deste estudo é organizar uma compreensão mais acurada do que está em jogo
quando os agentes educacionais tomam a iniciativa do contato com as famílias
dos alunos. Esperamos que contribua para o resgate da disposição dos profissionais
da escola em conhecer a realidade de cada aluno e entender o alcance da sua
prática social.
Para
isso, frisamos mais uma vez, os professores precisarão ser apoiados pela equipe
de gestão escolar – que, por sua vez, terá de contar nesta tarefa com o suporte
da Secretaria de Educação.
O
conhecimento das condições de vida das crianças e adolescentes em idade de
escolarização obrigatória pode dar origem a ações interligadas em dois níveis:
1)
a revisão dos projetos e práticas educacionais, pensando na diversidade dos
alunos e não apenas no aluno esperado;
2)
a convocação de novos atores e a articulação das políticas educacionais com
políticas setoriais capazes de apoiar as famílias dos alunos para que elas
possam exercer suas funções.
III – PRINCÍPIOS PARA UMA PROPOSTA DE INTERAÇÃO
ESCOLA-FAMÍLIA
O
presente estudo assume uma proposta de interação escola-família que está
baseada nos seguintes princípios norteadores:
•
A educação de qualidade, como direito fundamental de todas as pessoas, tem como
elementos essenciais a equidade, a relevância e a pertinência, além de dois
elementos de caráter operativo: a eficácia e a eficiência.
•
O Estado (nos níveis federal, estadual e municipal) é o responsável primário
pela educação escolar.
•
A escola não é somente um espaço de transmissão da cultura e de socialização. É
também um espaço de construção de identidade.
•
O reconhecimento de que a escola atende alunos diferentes uns dos outros
possibilita a construção de estratégias educativas capazes de promover a
igualdade de oportunidades.
•
É direito das famílias ter acesso a informações que lhes permitam opinar e
tomar decisões sobre a educação de seus filhos e exercer seus direitos e
responsabilidades.
•
O sistema de educação, por meio das escolas, é parte indispensável da rede de
proteção integral que visa assegurar outros direitos das crianças e
adolescentes.
•
A proteção integral das crianças e adolescentes extrapola as funções escolares
e deve ser articulada por meio de ações que integrem as políticas públicas
intersetoriais.
IV – BREVE HISTÓRIA DA RELAÇÃO ESCOLA-FAMÍLIA
NO BRASIL
Tanto a
escola quanto a família, as duas instituições cuja relação é nosso objeto de
análise, sofreram transformações profundas ao longo da nossa história. Mediador
e regulador dessa relação, o papel do Estado também foi se modificando. Ao
percorrer esta história, podemos compreender a origem de algumas ideias que
ainda hoje estão presentes no pensamento educacional e verificar sua atualidade
ou anacronismo. A recuperação deste fio de meada pode inspirar cada município a
identificar conexões desse cenário geral com a história local, com seus traços
específicos, e assim melhor compreender o terreno simbólico no qual irá atuar.
DE ONDE VEM
A ESCOLA QUE CONHECEMOS E AS IDEIAS QUE AINDA ACEITAMOS?
nasce
marcada pelo ideário da civilização e do progresso para todos. A ação
educacional no Brasil começou, ainda no período colonial, como uma ação para as
elites, calcada nos valores da cultura europeia, de conteúdo livresco e aristocrático.
Para as classes populares, a educação, quando existia, voltava-se para a
preparação para o trabalho e era quase uma catequese – o objetivo principal era
moralizar, controlar e conformar os indivíduos às regras sociais.
Configurou-se
assim, desde o início da história da educação brasileira, uma proposta
educacional marcada pela diferenciação de atendimento para ricos e pobres.
Nos
primeiros anos da República, as poucas escolas primárias existentes – criadas
ainda no período do Império – atendiam cerca de 250 mil alunos, em um país com
cerca de 14 milhões de habitantes, dos quais 85% eram analfabetos. Até o final
do século XIX, o abismo entre os setores da sociedade brasileira no que se
refere à educação manteve-se praticamente inalterado: enquanto os filhos dos
fazendeiros eram enviados à Europa para aprofundar seus estudos, formando a
elite política e intelectual do país, a imensa maioria da população era
analfabeta. Durante todo o período imperial e ainda no início da República, a
escolarização doméstica de iniciativa privada, às vezes organizada em grupos de
parentes ou vizinhos em áreas rurais, atendia um número considerável de alunos,
ultrapassando inclusive a rede de escolas públicas existente.
Foi
especialmente a partir da proclamação da República em 1889 que a escolarização
ganhou impulso em direção à forma escolar que conhecemos atualmente. Pode-se
mesmo afirmar que a escola se transforma numa instituição fundamental para a
sociedade brasileira há pouco mais de 100 anos, e nesse sentido, ela pode ser
considerada uma instituição republicana. No ideário republicano a educação
escolar se associava à crença na civilização e no progresso. A importância
crescente da escola primária teve como contraponto a desqualificação das
famílias para a tarefa de oferecer a instrução elementar, progressivamente
delegada à instituição escolar, cujos profissionais estariam tecnicamente
habilitados para isso. Apesar da importância conferida à educação pela
República, não se verificou uma substancial melhoria da situação de ensino: o
recenseamento de 1906 apresentou uma média nacional de analfabetismo de 74,6%.
Com a
criação das escolas públicas pelo novo regime, começa-se a questionar a
capacidade da família para educar os filhos. É neste quadro de contraposição da
educação moderna à educação doméstica que se consolidam as primeiras ideias –
que resistem ao tempo, mesmo fora de contexto –, de que as famílias não estavam
mais qualificadas para as tarefas do ensino. Além de terem de mandar os filhos
à escola, os familiares precisavam também ser educados sobre os novos modos de
ensinar. O Estado passa a ter um maior poder diante da família, regulando
hábitos e comportamentos ligados à higiene, saúde e educação.
A construção
dos grupos escolares durante o período da Primeira República (1889-1930)
colocava em circulação o modelo das escolas seriadas. O novo sistema
educacional permitia aos republicanos romper com o passado monárquico e
projetar um futuro. A arquitetura com dimensões grandiosas, a racionalização e
a higienização dos espaços faziam com que
o prédio
escolar se destacasse em relação às outras edificações que o cercavam. O
objetivo era incutir nos alunos o apreço à educação racional e científica,
valorizando uma simbologia estética, cultural e ideológica construída pela
República. A cultura elaborada tendo como eixo articulador os grupos escolares
atravessou o século XX, constituindo-se em referência para a organização
seriada das classes, para a utilização racionalizada do tempo e dos espaços e
para o controle sistemático do trabalho docente.
A
disciplina e a moral da Era Vargas
No
fim da Primeira República e início do governo de Getúlio Vargas, consolida-se a
dimensão reformista da escola, sobretudo no que se refere às camadas mais
pobres. Nessa cruzada pelos bons costumes, com destaque para higiene e
alimentação, a mulher é identificada como a grande responsável por garantir a
boa ordem no lar e precisa ser reeducada para conhecer e compreender as
necessidades infantis. Dá-se especial importância à estratégia de utilizar o
próprio aluno como intermediário entre a escola e a família, influenciando a
educação dos adultos, expediente até então muito utilizado pela Igreja
Católica.
Nesse
contexto, a família inicialmente perde sua função de educadora em favor da
sociedade política mas, em seguida, é chamada de volta ao terreno da educação
para auxiliar o Estado educador. Enquanto a escola continua a comandar o
processo, os pais e responsáveis passam a ocupar uma posição de auxiliar... Com
seu status de serviço de interesse público, a educação passa a ser exercida por
profissionais com saberes, poderes, técnicas e métodos próprios. Essa
demarcação separa familiares e profissionais da educação, distinguindo leigos e
doutos na promoção da aprendizagem escolar. A escola afirmava-se como
instituição especializada na socialização das crianças, sobrepondo-se à
família, às igrejas ou a quaisquer outras iniciativas de organização social.
As
famílias, também atingidas pela complexidade que tomou conta do mundo e da escola,
também se reorganizam. Não surpreende então que família e escola, obrigadas a
conviver e partilhar desigualmente a responsabilidade pela educação das novas
gerações, às vezes conduzam o trabalho de forma substancialmente diferente e
até mesmo conflitante.
Uma experiência dos pioneiros da escola nova
Em 1921, em
plena República Velha, uma professora chamada Armanda Álvaro Alberto fundou a
Escola Proletária de Meriti, localizada em Duque de Caxias, onde criou o
Círculo de Mães – uma experiência institucional inédita na busca de aproximação
entre a escola e a família. A escola, que foi a primeira também a fornecer
almoço para os alunos, dispunha de uma biblioteca e um museu. Esses espaços
eram desconhecidos numa época em que os alunos só aprendiam o que estava nos
livros e nem se falava em pesquisa escolar. A professora Armanda Álvaro Alberto
fazia parte do Movimento dos Pioneiros da Escola Nova, que surgiu na década de
1920 e teria forte presença e influência no cenário educacional das décadas
seguintes. Os escolanovistas lutavam pela garantia de educação como direito
básico e trabalharam pela modernização não apenas dos espaços escolares, mas
também das práticas pedagógicas. Neste período, muitos desses educadores
realizaram reformas educacionais nos estados, como a de Lourenço Filho, no
Ceará, em 1923, a de Francisco Campos e Mario Casassanta, em Minas Gerais em
1927, a de Fernando de Azevedo, no Distrito Federal (atual Rio de Janeiro) em
1928 e a de Carneiro Leão, em Pernambuco, em 1928 e a do próprio Anísio
Teixeira na Bahia em 1925. Já sob o governo Vargas, em 1932, os Pioneiros da
Escola Nova divulgaram o Manifesto “A Reconstrução Educacional no Brasil – Ao
Povo e ao Governo”. Armanda foi uma das três mulheres signatárias do documento
– que retratava o inconformismo com a educação no país e defendia a montagem de
um sistema de educação pública, laica, gratuita e obrigatória para todos. O
Manifesto, marco inaugural do projeto de renovação educacional, consolidava a
visão de um segmento da elite intelectual que via a possibilidade de interferir
na organização da sociedade brasileira a partir da educação. Entre as várias
propostas, trataram da função social da escola, reconhecendo a importância da
família como agente de educação vale destacar: “A educação não se faz somente
pela escola, cuja ação é favorecida ou contrariada, ampliada ou reduzida pelo
jogo de forças que concorrem ao movimento das sociedades modernas. Numerosas e
variadíssimas são as influências que formam o homem através da existência. Há a
herança que é a escola da espécie, a família que é a escola de pais, o ambiente
social que é a escola da comunidade”.
À medida que
o regime de Vargas se fechava e caminhava para a ditadura, a educação
voltava-se cada vez mais para o culto da nacionalidade, da disciplina e da
moral. As concepções, os formatos e as práticas da Era Vargas moldaram o ensino
brasileiro por várias décadas. Estabeleceu-se no Estado Novo a associação entre
educação e segurança nacional, sendo a educação utilizada como instrumento de
controle, dentro de um projeto de mobilização vigiada, para a implantação dos
conceitos fundamentais de disciplina, hierarquia, solidariedade e cooperação,
vistos como garantia de segurança da nação.
A campanha pela escola pública
Após a queda
do Estado Novo, a Constituição de 1946 concedeu grande autonomia aos estados e
restabeleceu o ensino primário obrigatório e gratuito, mantido por um
percentual da receita dos impostos dos estados e municípios. Os governos
municipais e estaduais responderam à crescente demanda educacional da população
em acelerado processo de urbanização (na década de 1950 a população urbana já
representava 35% do total no Brasil), expandindo a rede de escolas, ao mesmo
tempo em que o ensino particular também se ampliava. Em 1948, o Ministério da
Educação e Cultura passa a ter atuação independente do Ministério da Saúde e
lança-se o primeiro Plano Nacional de Educação, propondo um modelo único de
educação para todo o país. Ainda assim, em fins dos anos 1950, metade da
população do país ainda era analfabeta e apenas 50% das crianças na faixa de 7
a 14 anos frequentavam a escola primária (séries iniciais do atual ensino
fundamental).
