Aprendendo a ser Trabalhador - Paul Willis


APRENDENDO A SER TRABALHADOR: Escola, resistência e reprodução social”

Autor: Paul Willis


Editora Artes Médicas, Porto Alegre, 1991

(Tradução de tomaz Tadeu da Silva e Daise Batista)


Prefácio, Agradecimentos, Chave para as transcrições,
Introdução, Parte I – Cap. 2 (Etnografia): pág. 7 a 56


Prefácio

Este livro surgiu de um projeto financiado pelo Social Science Research Council, de 1972 a 1975, sobre a transição da escola para o trabalho de jovens do sexo masculino e de classe operária que cursavam um currículo secundário não-acadêmico. Os métodos usados foram: estudo de caso, entrevista, discussões de grupo e observação participante, enquanto esses jovens viviam seus dois últimos anos de escola e seus primeiros meses de trabalho. A Parte I apresenta os dados empíricos e as principais descobertas deste estudo. Ela se constitui basicamente de uma etnografia da escola e particularmente das formas culturais oposicionistas e de classe operária em seu interior, e de uma contribuição prática à literatura sobre a transição da escola para o trabalho. A Parte II é mais teórica. Ela analisa o significado intrínseco, a racionalidade e a dinâmica dos processos culturais antes registrados e as formas pelas quais eles contribuem, por um lado, para a cultura operária em geral, e por outro, de forma mais inesperada, para a manutenção e a reprodução da ordem social.
Um objetivo geral do livro é tornar seus argumentos mais acessíveis para cientistas sociais, pessoas envolvidas no trabalho prático e leitores em geral. As referências e os argumentos mais especializados foram, por isso, deslocados para as notas. Aquelas pessoas envolvidas no trabalho prático podem estar mais interessadas na Parte I e na Conclusão; os teóricos sociais na Parte II.
Na época em que o livro estava sendo encaminhado para publicação o SSRC havia aprovado um financiamento para a continuação da pesquisa aqui descrita, focalizando desta vez "o jovem trabalhador e a cultura do chão de fábrica". A intenção é que essa pesquisa constitua uma continuação do presente volume.

Agradecimentos

Obrigado à ajuda, aos conselhos, ao estímulo e ao exemplo de Stuart Hall Richard Hoggart. Obrigado também às pessoas que leram os rascunhos deste livro e fizeram comentários substanciais: Tony Jefferson, Dan Finn, Michael Green, Allan O'Shea e membros do Grupo de Educação do CCCS. Obrigado também datilógrafas: Deirdre Barker, Aleene Hall e Pearl New.
De forma mais geral, devo agradecer ao Centre for Contemporary Cultural Studies e a todos os seus membros, às escolas e a todos os seus membros e particularmente aos "rapazes" da escola masculina de Hammertown. Eles tornaram a pesquisa possível.

Pág. 8

Os indivíduos não podem exercer domínio sobre suas interconexões sociais antes que as tenham criado. Mas constitui uma idéia inaceitável conceber esse vínculo objetivo como um atributo espontâneo, natural, dos indivíduos e inseparável de sua natureza (em antítese com seu conhecimento e vontade conscientes). Esse vínculo é produto deles. É um produto histórico. Pertence a uma fase específica de seu desenvolvimento. O caráter estranho e independente através do qual ele atualmente existe vis à vis aos indivíduos apenas prova que esses últimos ainda estão envolvidos na criação das condições de sua vida social e que eles ainda não começaram, tendo como base essas condições, a vivê-lo... Indivíduos universalmente desenvolvidos... não são, de modo algum, um produto da natureza, mas da história.

Karl Marx, Grundrisse, 1857 [Penguin, pp. 161-2]



INTRODUÇÃO

A coisa difícil de ser explicada a respeito da forma como jovens de classe média obtêm empregos de classe média é por que os outros deixam que isso aconteça. A coisa difícil de ser explicada a respeito da forma como jovens de classe operária acabam em empregos de classe operária é por que eles próprios deixam que isso aconteça com eles.
É demasiado fácil dizer simplesmente que eles não têm escolha. A forma pela qual se faz com que o trabalho manual seja aplicado à produção vai, em diferentes sociedades, desde a coerção exercida através de metralhadoras, balas e tanques, até o convencimento ideológico em massa de um exército industrial voluntário. Nossa própria sociedade democrático-liberal fica situada nalgum ponto intermediário. Não há nenhuma coerção física evidente, existindo até mesmo um certo grau de auto-condução. Isso ocorre apesar das baixas recompensas atribuídas ao trabalho manual, de sua definição social como indesejável e de sua crescente intrínseca falta de sentido: numa palavra, de sua localização no nível mais baixo da sociedade de classes.' O objetivo principal deste livro é lançar alguma luz sobre esse surpreen­dente processo.
Pensa-se, com bastante freqüência, nos talentos educacionais e ocupacionais como estando situados numa curva contínua de capacidades decrescentes, que se vai achatando. Nesse modelo, as pessoas da classe operária estariam situadas nos seus pontos mais baixos, assumindo, sem questionar, as piores ocupações e pensando, de alguma forma: "Admito que eu seja tão estúpido que é justo e correto que tenha de passar o resto de minha vida apertando parafusos numa fábrica de carros". Naturalmente, este modelo em forma de gradiente tem que pressupor que na base a capacidade seja igual a zero ou quase. Isso significaria que as pessoas reais situadas na extremidade inferior dificilmente teriam um motivo para estarem vivas, muito menos para serem humanas. Uma vez que esses indivíduos, neste momento, longe de serem cadáveres ambulantes, estão, pelo contrário, colocando o sistema inteiro em crise, esse modelo está claramente precisando de uma revisão. A economia de mercado de empregos numa sociedade capitalista decisivamente não se estende para uma economia de mercado de satisfações.
Sugiro que os jovens "fracassados" da classe operária não entram simplesmente na curva descendente de empregos no ponto em que os jovens menos bem-sucedidos da classe média, ou os mais bem-sucedidos da classe operária, a deixam. Ao invés de pressupor uma curva achatada e contínua de capacidades na estrutura ocupacional ou na estrutura de classes, devemos pensar em rupturas radicais representadas pela interface de formas culturais. Estaremos olhando, neste livro, para a forma pela qual o padrão cultural de "fracasso" da classe operária é bastante diferente e descontínuo com relação aos outros padrões. Embora, num contexto determinado, ele tenha seus próprios processos, suas próprias definições, sua própria descrição daqueles outros grupos convencionalmente tidos como mais bem-sucedidos. E essa cultura de classe não é um padrão neutro, uma categoria mental, um conjunto de variáveis imposto sobre a escola, a partir de fora. Ela compreende experiências, relações e conjuntos de tipos sistemáticos de relações que determinam não apenas "escolhas" específicas e "decisões" em períodos específi­cos, mas também estruturam, real e experiencialmente, a forma como essas "escolhas" surgem e são definidas, antes de mais nada.
É objetivo relacionado e subsidiário deste livro examinar aspectos centrais e importantes da cultura operária através do estudo concreto de uma de suas manifestações mais reveladoras. Meu interesse original de pesquisa estava centrado, na verdade, na cultura operária em geral; fui levado a olhar para jovens ressentidos, do sexo masculino, que seguiam o currículo não-acadêmico do curso secundário, e sua adaptação ao trabalho, como um momento privilegiado e crucial da regeneração contínua das formas culturais operárias em relação à estrutura mais essencial da sociedade — suas relações de trabalho.
Ambos os conjuntos de preocupações estão relacionados, na verdade, ao importante conceito de força de trabalho e à forma como ela é preparada em nossa sociedade para ser aplicada ao trabalho manual. Força de trabalho é a capacidade humana para trabalhar sobre a natureza com o uso de instrumentos para produzir coisas para a satisfação de necessidades e para a reprodução da vida. O trabalho não é uma atividade humana universal, imutável e trans-histórica. Ele assume formas e significados específicos em diferentes tipos de sociedade. Os processos através dos quais a força de trabalho vem a ser subjetivamente entendida e objetivamente aplicada, e suas inter-relações, são de profundo significado para o tipo de sociedade que é produzida e para a natureza e formação particular de suas classes. Esses processos ajudam a construir as identidades de indivíduos particu­lares, assim como formas distintivas de classe tanto nos níveis cultural e simbólico quanto nos níveis econômico e estrutural.
A identidade de classe não é verdadeiramente reproduzida até que tenha passado de forma apropriada pelo indivíduo e pelo grupo, até que tenha sido recriada no contexto daquilo que parece ser uma escolha pessoal e coletiva. As pessoas realmente vivem (e não simplesmente tomam emprestado) seu destino de classe quando aquilo que é dado é re-formado, reforçado e aplicado a novos propósitos. A força de trabalho é um pivô importante disso tudo porque é o principal modo de conexão ativa com o mundo: a forma par excellence de articulação do eu mais íntimo com a realidade externa. Ela representa, na verdade, a dialética entre o eu e o eu, através do mundo concreto. Uma vez que esse vínculo básico com o futuro tenha sido feito, tudo o mais pode passar por senso comum.
Sustento que o milieu específico no qual uma certa idéia subjetiva da força de trabalho manual e uma decisão objetiva para aplicá-la ao trabalho manual são produzidas é a cultura contra-escolar operária. E aqui onde os temas operários são mediados até os indivíduos e grupos em seu próprio contexto determinado e onde os jovens da classe operária criativamente desenvolvem, transformam e acabam por reproduzir aspectos da cultura mais ampla em sua própria práxis, de uma forma tal que acaba, ao final, direcionando-os para certos tipos de trabalho.
A Parte I do livro apresenta uma etnografia da cultura contra-escolar operária, constituída por jovens do sexo masculino e de cor branca. Por questões de clareza e de ênfase, o que de forma alguma implica em sua falta de importância, outras variantes étnicas e de gênero não serão examinadas.
Podemos apenas observar aqui que a existência desta cultura tem sido apresentada convencionalmente, e especialmente pelos meios de comunicação em sua forma sensacionalista, como violência e indisciplina na sala de aula.' A Lei de Elevação da Idade de Escolarização Compulsória (Raising of the School Leaving Age = RSLA), promulgada na Inglaterra em setembro de 1972, que elevava a idade de educação compulsória de 14 para 16 anos, parece ter posto em evidência e exposto ainda mais os aspectos mais agressivos dessa cultura.' Os dois principais sindicatos de professores encomendaram relatórios especiais4 e assinaram protocolos que garantiam o apoio do sindicato na expulsão da sala de aula dos "causadores de problemas". Mais da metade das autoridades municipais da Inglaterra e do País de Gales instituíram classes especiais nas escolas, e até mesmo "santuários" bastante segregados, para esses jovens, como no caso da Zona Central de Londres. O Ministro da Educação encomendou uma pesquisa nacional em toda essa áreas As desordens nas escolas e as faltas às aulas constituem prioridades na pauta do "grande debate" sobre a educação convocado por Mr. Callaghan, o atual Primeiro Ministro.'
No sentido, portanto, daquilo que eu argumento, que é sua própria cultura que mais eficazmente prepara alguns rapazes da classe operária para a oferta manual de sua força de trabalho, podemos dizer que existe um certo elemento de auto-conde­nação na adoção de papéis subordinados no capitalismo ocidental. Entretanto, esta condenação é experienciada, paradoxalmente, como um verdadeiro aprendizado, como uma afirmação, como uma apropriação e como uma forma de resistência. Além disso, argumentarei na Parte II, onde analiso a etnografia apresentada na Parte I, que existe uma base objetiva para esses sentimentos e processos culturais subjetivos. Eles envolvem uma penetração parcial das condições de existência realmente determinantes da classe operária, a qual é definitivamente superior àquelas versões oficiais da realidade que são oferecidas através da escola e das várias agências estatais. É somente com base numa tal articulação cultural real com suas condições que os grupos de rapazes da classe operária vêm a tomar parte em sua própria danação. A tragédia e a contradição estão no fato de que essas formas de "penetração" são limitadas, distorcidas e voltam-se contra si próprias, freqüentemente de forma involuntária, através de complexos processos que se estendem desde os processos ideológicos gerais e os que se produzem na escola e nas agências de aconselhamento vocacional até a influência generalizada de uma forma de dominação masculina patriarcal e sexista existente dentro da própria cultura da classe operária.
Por fim, argumentarei, na Parte II, que os processos de auto-inscrição no processo de trabalho constituem um aspecto da regeneração da cultura da classe operária em geral, e um importante exemplo de como essa cultura está relacionada, sob importantes aspectos, com as instituições estatais de regulação. Eles têm uma Importante função na reprodução global da totalidade social e especialmente em relação à reprodução das condições sociais necessárias para um certo tipo de produção.
Esta é a coluna vertebral deste livro. Em busca desses objetivos o livro faz contribuição em várias outras áreas, explora o paradigma educacional que está centro da relação de ensino de nossas escolas, faz uma crítica do aconselhamento tonal e sugere algumas explicações para o persistente fracasso da educação em aumentar radicalmente as oportunidades de vida das crianças e jovens da classe operária.
Há também, na Parte II, uma contribuição à discussão do processo de de estereótipos sexuais em relação com o patriarcado e o capitalismo, e notas de elaboração teórica sobre a natureza e a forma da relação entre Ideologia.
Ao métodos qualitativos e a Observação Participante usada na pesquisa, assim como o formato etnográfico da apresentação, foram ditados pela natureza de meu interesse no "cultural". Essas técnicas são apropriadas para registrar esse nível e s a significados e valores, assim como são capazes de representar e es articulações, práticas e formas simbólicas da produção cultural. Em a descrição etnográfica, sem que nem sempre se saiba como, permite que um certo grau da atividade, da criatividade e da ação humana presentes no estudo chegue à análise e à experiência do leitor. Isto é vital para os meus propósitos na medida em que vejo o cultural, não simplesmente como um conjunto de estruturas internas transferidas (como nas noções usuais de socialização), nem como o resultado passivo da ação, de cima para baixo, da ideologia dominante (como em certos tipos de marxismo), mas, ao menos em parte, como o produto da praxis humana coletiva.

