A arte de se ligar às coisas da cultura: Escola e lei de retorno do
capital simbólico
Gilson R. de
M. Pereira*
A sociologia
da educação é um capítulo, e não dos menores, da sociologia do conhecimento e
também da sociologia do poder – sem falar da sociologia das filosofias do
poder.
Em um
inventário dos resultados de duas décadas de estudos sobre currículo, Tomaz
Tadeu da Silva constata, entre as lições acumuladas sobre seleção, organização
e distribuição do conhecimento escolar, que o conhecimento transmitido na
escola é distribuído de forma desigual entre as diferentes classes e os
diferentes grupos sociais. Além disso, e ainda entre as lições arroladas,
salienta que a es-cola guarda relações muito estreitas com os processos sociais
mais
* Professor da Faculdade de Educação da
Universidade Regional do Rio Grande do Norte (URRN).
Educação
& Sociedade, ano XVIII, nº 60, dezembro/97
amplos de
acumulação e legitimação da sociedade capitalista. Entre as dúvidas, o autor
observa que não sabemos o que constitui conhecimento válido quando tomamos
como parâmetro os ideais de construção de uma sociedade democrática, temos
dúvida sobre qual a combinação curricular mais adequada à democracia e não
sabemos como efetivar mudanças curriculares reais em nossos sistemas de ensino.
Sabemos, decerto, quais os fatores que impedem essas mudanças, mas não sabemos
como removê-los, como trabalhá-los para realizar as mudanças curriculares
necessárias e desejáveis (cf. Silva 1992b, pp. 75-93).
O que é
pertinente no momento é a constatação empírica de que o conhecimento escolar é
desigualmente distribuído entre as classes e os grupos sociais, muito embora
haja, e reconheça-se sua significação moral e sua eficácia política, todo um
longo discurso sobre a igualdade de oportunidades escolares. A partir dessa
verificação — da distribuição desigual do conhecimento escolar —, observa-se
que a escola se encaixa, com uma circularidade quase perfeita, na lei de
retorno do capital simbólico: o capital simbólico retorna às mãos dos que já o
possuem. Adiante será feita uma análise mais detida dessa lei.
Essa
constatação — que data de pesquisas feitas sobretudo na França dos anos 60 —,
já razoavelmente incorporada ao consenso acadêmico de países europeus e da
América do Norte, sendo recente no Brasil, põe em risco a sobrevivência das
ingenuidades pedagógicas e, com uma “saudável” chamada ao realismo, torna
problemático o otimismo das pedagogias liberais e libertárias. A partir do
conhecimento que se dispõe sobre a distribuição seletiva do conhecimento
escolar, não nos é permitido ignorar que a escola não tem o poder de redimir
pelo conhecimento, não podendo, por conseguinte, ser redentora.
Tudo indica
que a prática educativa escolar não pode ser libertadora, não porque os
professores não queiram ou adotem pedagogias conservadoras, nem devido a tal
ou qual política estatal, mas porque isso está escrito na lógica da inserção
da escola no processo de transmissão cultural das sociedades capitalistas. A escola
está conformada a uma determinada funcionalidade social e dela talvez só
possam ser esperados certos resultados e não outros. Não se trata, portanto, de
decidir o papel da escola de acordo com a utilização de uma ou outra pedagogia,
a partir da adoção de tal ou qual filosofia da educação. A mecânica escolar é
indiferente aos dilemas que povoam as mentes dos professores: Prática
reprodutivista ou prática libertadora na escola? Dilema que se repete com
inquietante tenacidade no cenário educativo brasileiro.