Nessa
época, diversos grupos organizados da sociedade se articulam em torno da
Campanha de Defesa da Escola Pública, liderada por educadores aos quais se
juntam profissionais liberais, estudantes, intelectuais e líderes sindicais.
Frente à participação tímida e ineficiente do Estado para atender a demanda por
matrículas pressionada pela industrialização e urbanização do país, a expansão
do ensino privado garantiu o aumento quantitativo na escolarização.
O Plano de
Metas do governo Juscelino Kubitschek (1956-1961) quase não contemplou os
investimentos sociais em educação. Em 1961 foi aprovada a primeira Lei de
Diretrizes e Bases da Educação. A lei tratava dos fundos nacionais e da
aplicação e distribuição de recursos financeiros destinados à educação. No
início dos anos 1960, foram definidos um novo Plano Nacional de Educação e o
Programa Nacional de Alfabetização, inspirado no Método Paulo Freire de
alfabetização de adultos. Este programa, percebido como um ato político por
privilegiar a educação popular, viria a ser extinto logo após o golpe militar.
A ditadura militar e a desvalorização da
profissão docente
O índice de
analfabetismo no Brasil era de 32,05% no final da década de 1960. Durante a
ditadura militar, o repasse às escolas privadas de recursos do salário-educação
como “amparo técnico e financeiro” contribuiu para a expansão da rede privada de
ensino, em um ambiente de confiança na eficácia da competição empresarial como
instrumento de ampliação da oferta educacional reclamada pela sociedade.
A
Constituição de 1967 classificou a educação como dever do Estado e ampliou a
obrigatoriedade do ensino de quatro para oito anos, porém suprimiu o preceito
que obrigava a destinação de um percentual de recursos públicos para a
educação. Sem financiamento contínuo e garantido, as instalações e condições
físicas das escolas públicas pioram e a qualidade do ensino também cai. Ainda
assim observa-se a gradativa expansão da rede pública de ensino, que prioriza a
construção de novas unidades escolares, mesmo à custa da precarização da
manutenção e da garantia de condições dignas de trabalho para os profissionais
da educação. As longas jornadas, os baixos salários e uma mudança no perfil da
clientela contribuíram para que a carreira de professor primário (séries
iniciais do ensino fundamental) perdesse o encanto e parte do reconhecimento
social. Observou-se o progressivo declínio da dignidade e do valor da profissão
docente, particularmente na educação básica.
A
necessidade de formação da força de trabalho que pudesse subsidiar o
crescimento econômico dos anos 1970 favoreceu a construção de inúmeros
estabelecimentos de ensino, e a escola chegou a partes significativas da classe
trabalhadora, que até então quase não se escolarizava. A rede pública de ensino
passa a atender crianças provenientes de famílias com muito pouca ou nenhuma
escolaridade. Para lidar com as diferenças sociais e culturais da nova
clientela, surge a proposta da “educação compensatória”, que se dispunha a
aplainar as deficiências advindas das condições sociais dos filhos de famílias
pobres.
Nas décadas
de 1970 e 1980 os setores urbanos, cada vez mais numerosos, continuaram a
pressionar pela ampliação da oferta de escolarização básica, demanda que seguia
sendo muito superior à capacidade e à vontade política do poder público de
atendê-la. Nesse contexto, cresce o movimento das famílias de classe média de
enviar suas crianças para escolas particulares, iniciando-se uma forte
associação entre escola pública e ensino para pobres.
Mesmo com a
expansão das matrículas no sistema educacional desde as décadas de 1960 e 70, o
Censo Demográfico de 1980 dava conta que, de uma população em idade escolar de
23 milhões, cerca de um terço não frequentava a escola. Na área rural, onde a
população em idade escolar era na época de cerca de nove milhões, menos da
metade frequentava a escola. Também em 1980, o índice de analfabetismo no
Brasil era de 25,5%.
Criada como
instituição especializada, dotada das competências específicas, a escola
assumiu a função de promover o ensino. Família e escola compartilharam, ao
longo do século XX, a responsabilidade por criar condições para que o aluno
pudesse aprender.
A partir dos
anos 1950, crescem a importância que as famílias atribuem à educação e a
aproximação entre escola e família. Esse processo, entretanto, esteve sujeito a
idas e vindas: durante os períodos autoritários, por exemplo, a escola pública
brasileira esteve menos permeável ao diálogo com as famílias e as comunidades.
Por outro
lado, as várias mudanças políticas, econômicas e culturais ocorridas, sobretudo
na segunda metade do século XX, tiveram forte impacto sobre o papel da mulher e
sobre a configuração das famílias, que se tornaram menos numerosas e menos
sujeitas ao controle patriarcal.
Assim as
famílias contemporâneas assumem novos formatos com mães responsáveis pelo
sustento dos filhos, pais solteiros, madrastas e padrastos de segundos
casamentos, união entre pessoas do mesmo sexo com direito a adoção de filhos
etc. A organização das famílias passa a incluir novos arranjos que refletem
mudanças socioculturais.
Dessa forma,
não tem sentido fazer referência a essas diferentes configurações como
“famílias desestruturadas”, uma vez que na verdade elas configuram novas
estruturas e não a falta de estrutura. Isso não significa dizer que não existam
famílias negligentes ou omissas, nem implica em negar a situação de
vulnerabilidade de muitas – mas é preciso discernir entre o que realmente traz
problemas para as crianças e o que é apenas sinal de novos tempos. Vale lembrar
que estas transformações e rearranjos familiares se encontram atualmente
presentes em todos os grupos sociais e nem todas as crianças oriundas destas
novas estruturas familiares vivenciam problemas escolares ou sociais.
Nas últimas
décadas do século XX, a revolução tecnológica, a globalização, a comunicação e
a computação criam novos costumes e demandas. Nesse período, especialmente nos
grandes centros urbanos do Brasil, os altos índices de violência e de conflitos
sociais impactam a vida das famílias e a rotina das escolas públicas. Ao mesmo
tempo, a consolidação da democracia e a busca conjunta pela qualidade do ensino
parecem abrir espaço para o maior entendimento e colaboração entre escola e
família.
Estudos
sociológicos recentes iluminam de modo mais específico essa relação, buscando,
entre outros objetivos, identificar os efeitos do envolvimento dos responsáveis
na escolaridade dos filhos. Os estudiosos do tema atestam que hoje a escola e a
família intensificaram como nunca suas relações. A presença e a participação
dos responsáveis nas atividades escolares são cotidianas e acontecem além das
instâncias formais. A relação entre responsáveis e profissionais da educação é
cada vez mais individualizada, em favor não apenas do desenvolvimento
intelectual da criança, mas de seu bem-estar emocional.
A democracia e a busca da qualidade
Com a redemocratização
do país na década de 1980 e a convocação da Assembleia Nacional Constituinte,
os direitos sociais da população são evidenciados. A Carta de 1988, que pela
primeira vez incorporou ao sistema de ensino a educação infantil e retomou o
direito à educação para todos, inclusive os adultos, definiu a educação como
direito social (artigo 6º) “fundante” da cidadania e instituiu o ensino
fundamental gratuito e obrigatório universal (para crianças, adolescentes,
jovens, adultos e idosos de qualquer idade) como direito público subjetivo
(artigo 208, parágrafos 1º e 2º)11.
A partir de
então, atendendo democraticamente à pressão da sociedade, os governos passaram
a dar mais atenção à área da educação, estabelecendo novos planos e estratégias
para financiar o sistema educacional – que a partir da nova Constituição volta
a ter garantia de percentuais de impostos para seu desenvolvimento e
manutenção –, qualificar professores e
avaliar os resultados das escolas públicas.
11. “Direito
público subjetivo é aquele pelo qual o titular de um direito pode exigir direta
e imediatamente do Estado o cumprimento de um dever e de uma obrigação. O
titular deste direito é qualquer pessoa, de qualquer idade, que não tenha tido
acesso ou à escolaridade obrigatória na idade apropriada ou não...” (Saviani,
2002, p. 21 e 22).
A Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), promulgada em 1996, traz pela
primeira vez a dimensão da autonomia das escolas para concepção do projeto
político pedagógico, com apoio das Secretarias Municipais de Educação. Até
então, as escolas eram um espaço de implementação de políticas e programas e
não respondiam pela construção de seus projetos12.
Como
resultado da obrigatoriedade constitucional e das novas políticas públicas
desenvolvidas a partir da redemocratização do país, a taxa de escolarização da
população de sete a 14 anos subiu em 2000 para 97%. Dessa forma, o desafio
prioritário no ensino fundamental deixa de ser a garantia do acesso à escola.
Superada a exclusão pela falta de capacidade de atendimento, visualiza-se a
exclusão pelo aprendizado insuficiente.
A escola
brasileira continua a reproduzir desigualdades, uma vez que meninos negros e
pobres são mais reprovados, abandonam mais os estudos e concluem menos o ensino
fundamental. De acordo com o Relatório de Monitoramento Global de Educação para
Todos, lançado pela UNESCO em abril de 2008, o Brasil precisará de um grande
esforço para cumprir, até 2015, o conjunto de metas do compromisso da
Conferência Mundial de Educação em Dacar, Senegal, em 2000. O combate ao
analfabetismo, a paridade de gênero – o Brasil tem mais meninas do que meninos
na escola –, a educação infantil e a qualidade da educação são metas nas quais
o país está mais atrasado.
Atualmente,
portanto, a democratização do ensino se traduz pela qualidade do ensino
oferecido que viabiliza a permanência com sucesso do estudante na escola e
contribui para sua formação cidadã.
V – RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ESCOLA-FAMÍLIA
MARCOS LEGAIS
Ao longo das
últimas décadas, a criança foi sendo deslocada da periferia para o centro da
família. Do mesmo modo, ela passou a ser o foco principal do sistema educativo.
O deslocamento é fruto de uma longa história de emancipação, na qual as
propostas educacionais têm peso importante. Esse movimento alinha-se ao dos
direitos humanos e consolida-se na Carta Internacional dos Direitos da Criança,
de 1987, que registra o acesso da criança ao estatuto de sujeito de direitos e
à dignidade da pessoa. Tais conquistas invertem a concepção de aluno como
página em branco, encerrada no projeto inicial da escola de massa e que
organizava a hierarquia das posições no sistema escolar. Estas mudanças incidem
diretamente nas transformações das relações entre as gerações, tanto de pais e
filhos quanto entre professores e alunos. Com relações mais horizontais, o
exercício da autoridade na família e na escola como estava configurado até
então – adultos mandavam e crianças/adolescentes obedeciam – tende a entrar em
crise.
Na
consolidação dos direitos das crianças, as responsabilidades específicas dos
adultos que as cercam vão sendo modificadas e a relação escola-família passa a
ser regida por novas normas e leis. No Brasil, em termos legais, os direitos
infanto-juvenis estão amparados pela Constituição e desdobrados no Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069, de 1990, e na nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), promulgada em 199613.
Segundo a
LDB, os profissionais da educação devem ser os responsáveis pelos processos de
aprendizagem, mas não estão sozinhos nesta tarefa. A lei prevê a ação integrada
das escolas com as famílias:
Como a
educação básica é dirigida, em princípio, a alunos de zero a 17 anos, o ECA se
aplica às escolas e diz explicitamente:
Tanto no ECA
quanto na LDB, a efetividade do direito à educação das crianças e dos
adolescentes deve contar com a ação integrada dos agentes escolares e pais ou
responsáveis. Esse novo ambiente jurídico-institucional inaugura um período sem
precedentes de consolidação de direitos sociais e individuais dos alunos e suas
famílias:
De todos os
equipamentos do Estado, a escola é o que tem o mais amplo contato contínuo e
frequente com os sujeitos destes direitos, daí sua responsabilidade de atuar
junto a outros atores da rede de proteção social. Isso não significa mudar o papel
da escola e transformá-la em instituição assistencialista, mas sim dar relevo a
seu papel de ator fundamental – embora não exclusivo – na realização do direito
da criança e do adolescente à educação.