O estudo de caso de Hammertown

Um estudo de caso principal e cinco estudos comparativos foram realizados na pesquisa relatada neste livro. O estudo principal refere-se a um grupo de doze rapazes de classe operária que cursavam o currículo secundário não-acadêmico numa escola que chamaremos de Hammertown Boys, numa cidade que chamaremos de Hammertown. Eles foram selecionados com base nos laços de amizade e por pertencerem a algum tipo de cultura de oposição numa escola de classe operária. A escola fora construída nos anos de entre-guerras e está situada no centro de um loteamento municipal formado no mesmo período e densamente povoado, composto de casas comuns e em estado razoável, freqüentemente possuindo um pátio, interligadas por um labirinto de ruas, becos e ruelas, e servidas por numerosos e grandes bares e por conjuntos de lojas e pequenos supemercados.
Durante o período da pesquisa esta escola caracterizava-se por ser uma escola secundária moderna não-seletiva, exclusivamente masculina, mas com uma escola geminada, exclusivamente feminina, do mesmo padrão. Depois do término da pesquisa, ela se tornou uma escola unificada (comprehensive) e destinada a um único sexo, como parte de uma reorganização geral da educação secundária no município. Em vista dessa esperada mudança e sob a pressão dos eventos e em preparação para a Lei de Elevação da Idade de Escolarização Compulsória (RSLA), a escola estava se expandindo em termos de construções e introduzindo ou experimentando algumas novas técnicas durante o período da pesquisa. A prática da divisão em turmas homogêneas em capacidade (streaming) fora substituída pela divisão em grupos heterogêneos em capacidade, introduziu-se um centro de criatividade, fizeram-se experiências com ensino em equipe e com programas de desenvolvimento de currículos, e uma gama inteira de novas disciplinas "opcionais" foi desenvolvida para "o ano da RSLA". Fiz contato com o grupo no início do segundo período letivo de seu penúltimo ano e acompanhei-os por esse tempo todo, incluindo seis meses já no trabalho (seu último ano coincidiria com o primeiro ano de vigência da RSLA). A escola tinha cerca de 600 alunos e continha um número significativo de estudantes pertencentes às minorias procedentes da Ásia e do Caribe. Basicamente, esta escola foi selecionada porque estava no centro de uma área originária do período de entre-guerras, caracteristicamente de classe operária, ela própria localizada no centro de Hammertown. Os alunos procediam exclusiva­mente da classe operária, mas ela tinha a reputação de ser uma "boa" escola. Isto parecia significar, essencialmente, que ela tinha "padrões razoáveis" de comporta­mento e formas de vestir reconhecidos, e estava aos cuidados de uma equipe experiente, competente e interessada. Eu queria estar o mais seguro possível de que o grupo selecionado era típico da classe operária numa área industrial, e de que a educação oferecida era tão boa, se não levemente melhor, que qualquer outra disponível em contextos ingleses similares. Uma vantagem adicional da escola selecionada era que ela tinha uma nova e bem equipada ala juvenil que era bem freqüentada pelos alunos e lhes proporcionava a oportunidade de uni primeiro contato bastante aberto e informal com a escola.
Realizei alguns estudos de caso comparativos no mesmo período. Eles consistiram de: um grupo de jovens conformistas da mesma classe dos doze rapazes de Hammertown; um grupo de jovens conformistas de classe operária de uma escola secundária vizinha, unificada e mista (em termos de classe), informalmente conhecida como uma escola um tanto mais "pesada"; um grupo de jovens não-conformistas de classe operária na escola tradicional (grammar) e unicamente masculina de Hammertown; um grupo similar numa escola unificada próxima ao centro da malha urbana maior da qual Hammertown faz parte; e um grupo masculino, não-conformista, misto (em termos de classe), numa escola do tipo tradicional (grammar) de alto status, na área residencial mais exclusiva da mesma malha urbana mais ampla. Tanto quanto possível, todos os grupos eram do mesmo ano escolar, constituíam grupos de amizade, e foram selecionados com base na probabilidade de deixarem a escola na idade mínima legal de dezesseis anos. No caso da escola tradicional (grammar) de alto status, esta última condição determinou totalmente a escolha do grupo e sua característica de ser de classe social mista --­eles eram os únicos rapazes que pretendiam deixar a escola aos dezesseis anos no quarto ano escolar (quando eu inicialmente entrei em contato com eles) e, de fato, subseqüentemente, apenas dois deles realmente deixaram a escola nesse ponto. Esses grupos foram selecionados para dar uma dimensão comparativa ao estudo ao longo dos parâmetros de classe, capacidade, regime escolar e atitude frente à escola.
O grupo principal foi estudado intensivamente por meio de: observação e de observação participante na classe, ao redor da escola e durante as atividades de lazer; discussões regulares de grupo, registradas; entrevistas informais; e diários. Assisti às aulas de todas as matérias e outras atividades (não como professor, mas como aluno) assistidas pelo grupo em vários períodos e a seqüência completa de sessões de orientação vocacional dirigidas por um professor experiente e dedicado recém-regressado de um treinamento em orientação educacional e vocacional. Também gravei longas conversas com todos os pais do grupo principal, e com todos os professores mais antigos da escola, com os principais professores mais novos que tinham contato com os membros do grupo e com os orientadores vocacionais que vinham à escola.
Acompanhei os doze rapazes do grupo principal, assim como os três rapazes escolhidos dos grupos comparativos, no seu ingresso no trabalho. Quinze períodos curtos de observação participante foram dedicados a realmente trabalhar lado a lado com cada um dos garotos em seu emprego, terminando com entrevistas gravadas individualmente e entrevistas selecionadas com supervisores, gerentes e delegados sindicais.
Hammertown aparece registrada pela primeira vez no Doomsday Books como uma pequena aldeia. Está situada no centro da Inglaterra, como parte de um aglomerado urbano muito maior. Como muitas outras cidades pequenas da redondeza, o tamanho de sua população e sua importância cresceram acelerada­mente durante a Revolução Industrial. A chegada dos canais e a construção de uma fundição por Boulton e Watt para fabricar moldes metálicos para outras indústrias em meados do século dezoito transformaram suas características. Foi uma das primeiras cidades industriais e sua população deu lugar a um dos primeiros proletariados industriais. Por volta de 1800, ela possuía muitas fábricas de objetos de ferro fundido e fundições, assim como fábricas de sabão, chumbo e vidro. Mais recentemente, tomou-se um importante centro de produção de mancais, amortece­dores, componentes para bicicletas, vidro, parafusos e tornearia. Constitui-se, de fato, numa das cidades de tornearia da Midlands, a qual foi, no seu devido tempo, o berço da Revolução Industrial.
Ela faz agora parte de um grande aglomerado, industrial da Midlands. As pessoas ainda a imaginam pesada e suja, muito embora sua folha corrida de serviços públicos e de política habitacional seja melhor que a da maioria das cidades da região. Casas dilapidadas e conjuntos habitacionais decadentes da época vitoriana foram agora removidos e substituídos por apartamentos e casas modernas construídos pela municipalidade. Mas quando rapazes de Hammertown namoram garotas de fora, eles ainda gostam de dizer que são da grande cidade vizinha que, de forma conveniente, lhes fornece o código postal.
A população da cidade alcançou seu ponto máximo no início dos anos 50 e vem caindo desde então, apesar da chegada de quantidades substanciais de imigrantes negros. A população é agora de 60.000 e, curiosamente, tem uma das mais altas "taxas de atividades (9) — especialmente para as mulheres — de todo o país. A estrutura de idade e sexo de Hammertown é similar à do resto da Inglaterra e do País de Gales, mas sua estrutura de classes é notavelmente diferente. Trata-se essencialmente de uma cidade de classe operária. Apenas 8 % de seus habitantes têm uma ocupação de nível profissional ou gerencial (a metade da taxa nacional) e a grande maioria da população está envolvida em alguma forma de trabalho manual. Há um fluxo diário impressionante de cerca de 3.000 pessoas de classe média procedentes do sul e oeste, que trabalham, mas não moram, em Hammertown. A pequena proporção de pessoas da classe média reflete-se no fato de que menos de 2 por cento dos adultos estão envolvidos na educação em tempo integral (outra vez, a metade da taxa nacional).
A estrutura de emprego demonstra o caráter distintivamente industrial da comunidade de classe operária. Há uma força de trabalho total de cerca de 36.000 pessoas, das quais 79 % trabalham em algum tipo de fábrica, em contraste com uma taxa nacional de 35 % e com uma taxa de 55 % para o aglomerado urbano do qual Hammertown faz parte. O setor metalúrgico é responsável por mais da metade desse emprego. As outras fontes principais de emprego estão nas indústrias alimentícias, de bebida e de fumo, na engenharia mecânica, veículos, cerâmica, vidro e na distribuição. As perspectivas de emprego são geralmente boas em Hammertown e mesmo durante o período de recessão, sua taxa de desemprego tem-se mantido cerca de 1% abaixo da média nacional.
Embora a cidade tenha-se industrializado há mais de 200 anos, e tenha mantido muitas das mesmas indústrias básicas — especialmente as metalúrgicas e de fundição — ela não tem a infra-estrutura das empresas familiares ou pequenas de muitas cidades similares. Na verdade, sua estrutura organizacional industrial é notavelmente moderna. A maior parte do emprego em Hammertown está em grandes fábricas, as quais freqüentemente são filiais de empresas nacionais ou multinacionais. Sessenta por cento da força de trabalho total trabalha em empresas que empregam mais de 1.000 pessoas. Menos de 5% dos empregados na indústria trabalham em empresas com menos de 25 empregados. Cinqüenta e oito por cento da área industrial total concentra-se em 38 fábricas de uma extensão de mais de 1.000 m2. Mais de 20% da área total da cidade está destinada ao uso industrial.
Em suma, Hammertown aproxima-se da cidade industrial típica. Possui todas as características industriais clássicas, assim como as do capitalismo monopolista moderno, em combinação com um proletariado que é precisamente o mais antigo do mundo.