Muito
certamente já não há mais dúvida de que o ponto de vista da emancipação, pela
escola, das classes populares, é equivocado na essência, pois a realidade
escolar, como parte da realidade social, não se muda nem pela boa vontade dos
professores nem pelos decretos do governo. Não basta, como se poderia pensar,
que os professores compreendam, amem a classe operária e desejem a salvação
escolar de seus filhos para que desapareçam as divisões sociais na escola. Os
obstáculos encontrados não têm sua origem na “resistência à mudança dos
professores” ou na “força de inércia do sistema”: devem-se muito mais
fundamentalmente às funções sociais reais do sistema escolar nas sociedades
burguesas. (Baudelot 1991, p. 36)
A escola é
assim, essa é a sua lógica, por necessidade das coisas. Nunca é demais
lembrar, alerta Bourdieu: nas coisas sociais e no pensamento do social há
necessidades que devem ser trazidas à luz, pela ciência, como forma de se evitar
a “cumplicidade imediata” com as coisas sociais e com a representação reificada
do social. “O conhecimento científico da necessidade”, escreve Bourdieu (1989,
p. 105), “encerra a possibilidade de uma ação que tem em vista neutralizá-la,
logo, uma liberdade possível — quando o desconhecimento da necessidade implica
a forma mais absoluta de reconhecimento”.
Em face
disso é bastante compreensível o desgosto causado pela ciência ao pôr fim à
utopia que projeta para a escola as tendências contestatárias da classe média,
ilusão que acomete parte ponderável do professorado, funcionários tão mais
ligados ao Estado quanto maior (e mais inconsciente) for a rede de relações
que os cinge às coisas de escola, esses elementos reais e imaginários que
compõem o universo propriamente escolar. Compreende-se também por que as
propostas ingênuas para a escola (Neil, Nidelcoff etc.), as espontaneidades
transformadoras, certamente generosas, dos professores e as teorias da
conscientização e da resistência terão provavelmente que se conformar à
melancolia do fracasso e, talvez, à inocuidade teórica.
As
implicações da escola na reprodução social O ponto de vista da emancipação,
pela escola, das classes populares é equivocado na essência. Se assim o é, o
chamado “papel transformador da escola” esbarra numa realidade mais dura,
aparentemente mais prosaica e muito mais desafiadora: assim como a escola não é
imediatamente responsável pela reprodução social, também não pode ser o motor
de transformação da sociedade (cf. Silva 1992b, pp. 85-86).
Essa é uma
importante característica reprodutora da escola e fonte de muitos equívocos. Os
equívocos nasceram e nascem de uma leitura apressada e superficial das teorias
da reprodução social (na falta de outro, vamos conservar o nome “teorias da
reprodução”. Mas é prudente recusar o caráter de doutrina, de ortodoxia, de
conjunto pronto e acabado de métodos, postulados e proposições acerca da
transmissão cultural como tem sido às vezes dado pelos críticos a essas
teorias). Segundo essa leitura, as teorias da reprodução afirmam “que a
educação faz, integralmente, parte da sociedade e a reproduz” (Luckesi 1992, p.
41). Daí, ainda segundo esses leitores, o viés incuravelmente pessimista e
desmobilizador dessas teorias.
Em um texto
de 1970, cuja lógica vai inspirar o essencial da argumentação destas notas,
Bourdieu (1987, p. 295) escreve:
A sociologia
da educação configura seu objeto particular quando se constitui como ciência das
relações entre a reprodução cultural e a reprodução social, ou seja, no momento
em que se esforça por estabelecer a contribuição que o sistema de ensino
oferece com vistas à reprodução da estrutura das relações de força e das
relações simbólicas entre as classes, contribuindo assim para a reprodução da
estrutura da distribuição do capital cultural entre as classes.
Em
entrevista à professora Menga Lüdke (1991, p. 4), 20 anos depois, Bourdieu
ainda trata de elucidar a questão:
Não há
nenhuma contradição, nem teórica nem política, no fato de dizer que o sistema
escolar contribui (é esta a palavra importante) para reproduzir a estrutura
social, e o fato de tentar transformá-lo para neutralizar alguns de seus
efeitos. Digo exatamente que contribui, em parte que varia segundo os
momentos, segundo as sociedades.