É comum se
ouvir discussões acaloradas entre professores sobre o ECA, principalmente
quando ocorre alguma infração envolvendo adolescentes que recebem a proteção
indicada pelo Estatuto. De fato, o respeito deve ser exercido em “mão dupla”,
ou seja, não apenas crianças e adolescentes têm direitos a serem respeitados,
mas também seus educadores e demais profissionais. As discussões em torno do
tema devem ocorrer a partir de uma compreensão acurada da doutrina da proteção
integral, que precisa estar incorporada à formação inicial e continuada de
professores, gestores escolares e educacionais. Com o envolvimento consciente
desses profissionais, a realização do direito à educação da criança e do
adolescente certamente será mais facilmente alcançada.
Outra
questão é que, para a efetivação do Estatuto, novos atores, como o Conselho
Tutelar14 – órgão permanente e autônomo, não jurisdicional – e o Ministério
Público, passam a ser interlocutores dos agentes educacionais e das famílias.
Essas mediações afetam o equilíbrio das relações de poder dentro das escolas, das
famílias e entre escolas e famílias. Conflitos antes tratados na esfera privada
ganham os holofotes e os rigores da esfera pública.
Atualizando
os marcos existentes, o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, do
Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), formalizado pelo Decreto nº 6.094,
de 24/4/2007, reforça a importância da participação das famílias e da
comunidade na busca da melhoria da qualidade da educação básica. O Plano de
Metas estabelece as seguintes diretrizes para gestores e profissionais da
Educação:
14. O Conselho Tutelar não possui
capacidade legal de interferência em assuntos internos da escola. No entanto,
ele pode verificar, por exemplo, a frequência e o aproveitamento escolar de
determinada criança ou adolescente. Não para interferir na escola, mas para
determinar aos pais ou ao responsável as medidas para a correção das
insuficiências (artigo 129, inciso V). O que se percebe na prática é que em
muitas ocasiões basta que os pais sejam orientados com relação às suas obrigações
para reverter a ausência dos alunos.
NOVAS FRONTEIRAS ESCOLA-FAMÍLIA
No movimento
histórico apresentado anteriormente, vimos que houve transferência de parte das
funções educativas da esfera familiar para a estatal. Nesse deslocamento, ao
mesmo tempo em que o saber familiar, sobretudo das famílias pobres, foi
desqualificado, ocorreu a profissionalização das funções educativas,
reorganizando a interseção de funções e responsabilidades entre as famílias e
as escolas.
É importante
ressaltar que ainda hoje mães, pais e os demais agentes escolares se encontram
em condições bastante distintas dentro do processo educativo. Como instituição
do Estado encarregada legalmente de conduzir a educação formal, a escola, por
meio de seus profissionais, tem a prerrogativa de distribuir os diplomas que
certificam o domínio de conteúdos considerados socialmente relevantes. Esses
certificados são pré-requisitos para estudos futuros e credenciais importantes
no acesso das pessoas às diferentes posições de trabalho na sociedade.
Essas duas
instituições, que deveriam manter um espaço de interseção por estarem
incumbidas da formação de um mesmo sujeito, podem, dependendo das
circunstâncias, se distanciar até chegar a uma cisão. Normalmente, quando o
aluno aprende, tira boas notas e se comporta adequadamente, mães, pais e
professores se sentem como agentes complementares, corresponsáveis pelo
sucesso. Todos compartilham os louros daquela vitória. Mas, quando os alunos
ficam indisciplinados ou têm baixo rendimento escolar, começam as disputas em
torno da divisão de responsabilidades pelo insucesso.
O insucesso
escolar deveria suscitar a análise de causas dos problemas que interferiram na
aprendizagem, avaliando o peso das condições escolares, familiares e
individuais do aluno. O que se constata é que, em vez disso, o comportamento
mais comum diante do fracasso escolar é a atribuição de culpas, que geralmente
provoca o afastamento mútuo. Para ilustrar essa questão, colocamos lado a lado
duas falas recorrentes nas entrevistas realizadas para este estudo:
– Dos professores, ouvíamos: “os pais dos alunos
que mais precisam de ajuda são sempre os mais difíceis de trazer até a escola”.
–
Dos pais desses alunos que mais precisam, ouvíamos: “nós, que mais precisamos
de ajuda, somos os mais cobrados pelas escolas”.
E
uns não escutam os outros.
Neste
jogo de busca de culpados, a assimetria de poder entre profissionais da
educação e familiares costuma pesar a favor dos educadores, principalmente
quando temos, de um lado, os detentores de um saber técnico e, de outro,
sujeitos de uma cultura iletrada. Novamente, se essas diferenças são
convertidas em desigualdade, a distância entre alguns tipos de famílias e as
escolas que seus filhos frequentam se amplia. Podemos dizer que usar a assimetria
de poder para transferir da escola para o aluno e sua família o peso do
fracasso transforma pais, mães, professores, diretores e alunos em
antagonistas, afastando estes últimos da garantia de seus direitos
educacionais. É uma armadilha completa.
Mas seria
possível, ou desejável, anular a assimetria entre os familiares dos alunos e os
profissionais da educação? Entendemos que por trás da assimetria há diferenças
reais. Os educadores escolares são profissionais
especializados que têm autorização formal para ensinar e, conforme já
mencionado, para emitir certificações escolares. Eles formam um coletivo com
interesses profissionais e institucionais a zelar, enquanto os familiares,
geralmente pouco organizados, são movidos por interesses individuais centrados
na defesa do próprio filho.
Mais
recentemente, além de representantes dos filhos, os familiares têm sido
estimulados – inclusive pela legislação educacional – a interagir com os
profissionais da educação também como cidadãos que compõem a esfera pública da
instituição escolar. A participação em conselhos escolares (ou associações de
pais e mestres), em conselhos do Fundeb15, conselhos de merenda etc. é parte
desta tarefa de representação da sociedade civil e de controle social. Essa
dupla função – representante do filho e representante da comunidade – torna
mais complexa a delimitação dos lugares reservados aos pais e mães na escola,
mas abre possibilidades importantes de exercício democrático de participação
que podem beneficiar todos.
Quando falamos
em interação, pensamos em atores distintos que têm algum grau de reciprocidade
e de abertura para o diálogo. Nessa perspectiva, é importante identificar e
negociar, em cada contexto, os papéis que vão ser desempenhados e as
responsabilidades específicas entre escolas e famílias. Por exemplo,
considera-se que o ensino é uma atribuição prioritariamente da escola. Esta,
porém, divide essa responsabilidade com as famílias, quando prescreve tarefas
para casa e espera que os pais as acompanhem. Em um contexto de pais pouco
escolarizados, com jornadas de trabalho extensas e com pouco tempo para
acompanhar a vida escolar dos filhos, essa divisão pode mostrar-se ineficaz.
Por isso, da mesma forma como procura diagnosticar as dificuldades pedagógicas
dos alunos para atendê-los de acordo com suas necessidades individuais, a
escola deve identificar as condições de cada família, para então negociar, de
acordo com seus limites e possibilidades, a melhor forma de ação conjunta.
Assim como não é produtivo exigir que um aluno com dificuldades de aprendizagem
cumpra o mesmo plano de trabalho escolar dos que não têm dificuldades, não se
deve exigir das famílias mais vulneráveis aquilo que elas não têm para dar.
VI – TIPOS IDENTIFICADOS DE RELAÇÃO DAS ESCOLAS
COM AS FAMÍLIAS
O
levantamento realizado para este estudo revelou ser pequeno o número de
iniciativas16 (projetos, programas ou políticas) em curso no Brasil desenhadas
especificamente para estimular a relação escola-família. Constatamos também que
várias experiências, localizadas via internet, haviam sido interrompidas com
pouco tempo de duração. Isso pode indicar tanto que tais experiências foram
projetadas como eventos pontuais – dia da família na escola, ação comunitária,
festividades –, quanto a dificuldade de conceber e implementar uma proposta
mais consistente.
Estes fatos
contrastam com o discurso difundido por pesquisadores, educadores, gestores
educacionais e legisladores sobre a importância de se trabalhar em conjunto com
a família dos alunos. Como ler esta distância entre o suposto consenso sobre a
relevância de aproximação das escolas com as famílias e a dificuldade de se
conceber e implementar programas ou políticas nessa direção?
Parte da
explicação parece estar na conjunção da complexidade do tema e das inúmeras
dificuldades que as escolas públicas brasileiras enfrentam para acolher o
universo das crianças em idade de escolarização obrigatória. As pesquisas
mostram também que esta interação nem sempre é cordial e solidária. Ela pode
ser uma relação armadilhada, onde nem tudo
o que reluz
é ouro ou um diálogo (im)possível, como descrevem alguns teóricos mais
influentes sobre a questão17. Um agravante da dificuldade do empreendimento
pode ser, justamente, a falta de referências concretas de experiências municipais
e escolares que obtiveram resultados comprovados18 de uma interação que
resultasse em melhoria na qualidade educacional. O presente estudo pretende
avançar, mesmo que de forma exploratória, na remoção deste último obstáculo.
Com base nas
informações coletadas, fizemos uma leitura transversal que aglutinou as
experiências em quatro tipos de intencionalidade.
Toda
tipologia deve ser tomada como uma das possíveis interpretações dos dados e tem
efeito simplificador que redunda em perdas. Perdem-se a riqueza dos contextos,
as nuances de situações muito distintas e os detalhes de cada experiência
concreta. Na realidade, uma mesma experiência pode ter simultaneamente
objetivos, estratégias e resultados de diferentes tipos, de forma que eles não
são mutuamente excludentes.
Nossa
expectativa com esta classificação é ajudar os gestores e educadores a
reconhecer em que medida já realizam atividades de interação escola-família e
refletirem como podem ampliá-las, redirecioná-las ou iniciar novos cursos de
ação segundo as necessidades diagnosticadas.
Educar as famílias
Praticamente
todas as escolas e redes de ensino fazem reuniões de pais e promovem debates
sobre as mudanças sociais que afetam as crianças, jovens e consequentemente
escolas e famílias. Nessas ocasiões apresentam seus projetos pedagógicos, falam
de seus planos e convidam palestrantes para esclarecer sobre o perigo do
envolvimento com drogas, o risco de uma gravidez precoce, a dificuldade de
impor limites e manter a autoridade do adulto etc. Às vezes, as reuniões são
organizadas de forma mais lúdica, com técnicas de dinâmica de grupo para que as
pessoas se sintam mais acolhidas. Mas, na medida em que a escola defende seu
lugar de protagonista e abre poucos canais de escuta sobre
o que os
pais têm a dizer, esse acolhimento fica num nível muito superficial. Não
estamos negando a importância desse tipo de atividade, mas é importante também
analisar alguns de seus limites.
A ideia de
educar as famílias costuma ter por base a suposição de que elas são omissas em
relação à criação de seus filhos. Essa “omissão parental” que alguns autores
nomeiam como um mito, aparece reiteradamente no discurso dos educadores como
uma das principais causas dos problemas escolares. Esse tipo de explicação
incorre numa inversão perigosa de responsabilidades: uma coisa é valorizar a
participação dos pais na vida escolar dos filhos; outra é apontar como
principal problema da educação escolar a falta de participação das famílias.
Abrir a escola para a participação familiar
Essa é uma
das formas de aproximação mais difundidas hoje no meio escolar. É onde se
inscrevem políticas federais como o Escola Aberta, o Mais Educação e também as
ações que visam cumprir as diretrizes de gestão democrática da escola. O espaço
da escola é visto como equipamento público a serviço da comunidade cuja
utilização deve ser ampliada com a realização de atividades comunitárias, como
oficinas para geração de renda e trabalho. Os responsáveis pelos alunos são
tratados como parte da comunidade escolar representando seus pares em conselhos
escolares, associações de pais, e até participando como voluntários em ações
cotidianas da escola, inclusive em alguns casos como auxiliares das professoras
em salas de aula. Os eventos abertos ao público costumam ser planejados
conjuntamente por representantes de pais e equipe escolar. No entanto, a ação
propriamente pedagógica continua sendo uma questão de especialistas e um pedaço
da conversa onde não cabe bem a opinião familiar.