Notas

1. Há toneladas de estatísticas demonstrando diferenças sistemáticas entre as classes médias e as classes operárias na Grã-Bretanha. Existe pouca discordância quanto à confiabilidade dessas estatísticas e o volume mais recente de Social Trends (nº 6, 1975, HMSO) reúne a maior parte dos dados oficiais. Sessenta e três por cento dos chefes de família estão envolvidos em algum tipo de trabalho manual. Quanto mais baixa a classe social, mais baixa a renda, maior a probabilidade de desemprego, maior a probabilidade de más condições de trabalho, maior a probabilidade de não comparecer ao trabalho por doença. Veja também a distribuição de riqueza e renda: A.Atkinson, Unequal Shares, Penguin, 1974; F.Field, Unequal Britain, Arrow, 1974.

2. Veja, por exemplo, "Experiência de controle", The Guardian, 18 de março de 1975; "Eles transformam nossas escolas numa selva de violência", Sunday Express, 9 de junho de 1974 (por Angus Maude MP); e "Disciplina ou terror" e "Em nossas escolas... insolência, guerra de gangues e assaltos", Sunday People, 16 de junho de 1974; e o filme de Angela Pope no Panorama da BBC, "Os melhores anos?", levado ao ar em 23 de março de 1977.

3. Até mesmo o relatório governamental oficial sobre o primeiro ano do RSLA, sobretudo notável por seu otimismo em contraste com outras análises, aceitava que havia um "núcleo de dissidentes" e registrava uma "forte impressão de que o mau comportamento havia aumentado". DES Reports on Education, The First Year After RSLA, abril de 1975.

4. Veja National Association of School Masters, "Discipline in Schools", 1975; NAS, "The Retreat from Authority", 1976; National Union of Teachers, Executive Report, "Discipline in Schools", in 1976 Conference Report.

5. Relatado no The Guardian, 27 de junho de 1976. Veja também J.Mack, "Disruptive Pupils", New Society, 5 de agosto de 1976.

6. Num importante discurso no Ruskin College, Oxford, em outubro de 1976, Mr. Callaghan, o primeiro ministro, apelou em favor de "um grande debate" sobre a educação

Para examinar algumas das novas técnicas de ensino, o “desconforto” dos pais, a possibilidade  de um "currículo nuclear" e "as prioridades (educacionais) (...) para assegurar
uma alta eficiência (...) pela utilização inteligente de 6 trilhões de libras dos recursos atuais".

7. A. H. Halsey declarou recentemente, mesmo depois da ajuda recebida de um seminário da
OECD sobre “Educação, desigualdade c oportunidades de vida", que "ainda estamos longe
uma completa compreensão ... do por quê o rendimento educacional está tão firmemente
relacionado com a origem social" ("Would chance still be a fine thing", The Guardian,
do fevereiro dc 1975).

8. Livro compilado por ordem de William, O Conquistador, contendo um censo de todas as da Inglaterra, com várias estatísticas, inclusive sobre sua população (N. dos T.).

9. A taxa de atividade é a proporção da população de 15 anos ou mais que é economicamente ­ativa. Esta e a maior parte da informação que se segue são extraídas do plano oral da municipalidade. As estatísticas referem-se normalmente ao ano de 1970.



Parte I - Etnografia

Capítulo 2 : Os elementos de uma cultura          

Oposição à autoridade e rejeição do conformista

A dimensão mais básica, óbvia e explícita da cultura contra-escolar é uma oposição cerrada, nos planos pessoal e geral, à autoridade. Esse sentimento é facilmente verbalizado pelos "rapazes" (lads — o título que os membros da cultura contraescolheram para si próprios).

Em umadiscussão de grupo, sobre os professores:

Joey: (...) eles podem nos castigar. Eles são maiores que nós, represen­tam uma coisa importante, nós não, nós somos pouca coisa e eles grande coisa, e a gente tenta é se cuidar. É, não sei, desconfiança da autoridade, acho.
Eddie: Os professores pensam que são importantes e poderosos porque são professores, mas eles não são ninguém realmente, são apenas gente igual a todas as outras pessoas, não é mesmo?
Bill: Os professores pensam que são tudo. Eles são melhores que nós, mas eles pensam que são muito melhores, mas não são.
Spanksy: Gostaria de tratá-los por tu... mas eles pensam que são Deus.
Pete: Aí seria muito melhor.
PW: Entendo que vocês dizem que eles são melhores. Vocês aceitam realmente que eles sabem mais sobre as coisas?
__

Joey: Sim, mas eles não tem que se pôr acima da gente, só porque são um pouco mais inteligentes.
Bill: Eles deveriam nos tratar como eles gostam que tratemos eles.
(...)
Joey: (...) temos que nos submeter a tudo que eles querem. Eles querem que alguma coisa seja feita e nós temos de fazer de alguma forma, porque, bem, nós estamos como que por baixo deles. Tínhamos uma professora aqui, uma mulher, e porque nós usamos anéis o um ou dois de nós, pulseiras, como este cara aqui, e de repente, sem mais nem menos, sem nenhum motivo, ela disse: "tirem tudo isto fora".
PW: Verdade?
Joey: É! Eu falei: "Um não quer sair". E ela disse: "Tire-o". Eu disse: "Então a senhora vai ter que cortar o meu dedo primeiro".
PW: Por que ela queria que vocês tirassem os anéis?
Joey: Só pra aparecer, acho. Os professores fazem isto, de repente lhes dá na veneta fazer com que a gente arrume o nó da gravata, coisas assim. A gente tem que se sujeitar a todos os seus capri­chos. Se eles querem que alguma coisa seja feita e a gente acha que não está certo, e a gente protesta, eles mandam a gente pro Simmondsy [o diretor], ou a gente apanha de palmatória, ou leva trabalho extra pra casa.
PW: Vocês pensam na maior parte dos professores como sendo inimigos (...)?
__  Sim.
__  Sim.
__  A maioria deles.
Joey: A vida fica mais saborosa quando a gente tenta devolver o que eles fazem pra gente.