Se
sustentasse que a escola reproduz a estrutura social, frase tão categórica
quanto inexata, Bourdieu estaria, de fato, incorrendo nas oposições e
dicotomias que tanto combate: de um lado a reprodução pura e simples, onde a
ação dos agentes sociais se volatiza, e de outro a prática pura e simples do
sujeito, cuja consciência é absolutizada (cf. Prestes 1993, p. 16). Tanto num
caso como no outro, as mediações estão perdidas. Além disso, a afirmação
segundo a qual a escola reproduz a estrutura social desconsidera algo
essencial, a saber: a autonomia do campo cultural em relação aos campos
político e econômico.
O próprio
Althusser, alvo mais constante das críticas, teve o cuidado de sublinhar a
palavra “contribui” no seu famoso texto sobre os aparelhos ideológicos de
Estado. Referindo-se ao processo de reprodução das relações de produção,
Althusser (1974, p. 115) observa: “Os AIE contribuem, como elemento desse
processo, para esta reprodução.”
_
Como se dá,
enfim, essa contribuição? Quais as implicações da escola no processo de
reprodução social? Veremos isso ao longo das notas que se seguem, tomando como
referência analítica os aportes teóricos de Bourdieu e colaboradores. Antes,
devemos observar que o processo geral da reprodução social pode ser visto em
uma ampla literatura disseminada em livros e periódicos. Não pretendemos
abordar isso aqui, a não ser o estritamente necessário à argumentação. Vamos
nos deter muito mais na forma específica da contribuição da escola no processo
de reprodução social.
Esquematicamente,
a função da escola no sistema de produção e circulação de bens simbólicos é a
seguinte:
1. A escola
dota os agentes dos esquemas “de percepção, de pensamento e de ação”, capazes
de torná-los, objetiva e subjetivamente, aptos e dispostos a decifrar os
produtos culturais produzidos nas instâncias de produção de bens eruditos.
Esses produtos, que são obras “puras, abstratas e esotéricas” (como a ciência,
a tecnologia, a música erudita, a língua culta etc.), “são acessíveis apenas
aos detentores do manejo prático ou teórico de um código refinado” (Bourdieu
1987, p. 116). Não são, portanto, obras passíveis de uma apreensão imediata. Ou
seja, a escola cumpre a função de produção e consagração (pelo diploma) dos consumidores
e, eventualmente, dos produtores culturais mais adequados — aqueles dotados de
habitus secundário (conjunto de disposições e aptidões necessárias à apreensão
das obras da cultura culta).
2. A escola
legitima e consagra as obras legítimas do passado através de sua incorporação
aos programas escolares (transformação em “clássicos”).
Assim,
segundo esse modelo, a escola ocupa um lugar nas instâncias de reprodução e
consagração do campo cultural. Na escola não se produz conhecimento nenhum (a
escola produz consumidores de bens culturais e, eventualmente, produtores de
conhecimentos), na es-cola não se inventa nada, ou melhor, inventa-se o já
inventado, pensase o já pensado. A cultura propriamente escolar é uma “cultura
segunda”, dedicada inteiramente aos imperativos da transposição didática (cf.
Forquin 1992).
Uma
interpretação complementar é a de Althusser, para quem a cultura escolar é uma
“cultura em segundo grau”, visando transmitir a um número mais ou menos extenso
de indivíduos a “arte de se ligar” às coisas da cultura como meio de
inculcação das normas e dos valores socialmente dominantes (cf. Althusser
1976, p. 51).
O passo
agora é argumentar como a escola, ao cumprir sua função de reprodução
cultural, contribui para a reprodução das estruturas sociais.
Deve-se
observar, primeiramente, que o que é reproduzido no campo cultural é a estrutura
das relações que todas as classes e todos os grupos sociais mantêm com a
cultura dominante. Nessas relações atuam os mecanismos da reprodução cultural.