Embora o
diálogo neste tipo de interação seja mais fecundo do que no tipo descrito
anteriormente, os estudos que focam especificamente a participação dos pais na
escola revelam que as oportunidades e espaços destinados a esta participação
costumam privilegiar um tipo de família, que geralmente já se encontra mais
próxima da cultura escolar, em detrimento de outros20. Em outras palavras: são
sempre os mesmos e poucos pais e mães que participam da gestão escolar. Nesse
sentido a ideia de representação é questionada diante da dificuldade em reunir
um número realmente significativo de pais para a tomada de decisões coletivas.
Assim, aqueles familiares que assumem os postos de representação tendem a
defender visões particulares, muitas vezes a favor dos seus próprios filhos – e
não exatamente os interesses de seus pares. Isso pode contribuir para manter
afastadas as famílias menos escolarizadas e reforçar as desigualdades sociais
dentro da escola, barrando oportunidades de equidade educacional.
Sendo assim
– e sem deixar de reconhecer que os mecanismos de participação e gestão
democrática são conquistas preciosas e relevantes –, a forma como eles são
praticados deve ser objeto de atenção cuidadosa por parte das escolas e redes
de ensino. A legitimidade é uma moeda importante na gestão escolar/educacional.
Além disso, cabe lembrar que há hoje programas de formação de conselhos
municipais de educação, conselhos escolares e outros, que ajudam a qualificar
esses processos de decisão coletiva.
Interagir para melhorar os indicadores
educacionais
Uma das
principais causas diagnosticadas da fragilidade da interação das famílias com
as escolas é que a maioria dos usuários do ensino público não tem a cultura de
exigir educação de qualidade para seus filhos. Pesquisas envolvendo pais de
alunos de escolas públicas atestam que, para a maior parte destes, o direito à
educação continua sendo confundido com vaga na escola, acesso ao transporte, ao
uniforme e à merenda escolar. Em resposta a isso, cartilhas orientando sobre os
direitos e deveres das famílias e sugerindo formas de envolvimento dos pais e
mães na educação dos filhos têm sido largamente divulgadas. Igrejas, empresas e
ONGs conclamam seus fiéis, empregados e beneficiados a atuar na busca por uma
escola pública mais eficaz. Mais recentemente, com a criação do Ideb, estamos
vendo uma série de iniciativas governamentais e não governamentais de
mobilização da sociedade civil (familiares incluídos) para monitorar as metas
estabelecidas
20. Há pesquisas
que ressaltam a existência de elementos híbridos como os pais-professores que
costumam desempenhar um papel de ponte entre os interesses institucionais e o
dos pais, quando ocupam posições de representação dos pais de alunos.
para cada
município e escola. Muitas redes de ensino começam a estabelecer incentivos com
base nestas medidas.
Cumprindo a
determinação legal, neste tipo de interação as informações são compartilhadas
com os familiares e as metas estabelecidas para os alunos são colocadas como um
horizonte de interesse comum. Profissionais da educação orientam familiares a
atuarem complementarmente ao trabalho da escola, valorizando e acompanhando a
vida escolar dos filhos. Ajudam também a encontrar alternativas, quando a
família não consegue auxiliar nas atividades de apoio escolar. Coloca-se assim
o princípio de responsabilização de cada parte para a mesa de negociações e
novos atores entram em cena, como o Conselho Tutelar – convocado para ajudar no
combate à infrequência e ao abandono escolar, por exemplo.
Neste tipo
de interação, o foco está posto nos resultados da educação escolar. Mediada por
resultados de avaliações escolares, este tipo de interação ajuda a organizar um
diálogo mais produtivo. As questões de disciplina são tratadas como um problema
comum e não como falha da educação familiar. As funções e metas de ensino
ajudam a estabelecer os compromissos a serem assumidos pela escola. A
dificuldade que se apresenta é que isso exige dos professores e gestores
escolares segurança para defender seu trabalho educacional e abertura para
ouvir críticas em caso de resultados negativos, além da necessária disposição
para buscar soluções de forma compartilhada. No contexto atual, as ações de
interação com a família para melhorar os indicadores educacionais tendem a se
multiplicar.
Incluir o aluno e seu contexto
Este tipo
foi identificado em apenas três das 18 experiências realizadas pelas
Secretarias
– e mesmo
assim de forma parcial. Essas experiências, ainda que raras, incorporam de
maneira mais completa os princípios propagados neste estudo, apontando para
possibilidades de interação escola-família menos difundidas, mas promissoras.
Nesse tipo
de abordagem, a aproximação das famílias tem como ponto inicial o conhecimento
sobre as condições de vida dos alunos e sobre como elas podem interferir nos
processos de aprendizagem. Para estabelecer o diálogo, a escola tanto recebe as
famílias quanto vai até elas por meio de visitas domiciliares, entrevistas com
familiares, enquetes, troca de informações com outros agentes sociais que
interagem com as famílias, como os agentes de saúde do Programa Saúde da
Família etc. A equipe de gestão escolar atua na preparação dessa aproximação e
no planejamento das atividades pedagógicas a partir do que foi apreendido sobre
os alunos e seu contexto familiar.
A interação
com as famílias é universal, isto é, atinge todos os alunos, mas as
consequências do programa dão origem a formas diferenciadas de atendimento aos
alunos. Por exemplo: os casos de vulnerabilidade e abuso são notificados,
encaminhados e acompanhados em conjunto com outros órgãos públicos. A partir
daí, serviços de atendimento educacional aos alunos com menos apoio familiar
podem ser organizados e assumidos pelas escolas.
Este é um
tipo de relação que requer uma disposição de revisão permanente das práticas
e posturas
da instituição escolar e também a articulação de outros profissionais para
compor
uma rede de
proteção à criança e ao adolescente que seja realmente integral.
Reflexões sobre a prática
A
diversidade de experiências que encontramos reforça o que já dissemos sobre as
múltiplas funções e possibilidades que a interação escola-família pode cumprir.
Podemos fazer uma aproximação desta tipologia com uma outra, proposta por Jorge
Ávila de Lima, que classifica o envolvimento dos pais na escola em três tipos:
1) Mera
recepção de informação;
2) Presença
dos pais nos órgãos de gestão da escola; e
3)
Envolvimento significativo na vida da sala de aula.
É oportuno
fazermos aqui uma observação: na construção de uma interação escola
família,
importa mais o tipo de relação que a atividade favorece do que a modalidade da
atividade em si. Nas duas formas de classificação de atividades citadas
anteriormente, percebemos que a interação com as famílias ou participação
parental pode ser mais ou menos superficial, dependendo do objetivo
estabelecido por cada escola ou rede/sistema de ensino. Há casos em que a
comunidade se impõe no espaço escolar, mas, na maioria das situações, o tipo de
interação é decidido pelos educadores.
Algumas
conquistas formais, como a participação de representantes de pais e mães e
mesmo alunos na gestão escolar, muitas vezes não passam de rituais burocráticos
travestidos de democracia. Para que um programa de interação cumpra seus
objetivos de igualdade de oportunidades entre os alunos, é preciso analisar que
participação é essa, em que medida ela é representativa do conjunto das
famílias, e que fatores podem inibir a participação mais igualitária dos
diversos grupos familiares.
Destacamos
também que a presença de familiares na escola nem sempre é um bom indicador de
uma interação a serviço da aprendizagem dos alunos/filhos. Uma escola que
promove muitos e concorridos eventos pode estar se comportando mais como um
centro cultural/social e perdendo de vista o que lhe é específico, isto é,
garantir uma educação escolar de qualidade. Assim, é importante fazer uma
diferenciação entre participação familiar nos espaços escolares e participação
na vida escolar dos filhos – o que também nem sempre depende da presença dos
responsáveis no estabelecimento de ensino.
Chama a
atenção o fato de que em boa parte das experiências identificadas a interação
com as
famílias não é pensada como uma estratégia de conhecimento da situação familiar
para a
construção de um diálogo em torno da educação escolar, mas sim como uma
intervenção no ambiente familiar para que ele responda de forma mais efetiva às
demandas da escola. Essa diferença pode parecer sutil – porém é bastante
significativa. Para ilustrá-la, vamos pensar em posturas diferentes diante de
uma atividade que está presente em todos os estabelecimentos de ensino: as
reuniões de pais na escola.
Uma reunião
pode ter elementos muito semelhantes, mas, dependendo da sua condução, pode
aumentar a distância entre os participantes ou abrir canais de diálogo.
A reunião
poder ser marcada no horário de conveniência da escola sem consultar a
disponibilidade dos responsáveis, ter como conteúdo mensagens que a escola quer
passar aos familiares, independentemente de qualquer tipo de demanda destes, e
a dinâmica pode ser os profissionais da educação falarem e os familiares
escutarem. Nesses casos, os cuidados com acolhimento e participação são
pequenos e podem acontecer situações nas quais os pais se sentem excluídos,
como a projeção de textos escritos para uma plateia com muitos analfabetos ou o
uso de linguagem técnica que não é compreendida pela audiência. A equipe
escolar, ao fim desse tipo de encontro, só sabe o que quis dizer e não
o que foi
compreendido pelas famílias. A consequência é continuar trabalhando com
suposições sobre as famílias, sem ter avançado no conhecimento sobre elas e
muito menos na construção de uma agenda de colaboração mútua.
Numa reunião
em que há uma preocupação maior com a interação, a equipe da escola organiza
informações sobre o desempenho dos alunos (geral e individual) e também
orientações sobre como as famílias podem estimular os alunos a se empenharem
nas atividades escolares. Esse tipo de interação exige maior clareza dos papéis
dos agentes educacionais, que ajudam a delinear para pais e mães os lugares que
podem ocupar no apoio/complementação da educação escolar. Como a interação
pretende influenciar positivamente o desempenho dos alunos, toma-se mais
cuidado com a linguagem e procura-se criar espaços de manifestação e
esclarecimento de dúvidas. Os horários das reuniões são normalmente marcados
após consulta aos familiares, os assuntos são registrados em ata e os
compromissos de cada um são estabelecidos e acompanhados tanto pela escola,
como pelos responsáveis junto com a avaliação processual dos alunos.
Nos casos
onde a relação escola-família já está mais desenvolvida, os motivos
apresentados pelas famílias para não participar dos encontros das escolas são
pesquisados e utilizados para o planejamento das próximas atividades. Em vez de
uma série de respostas, os profissionais da escola fazem também perguntas e
dialogam com os pais antes de propor ações de responsabilidade conjunta. Para
os pais ausentes, são pensadas estratégias não somente para disseminar as
informações da reunião, mas também para apoiá-los, se for o caso, com ações da
rede comunitária ou de proteção social disponível. Os familiares podem propor
temas para a reunião com a escola. Os agentes escolares se posicionam
claramente como responsáveis pelo ensino e negociam com as famílias suas
possibilidades de ajudar na escolarização dos filhos. Observa-se, enfim, nesse
tipo de reunião, uma efetiva abertura para tomar os pais como sujeitos e
parceiros do processo de escolarização, buscando compreender seus pontos de
vista e evitando-se exagerar nas expectativas em relação a eles.
Concluindo,
queremos dizer que vão existir sempre reuniões e reuniões – poderão ser
produtivas ou infrutíferas, dependendo da forma como são construídas. Ao
organizar encontros e palestras, a escola precisa ter em seu horizonte algumas
questões, como por exemplo: qual lugar é reservado para as famílias? A
atividade reforça a assimetria entre quem sabe/quem não sabe, quem é
especialista ou formado/quem não é, ou estabelece um espaço efetivo de diálogo
em que todos são interlocutores válidos? Nessa segunda perspectiva, educadores
escolares e famílias podem ter a chance de se educarem juntos.