Essa oposição envolve uma aparente inversão dos valores usuais mantidos pela autoridade. Diligência, deferência, respeito tomam-se coisas que podem ser lidas de forma bem diferente.

Numa discussão de grupo:

PW: Evans [o orientador ocupacional] disse que vocês tinham sido grosseiros, que não tiveram a delicadeza de ouvir o palestrante [durante uma sessão de orientação vocacional]. Ele disse que vocês não entendiam que só estavam tornando o mundo muito duro pro futuro, quando vocês crescessem e, Deus nos livre, quando tivessem filhos, porque eles vão ser ainda piores. O que vocês acham disso?
Joey: Não serão piores. Serão francos. Não serão uns idiotas submissos. Serão o tipo de pessoas francas, honradas.
Spanksy: Se os meus filhos forem assim como nós estarei satisfeito.


Essa oposição expressa-se principalmente como um estilo. Manifesta-se de incontáveis pequenas maneiras, que são peculiares da instituição escolar e que são instantaneamente reconhecidas pelos professores, constituindo uma parte quase ritual trama diária da vida dos garotos. Os professores são ótimos teóricos da conspiração. Eles não têm outra alternativa. Isso explica em parte seu fervor por ir a "verdade" de supostos culpados. Eles vivem rodeados pela conspiração em formas mais óbvias — mesmo que isso muitas vezes não chegue a ter são verbal. Isso pode facilmente se transformar numa condenação paranóica de grandes proporções. (1)
À medida que os "rapazes" entram na sala de aula, observam-se acenos conspirativos entre eles que dizem: "Vem e senta aqui conosco para uma  farrinha", oblíquos para verificar onde está o professor e sorrisos maliciosos. Paralisado por um momento por uma ordem direta ou um olhar de reprovação, o Invento nervoso é facilmente retomado, com os garotos andando para lá e para m o olhar de quem diz "Professor, eu só estava passando", com o objetivo de chegar mais perto de seus colegas. Surpreendidos novamente, há sempre uma desculpa pronta: "Ia tirar meu casaco, professor", "E que fulano me chamou, professor". Depois que a aula começa, o garoto que ainda está afastado de seus colegas, esgueira-se por detrás das cadeiras ou por detrás de uma cortina, ao longo da parede, batendo em outros garotos, ou tentando, na passagem, derrubar uma cadeira (com alguém em cima).
Os "rapazes" especializam-se numa animosidade reprimida que se situa precisamente na fronteira do confronto aberto. Ajeitados na sala, o mais próximo quanto possam, a fim de formarem um grupo, há um contínuo arrastar de cadeiras, um resmungo desaprovativo à mais simples solicitação e uma contínua agitação na qual se exploram todas as permutações dos modos possíveis de se sentar ou se estender numa cadeira. Durante o estudo individual, alguns abertamente mostram indiferença, fingindo que procuram dormir, com a cabeça apoiada de lado na carteira; outros se põem de costas a olhar pela janela ou simplesmente fitam com vazio o teto e as paredes. Há um ar indefinido de insubordinação, com justificativas espúrias e impossíveis de serem flagradas. Se alguém está sentado em cima do aquecedor a desculpa é de que suas calças estão molhadas da chuva, se está passeando pela sala é porque está indo buscar papel para o trabalho escrito, ou se alguém está saindo da sala é porque vai esvaziar o lixo, "como sempre faz". Revistas em quadrinhos, revistas masculinas e jornais, ocultos sob carteiras com tampos semi-erguidos se transformam em enganosos livros didáticos. Um contínuo zum-zum de conversas sobrepõe-se a ordens para fazerem silêncio, tal como a inevitável maré à areia quase seca, e por toda parte há um revirar de olhos e um espetáculo de caretas a esconder segredos conspiratórios.
Durante a aula um imaginário diálogo serve de contraponto para a instrução formal: "Não, eu não compreendo, seu idiota"; "Qual é a tua, seu merda?"; "Vai te foder, que eu não vou fazer nada disso"; "Posso ir pra casa, agora, por favor?".

À mais vaga alusão a alguma frase de duplo sentido de fundo sexual, risadinhas e urros se levantam do fundo da sala acompanhados talvez por alguém fazendo de conta que masturba um gigantesco pênis, com as mãos em volta do topo da cabeça e fazendo gestos lascivos com a boca apertada. Se o segredo da conspiração é posto em risco, surgem vês de vitória por trás da cabeça do professor, uma rajada de dedos estalados pelos flancos, enquanto que na frente o que o professor vê são ares de inocência disfarçada. A atenção focaliza-se na gravata, nos anéis, nos sapatos, nos dedos, em manchas na carteira — em tudo, menos nos olhos do professor.
Se por acaso passa o vice-diretor, observa-se nos corredores um arrastar de pés, ou um "oi" exageradamente cordial, ou um súbito silêncio. De repente irrompe uma risada maluca ou irônica, que pode ser dirigida ou não a alguém que acabou de passar e para quem é difícil decidir se pára ou continua, pois tanto uma quanto outra coisa são humilhantes. Eles têm um jeito de formar um grupo ao longo dos lados do corredor a fim de fazer um corredor polonês — embora isto nunca possa ser provado: "Só estávamos esperando pelo Spanksy, professor".
Naturalmente, as situações individuais podem ser diferentes e diferentes estilos de ensino podem ser mais ou menos capazes de controlar ou suprimir essa oposição expressiva. Mas os conformistas da escola — ou os cê-dê-efes (ear'oles) para os rapazes — têm uma orientação visivelmente diferente. Não se trata tanto do fato de que eles apóiam os professores, mas antes do fato de que eles apóiam a própria idéia de professor. Tendo investido uma parte de suas próprias identidades nos objetivos formais da educação e na aprovação da instituição escolar — em um certo sentido, tendo renunciado a seu próprio direito de terem um tempo divertido — eles exigem que os professores ao menos respeitem a mesma autoridade. Ninguém melhor que um crente para recordar ao pastor os seus deveres.

Numa discussão de grupo com os conformistas da seção masculina da Escola de Hammertown

Gary: Bem, acho que eles não são o bastante rigorosos hoje em dia (...) Quero dizer, assim como Mr. Gracey e alguns dos outros professores, como Groucho, até os do primeiro ano fazem brincadeiras com ele (...) eles ["os rapazes"] deveriam ser castigados, assim eles aprenderiam a não serem tão insolentes (...) Com alguns dos outros dá pra gente se entender bem. Quer dizer, desde o início, com Mr. Peters todo mundo ficava quieto e se você não fazia o trabalho direito tinha que fazer de novo. Quer dizer, alguns dos outros professores, como os dos primeiros anos, eles passam um trabalho para casa e se você não faz, eles nunca mais cobram, eles não se importam.

É essencialmente aquilo que parece ser seu entusiasmo e cumplicidade com a autoridade imediata que faz dos conformistas — ou cê-dê-efes (ear’oles ou lobes)  - o segundo alvo preferido dos rapazes. O próprio termo ear'ole conota, para os rapazes a passividade e o ridículo dos conformistas. Parece que eles estão sempre ouvindo, nunca fazendo: nunca movidos por sua própria vida interna, mas sempre
amorfos, numa posição de recepção rígida. O ouvido é um dos órgãos menos expressivos do corpo humano: ele responde à expressividade dos demais. É um sentido sem cor e fácil de ser descrito como obsceno. E assim que os rapazes gostam de descrever aqueles que se conformam à idéia oficial de escola. Crucialmente, os rapazes não apenas rejeitam, eles sentem-se mesmo superiores aos cê-dê-efes. O meio óbvio utilizado para a exercitar esta superioridade é aquele que, aparentemente, produzem os rapazes - diversão, independência e emoção; em suma, fazer uma "farra".

Numa discussão de grupo

PW: (...) por que não fazer como os cê-dê-efes, por que não tentar conseguir o CSE?°
­__ Eles não se divertem, né?
Derek: Porque eles são uns viados, um deles recebeu os resultados agora, ele teve cinco As e um B.
__ Quem é ele?
Derek: Birchall.
Spanksy: Quer dizer, o que eles vão lembrar da época de estudante? Quais as recordações que eles terão? A de ficarem sentados numa sala de aula, achatando a bunda, né, enquanto que nós... quer dizer, olha pras coisas que poderemos recordar: as brigas com os paquis [os paquistaneses], as brigas com os JAs [os jamaicanos]. Quando você pensa nas coisas que fizemos pros professores... vai ser divertido quando nos lembrarmos disso tudo.
(...)
Perce: Você sabe, eles não se divertem muito. Já Spanksy fica por aí inventando coisas o dia todo, ele se diverte. Bannister fica lá achatando a bunda o dia todo, enquanto Spanksy fica se divertin­do.
Spanksy: No primeiro e no segundo ano eu era estudioso de verdade. Eu estava no 2A, 3A, entende, e quando chegava em casa, eu ficava deitado na cama pensando: "Ah, amanhã tem escola", entende, eu não tinha feito o tema de casa ainda, entende... e dizia: "Tenho que fazer o tema".
__ E, está certo, é isto mesmo.
Spanksy: Mas agora quando chego em casa, numa boa, não tenho nada em que pensar, eu digo: “Oh, legal, tem escola amanhã, vai ser divertido”, entende?
Will: Mas você nunca vem!
Spanksy: Quem?
Will: Você
[Risos]
(...)
__ Não dá pra imagina...
__ Não dá pra imaginar o [inaudível] indo ao Plough e dizendo: "Uma cervejinha, por favor".
Fred: Não dá pra imaginar o Bookley indo pra casa com a namorada e dando uns bons agarros nela.
__ Eu posso, eu vi!
__ Ele tem uma gata, o Bookley!
__ É, ele tem.
Fred: Mas não consigo imaginar ele dando umas boas agarradas nela, como a gente faz, entende?