Uma posição de força material inicial, determinada pela posse diferencial de
capital econômico, per-mite que a cultura das classes e dos grupos dominantes
seja definida como “a” cultura. Esse arbitrário cultural — “a” cultura: cultura
dominante, cultura erudita, cultura culta, alta cultura, uma escolha entre
outras que não parece ser uma escolha — é transmutado, pela alquimia das
relações de força entre as classes sociais, em capital simbólico — uma espécie
de capital que incorpora no agente, como se fosse algo natural nele, os outros
capitais; distinção; credibilidade conferida ao agente pelos demais agentes.
“O capital simbólico, geralmente chamado prestígio, reputação, fama”, escreve
Bourdieu (1989, p. 134), “é a forma percebida e reconhecida como legítima das
diferentes espécies de capital”. Os possuidores de capital simbólico são
dotados de poder simbólico, espécie de poder quase natural e incessantemente
naturalizado, que confere aos seus detentores a legitimidade pela enunciação
legítima da palavra. Os indivíduos passam a ser classificados em função da
posse ou do déficit de capital simbólico. O capital simbólico, por sua vez,
dissimula as relações de força materiais.
Tem-se,
portanto, uma força simbólica, reproduzida no campo simbólico, mas nascida de
uma força material (determinada pelo diferencial de capital econômico),
dissimulando e contribuindo para manter, pela dissimulação, a posse desigual de
capital econômico.
A
participação da escola em todo o processo que acabamos de descrever, e cuja
concisão expositiva devemos a Tomaz Tadeu da Silva (1992a, p. 138), está na
distribuição e na classificação do capital cultural com vistas à legitimação.
Considerando que os bens culturais da cultura culta, dado que raros e
esotéricos, só podem ser apreendidos pelos possuidores dos códigos necessários
à decifração desses bens, e considerando que a escola não dota igualmente
todos os agentes dos esquemas de pensamento necessários à decodificação dos
bens culturais produzidos no campo de produção cultural, a conclusão a que se é
levado é que a es-cola contribui para reproduzir a força simbólica que
dissimula a estrutura das relações sociais. Com outras palavras: o sistema de
ensino “reproduz um arbitrário cultural do qual ele não é o produtor
(reprodução cultural) e cuja reprodução contribui à reprodução das relações
entre os grupos ou as classes (reprodução social)” (Bourdieu e Passeron 1992,
p. 64). Na seqüência veremos alguns aspectos desse processo.
Escola
e capital simbólico: A lei de retorno
A lei de
retorno do capital simbólico pode ser, muito sumariamente, expressa da
seguinte forma: o capital simbólico incorpora-se no capital simbólico. Esta
lei é a manifestação, no plano simbólico, da lei mais geral de acumulação dos
capitais. No campo econômico, onde se dá o paradigma da lei geral de acumulação
do capital, o embate das forças propriamente econômicas favorece, como se sabe,
a concentração do capital nos pólos onde há mais densidade de capital. A
funcionalidade das instituições econômicas capitalistas é a de favorecer e
impulsionar essa lei mais geral, em meio às contradições resultantes das lutas
entre os diversos agentes econômicos.
Do mesmo
modo, no campo cultural há a tendência à concentração de capital cultural nos
pólos de maior densidade cultural. As instituições culturais estão conformadas
a essa tendência. Assim como as instituições e os agentes econômicos se regulam
e são regulados pela tendência de concentração do capital econômico, a escola,
enquanto instituição cultural, regula-se e é regulada para a concentração do
capital simbólico.
A escola
está estruturada para contribuir com a lei de retorno do capital simbólico ao
classificar os capitais culturais e selecioná-los com vistas à legitimação. Ao
maior volume de capital cultural inicial, propriedade dos agentes que ocupam
posições médias e altas no espaço social, a escola agrega o capital
propriamente escolar (uma cultura racionalizada), e, posteriormente, procede à
legitimação, pelo diploma, concedendo o êxito escolar. Aos capitais culturais
deficitários, propriedade dos agentes culturalmente despossuídos e que ocupam
os lugares mais baixos no espaço das posições sociais, a escola reserva as
difíceis escarpas da acumulação cultural primitiva (para o pequeno grupo dos
agentes das classes populares que terão acesso aos postos mais altos da
escolarização) ou o fracasso total (evasão e repetência), ou o êxito moderado
(saberes práticos, cursos técnicos, ofícios).