O calor não
dava trégua, mesmo no final da tarde. Não havia nem ventilador, muito menos ar
refrigerado. Mesmo assim cerca de 60 mães/pais/avós de alunos da Escola
Municipal Santa Maria de Vassouras se reuniram para ouvir um texto, assistir a
um filme e, depois, bater um papo sobre o que ouviram e viram com a diretora e
técnicos da Secretaria de Educação. O texto Nó do Afeto dizia que, mesmo com
pouco tempo, um pai e uma mãe podem mostrar ao filho que o amam e se interessam
por sua vida escolar. O filme Vida Maria mostrava o efeito do trabalho precoce
e da falta ou interrupção da escola na vida de crianças de um meio rural. O
legado de uma geração para a outra era só a miséria. A tristeza do filme
emudeceu um pouco as mães. Mas uma avó logo soltou a voz: “no meu tempo, era
assim mesmo. A gente não ia para a escola porque era longe e porque precisava
trabalhar. Ninguém aprendia nada”, disse. Perguntada se via mudanças, afirmou:
“hoje tem escola em todo o lugar e ajuda para estudar”, resumiu. Esta reunião
foi uma das várias realizadas em 2008 nas escolas de Teresina, dentro do
projeto Conversando a Gente se Entende. O pessoal das escolas e os familiares
têm gostado dessas reuniões: dizem que são diferentes, interessantes e
agradáveis. Depois de sensibilizar os pais para o debate, a estratégia do
Conversando a Gente se Entende tem sido exortar a participação deles na busca
de uma educação de qualidade para os filhos.
VII – ELEMENTOS PARA UMA POLÍTICA DE INTERAÇÃO
ESCOLA-FAMÍLIA
Esta seção
aponta alguns elementos para a elaboração de uma política ou programa de interação
escola-família, reconhecendo que a base empírica do estudo não nos permite ir
muito além disto. Inicialmente retomaremos aspectos mais estratégicos, como a
definição de ações (que podem configurar um projeto, um programa, uma
política), para, num segundo momento, detalharmos aspectos que ajudem a pensar
a operacionalização do programa/política.
Reiteramos
que este estudo não pretende ser normatizador e sim sinalizar um caminho de
reflexões para repensar as práticas estruturantes do fazer pedagógico a partir
da interação entre escolas e famílias.
VII. 1 – Pensando estrategicamente a Interação
Escola-Família
Os
argumentos sobre a importância e necessidade do trabalho integrado entre essas
duas instituições são tão numerosos que, muitas vezes, nos esquecemos de fazer
algumas perguntas simples, porém fundamentais:
AS ESCOLAS PODEM TRABALHAR SEM AS FAMÍLIAS?
É claro que
o trabalho conjugado entre as duas instâncias socializadoras favorece o
desenvolvimento integral (incluindo a carreira escolar) das crianças e
adolescentes. Mas não podemos esquecer que, sendo o Estado o responsável
primário pela educação pública, deve procurar meios para priorizar e garantir
esse direito. Ou seja, o sistema de ensino que deposita todas suas expectativas
ou a culpa dos resultados escolares de seus alunos exclusivamente na família
está de alguma forma renunciando a sua missão. O dever da família quanto à
educação escolar obrigatória é matricular e enviar regularmente seus filhos às
escolas. O não cumprimento deste dever caracteriza negligência passível de
punição legal.
É preciso
que as escolas conheçam as famílias dos alunos para mapearem quantas e quais
famílias podem apenas cumprir seu dever legal, quantas e quais famílias têm
condições para um acompanhamento sistemático da escolarização dos filhos e
quantas e quais podem, além de acompanhar os filhos, participar mais ativamente
da gestão escolar e mesmo do apoio a outras crianças e famílias. É nesse
sentido que a interação com famílias para conhecimento mútuo destaca-se como
uma estratégia importante de planejamento escolar e educacional. O levantamento
sistemático de informações objetivas sobre os recursos e as atitudes das
famílias frente à escolarização dos filhos deve substituir ações baseadas em
suposições genéricas do que, em tese, toda família deveria fazer para o bom
desenvol-41 vimento dos filhos. De novo, temos que passar da “família esperada”
à “família real” para traçar estratégias mais eficazes visando o envolvimento
familiar na vida escolar dos alunos.
Uma política
ou programa de interação escola-família é uma forma de estabelecer uma
racionalidade produtiva para essa delicada relação, de modo a tirá-la tanto do
lugar de bode expiatório – situação na qual a ausência das famílias é,
reiteramos, motivo alegado para os maus resultados da rede de escolas –, quanto
do otimismo ingênuo – segundo o qual basta haver vínculos amistosos entre
professores, gestores, mães, avós e demais parentes para se julgar que há
complementaridade entre os dois universos de referência das crianças.
UMA POLÍTICA PARA QUÊ?
Guiada pelos
princípios já expostos21, a política de interação deve estar alinhada com
objetivos gerais, tais como:
• Garantir
aos alunos o direito a educação de qualidade e a salvo de toda forma de
negligência e discriminação;
• Promover
ensino de qualidade, compreendendo e incluindo o contexto familiar e social do
aluno no processo educativo;
• Conhecer
as situações das famílias dos alunos, buscando envolvê-las, na medida de suas
possibilidades, na educação escolar dos filhos.
O que a interação com as famílias tem a ver com
a qualidade de ensino-aprendizagem?
Recuperando
a ideia de que a relação escola-família começa pelo tratamento que é dado aos
alunos em sala de aula, vemos que as iniciativas de interação podem ter conexão
direta com as práticas pedagógicas propriamente ditas.
Independentemente
da estratégia de aproximação das escolas dos contextos familiares dos alunos, é
importante que ela seja pensada para incidir diretamente no conhecimento que a escola
tem sobre as condições de apoio educacional que cada aluno tem na dinâmica do
seu grupo familiar.
Ao conhecer
as condições reais das famílias – simbólicas e materiais –, as escolas
conseguem delimitar melhor o seu espaço de responsabilidade específica e
planejar de forma mais concreta os apoios necessários para o grupo de alunos
cujas famílias não têm condições (mesmo que temporariamente) de se envolver na
escolaridade dos filhos.
Além disso,
quando os alunos percebem que seus professores os conhecem, sabem com quem
moram, em que situação vivem, sentem-se mais seguros para expressar seus medos
e dúvidas na sala de aula. Esse conhecimento pode vir por meio de visita
domiciliar, realizada pelo próprio professor ou outro agente educacional, por
informações organizadas via questionário, pela presença de pais nos espaços
escolares e mesmo por atividades realizadas diretamente com os alunos.
Muitos
professores ouvidos nesse estudo afirmam que, ao verem com mais nitidez a
realidade de alunos, modificavam sua interpretação sobre seu comportamento em
sala de aula, deixando de lado a expectativa de aluno ideal e abraçando o aluno
real. Vários exemplos apareceram nos municípios visitados. Em um deles, uma
professora relatou que tinha dificuldades para lidar com um aluno que
atrapalhava o ritmo dos colegas: ficava sempre brincando, circulando pela sala,
e não se concentrava nos seus afazeres. Quando conversou com sua mãe, se deu
conta de que ele tinha uma série de atribuições domésticas e era responsável,
na ausência dos adultos, pelos irmãos mais novos. Assim, o único espaço que ele
tinha para relaxar e ser criança era a escola. Numa outra história, a
professora de educação física contou que não conseguia envolver vários de seus
alunos nas atividades de dança. Ela argumentava com a turma o quanto soltar o
corpo era bom e prazeroso e tinha como resposta os olhares desconfiados de boa
parte da turma. Quando se aproximou das famílias, percebeu que a orientação
religiosa da maioria das mães e pais pregava que a dança era um ato pecaminoso.
Assim, a professora percebeu que, ao insistir na atividade, gerava um sério
conflito moral em seus alunos.
Os exemplos
acima sinalizam que uma compreensão mais apurada das condições de vida e da
cultura dos alunos pode gerar mudanças produtivas no planejamento pedagógico e
na relação professor-aluno. Este ponto merece especial atenção, pois, desde o
fim dos anos 1960, pesquisas já constatavam que as expectativas dos docentes
funcionam como uma profecia autorrealizadora para seus alunos.
A profecia autorrealizadora, também conhecida
como efeito pigmaleão, foi fundamentada por Rosenthal e Jacobson (1968)22. O
estudo mostrou que os professores tendem a tratar os alunos conforme
expectativas prévias que terminam por influenciar o desempenho efetivo dos
estudantes. Por exemplo, um professor classifica um aluno como desatento e
passa então a agir em relação a este aluno sempre segundo este pensamento. Com
o tempo, o aluno acaba se convencendo de que é mesmo desatento, intensificando
comportamentos nesse sentido.
Se a
percepção de um professor sobre cada um de seus alunos é decisiva para a
promoção de uma boa relação escola-aluno, um diagnóstico baseado em suposições
e não em evidências sobre os fatores que estão interferindo nos problemas de
aprendizagem pode gerar intervenções pedagógicas pouco eficazes e com
resultados possivelmente desastrosos. Além disso, os julgamentos escolares
costumam influenciar a expectativa das famílias – o que, por sua vez, impacta
consideravelmente as chances de uma criança, adolescente ou jovem ter sucesso
como aluno. O círculo vicioso se quebra quando “a escola abraça até o mau
aluno”, como disse uma coordenadora pedagógica entrevistada.
A interação
com as famílias nos moldes como estamos concebendo aqui é recente na história
da educação brasileira, por isso ela requer mudanças de mentalidade de todos os
envolvidos. Segundo várias pesquisas, as escolas frequentemente representam as
famílias como uma extensão de si mesmas, sem perceber as diferenças de lógica de
um espaço a outro. Esse traço, de colocar a lógica da instituição escolar no
centro do diálogo, é chamado escolacentrismo23 e costuma impedir que os agentes
escolares escutem e compreendam o ponto de vista das famílias.
O estudo
Participación de las familias en la educación infantil latinoamericana24
destaca alguns fatores que costumam inibir uma boa interação com algumas
famílias. Todos esses fatores podem, de alguma forma, ser relacionados com a
ideia de “escolacentrismo”:
• Os
professores sentem-se incomodados quando os pais opinam na área que julgam de
sua competência exclusiva. Não veem importância ou não acreditam que as
famílias possam participar dessa relação de contornos mais pedagógicos.
• Educadores
culpam a família pelas dificuldades apresentadas pelos alunos e alunas. É comum
ouvir: a mãe não se preocupa, abandona o filho, não estabelece limites em casa.
•
Professores criticam os pais (principalmente as mães) por não ajudarem no dever
e nos pedidos da escola, ignorando as mudanças do papel da mulher na sociedade.
Assim, o aluno que se apresenta sem o apoio do adulto é desprestigiado em sala
de aula e tende a piorar seu rendimento.
• Gestores e
docentes desqualificam aspectos da cultura familiar sem sequer conhecer o
sentido das práticas, o espaço e a rotina familiar.
• A escola
persiste com atividades dirigidas a modelos de famílias tradicionais, apesar
das mudanças na sociedade25.
• A escola
mantém a mesma rotina de reuniões, oficinas, palestras e atividades, sem
consultar os pais sobre temas de seu interesse, necessidade e horários
adequados.
A
identificação das práticas e atitudes que distanciam as famílias de um diálogo
focado no desenvolvimento escolar dos seus filhos é importante para, por
exemplo, rever os conteúdos de formação dos docentes, reorganizar a forma como
as escolas convocam e recebem familiares dos alunos, repensar as instâncias de
participação na gestão da escola, entre outras providências.
QUEM PROPÕE A POLÍTICA?
Ao
considerarmos as instituições escolares como iniciadoras do movimento de
aproximação com as famílias, as orientações aqui contidas se dirigem
prioritariamente aos gestores educacionais, gestores escolares e professores.
Embora tenhamos encontrado experiências interessantes acontecendo em escolas,
percebemos que a interferência direta ou a liderança da Secretaria de Educação
aumenta as chances de sucesso de um programa de interação. Além disso, é
importante que a política conte com a participação da sociedade, representada,
por exemplo, pelo Conselho Municipal de Educação, Conselho Municipal da Criança
e do Adolescente etc.
UMA POLÍTICA COM QUEM?
A
experiência tem mostrado que, quando a escola vai ao encontro das famílias dos
alunos, principalmente quando há contato direto como nas visitas domiciliares,
os educadores se deparam com situações e demandas de várias ordens:
alcoolismo, vício em drogas, violência, precariedade das condições das
moradias, necessidade de atendimento médico, trabalho infantil doméstico etc.