E especialmente no terreno sexual que os "rapazes" sentem sua superioridade sobre os cê-dê-efes. "Sair da casca", "perder a timidez", fazem parte do processo de se tornar "um dos rapazes", mas também são formas de "ganhar as gatas" com êxito. De forma curiosa, há aqui uma reflexão distorcida das relações dos professores com os cê-dê-efes. Os "rapazes" sentem que ocupam um papel estrutural similar de superioridade e experiência, mas de uma forma diferente e mais anti-social.

Numa entrevista individual

Joey: Nós [os rapazes] todos já estivemos com mulheres, essas coisas todas (...), nós contamos o outro dia, quantos garotos tinham estado com mulheres, quantos garotos tinham tido uma transa, acho que chegamos a vinte e quatro (...) no quinto ano, isto num total de cem, quer dizer, é um quarto, né?
PW: Mas será que dá pra ter certeza?
Joey: Sim, eu (...) A coisa se espalha, né, dentro do nosso próprio grupo, com os garotos que conhecemos que são uma espécie de semi-cê-dê-efes... eles são um grupo separado de nós e dos cê-dê­-efes. Caras como Dover, Simms e Willis, e mais um ou dois como eles. Eles só se misturam com os da turma deles, mas são infantis pra caramba, o jeito como falam, o jeito como agem. Eles não conseguem fazer a gente rir, nós conseguimos fazer eles rir, eles se mijam de rir com a gente, Às vezes, mas não conseguem fazer algum de nós rir, e depois nós (...), alguns deles [os semi­cê-dê-efes] estiveram com mulheres, a gente fica sabendo. Os cê­dê-efes (...) não sabem de nada. Quer dizer, olha o Tom Bradley, você sabe quem é? Eu sempre olho pra ele e digo: Pois é, nós passamos por todos os prazeres e desprazeres da vida, nós bebemos, brigamos, conhecemos a frustração, o sexo, o diabo do ódio, o amor e todas essas coisas, e ele não conheceu nada disso. Ele nunca esteve com uma mulher, nunca esteve num pub. Não vou dizer que a gente sabe isto, mas a gente como que adivinha — garanto que ele mesmo vinha dizer pra gente se ele tivesse estado com uma mulher — mas ele nunca esteve, ele nunca bebeu. Eu nunca vi ele numa briga.'Ele não conhece muitas das emoções que nós vivemos e ele ainda tem muito por que passar.

Joey é um líder reconhecido do grupo, com uma tendência a aparecer como homem experimentado na vida. Como fica claro aqui, e em outros locais, ele é também um rapaz de inteligência considerável e de um poder expressivo. De certo modo, isso pode parecer que o desqualifica  como típico dos rapazes não-confor­mistas de classe operária da escola. Entretanto, embora Joey possa não ser típico dos rapazes de classe operária, ele é certamente representativo deles. Ele vive em um bairro proletário, vem de uma família grande, conhecida como lutadora, cujo cabeça trabalha em uma fundição. Ele vai deixar a escola sem um certificado e é universalmente identificado como um criador de casos — tanto mais que "ele tem alguma coisa de estranho". Embora talvez exageradas, e embora expressadas com muita força, as experiências que ele descreve só podem vir daquilo que ele experienciou na contra-cultura. O sistema cultural que ele descreve é representativo e central, mesmo que sua relação com ele seja uma relação especial.
Vale a pena observar que, nos seus próprios termos e através das mediações do grupo, Joey dá por assentados uma compreensão e um domínio completos do ano letivo e de sua paisagem social. Ele dá por assentado que a informação chegará até os "rapazes" tomados como o ponto focal daquela paisagem. Um marco claro deste "sair para fora" é o desenvolvimento deste tipo de perspectiva social e de esquema de avaliação. Deve também ser observado que os padrões alternativos construídos pelos "rapazes" são um tanto vagamente reconhecidos pelos professores — pelo menos em particular. Há, freqüentemente, comentários de apreciação na sala dos professores sobre a aparente habilidade sexual de certos indivíduos, por parte dos professores mais jovens: "te garanto que ele teve mais mulheres que eu".
Membros do grupo mais conformista em relação aos valores da escola não têm o mesmo tipo de mapa social e nem desenvolvem um jargão para descrever outros grupos. Sua reação aos "rapazes" é mais uma reação de medo ocasional, de uma incômoda inveja e de uma ansiedade geral para não serem pegos na mesma rede disciplinar, e de frustração pelo fato de os "rapazes" impedirem o fluxo normal do processo educacional. Seu investimento no sistema formal e o sacrifício daquilo que os outros desfrutam (assim como o grau de medo presente) significa que os conformistas da escola esperam que os líderes reconhecidos do sistema, os professores, lidem com a transgressão, em vez de eles mesmos tentarem suprimi-la.

Numa discussão de grupo com os conformistas na escola masculina de Hammertown

Barry: ...ele [um dos professores] sempre está com aquela de "Todo mundo...", entende. Eu não gosto deste tipo de coisas, quando eles dizem: "Todo mundo isso, todo mundo aquilo. Vocês estão todos enrascados". Eles deveriam dizer: "Alguns de vocês...". Como Mr. Peters, ele faz isto, ele não diz: "Todo mundo", só se refere àqueles poucos. Assim é melhor, porque alguns de nós estão interessados (...)
Nigel: O problema é quando eles começam, entende, a gozar dos professores (...) significa que você está perdendo tempo, tempo valioso, tempo de estudo, tudo isso, de modo que é prejudicial para você, entende? Algumas vezes eu queria que eles pegassem as suas coisas e fossem embora (...)
Barry: É melhor como fizeram agora... puseram todos eles juntos [os grupos de CSE não são mistos quanto ao nível de capacidade]. Realmente pouco importa se eles fazem qualquer trabalho ou não... A gente vai pra frente, a gente só vai pra frente agora [nos grupos de CSE], porque se alguém está falando, ele manda você se calar, entende, continuar o trabalho.
PW: (...) vocês já pensaram alguma vez que vocês deveriam tentar fazer com que parassem?
Barry: Eu simplesmente nunca me preocupei com eles (...) agora, no quinto ano, eles deveriam... você entende, você simplesmente não pode sair por aí gritando com as pessoas na sala de aula, entende, você deve falar de modo calmo. [Os professores] deveriam ser mais rigorosos.

A oposição aos professores e uma clara separação com relação aos cê-dê-efes são continuamente expressadas no contexto global de seu comportamento, mas é concretizada também naquilo que podemos pensar como sendo certos discursos estilísticos/simbólicos que se centram nos três grandes bens de consumo fornecidos pelo capitalismo e que são apropriados de diferentes formas pela classe operária para seus próprios fins: roupa, cigarros e álcool. Como o mais visível,, persona­lizado e instantaneamente compreendido elemento de resistência aos professores e de ascendência sobre os cê-dê-efes, a roupa tem grande importância para os "rapazes". Os primeiros sinais indicativos de que um "rapaz" está "se revelando" são dados por uma mudança bastante rápida em sua forma de se vestir e de se pentear. A forma particular dessa vestimenta alternativa é determinada por influências externas, especialmente pelas modas em voga no sistema simbólico mais amplo da cultura juvenil. No momento a aparência ideal dos "rapazes" inclui cabelos longos e bem cuidados, sapatos tipo plataforma, camisas com uma grande gola branca dobrada sobre casacos acinturados ou jaquetas jeans, além das ainda obrigatórias calças boca-de-sino. Seja lá qual for a forma particular de se vestir, é quase certo que não é o uniforme da escola, raramente inclui uma gravata (a segunda melhor opção para os diretores quando eles não conseguem impor um uniforme) e explora cores calculadas para marcar o máximo de distância com relação à monotonia e ao conformismo institucionais. Há um conceito estereotipado claro a respeito daquilo que constitui a forma institucional de se vestir — Spike, por exemplo, tentando descrever a forma de um colarinho: "Você entende, como o dos professores!".
Podemos observar a importância que o sistema mais amplo da cultura juvenil comercial tem aqui, ao fornecer uma lexicografia do estilo, com significados já conotados, que podem ser adaptados pelos "rapazes" para expressar seus próprios significados, mais particulares. Embora boa parte deste estilo, e a música associada com ele, possam ser acuradamente expressadas como tendo origem em interesses puramente comerciais, sem representar nenhuma autêntica aspiração de seus adeptos, deve ser reconhecido que a forma com que é adotada e usada pelos jovens pode ter uma autenticidade e uma natureza direta de expressão pessoal que está ausente de sua produção comercial original.
Não  é por acaso que no momento boa parte do conflito entre professores e estudantes se dá em ao vestir-se. Para quem vê de fora, isto pode parecer tolo. Os professores e os garotos envolvidos, entretanto, sabem que este é um de seus terrenos escolhidos para a luta com respeito à autoridade. É uma das formas atuais de uma luta entre culturas. Ela pode culminar, ao final, numa questão a respeito da legitimidade da escola como uma instituição.
Estreitamente relacionada com o estilo de vestir-se dos "rapazes" está, naturalmente, toda a questão de sua atratividade pessoal. Vestir roupas modernas e "bacanas", além de lhes permitir se "lixarem" para a escola e se diferenciarem dos cê-dê-efes, dá-lhes a oportunidade de se mostrarem mais atraentes diante do sexo oposto. É um fato objetivo que os "rapazes" realmente saem muito mais com garotas que quaisquer outros grupos da mesma idade e que, como vimos, uma grande maioria deles é sexualmente experiente. A atratividade sexual, sua associação com a maturidade, e a proibição com respeito à atividade sexual na escola é o que valoriza o vestir-se e as roupas como algo mais que um código artificial através do qual se pode expressar uma identidade institucional/cultural. Essa dupla articulação é característica da cultura contra-escolar.
Se a maneira de se vestir é atualmente a principal causa aparente de discordância entre professores e garotos, o fumo vem logo em seguida. Outra vez, encontramos aqui uma outra marca característica dos "rapazes" com relação aos cê-­dê-efes. A maioria deles fuma e, de forma talvez mais importante, são vistos fumando. A essência do ato de fumar na escola está em fumar junto aos portões da escola. Uma grande parte do tempo é tipicamente gasta pelos "rapazes" em planejar a próxima fumada e em "escapar" das aulas para "uma rápida tragada". E se os "rapazes" se comprazem em fumar e em alardear sua insolência, não há como os professores mais velhos deixarem de notar. Há normalmente regras estritas e bastante divulgadas a respeito do fumo. Se, por esta razão, os "rapazes" são levados a fumar, praticamente como que por uma questão de honra, os professores mais velhos se sentem atingidos por aquilo que eles tomam como sendo um desafio à sua autoridade. Isso é especialmente verdadeiro quando aliado àquele outro grande desafio: a mentira.