A escola
distribui desigualmente o capital simbólico entre as classes e os grupos
sociais porque a distribuição escolar do capital cultural depende
tendencialmente do capital simbólico incorporado pelos agentes antes da
escolarização, e a incorporação prévia é função da posição ocupada pelos
agentes na topografia social. Neste sentido, o mais rigoroso é dizer que a
escola redistribui desigualmente o capital cultural, pois a distribuição que a
escola processa depende das distribuições anteriores. E já que “o volume do
capital cultural determina as probabilidades agregadas de ganho em todos os
jogos em que o capital cultural é eficiente” (Bourdieu 1989, p. 134),
compreende-se por que os ganhos escolares não são de modo algum aleatórios.
Desta forma
o capital cultural que as escolas tomam como um dado age como um filtro
altamente eficaz nos processos reprodutivos de uma sociedade hierárquica. O
rendimento deficiente de grupos diferentes do dominante numa sociedade,
portanto, não é algo inerente à diferença cultural per se, mas é, exatamente na
mesma medida que o êxito para os grupos dominantes, um artifício da forma pela
qual as escolas operam. (Harker 1990, p. 80)
Escolarização
e capital lingüístico
Detalhemos
um pouco mais a questão da distribuição desigual do capital simbólico, que
condiciona tendencialmente o êxito e o fracas-so escolares, tomando como motivo
a linguagem. Como se sabe, a relação pedagógica é uma relação de comunicação
por excelência (melhor dizendo: é uma relação de força simbólica), sendo o
capital lingüístico dos falantes um fator determinante na eficácia dessa
relação. Digamos que o contrato pedagógico seja enormemente obstaculizado pelas
disfunções comunicacionais e que o rendimento do trabalho pedagógico seja
diretamente proporcional à performance informativa da comunicação. Digamos que
a comunicação pedagógica, por sua vez, seja realizada num código cifrado e
complexo — a linguagem propria-mente escolar — mais ou menos distante dos
códigos manejados no cotidiano (não nos esqueçamos de que o conteúdo da escola
é a cultura erudita didaticamente transposta, e não o senso comum e os
saberes populares). Em função disso, só os estudantes das classes e dos grupos
sociais que ocupam posições médias e altas no espaço das posições sociais, e
os estudantes fortemente selecionados das classes populares (os sobreviventes),
conseguem atender às exigências lingüísticas da escola. Isso se dá porque “a
aptidão à decifração e à manipulação de estruturas complexas, quer elas sejam
lógicas ou estéticas, depende em certa parte da complexidade da língua
transmitida pela família” (Bourdieu e Passeron 1992, p. 83).
A conclusão
a que se chega é que a mortalidade escolar aumenta nas classes e nos grupos
sociais cuja linguagem familiar se afasta da linguagem escolar. Os agentes das
classes populares têm enorme dificuldade, na maioria das vezes insuperável, em
decodificar a língua escolar, tanto oral quanto escrita, pois tendem a usar um
“código restrito” de linguagem. Isto é, suas opções lingüísticas, sendo
fortemente limitadas, inabilita-os, de saída, à competição num meio onde a
competência lingüística é a moeda corrente, ao contrário dos agentes das
classes e dos grupos sociais dominantes, que, por tenderem a usar um “código
elaborado” de linguagem, se encontram perfeitamente à vontade no meio escolar
(cf. Morrish 1983, pp. 151-154).