Esses problemas extrapolam a função dos educadores e, muitas vezes, causam-lhes
uma sensação de impotência que os fragiliza emocionalmente.
Não se
espera que a Educação resolva todos os problemas sociais. A Assistência Social
do município geralmente tem a atribuição de formar a Rede de Proteção Integral
para crianças e adolescentes, conforme prevê o ECA. As Secretarias de Educação
e as escolas são uma parte estratégica desta rede de proteção, especialmente
porque têm contato cotidiano com as crianças e jovens e, por meio deles, também
com suas famílias. O papel dos agentes educacionais é identificar as demandas e
encaminhá-las aos serviços de apoio social existentes no município/bairro,
estruturados especificamente para as necessidades não escolares, por exemplo:
grupos de alcoólicos anônimos, programas de erradicação de trabalho infantil,
serviços de saúde etc.26 Ou seja, é preciso que os gestores e demais
responsáveis pela educação tenham uma visão intersetorial.
No desenho
de políticas e ações intersetoriais, a coordenação costuma ficar a cargo do
prefeito municipal, já que exerce poder de articulação entre os diversos
setores governamentais e pode ainda mobilizar organizações não governamentais,
meios de comunicação e a população em geral. Essa liderança é um respaldo
fundamental e até mesmo um pré-requisito para desencadear as ações
multissetoriais necessárias ao desenvolvimento de uma política educacional de
interação responsável e eficiente. Significa dizer que, se dos prefeitos
espera-se o papel de coordenador das políticas intersetoriais, do gestor
educacional esperam-se iniciativa, disposição e capacidade de articulação
horizontal com seus pares da Saúde, Assistência Social etc., pois muitas vezes
é necessário agilidade para que os problemas sociais não se alojem apenas nos
estabelecimentos de ensino.
26. Caso o
serviço não esteja disponível, mas seja uma demanda legítima da população, a
secretaria ou órgão responsável deverá ser apoiado, com dados coletados pela
rede educacional, para pleitear junto à administração municipal a instalação
deste serviço ou política.
Como alertam
os estudos de casos de articulação intersetorial, a construção de compromissos
comuns a partir de referências disciplinares, técnicas, políticas e de foco
distintos é um grande desafio. Apesar das dificuldades, constata-se que se a
colaboração de vários setores é bem-sucedida, ela oferece uma série de
vantagens para a população tais como: aumenta o conhecimento e a compreensão
entre os setores; evita superposição de funções que geram rivalidades; ajuda a
estabelecer uma matriz de papéis e responsabilidades; assegura o planejamento
baseado no conhecimento ampliado das necessidades da comunidade; e
disponibiliza para o público informações mais coerentes e uniformes.
Programas
como o Bolsa Família, de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), Saúde na
Família (PSF), Saúde na Escola (PSE), entre outros27, são exemplos de aplicação
da estratégia intersetorial em interface com a educação.
Tal
estratégia é reforçada pela Diretriz XXIV do Plano de Metas Compromisso Todos pela
Educação do PDE – “integrar os programas da área da educação com os de outras
áreas como saúde, esporte, assistência social, cultura, dentre outras, com
vista ao fortalecimento da identidade do educando com sua escola”.
“Gente, é o mesmo menino!” Benjamin28 é um
menino de 11 anos, bem alto para sua idade, que aproveita, todas as tardes, as
atividades de lazer oferecidas por um dos Centros de Referência de Ação Social
(Cras) de Teresina, onde sua família credenciou-se para receber o Programa
Bolsa Família. O pessoal do Cras conhece Benjamin, sua preferência por basquete
e acostumou-se a ouvir, todas as tardes, sua risada alta, quando faz uma cesta.
Para eles, Benjamin, e também sua família, são participantes ativos do
programa. Entretanto, o boletim de controle de frequência da escola do bairro,
que fica ali perto do Cras, mostra que Benjamin faltou às aulas muito mais do
que o permitido. Ele corre, portanto, o risco de ter o benefício suspenso. Os
gestores sabem que o dinheiro fará falta à família e não querem fazer isso, mas
têm de cumprir as regras. E não entendem uma coisa: por que o menino está
presente no Cras e não na escola? E por que não souberam disso antes? Na
escola, a surpresa é a mesma: por que o menino e sua família prestigiam o Cras
e não a escola? E por que não souberam disso antes? Na realidade, professores e
assistentes sociais nem saberiam a reação e as dúvidas uns dos outros. Por quê?
Porque simplesmente não conversavam uns com os outros. Assim como também não
saberiam dizer se Benjamin está em dia com o posto de saúde. Já que faltou
tanto, comprometendo seu desempenho escolar, poderia estar doente. E olha que o
posto, encarregado de verificar o calendário de vacinas, fica bem ao lado da
escola. Localizados no mesmo território, os gestores municipais de educação,
saúde e assistência social cuidavam de suas atribuições, mas não entendiam o
que tinham em comum. “Gente, é o mesmo menino”, resumiria a diretora da escola,
quando o grupo finalmente sentou-se à mesma mesa para conversar. Sim: o mesmo
menino – de manhã na escola, de tarde no Cras, e com passagens pelo posto de
saúde. No caso de Teresina, como 80% dos alunos da rede municipal estão
inscritos no Programa Bolsa Família, a necessidade de articulação desses
serviços é ainda maior. Mas, como cada área só cuidava de sua parte, ninguém
via o Benjamin inteiro: para uns ele estava bem, para outros, mal.
Teresina
decidiu encarar o desafio da intersetorialidade – tarefa que já se consolida em
outras capitais, como Belo Horizonte (MG), como veremos a seguir. Em outubro de
2008, os principais gestores municipais de Teresina – pedagogos, médicos e
assistentes sociais – estavam se transferindo para o mesmo prédio para
facilitar o trabalho conjunto. O município havia realizado também nessa época
um inédito Ciclo de Oficinas de Integração entre esses profissionais, para
organizar a rede de proteção social. A proposta é construir um planejamento
conjunto de atendimento às famílias, por território. A iniciativa tem o nome de
Ciclo de Oficinas de Articulação e Integração das Ações dos Centros de
Referência da Assistência Social (Cras) com as Políticas de Educação e Saúde.
Resultou da parceria entre a Secretaria Municipal de Educação e Cultura
(Semec), a Secretaria Municipal do Trabalho, Cidadania e Assistência Social
(SEMTCAS) e a Fundação Municipal de Saúde (FMS). A expectativa é que, ao fazer
o encaminhamento familiar para a rede de proteção social, a escola estará
também garantindo as condições de educabilidade de seus alunos.
Com 177 mil
alunos e 118 mil famílias, Belo Horizonte (MG) consolidou nos últimos anos, a
partir da criação do Programa Família-Escola, ações integradas no território.
São quatro grandes linhas de atuação: controle da frequência escolar,
transferência de renda, promoção da saúde e mobilização social. Essa estratégia
orienta a descentralização em administrações regionais, a formação dos gestores
escolares – para se verem como agentes de ações intersetoriais –, e chega até
as crianças de muitas formas.
Um exemplo
de desdobramento possível de um olhar mais de perto e em conjunto sobre cada
aluno é o fornecimento de merenda diferenciada para os alunos com problemas
metabólicos, alérgicos ou outros. Numa articulação entre as Secretarias de
Abastecimento, Saúde e Educação, alunos com restrições alimentares foram
identificados e passaram a ter um cardápio montado exclusivamente para eles. A
dieta passou também a fazer parte do planejamento e da distribuição alimentar
nas escolas. Assim, os alunos se sentem incluídos e atendidos nas suas
necessidades específicas. 47
A Secretaria
Municipal de Educação (SMED) apoia, além das atividades internas a cada escola,
o Fórum Família-Escola – encontros nos quais os familiares expõem suas dúvidas,
queixas e sugestões sobre a educação e a escola de seus filhos. Todas as
famílias também recebem trimestralmente o Jornal Famíla-Escola e contam com o
serviço de relacionamento por telefone chamado Alô, Educação! Todas essas
atividades orientam-se, segundo a SMED, para criar uma rede de colaboração,
diálogo e parceria entre famílias, escolas, comunidades e serviços públicos,
garantindo não só a permanência dos alunos em sala de aula, mas também o
aprendizado de crianças, adolescentes e jovens.
UMA POLÍTICA COM QUE RECURSOS?
Sabemos que
a descontinuidade dos programas na mudança de gestores públicos é um problema
grave na gestão educacional. Quando a política envolve custos elevados, fica
mais vulnerável a cortes orçamentários.
Nas
experiências visitadas para esta pesquisa, os recursos materiais e humanos
necessários para implementar ações dependiam diretamente da estratégia de
aproximação com as famílias. Encontramos iniciativas com custo mínimo, apenas
com a cessão de técnicos da SME para acompanhar esporadicamente os trabalhos
nas escolas. Já as iniciativas que incluíam visitas domiciliares contavam com a
provisão de recursos para custear os deslocamentos e o trabalho dos agentes
educacionais29. A frequência e abrangência dessas visitas definem o custo do
programa. Chama atenção a existência de decretos municipais amparando
legalmente esse tipo de função. Esse procedimento institucional fortalece as
ações de interação escola-família, tornando-as menos sujeitas a mudanças
conjunturais.
Além dos
encontros diretos com familiares, é preciso prever recursos e prazos também
para atividades de formação dos profissionais de educação envolvidos, e também
para reuniões periódicas de troca de experiências, cursos ou outras atividades
de formação continuada, reuniões ou fóruns de pais, além da avaliação dos
resultados e replanejamento das ações. Em municípios maiores, publicações
enviadas às casas das famílias, fórum de pais, serviços de ouvidoria (0800),
programas de rádio e outras estratégias de comunicação também foram
localizadas.
VII. 2 – Pensando a Operacionalização do
Programa/Política FORMAS DE ATUAÇÃO DA SME JUNTO ÀS ESCOLAS
Sabemos que
nem todos os programas educacionais começam com um projeto escrito, mas em
algum momento seus proponentes percebem a importância e a necessidade de
colocar as ideias no papel. Pode acontecer também que, depois de implementado,
um projeto ou programa passe a ser uma atividade permanente, um eixo
transversal do trabalho escolar/educacional. No levantamento realizado,
encontramos projetos criados por iniciativa de uma ou mais professoras,
projetos elaborados por SMEs, assim como outros originados pela pressão da
comunidade local que, com o tempo e os bons resultados, acabaram virando
política municipal.
DO
NÃO ESCRITO A UMA POLÍTICA MUNICIPAL Itaiçaba é uma pequena cidade do
Ceará com apenas 2.500 alunos, distribuídos em sete escolas municipais e uma
estadual. Dividem as mesmas salas de aula da rede pública os filhos de
trabalhadores do campo e de fazendeiros, de comerciários e comerciantes, das
domésticas e das professoras, dos dirigentes e dos funcionários municipais. Há
dois anos, não só os filhos, mas também os pais e os parentes começaram a
frequentar todos os dias a escola, dispostos a contribuir como pudessem para
diminuir os altos índices de evasão, de repetência e absenteísmo verificados no
município. A ideia de chamar os pais para a escola não estava escrita em lugar
algum. Partiu da Secretaria Municipal de Educação a iniciativa de reunir as
famílias para algo além da divulgação periódica dos boletins. O primeiro
encontro para propor uma parceria escola-família ocorreu na escola Dom Aureliano
Matos, na zona rural. A reunião, descrita como descontraída e prazerosa,
terminou com oito mães se prontificando para irem diariamente à escola.