Num discussão de grupo sobre recentes escaramuças com os professores

Spike: E nós entramos e eu disse: "Nós não estávamos fumando". Ele disse (...) e ficou realmente furioso. Eu pensei que ele ia me bater ou algo assim.
Spanksy: "Vocês estão me chamando de mentiroso", "Eu não sou mentiro­so", "Volta aqui, então", e no fim nós confessamos: nós estáva­mos fumando (...). Ele estava tendo um ataque. Ele disse: "Estão me chamando de mentiroso". Nós dissemos que não estávamos fumando, tentamos ficar firme, mas Simmondsy estava tendo um ataque.
Spike: Ele tinha realmente visto a gente acender o cigarro.

Com os professores mais velhos a punição para o ato de fumar é automática e isto é entendido pelos garotos.

Spanksy: Bem, ele não podia fazer nada [o vice-diretor], ele teve que me dar três vezes com a palmatória. Eu gosto daquele cara, acho que ele faz o serviço dele direito, entende? Mas eu estava no portão da frente fumando e Bert vem direto por trás de mim. Eu me viro, ele me flagrou, eu fui direto pra ele e ele me bateu. Na segunda-feira de manhã, logo que cheguei na escola, levei três batidas de palmatória... Ele não podia me deixar escapar, entende?

Dado esse fato da vida, e no contexto da permanente guerra de guerrilhas dentro da escola, uma das formas mais notáveis usadas pelos "rapazes" para identificar simpatizantes — com freqüência, simplesmente os fracos e tolos — no campo inimigo é ver quais professores, normalmente os mais jovens, não fazem nada ao ver claramente que um cigarro está sendo aceso.

Fuzz: Por exemplo, Archy, ele me vê quase toda manhã fumando, vindo pelo Padlock, porque estou esperando minha gata, ele me vê toda manhã Ele nunca diz nada.
Will: Ele disse pra mim na matrícula __
PW: (interrompendo): Quem é este tal de Archer?
Will: Archy, sim, ele disse: "Não fique por aí na hora do jantar". "O que o senhor quer dizer com `por aí'?" Ele disse: "Por aí, pelas redondezas". Eu disse: "Ah, no Bush [pub]", mas ele é legal, entende?, e demos uma boa risada.

Outra vez, numa conjunção bastante típica de significados que se baseiam na escola e de significados externos, o ato de fumar para os "rapazes" é valorizado como um ato de insurreição perante a escola por sua associação com as práticas e valores adultos. Recorre-se ao mundo adulto, especificamente ao mundo do varão proletário adulto, como uma fonte de materiais para a resistência e a exclusão.
Além do fato de produzir um efeito "legal", a bebida é adotada abertamente porque é o sinal mais veemente passado aos cê-dê-efes e aos professores de que os "rapazes" se distanciam da escola e têm uma presença num modo alternativo, superior e mais maduro de vida social. Casos de professores flagrando garotos em pubs são animadamente contados pelos "rapazes" com muito mais deleite que os meros casos de flagrantes com cigarros e a ausência de ação por parte de algum professor após um flagrante de bebida é uma prova ainda mais deliciosa de que se trata de um traidor/simpatizante/fraco situado no campo inimigo do que o fazer vista grossa a um cigarro aceso. Sua percepção dessa matriz particular de significados coloca alguns membros mais jovens e progressistas da equipe de professores num sério dilema. Alguns deles aparecem com estranhas soluções que permanecem incompreensíveis para os "rapazes". Esse incidente envolve um jovem professor comprometido e progressista:

Numa discussão de grupo sobre os professores

Derek: E Alf disse: "Tudo bem, professor" [ao encontrar um professor em um pub] e ele não respondeu, entende?, aí ele diz: "Tudo bem, professor?" e ele se voltou, olhou pra ele assim, entende?, e... ele não respondeu e ele disse, no dia seguinte, ele disse: "Quero falar com você, Alf'. Ele se volta pra ele e diz: "Que é que você estava fazendo lá ontem de noite?". Ele disse: "Eu estava numa reunião do time de futebol". Ele disse: "Bem, você não acha que aquilo foi como dar um soco na boca!". "Não", ele disse. "O que você sentiria se eu lhe desse um soco na boca?". "O que você quer dizer com isso?", ele disse. "Dando oi daquela forma lá", ele disse, "que é que você esperava que eu dissesse?". Ele disse: "Bem, não me fale assim outra vez a menos que eu lhe dirija a palavra antes". Ele disse: "Está bem, professor, não vou lhe dizer oi outra vez", ele disse, "mesmo que lhe encontre na rua".

Certamente os "rapazes" entendem de forma auto-consciente a importância simbólica de beber como um ato de associação com os adultos e de oposição à escola. É da máxima importância para eles que o último almoço de seu último ano seja feito num pub, e que o máximo possível de álcool seja consumido. Este é o momento em que eles finalmente ficam livres da escola, o momento a ser lembrado anos adiante:

Entrevista individual no local de trabalho:

PW: Por que era tão importante tomar um porre no último dia?
Spanksy: É uma coisa especial. Só acontece uma vez na tua vida, não é mesmo? Quer dizer, entende?, naquele dia nós ainda estamos na escola, tu és um escolar, mas no dia seguinte eu estou no trabalho, entende o que quero dizer?
PW: É claro, você foi para o emprego logo no dia seguinte.
Spanksy: Sim, eu tomei um porre, tirei uma soneca, e fui trabalhar (...). Se não tivéssemos feito aquilo, entende?, nós não íamos lembrar, se tivéssemos ficado na escola [isto é, em vez de ir ao pub], teria sido um dia igual aos outros. Não, quando fizemos aquilo, ficamos com uma coisa pra recordar o último dia, ficamos com uma coisa pra lembrar o tempo de escola.

No pub instaura-se de fato um clima muito especial entre os "rapazes" de Hammertown. Spike explica de forma expansiva que embora tenha se comportado como um autêntico imbecil, às vezes, ele realmente gosta de seus amigos e sentirá falta deles. Eddie está determinado a beber oito cervejas para manter o "record" — e mais tarde é "detido bêbado" (nas palavras do diretor) na escola e é conduzido, de forma inglória, por ele, para casa. Fuzz explica como quase deixara Sampson (um professor) louco esta manhã e tinha sido mandado para a direção, "mas não era por nada, não, ele só estava brincando". O que é mais importante, eles são aceitos pelo dono do pub e por outros clientes adultos, que lhes pagam bebidas e lhes perguntam sobre seu trabalho futuro. Na hora de fechar eles vão embora, trocando promessas adultas que eles ainda não aprenderam que não são para valer, dirigindo-se para pessoas em particular, dizendo-lhes que vão arrumar seus encanamentos, ou prestar-lhes serviços de pedreiro ou outras coisas do gênero.
O fato de que eles não estão ainda realmente livres (e de que os professores querem frisar isso) é demonstrado quando os "rapazes" retornam tarde à escola, cheirando a álcool e, em alguns casos, bastante bêbados. Como para lembrar-lhes que o poder da escola está respaldado, em última instância, na lei e na coerção estatal, o diretor tinha chamado a polícia. Um policial está esperando fora da escola com o diretor. Isto atemoriza os "rapazes" e uma estranha comédia se desenvolve enquanto eles tentam escapar do policial.

Mais tarde, numa discussão de grupo

Will:        Eu estava caminhando na calçada [em direção à escola], eu estava tentando segurar Spike e Spanksy (...), tentando que eles ficassem direito, entende? Joey viu este tira descendo a rua (...) Eu me meti no fosso [no fim da rua, limitada nos fundos apenas por uma cerca]. Eu vi o tira: "Se ele não me vê, posso pular a cerca e me escapar, ninguém vai me ver, estarei salvo". Aí eu pensei: "Olha bem pra ver se ele está vindo", assim eu desabotoei as minhas calças como se estivesse mijando, como se estive atrasado ou coisa parecida. Aí Bill veio correndo. Eu pensei: "Ai, meu Deus!" e pulei a cerca dos fundos e fui me arrastando (...). Simmondsy tinha visto Bill e disse: "Ah, quero falar com vocês dois". Ele disse: "Vocês dois", e eu nem pensei, entende?, apenas fui caminhando pela rua abaixo.