Nos termos
de Bourdieu (1983, pp. 156-183), tudo isso pode ser dito da seguinte forma: são
baixas as chances objetivas de acesso dos agentes das classes populares aos instrumentos
de produção da competência legítima em matéria de comunicação, pois os seus
habitus (disposições permanentes de pensar e agir) lingüísticos, que são
dimensões do habitus de classe, expressão da posição ocupada na topografia
social, não os predispõem ao manejo prático dos códigos intelectuais
necessários à decodificação de bens culturais complexos (ciência, artes,
letras etc.). Logo, tais agentes têm probabilidades reduzidas de obtenção de
lucro lingüístico, isto é, têm fracas expectativas de receber preços mais ou
menos elevados pelos seus discursos (reduzidas chances de legitimidade
discursiva). O resultado é o fracasso tendencial na relação
pedagógico-escolar, pois esta relação, enquanto relação de força simbólica,
visa à seletividade com base na maximização do desempenho comunicativo.
O baixo
rendimento escolar dos alunos das classes populares não deve, por conseguinte,
ser creditado nem à falta de inteligência nem ao desinteresse, assim como o
satisfatório rendimento dos alunos das classes médias e altas não deve, via de
regra, ser creditado a dotes intelectuais ou ao interesse. Essas explicações
tão naturais e naturalizantes do professor médio, que procura se proteger e proteger
a escola, instituição que o protege, passam ao largo da função de seletividade
cognitiva que a escola desempenha na sociedade.
A forte
mágica social da escola, tão eficaz que encontra uma verdadeira plêiade de
ideólogos capazes das mais barulhentas guerras na defesa e na valorização da
escola pública (como se o fato de ser pública ou privada mudasse em algo na
coisa), reside na dissimulação e na legitimação das sanções e seletividades
escolares.
Capital
lingüístico (herdado da família), rendimento escolar e escolha vocacional
estão inter-relacionados na lógica das estratégias culturais das classes
sociais. Na aparência tudo se passa como se todos os agentes sociais,
independente de suas posições sociais, fizessem naturalmente suas opções
escolares e profissionais. Do ponto de vista da percepção imediata das coisas,
tudo se passa como se o filho do pedreiro escolhesse livremente ser pedreiro,
e todo o seu investimento escolar fosse guiado por essa escolha, e o filho do
médico, por vocação e manifestação livre de sua vontade, escolhesse ser médico
ou advogado, conduzindo assim seus investimentos escolares para essa
preferência. É necessário romper com toda essa percepção imediata do social e
mostrar que nas escolhas escolares aparentemente mais livres há estratégias
culturais de classes que condicionam as opções mais subjetivas dos agentes (cf.
Nogueira 1991). É possível mostrar, com rigor e exatidão, que as vocações e as
profissões não são escolhas assim tão livres, e que os títulos escolares não
são aleatoriamente distribuídos. Mas é necessário se precaver contra a tentação
de interpretar déficit e superávit lingüísticos como propriedades substanciais
das classes e dos grupos sociais, como essências biológicas ou culturais que
impõem mecanicamente aos indivíduos específicos modos de agir e pensar. O
capital lingüístico é um conceito relacional: enuncia as disposições
lingüísticas construídas pelas classes e pelos grupos sociais em tempo e espaço
determinados do mercado de bens simbólicos (cf. Bourdieu 1996, pp. 16-18).
De modo que
aqui, outra vez, vemos a escola inserida na lei de retorno do capital
simbólico: a maior probabilidade de êxito escolar está reservada aos alunos
sintonizados com os códigos lingüísticos da escola. Os alunos mais ricos em
capital lingüístico são os mais prováveis merecedores da consagração escolar.
A estes a honra ao mérito, os diplomas das melhores universidades (garantia
para os melhores postos de emprego), o prestígio, o reconhecimento, enfim, o
capital simbólico se incorporando ao capital simbólico. Aos outros, aos que
têm déficit em capital lingüístico, a repetência, a evasão, os diplomas de
cursos noturnos “mal tirados”, enfim, essas marcas sociais que contribuem para
reproduzir as posições dominadas do campo social.