Basicamente, sentiram-se capazes de realizar as seguintes atividades: organizar
brincadeiras com as crianças na hora do recreio, ajudar no reforço escolar do
contraturno e levar um grupo de crianças para casa para que fizessem juntas o
dever. Nas outras escolas, o mesmo processo foi se repetindo: além de pais e
mães, avós, tias e primas mais velhas foram se apresentando à escola como
responsáveis pelos alunos e se colocando à disposição para ajudar, dentro de
suas possibilidades e horários. Já havia algum tempo que os adultos podiam ser
vistos nos pátios e salas de aula das escolas quando o projeto Família Presente,
Aluno Ideal foi escrito. Ele passou então a ser apresentado nas igrejas,
quadras, auditórios e divulgado por um grupo de alunos por meio da Rádio
Itinerante, espaço semanal dos alunos na rádio comunitária local, nas sete
escolas municipais. Em Itaiçaba, os envolvidos no projeto veem muitos
benefícios. “Eu estudo mais porque minha mãe está ali me olhando e ajudando a
professora”, disse um aluno. “Até a merenda está melhor”, completa uma mãe. “Eu
vi quando minha filha aprendeu a ler e escrever as primeiras palavras”,
testemunhou um pai emocionado. O projeto produziu ainda efeito cascata,
ativando e revitalizando outras ações no ambiente escolar. Um desses programas
é o Laboratório de Redação, onde pais, mães, alunos e professores escrevem
sobre temas eleitos em conjunto e debatem semanalmente suas produções. Depois
do Laboratório de Redação, a visita dos alunos à Biblioteca Pública, uma
iniciativa do Governo do Estado denominada Amigos da Leitura, virou programa
familiar. Junto com as professoras, seguem para a biblioteca pais, mães, avós,
tias, primas, irmãs mais velhas. Não só para ouvir a leitura das crianças, mas
também para desfrutar, em sossego, de um bom livro.
A
experiência de Itaiçaba tem um contexto muito particular de envolvimento
comunitário que facilitou a mobilização espontânea de pais e mães e a abertura
completa das escolas a sua participação em todos os espaços. Essa não é uma
estratégia simples de se implantar nem livre de problemas de delimitação de
competências entre professores e familiares sobre a tarefa de ensino. No
entanto, naquele município, essa experiência tem sido um estímulo para a
renovação das práticas pedagógicas e, junto com uma série de outros programas
de formação, avaliação e fortalecimento da gestão, tem contribuído para a
melhoria dos indicadores educacionais.
As
experiências identificadas neste estudo foram implantadas pelas SMEs de duas
formas básicas. Na primeira, a Secretaria, ouvindo as equipes escolares,
elaborou o projeto e apresentou-o às escolas para que manifestassem o interesse
em aderir a ele. Dependendo do porte da rede, pode ser necessário dimensionar a
proposta fazendo um projeto piloto, envolvendo poucas escolas e, depois de
analisar os resultados, ampliar para as demais. Neste e em outros casos de
seleção de escolas, os técnicos da Secretaria elaboram critérios para priorizar
os estabelecimentos de ensino que têm problemas mais agudos relacionados à
aprendizagem, abandono ou vulnerabilidade das condições de vida dos alunos.
Na segunda,
a SME constata que as escolas já estão desenvolvendo, por conta própria, ações
de interação com as famílias de seus alunos e resolvem apoiá-las. Implantam uma
coordenação técnica para que os projetos não ocorram de forma isolada e
mantenham suas especificidades. Este é o caso de Itabuna (BA), que tem a
integração escola-família como uma política pública aplicada nas 127 escolas
urbanas e 37 rurais que compõem a rede. Cada escola apresentou uma proposta e a
SME designou três coordenadoras, dentro da gerência de ensino básico, para
cuidar da interação com a comunidade, além de organizar uma coordenadoria
exclusiva das relações escolas-famílias. Sudmenucci (SP), cuja rede é
constituída de apenas sete escolas, também preferiu não ter um projeto único e
sim apoiar os projetos de cada escola.
Seja qual
for a opção, uma aprendizagem importante é que essa política não pode ser
imposta. As Secretarias precisam informar e dar condições para que as escolas
se posicionem. Antes de aderirem, os gestores escolares devem avaliar sua
relação com as famílias de seus alunos e com a comunidade do entorno, sua
estrutura funcional e, principalmente, o engajamento de seus profissionais na
proposta. Essa não é uma política sem riscos que possa ser executada de forma
burocrática. Como a base de uma boa interação é a relação de confiança, se os
compromissos subjacentes a esta política não forem bem compreendidos, ela pode
gerar o efeito inverso ao pretendido, ou seja, afastar ainda mais o universo
escolar do universo familiar de referência dos alunos.
FORMAS DE APROXIMAÇÃO DAS ESCOLAS EM DIREÇÃO ÀS
FAMÍLIAS
No
levantamento que fizemos, encontramos diversas estratégias de aproximação dos
agentes escolares das famílias dos alunos. Essa diversidade de estratégias nos
parece válida e necessária num país tão plural quanto o nosso. É importante
pensar nos riscos e possibilidades de cada uma dessas estratégias.
Em alguns
lugares, os professores fazem visitas se deslocando até o domicílio dos alunos.
Em outros, quem está encarregado da visita domiciliar é o agente da educação30.
Essas visitas precisam ser bem preparadas e são atividades formadoras muito
importantes. No entanto, questiona-se até que ponto os professores, que já têm
uma vida profissional tão atribulada, têm condições de assumir mais essa função
e até que ponto ela deveria fazer parte de suas atribuições profissionais.
No debate da
versão preliminar deste documento, que contou com a participação de
professores, coordenadores e diretores escolares, as vantagens desse tipo de
ação foram consideradas mais relevantes quando ela é percebida como
estruturante do planejamento do trabalho pedagógico com os alunos.
Inversamente, se esta ação não está articulada com os demais programas da
Secretaria e da escola, ela foi considerada pouco importante.
Deve-se
observar que outras políticas setoriais também costumam utilizar a estratégia
da visita – o que pode acabar sobrecarregando o mesmo grupo familiar com
perguntas, tarefas e orientações diversas. Há riscos de se gerar procedimentos
duplicados, confusos e ineficazes. Nesse sentido, ouvimos sugestões de formar
os agentes do Programa Saúde da Família como parceiros da Educação para, por exemplo,
verificar motivos de infrequência escolar. Além disso, fatores como a distância
da casa dos alunos, risco de circulação em áreas inseguras, são reais e
precisam ser levados em consideração ao se optar pela visita domiciliar.
Algumas
Secretarias criaram serviços especiais, com psicólogos e assistentes sociais,
encarregados de fazer a ponte entre as escolas e as famílias. A vantagem
alegada é que estes profissionais têm uma formação mais adequada para a
aproximação domiciliar e conseguem mediar relações tensas entre famílias e
escolas. A desvantagem é que geralmente esses profissionais são pouco numerosos
e não conseguem cobrir o universo das famílias. As informações coletadas por
eles não são também imediatamente repassadas às escolas e professores. Em redes
maiores, os mecanismos para falar e ouvir as famílias incluíram fóruns,
serviços de telefone gratuito e publicações distribuídas em domicílio.
Vimos também
iniciativas nas quais os familiares dos alunos se fazem presentes em vários
espaços escolares: auxiliam no recreio, apoiam os professores em sala de aula,
abrem suas casas para a realização de reforço escolar para seus filhos e
vizinhos etc. É importante salientar, conforme indicam outras pesquisas, que a
participação das famílias nas atividades escolares pode gerar conflitos com
professores, que veem suas salas de aula ocupadas por adultos que não têm as
mesmas responsabilidades institucionais nem a formação requerida para
desempenhar funções de ensino. Além disso, a presença voluntária de mães e pais
no cotidiano escolar tem de respeitar a disponibilidade destes para não gerar
uma pressão extra sobre a carga de responsabilidades parentais. Na experiência
de Itaiçaba, no entanto, como esta aproximação foi feita de forma paulatina e
fruto da boa relação escolacomunidade, os efeitos dessa presença foram
relatados como benéficos para alunos, responsáveis e docentes.
Seja qual
for a estratégia de aproximação, é fundamental preparar todos os profissionais
envolvidos no programa para que atuem com segurança. Para isso, o dirigente
municipal e sua equipe técnica devem estruturar linhas de formação
continuada31, apoio e monitoramento das atividades que serão planejadas e
executadas pelos professores e gestores escolares.
Algumas
decisões prévias são definidoras do escopo do plano de ação. Por exemplo: numa
ação de aproximação com as famílias, todos os alunos serão contemplados?
Comparando as experiências, concluímos que, desde que as famílias permitam32,
todas devem ter a oportunidade de um encontro no qual possam se apresentar e
conhecer melhor o ambiente e as pessoas encarregadas da formação escolar de
seus filhos. Esse é
o momento
para a família se dar a conhecer. Observamos que, quando a aproximação está
ligada apenas a problemas como infrequência, evasão e mau desempenho, ela ganha
uma conotação negativa que estigmatiza os alunos visitados e faz com que os
demais não queiram os agentes escolares em seus lares. Pais e mães, quando
sentem que a escola só pensa na repreensão, costumam se afastar do ambiente
escolar.
Como a
experiência mais sistematizada que encontramos foi a de Taboão da Serra (SP),
que está em vigor há mais de cinco anos, disponibilizamos a seguir um exemplo
mais operacional da estratégia de aproximação escolhida, que no caso se realiza
por meio da visita domiciliar realizada por professores a todos os alunos.
Ressaltamos, mais uma vez, que essa é apenas uma das possibilidades de
interação escola-família.
PASSO A
PASSO DA PREPARAÇÃO DAS VISITAS NO PROJETO DE TABOÃO DA SERRA
1) Envio de
correspondência da escola para as famílias, informando da intenção da visita e
solicitando que a família responda, autorizando formalmente a realização desta.
2) Agendamento da visita, de acordo com as disponibilidades do professor e da
família, sempre fora do horário escolar.
• As visitas
podem ser marcadas pelo(a) professor(a) aleatoriamente – por ordem alfabética
dos alunos, por exemplo – ou priorizando as crianças que apresentam algum
problema de aprendizagem ou comportamento.
• Em
qualquer situação, a orientação é de não fazer visitas “de surpresa”, sem agendamento
prévio. 3) Realização da visita na data marcada (obs.: Cada visita tem a
duração aproximada de uma hora).
• O
professor da turma vai até a casa do aluno e estabelece uma conversa informal
sobre a família e o aluno, de acordo com as orientações gerais fornecidas pela
Secretaria de Educação.
• O
professor deve fornecer informações sobre o desempenho escolar do aluno e ouvir
da família sua percepção sobre o mesmo, assim como entender as principais
demandas de ajuda (serviços sociais públicos) daquele grupo ou comunidade.
• O
professor é orientado a não fazer anotações durante a visita, a fim de manter o
caráter informal.
• Pode ser
marcada nova visita, ou tantas outras quantas o professor julgar serem necessárias.
4) Elaboração do relatório após a visita, o professor faz um relatório e
entrega à coordenação da escola.
• Cada
escola estabelece seu modelo e/ou roteiro para elaboração do relatório.
• Os
relatórios são discutidos com a coordenação pedagógica da escola para
identificar as necessidades de intervenção (escolar ou não) e orientar as
decisões sobre os encaminhamentos que sejam necessários.
• Os
relatórios são confidenciais e arquivados na própria escola. 5) Leitura e
discussão coletiva dos relatórios e troca de experiências que ocorrem uma ou
duas vezes por mês; os relatórios são socializados com os demais professores,
nos horários coletivos utilizados para planejamento do trabalho pedagógico.
Nestas ocasiões, os professores podem tratar de situações específicas
detectadas nas visitas e recebem sugestões dos demais. 6) Mensalmente a equipe
de direção/coordenação da escola encaminha ficha de controle das visitas
realizadas pelos seus professores à Secretaria, para que seja efetuado o pagamento
da ajuda de custo correspondente aos professores. Caso sejam detectadas
situações que a escola não se sinta apta a resolver, pode ser encaminhado
relatório específico descritivo dos problemas para a Secretaria.