Ao final os "rapazes" são reunidos e enviados, em estado de excitação, para o gabinete do diretor, onde são rudemente tratados pelo policial. Como diz Spike: "Ele me pegou pelo colarinho e me atirou contra a parede" (eu próprio não presenciei este incidente). O diretor subseqüentemente escreve para todos os pais ameaçando reter seus certificados finais até que houvesse uma retratação. No caso de Spike ele escreveu:

... seu filho esteve claramente bebendo, e seu comportamento subse­qüente mostrou falta de cooperação, foi insolente e quase beligerante. Ele parecia determinado a justificar seu comportamento e chegou ao ponto de descrever a escola como sendo parecida com Colditzs... como é meu costume, quero dar aos pais dos garotos uma oportunidade para que venham falar comigo antes que eu decida qual ação final deve ser tomada.

Mesmo os professores jovens e que simpatizavam com o grupo consideraram o incidente "surpreendente" e se perguntaram por que os "rapazes" não esperaram até a noite, e aí então "podiam fazer a coisa de forma conveniente". O ponto central, é claro, é que a bebedeira tem que ser feita no horário do almoço e em desafio às normas da escola. Não é feita simplesmente para marcar uma transição neutra — um mero ritual. Ela representa uma rejeição e uma ruptura definitivas. De alguma forma, eles derrotaram finalmente a escola de um modo que está além do alcance dos cê-dê-efes e que torna praticamente impossível uma reação por parte dos professores e da direção. É a transcendência daquilo que eles tomam como sendo a vida madura, a vida real, frente à opressiva adolescência da escola - representada pelo comportamento tanto dos cê-dê-efes quanto dos professores.
Alguns dos pais dos "rapazes" partilham da visão que seus filhos têm da situação. Obviamente nenhum deles aceitou a oferta do diretor para ir falar com ele.

Numa discussão de grupo

Will: Minha mãe guarda todas as cartas, entende?, como as cartas que Simmondsy mandou [sobre a bebedeira]. Eu disse: "Pra quê você está guardando?". Ela disse: "Bom, vai ser bom recordar, né?, mostrar pros teus filhos como você era, o terror que você era". Eu estou guardando as cartas, estou mesmo.

Entrevista individual no local de trabalho

PW: O teu velho compreendeu o fato de você beber no último dia do ano letivo?
Spanksy: Oh, ah (...) ele deu uma risada. Ele disse: "A idéia deles, mandando uma carta!", entende? Veio o pai do Joey e deu uma risada, entende?

Não importando quais sejam as ameaças e apesar do medo da lei, todo o episódio "vale a pena" para os "rapazes". É o episódio escolar mais freqüentemente repetido, floreado e exagerado na situação futura de trabalho. Torna-se logo parte de um folclore personalizado. À medida que o uniforme e o fumo deixam de ser as causas mais óbvias de conflito nas escolas com a introdução de regimes mais liberais, é de se esperar que a bebida torne-se a próxima área principal em que as linhas do campo de batalha serão traçadas.

O grupo informal

Numa noite salmos
pelas ruas
Mexendo com os outros,
Dizem que somos anti-sociais,
Mas nós nos divertimos.

A geração mais velha,
Eles não gostam de nossos cabelos,
Ou das roupas que usamos
Eles parecem gostar
De falar mal da gente.
Não sei o que faria
se eu não tivesse a minha turma.

(Extrato de um poema escrito por Derek numa aula de Inglês).

Sob muitos aspectos a oposição que estivemos observando pode ser entendida como um exemplo clássico da oposição entre o formal e o informal. A escola é a zona do formal. Tem uma estrutura clara: o edifício escolar, as normas escolares, a prática pedagógica, uma hierarquia de autoridade — em que o poder é, em última instância, respaldado pelo estado, como tivemos oportunidade de ver, embora numa escala pequena —, a pompa e a grandiosidade da lei, e o braço repressivo do aparato estatal, a polícia. Os cê-dê-efes apostam nesta estrutura formal, e em troca de certa perda de autonomia esperam que os guardiões oficiais mantenham o respeito às regras sagradas — muitas vezes, acima e além daquilo que impõcm suas reais obrigações. Aquilo que é livremente sacrificado pelos fiéis não deve ser permitido aos infiéis.
A cultura contra-escolar é a zona do informal. É onde as exigências invasivas do formal são negadas — mesmo que ao preço de ter que expresar essa oposição por meio de um estilo, de micro-interações e de discursos não-públicos. De forma geral, a oposição na cultura operária é freqüentemente assinalada por uma retirada em direção ao informal e se expressa, sob suas formas características, precisamente para além do alcance da "norma".
Mesmo que não haja normas públicas, estruturas físicas, hierarquias reconhecidas ou sanções institucionalizadas na cultura contra-escolar, ela não pode funcionar no ar. Ela tem que ter sua própria base material,_sua própria infra-estrutura. Essa base material é, naturalmente, o grupo social. O grupo informal é a unidade básica dessa cultura, a fonte fundamental e elementar de sua resistência. Ele posiciona e torna possível todos os outros elementos da cultura, e sua presença distingue de forma clara os "rapazes" dos "cê-dê-fes".

A importância do grupo é muito clara para os membros da contra-cultura escolar.

Numa discussão de grupo

Will: (...) a gente se vê todos os dias, não é mesmo?, na escola (...). Quer dizer, nós criamos certas maneiras de falar, certas maneiras de agir, e criamos uma antipatia pelos paquis [paquistaneses], jamaicanos e todos os diferentes... por toda essa gentinha e todos os idiotas dos cê-dê-efes, essa gente toda (...). Nós estamos conhecendo isto agora, estamos conseguindo aprender todos os macetes, como, por exemplo, escapar das aulas e coisas assim, e sabemos onde podemos dar uma boa fumada. A gente pode vir aqui para o pavilhão juvenil e fazer alguma coisa, e... todos os teus amigos estão aqui, entende?, é o que a gente vai encontrar lá, aquilo que ainda vai estar lá no ano que vem, e você sabe que você tem que vir pra escola hoje, mas se você não está bem, teu amigo logo vai te animar, porque não dá pra ficar dez minutos nesta escola sem gozar de uma coisa ou outra.
PW: Os teus amigos são mesmo uma coisa importante na escola agora? Sim.
__ Sim.
__ Sim.
Joey: Eles são, na verdade, a melhor coisa.

A essência de ser um dos "rapazes" situa-se dentro do grupo. Sozinho é impossível formar-se uma cultura distintiva. Sozinho não se pode produzir diversão, clima e uma identidade social. Associar-se à contra-cultura escolar significa associar-se a um grupo, e comprazer-se com ela significa estar com o grupo:

Numa discussão de grupo a respeito de ser um dos "rapazes"

Joey: (...) quando a gente está de farra sozinho, não é legal, mas quando a gente está de farra com os amigos, aí então estamos todos juntos, a gente se diverte e aí sim é uma farra.
Bill: Se a gente não faz o que os outros fazem, a gente se sente por fora.
Fred: A gente se sente por fora, é isso. Eles meio que pensam, a gente fica pensando que os outros são...
Will: Nas turmas do segundo ano...
Spanksy: Posso imaginar... entende?, quando eu falto, quando a gente volta no outro dia, e aconteceu alguma coisa no dia em que a gente faltou, a gente sente: "Por que é que eu faltei naquele dia?", entende?, "eu também podia ter me divertido". Entende o que eu quero dizer? A gente volta e eles estão dizendo: "Oh, você deveria estar aqui ontem", entende?
Will: (...) como no primeiro e no segundo ano, você pode dizer que...você é um pouco cê-dê-efe. Aí você quer tentar ver o que é ser, vamos dizer, um dos "rapazes". Você quer experimentar um pouco o gostinho daquilo, não ser como um cê-dê-efe, e aí você acaba gostando daquilo.

Embora informais, esses grupos, entretanto, têm regras que podem ser passíveis de descrição — mesmo que elas obedeçam a um esquema característico, em contraste com aquilo que normalmente se entende por "regras".

PW: (...) Entre vocês existe alguma regra?
Pete: Nós apenas quebramos as outras regras.
Fuzz: Nós não temos nenhuma regra entre nós, não é mesmo?
(...)
Pete: A gente inverte as regras.
Will: Não temos regras, mas existem certas coisas entre nós, entende?,
como, por exemplo, eu não mexo com a namorada de ninguém ou a namorada de Joey, e eles também não fazem isso comigo, entende o que quero dizer? Coisas assim como... se você dá um cigarro a alguém você espera também receber um depois, coisas desse tipo.
Fred: Não são regras, são só uns entendimentos, na verdade.
Will: É isso aí.
PW: (...) Quais seriam esses entendimentos?
Will: Ahn... Acho... eu mesmo... acho que não não há muitos de nós
que mexem com o 12 e 24 anos, é realmente isso...Mas se digamos, Fred chega para mim e diz: "Eu acabei de cavar uma grana lá no segundo ano", eu fico pensando: "Que sacana!". Entende?
(...)
Fred: Nós somos muito unidos, estamos juntos pro que der e vier.