Considerações finais
Tudo o que
foi escrito até aqui permanece para nós entre parênteses se não for posto à
prova no confronto com realidades específicas (cf. Rockwell 1990). Trata-se de
tomar esse poderoso arsenal conceitual, que não é exclusivo, e relê-lo com o
propósito de conhecer no detalhe como se dão os processos reprodutivos na
sociedade brasileira e qual a contribuição do sistema de ensino para a eficácia
desses processos. A dificuldade reside precisamente em agarrar, na expressão
de Bourdieu, “o invariante, a estrutura, na variante observada”: isto é,
agarrar “a particularidade de uma realidade empírica, historicamente situada
e datada, para construí-la, porém, como ‘caso particular do possível’, conforme
a expressão de Gaston Bachelard, isto é, como uma figura em um universo de
configurações possíveis” (Bourdieu 1996, p. 15). Não se trata de afirmar
abstratamente se as teorias da reprodução estão certas ou não — esse tem sido
o equívoco mais freqüente —, ou de afirmar que as teorias da reprodução são a
priori inadequadas ao nosso contexto latino-americano ou terceiro-mundista,
dado que construídas nas realidades européia e norte-americana, mas sim de
submetê-las à prova empírica, de, como salienta Grignon, “confrontar a
problemática da reprodução com a diversidade de situações e territórios
escolares sem temer aventurar-se em direção às instituições que ocupam as
posições mais baixas ou mais ‘excêntricas’ na hierarquia do sistema de ensino,
tal e como sucede com a escola primária ou com o ensino técnico” (Varela 1990,
p. 186).
Esse é o
problema e o desafio. Devemos reconhecer que temos feito poucas pesquisas
estatísticas na área da educação. Não conhecemos, ou conhecemos muito pouco,
os detalhes das estratégias culturais das classes sociais no Brasil. O que
sabemos das disposições culturais dos professores? Qual o impacto da inflação
de credenciais na sociedade brasileira? Qual o impacto no sistema universitário
da irrupção de novas universidades privadas, dotadas de competitividade e de
projetos próprios e singulares? Qual o perfil da clientela dos cursos
escolares informais? Qual a qualidade do ensino técnico, público e privado,
ministrado no Brasil? O que sabemos da distribuição social dos investimentos
escolares? Em suma, temos feito pesquisas destinadas a observar as tendências
da reprodução social? Muito pouco. Sem querer de modo algum desqualificar o
debate teórico, devemos reconhecer que temos a mania, na pesquisa acadêmica,
de fazer trabalhos doutrinários, de ruminar velhas polêmicas, de bater a frio
em oposições já superadas. Manejamos uma reduzida massa de informações porque
trabalhar em educação com dados empíricos, números e tabelas é ser candidato a
receber a considerada nada honrosa classificação de “positivista”.
Não há
dúvida de que até agora o livre jogo das forças simbólicas na universidade
brasileira tem sido desfavorável às teorias da reprodução. Mas depois de
recentes trabalhos de pesquisadores brasileiros, como os já citados, e dos
estudos epistemológicos de Veiga Neto (1992; 1993), além de outros trabalhos
importantes, tais como os de Martins (1987), Catani (1994), Castro (1995) e
Rocha (1995), tomando apenas uma pequena amostra da produção na área
educacional, e da tradução e divulgação entre nós de importantes pesquisas
realizadas na Europa e nos Estados Unidos, espera-se que as teorias da
reprodução sejam, sem propósitos exclusivistas, retiradas do ostracismo no qual
foram injustificadamente postas.
Fonte: Educação
& Sociedade, ano XVIII, nº 60, dezembro/97
.
Referências
bibliográficas
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Notas
para uma investigação. Lisboa, Editorial Presença, 1974.
_______. Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas. Lisboa,
Editorial Presença,1976.
BAUDELOT, Christian.“A sociologia da educação: Para quê?” In: Teoria
& Educação nº 3. Porto Alegre, 1991, pp. 29-42.
BOURDIEU, Pierre. Pierre Bourdieu: Sociologia. Organização de Rena-to
Ortiz. São Paulo, Ática, 1983 (Grandes cientistas sociais 39).