VII. 3 – ASPECTOS A SEREM CONSIDERADOS NA
OPERACIONALIZAÇÃO DO PROGRAMA OU POLÍTICA
A seguir
apresentamos mais algumas aprendizagens da interlocução entre teoria e prática,
que indicam aspectos a serem considerados na operacionalização de programas,
políticas ou práticas de interação escola-família:
Coleta e organização das informações sobre
alunos e familiares
A qualidade
de informações que as redes municipais têm sobre seus alunos é um fator
importante para seu planejamento geral e também das formas de aproximação das
famílias dos alunos. Hoje, não faltam questionários contextuais direcionados a
alunos, professores e gestores e aplicados nas avaliações externas efetuadas
pelos governos federal, estadual e municipal. Para os alunos que participam do
Programa Bolsa Família, que pertencem aos grupos familiares mais vulneráveis,
está disponível um banco de dados com as informações necessárias ao
acompanhamento do seu contexto social. Mas nem sempre as informações geradas em
nível local são apropriadas neste mesmo nível. Isso ocorre, muitas vezes,
porque a capacidade de analisar as informações não está instalada na escola ou
até mesmo na Secretaria. Assim, é importante localizar parceiros
(universidades, por exemplo) para investirem na formação profissional dos
técnicos ou apoiarem o desenvolvimento desse tipo de competência.
É preciso
levantar as informações que a escola/rede já dispõe para então definir quais
dados devem ser buscados junto às famílias. Há dois blocos de questões
interligadas a se considerar: um bloco ligado às características sociais,
econômicas e culturais e outro às formas de apoio para a escolarização.
Para uma
primeira abordagem das condições de vida das famílias, é importante organizar
informações sobre:
•
Configuração familiar – número de membros e relações entre eles;
• Condições
de moradia – número de cômodos e condições de conservação das instalações;
• Renda per
capita familiar;
• Situação
de escolaridade e de trabalho dos responsáveis;
•
Participação em programas governamentais (ex.: Bolsa Família).
Caso estes
dados já estejam disponíveis e organizados na secretaria ou na escola, eles
podem orientar a organização e roteiro das visitas, reuniões coletivas e
individuais e entrevistas. Estas, por sua vez, podem atualizar as informações
obtidas anteriormente. O contato mais permanente pode captar acontecimentos
familiares – separações, nascimentos, morte, doença – que são dinâmicos e não
são captados apenas no momento da matrícula.
Uma
referência para eleger dados que permitem relacionar a influência do contexto
familiar no desempenho dos alunos é o Estudo Internacional Comparativo33 entre
vários países – inclusive o Brasil –, que se propôs a identificar os fatores
associados ao desempenho em linguagem e matemática para alunos do terceiro e do
quarto anos do ensino fundamental. O estudo construiu um índice correlacionando
o desempenho dos alunos em testes padronizados com aspectos do contexto
familiar tais como:
• O nível de
educação dos responsáveis;
• O número
de horas que os responsáveis passam em casa nos dias de trabalho;
• Os
recursos de leitura que estão disponíveis na moradia; e
• A
estrutura do núcleo familiar (se tem pai e mãe, mesmo que não sejam formalmente
casados).
A análise
das respostas mostrou que o aumento da média de anos de escolaridade dos
responsáveis resulta no aumento dos rendimentos escolares de seus filhos.
Mostrou também que as crianças/adolescentes cujos responsáveis leem para eles,
costumam ganhar entre três a seis pontos, especialmente em linguagem, acima
daqueles cujos responsáveis não o fazem. O efeito combinado de ler com
frequência para os filhos e dispor de livros em casa é poderoso para melhorar o
rendimento na escola.
Essas
informações ajudam a pautar práticas pedagógicas que não deixem em desvantagem
as crianças e adolescentes que não contam em casa com os recursos (família
nuclear, pais escolarizados e disponíveis, livros em casa) de apoio para sua
escolarização. Além disso, conhecer os hábitos da criança, o que gosta de fazer
– que atividades culturais frequenta, que responsabilidades assume em casa e
como faz as tarefas escolares -, são informações relevantes para a equipe
escolar organizar seu trabalho.
Ações de formação dos educadores
Embora as
informações dos questionários sejam muito importantes, elas não são suficientes
para preparar os profissionais da educação para tomar a iniciativa de se
aproximar das famílias dos alunos. A formação dos educadores deve ser pensada
no seu conjunto, desde a preparação de informações sobre o desenvolvimento do
aluno que serão levadas até as famílias, passando pelo tipo de informação que a
escola precisa observar/coletar sobre
o contexto
de vida familiar, até a capacidade dos agentes escolares trabalharem com essas
informações para, enfim, incorporá-las ao planejamento das práticas
pedagógicas e/ou de gestão.
Nos
encontros de formação, recomenda-se que os educadores discutam as pesquisas34
que trabalham a revisão dos mitos sobre o descaso das famílias em relação à
educação dos filhos, sobre as novas configurações familiares e as
transformações sociais que impactam as instituições escola e família. Outra
vertente de estudos que cresce no Brasil e ajuda nesta formação diz respeito ao
sucesso escolar de alunos de camada popular, considerando fatores intra e
extraescolares.
Professores
e coordenadores pedagógicos entrevistados que participaram de programas de interação
direta com as famílias relataram seu crescimento pessoal e a conquista de um
novo lugar profissional, considerado importante e relevante por seus alunos,
familiares e comunidade. Mas ouvimos também histórias de dificuldade,
frustração e desencontro.
Por isso, na
preparação de profissionais para o encontro com as famílias dos alunos, seja
indo até elas, seja abrindo o espaço escolar para sua maior presença e
participação, duas questões merecem atenção: de um lado, a idealização que
costuma haver sobre o arranjo parental que as famílias devem ter; de outro
lado, a idealização de si mesmo que, muitas vezes, coloca os agentes escolares
como detentores de uma posição cultural supostamente superior à da família,
impedindo que ela expresse seu saber sobre si e sobre o mundo. É preciso
reconhecer ainda que, muitas vezes, faltam aparatos conceituais que permitam
aos profissionais da educação enxergar os novos arranjos de convivência humana
como estruturas familiares legítimas. O trabalho de formação deve sempre
alertar os professores de que o julgamento moral do outro baseado nos valores
pessoais pode gerar mais preconceito. As redes de ensino precisam apoiar as
escolas para que aposentem gradualmente o discurso da família desestruturada
como disfunção a ser tratada e comecem a construir nas escolas competências
para discernir situações de negligência e vulnerabilidade socioeconômica que
precisam ser encaminhadas, de arranjos familiares pouco usuais.
O
fundamental é que a escola consiga integrar ao seu planejamento um saber sobre:
quais grupos familiares são capazes de cumprir bem a função de pátrio poder (e
isso não depende apenas da condição socioeconômica) e quais grupos familiares
são capazes de dar suporte à vida escolar dos filhos.
A inclusão
dos saberes mais aprofundados sobre o aluno e seu contexto social no
planejamento do trabalho pedagógico é especialmente importante, pois, sem
mudanças na cultura escolar e em suas práticas, todo esse esforço pode se
perder no meio do caminho e não beneficiar de fato os alunos. Como grande parte
das escolas brasileiras já tem instituído o horário de trabalho pedagógico,
sugere-se que o tema da interação escolafamília seja incluído na pauta dessas
reuniões e demais atividades de formação na escola. Ou seja, todo o conhecimento
sobre os alunos deve ser incorporado ao trabalho cotidiano da equipe escolar.
Ele deve servir para rever a comunicação com os familiares, os contatos com a
comunidade, os mecanismos de participação na gestão da escola, as atividades e
linguagem utilizada junto aos alunos, a avaliação dos alunos e a
retroalimentação da interação permanente das relações que incidem sobre as
condições de vida e aprendizagem das crianças. Isso pode exigir, num primeiro
momento, um trabalho mais intenso dos coordenadores pedagógicos, equipe de
direção, professores e funcionários da escola. Mas com o passar do tempo esse
trabalho tende a ser absorvido pela rotina e, melhor, pode renovar o repertório
de práticas pedagógicas e estimular a revitalização do trabalho escolar.
Concluímos
que, para lidar com as famílias dos alunos sem reproduzir os mecanismos que
reforçam a desigualdade, a formação dos educadores não deve ser pensada apenas
como mais informação técnica: ela deve ser um espaço de revisão de pressupostos
e de exposição de conflitos e receios, ou seja, deve abranger também as
dimensões pessoais, éticas e políticas.
Acompanhamento, apropriação das aprendizagens e
avaliação das ações
Os três
efeitos mais importantes da aproximação com as famílias nas experiências
contatadas foram: a incorporação das aprendizagens obtidas no contato com as
famílias dos alunos para organizar serviços e atendimento a necessidades
específicas; a ampliação da participação das famílias na vida escolar dos
alunos e na relação com os agentes escolares; e a articulação de programas e
instituições para ajudar a escola a apoiar os alunos em situação mais
vulnerável.
Estes
efeitos geraram encaminhamentos em duas direções – para dentro e para fora da
rede de escolas. Na direção intraescolar, a possibilidade de tirar o aluno real
da sombra do aluno esperado abre muitas oportunidades de transformação. Pode
implicar a revisão da linguagem, metodologias e conteúdos utilizados em sala de
aula, que, por sua vez, alteram os projetos político-pedagógicos, podendo
impactar até os planos municipais de educação. Embora trabalhosa, essa revisão
das práticas é gratificante pois, afinal, há algo mais frustrante para um
professor do que não conseguir se comunicar e interagir com seus alunos?
Desse ponto
de vista, a experiência de Taboão da Serra sinalizou um avanço ao organizar um
Grupo de Apoio Pedagógico (GAP) em cada escola. O GAP promove encontros
quinzenais de formação e apoio aos professores, além de atendimento
individualizado para os alunos que não têm suporte no ambiente familiar para
realizar suas atividades escolares.
Outro
encaminhamento interno da aproximação com as famílias é a necessidade de
aperfeiçoamento dos instrumentos de avaliação. É avaliando que podemos prestar
contas do que estamos fazendo, disseminar boas experiências e corrigir rumos.
Embora a avaliação da aprendizagem dos alunos esteja hoje consolidada nos
sistemas de ensino, o monitoramento e a avaliação das políticas e dos projetos
especiais das Secretarias e escolas nem sempre são realizados.
Embora seja
comum a alegação de falta de tempo e de excesso de funções burocráticas,
constatou-se também que ainda faltam instrumentos e capacidade técnica em
muitas secretarias de educação para avaliar internamente ou contratar
avaliações externas. Este foi o ponto mais frágil das experiências localizadas
neste estudo. Mesmo as já consolidadas
35. A
avaliação é uma atribuição eminentemente de Gestão Educacional e está
contemplada no PAR por meio do indicador 6: Existência, acompanhamento e
avaliação do Plano Municipal de Educação, com base no Plano Nacional de
Educação.
não haviam
passado por uma avaliação, apesar de este mecanismo estar previsto em vários
dos projetos
e de sua importância ser reconhecida.
Por isso
enfatizamos a importância e o cuidado que é preciso ter com os registros sobre
as experiências: sem registros não há memória e muito menos avaliação ou
aprendizado consistente e cumulativo para o aperfeiçoamento das ações. O
registro organizado e sistemático das atividades possibilita a sistematização
do conhecimento adquirido, bem como a possibilidade de socialização e
integração das novas informações no planejamento continuado da ação educativa.
Participação no grupo articulador das políticas
intersetoriais
Com relação
aos aspectos relacionados aos alunos, que extrapolam a alçada da escola e da
educação, é preciso acionar as instâncias que compõem o grupo de gestão
intersetorial. Como já abordado anteriormente, deve haver vontade política do
executivo municipal para liderar e sustentar um grupo de trabalho com
representantes das diversas secretarias e demais órgãos de governo. Um avanço
em relação a este ponto é a promoção do planejamento integrado de escolas,
postos de saúde e centros de assistência social, por território. Os diretores
de cada um desses estabelecimentos públicos se reúnem periodicamente para
traçar juntos metas de atendimento às demandas da população local.
A combinação
desses dois vetores de encaminhamento – intra e extraescolares – potencializa
que os profissionais da educação sintam-se seguros para ajudar seus alunos a
enfrentar eventuais adversidades vividas pelo seu grupo familiar, assumindo seu
papel na rede de proteção social. A família, por sua vez, pode passar a ter,
além de maior respeito pela instituição escolar, a confiança necessária para
assumir tarefas para as quais se julgava incapacitada. Como diz um slogan
bastante propagado na área de projetos sociais, é preciso ajudar a família a se
ajudar.
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