_______. A economia das trocas simbólicas. Introdução, seleção e
organização de Sergio Miceli. 3ª
ed., São Paulo, Perspectiva, 1987.
_______. O poder simbólico. Lisboa, Difel, 1989.
_______.“Estruturas sociais e estruturas mentais”. In: Teoria &
Educação no 3. Porto Alegre,1991, pp.
113-119.
_______. Razões práticas. Sobre a teoria da ação. Campinas, Papirus, 1996.
BOURDIEU,
Pierre e PASSERON, Jean Claude. A reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino. 3ª ed.,
Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1992.
CASTRO, Magali. “Contribuições da sociologia clássica e contemporânea
para a análise das relações de poder na escola: Um es-
Educação & Sociedade, ano XVIII, nº 60, dezembro/97
tudo do poder em Weber e em Bourdieu”. In: Educação & Sociedade nº
50. Campinas, abr. 1995, pp. 105-143.
CATANI, Denice B. “Memória e biografia: ‘O poder do relato e o relato do
poder’ na história da educação”. Trabalho apresentado na 17a Reunião Anual da
Anped. Caxambu, Minas Gerais, 1994. In: VV. AA. Pesquisa histórica: Retratos da
educação no Brasil. Rio de
Janeiro, UERJ, s.d., pp. 73-80.
FORQUIN, Jean-Claude. “Saberes escolares, imperativos didáticos e
dinâmicas sociais”. In: Teoria & Educação nº 5. Porto Alegre, 1992, pp.
28-49.
HARKER, Richard H. “Reprodução, habitus e educação”. In: Teoria &
Educação nº 1. Porto Alegre, 1990, pp.
79-92.
LUCKESI, Cipriano C. Filosofia da educação. 4a reimpressão, São Paulo,
Cortez, 1992.
MARTINS, Carlos B. “Estrutura e ator: A teoria da prática em Bourdieu”.
Educação & Sociedade nº 27. 1987, pp. 33-46.
MORRISH, Ivor. Sociologia da educação. 4a ed. Rio de Janeiro, Zahar,
1983.
NOGUEIRA, Maria Alice. “Trajetórias escolares, estratégias culturais e
classes sociais. Notas em vista da construção do objeto de pesquisa”. In:
Teoria & Educação no 3. Porto Alegre, 1991, pp. 89
112.
PRESTES, Nadja Mara H. “Abordagem sociológica do sujeito epistêmico”.
In: Educação e Realidade nº 2. Porto
Alegre, jul./dez. 1993, vol. 18, pp.
11-19.
ROCHA, Francisco J. Pimenta. “Vestibular: Cultura e tragédia”. In:
Educação & Sociedade nº 50. Campinas,
abr. 1995, pp. 15-43.
ROCKWELL, Elsie. “Como observar a reprodução”. In: Teoria &
Educação nº 1. Porto Alegre, 1990, pp.
65-78.
SILVA, Tomaz T. “A dialética da interioridade e da exterioridade em
Bernstein e em Bourdieu”. In: Teoria & Educação no 5. Porto Alegre, 1992a, pp. 133-148.
______________. O que produz e o que reproduz em educação. Porto
Alegre, Artes Médicas, 1992b.
Educação & Sociedade, ano XVIII, nº 60, dezembro/97
VARELA, J. “Para além da reprodução
Entrevista com Claude Grignon”. In: Teoria & Educação no 1. Porto
Alegre, 1990, pp. 180-190.
VEIGA NETO, Alfredo José. “A ciência em Kuhn e a sociologia de Bourdieu:
Implicações para a análise da educação científica”. In: Educação e Realidade no
1. Porto Alegre, jan./jun. 1992, vol. 17.
_______. “A teoria da ciência em Kuhn e a sociologia de Bourdieu: As
diferenças”. In: Educação e Realidade no 2.
Porto Alegre, jun./dez. 1993, vol. 18.
Educação & Sociedade, ano XVIII, nº 60, dezembro/97
Nenhum comentário:
Postar um comentário