Há um tabu (7) universal em grupos informais  contra passar informações incriminadoras de outros àqueles que detêm o  poder formal. A delação infringe  a essência da natureza informal do grupo: a manutenção de significados de oposição contra a penetração daquilo que se considera "a regra”. Os "rapazes" de Hammertown chamam a isso de "dedurar" (grassing). Os professores chamam-no de "dizer a verdade". A "verdade" é o complemento formal do "dedurar". É apenas ao fazer com que alguém "dedure" — forçando-o a romper com o mais importante tabu — que a primazia da organização formal pode ser mantida. Não é de admirar, portanto, que uma escola inteira possa ser sacudida por paroxismos a respeito de um grande incidente, assim como não é se de estranhar o inquérito que se segue. Trata-se de uma luta atávica em torno da autoridade e da legitimidade da autoridade. A escola tem que ganhar, e alguém, ao fim e ao cabo, tem que "dedurar": esta é uma das formas pelas quais a própria escola é reproduzida e a fé dos cê-dê-efes restaurada. Mas aquele que dedurou, não importa quem, torna-se especial, fraco e marcado. Há uma retrospectiva maciça e uma avaliação contínua entre os "rapazes" quanto à falha de personalidade desse indivíduo. A suposição é de que essa falha tinha estado sempre presente, mas não tinha sido revelada até aquele momento:

Numa discussão de grupo a respeito do célebre "incidente do extintor de incêndio"no qual os "rapazes" tiraram um hidrante da escola e largaram-no no parque local

PW: Foi o maior caso do ano, não é mesmo?
Joey: Acabou numa coisa sensacional. Quando fizemos aquilo, pra mim era apenas uma coisinha de nada, era como fumar escondido ou ir até o bar comprar umas batatinhas fritas.
PW: O que aconteceu (...)?
__ Webby [situado nas franjas da cultura contra-escolar] dedurou.
Joey: Simmondsy me pegou sozinho e disse: "Um de vocês confessou e tentou pôr toda a culpa no Fuzz". Mas ele só tinha o Webby lá dentro.
Spanksy: Nós estavámos fumando aqui fora.
Spike: Ele é assim. Você tinha um cigarro, não é? [Para Fuzz].
Spanksy: E Webby pede uma tragada, aí ele dá o cigarro para Webby. Rogers [um professor] apareceu na porta e aí ele fez assim [demonstra] e disse: "Não é meu, professor, só estou segurando para o Fuzz".
Will: Lá no parque antes, (...) tinha esta coisa frouxa, eu e Eddie tiramos ela fora, não foi?, e o guarda do parque vinha vindo, dando a volta, aí eu e o Eddie fomos pro outro lado, e simples­mente sentamos lá, como dois macacos, entende? E Webby estava lá em pé, e o guarda veio pra ele e disse: "Cai fora. Cai fora do parque. Você está expulso daqui". E o guarda disse, ele passou por nós, por mim e Eddie, e disse: "Eu sei que vocês não estavam lá, vocês estavam sentados aqui". E Webby começou dizer: "Não fui eu, foi...", e ele estava quase nos dedurando, não é mesmo?
Eddie: Foi isso mesmo, e eu fiz: "Psss", e aí ele resolveu não nos dedurar.


O fato de pertencer a um grupo informal sensibiliza o indivíduo para a dimensão informal oculta da vida em geral. Por detrás da definição oficial das coisas descortina-se todo um panorama interno. Desenvolve-se uma espécie de capacidade dupla para registrar descrições e objetivos públicos, por um lado, e para olhar por detrás deles, considerar suas implicações e descobrir o que realmente vai ocorrer, por outro. Essa habilidade interpretativa é muito freqüentemente sentida como uma espécie de maturação, um sentimento de que se está tornando um "homem do mundo", de saber como as coisas realmente funcionam na realidade". Ela fornece o verdadeiro conhecimento de quem está "por dentro", o qual realmente ajuda a enfrentar o dia-a-dia.

PW: Vocês acham que aprenderam alguma coisa na escola, ela mudou ou moldou os valores de vocês?
Joey: Não acho que a escola faça porra alguma à gente (...) Nunca teve efeito algum sobre ninguém, não acho que teve, depois que a gente tenha aprendido o fundamental. Quer dizer, a escola é uma merda quatro horas por dia. Mas não são os professores que moldam a gente, são os caras que a gente conhece. A gente está com os professores apenas 30 por cento do tempo da escola, os restantes dois terços é só conversar, arrumar encrenca e enrolar.

O grupo também fornece aqueles contatos que possibilitam que o indivíduo trace mapas alternativos da realidade social, ele dá os elementos de informação para que o indivíduo descubra por si mesmo que é que movimenta as coisas. É basicamente,apenas através do grupo que outros grupos são conhecidos, e através deles sucessões de outros grupos. Os grupos escolares se fundem e se vinculam com grupos do bairro, formando uma rede para a transmissão de tipos distintivos de conhecimento e de perspectivas que progressivamente colocam a escola numa posição tangencial com relação à experiência global de ser um adolescente de  classe  operária numa cidade industrial. É a infraestrutura do grupo informal que torna de todo possível um tipo distintivo de contato de classe, ou cultura de classe, naquilo que isto tem de distinto da classe dominante.
A cultura contra-escolar já tem uma forma desenvolvida de troca e de intercâmbio não-oficial que se baseia em "furtos", "trapaças" e na obtenção de um dinheiro extra através da venda de objetos furtados — um padrão que, naturalmente, emerge muito mais completamente no mundo operário adulto:

Fuzz: Se, digamos, algém dissesse algo assim: "Estou atrás de um toca-fitas barato". Entende?, ele fala sobre isto, algum de nós escuta a respeito de um toca-fitas barato, entende?, a gente arranja
o negócio e aí diz: "Ah, eu vou conseguir o toca-fitas pra você".

Valores e interpretações culturais circulam "ilicita" e informalmente, exatamente da mesma forma que mercadorias.

Matando tempo, "enrolando" e gazeando

A oposição à escola manifesta-se principalmente na luta por ganhar espaço físico e simbólico da instituição e suas regras e por derrotar aquilo que é percebido como seu principal propósito: fazer você "trabalhar". Tanto a vitória quanto o prêmio —  obtenção de um auto-governo — desenvolvem, de forma profunda, significados e práticas culturais informais. Os aspectos dinâmicos da relação entre alunos e professores serão examinados mais tarde. No momento em que uma cultura contra-escolar encontra-se plenamente desenvolvida seus membros tornam-se hábeis em lidar com o sistema formal e em limitar suas exigências ao mínimo absoluto. Tirando proveito da complexidade dos modernos regimes de grupos de capacidade mista, dos horários em bloco e das múltiplas opções do RSLA, em muitos casos esse mínimo reduz-se simplesmente a registrar a presença durante a chamada.

Numa discussão de grupo sobre o currículo da escola

Joey: (...) na segunda de tarde, não temos nada, não é? Quase nada que se relacione com trabalho escolar. Na terça de tarde temos natação e eles grudam a gente numa sala de aula pelo resto da tarde. Na quarta de tarde temos jogos e é só na quinta e na sexta que a gente trabalha, se é que se pode chamar aquilo de trabalho. Na última aula na sexta-feira a gente costumava matar o tempo, a metade fugia da aula e a outra metade ia pra sala de aula, sentava e ficava matando tempo (...).
Spanksy: (...) Você falta uma aula, vai até um canto, fuma um cigarro, e na próxima aula você vai porque o professor faz a chamada (...). Bill                Também é fácil ir pra casa, como ele [Eddie)... na última quarta de tarde, ele recebeu a nota e foi pra casa...
Eddie:      Eu não devia estar na escola hoje de tarde, eu devia estar no
colégio [num programa combinado onde os estudantes passam um dia por semana num colégio de instrução profissionalizante].
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PW: Qual foi a última vez que vocês escreveram alguma coisa?
Will: Quando foi que escrevemos a última vez?
Fuzz: Ah, a última vez foi na orientação vocacional, porque eu escrevi "sim" numa folha, e aquilo me partiu o coração.
PW: Por que é que te partiu o coração?
Fuzz: Quero dizer, escrever, porque eu estava tentando terminar sem escrever nada. Porque desde que voltamos, eu não tinha nada [estava na metade do ano].

O faltar às aulas dá apenas uma medida muito imprecisa, até mesmo se sentido, da rejeição à escola. Isso ocorre não apenas por causa da prática de dar uma passada na classe para responder a chamada antes de "dar o fora" (uma prática transformada numa arte refinada pelos "rapazes"), mas também porque apenas mede um aspecto daquilo que poderia ser mais acuradamente descrito como a mobilidade estudantil informal. Alguns dos "rapazes" desenvolvem a um grau notável a habilidade de perambular pela escola de acordo com sua própria vontade. Eles virtualmente fazem seu próprio dia a partir daquilo que é oferecido pela escola. O faltar às aulas é apenas uma variante relativamente sem importância grosseira deste princípio de auto-governo que corta muitas partes do currículo cobre muitas e variadas atividades: livrar-se da aula, estar em classe e não faze trabalho algum, estar na aula errada, perambular pelos corredores à procura d diversão, dormir escondido. A habilidade central que une essas possibilidades é e ser capaz de cair fora de qualquer aula: a manutenção da mobilidade pessoal.

Numa discussão de grupo

PW: Mas ninguém se importa com o fato de vocês não estarem na aula?
Fuzz: Eu consegui um bilhete dos cozinheiros dizendo que eu estava ajudando eles (...).
John: Você só tem que ir até o professor e dizer pra ele: "Posso sair pra fazer um trabalho?". Ele diz: "Certamente, não há dúvida", porque eles querem se ver livres da gente.
Fuzz: Especialmente quando eu lhes peço.

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Pete: Sabe aqueles buracos no corredor? Eu não queria ir para os jogos, ele me disse pra ir buscar as chaves dele, aí eu deixei cair as chaves no buraco do corredor, e aí tive que ir buscar uma lanterna pra poder achar as chaves.
Para os bem-sucedidos, pode haver um problema de escolher entre tantas alternativas disponíveis. Pode tornar-se difícil escolher entre tantas possibilidades de vias auto-organizadas no decorrer do dia.

Will: (...) o que estivemos fazendo... jogando cartas nesta sala porque podemos chavear a porta.
PW: Que sala é esta?
Will: O centro comunitário, onde estamos fazendo os marcos de madeira [para um novo púlpito para o vice-diretor), pelo menos é isso que eles esperam.
PW: Ah!, vocês ainda estão fazendo os marcos!
Will: Já deveríamos ter terminado, a gente só fica lá em cima dos marcos, jogando cartas, ou tentando tirar uma soneca (...) Bem, acaba ficando um pouco chato, até preferiria ir pra aula, entende?
PW: Que tipo de aulas você pensaria ir?
Will: Ahn, ciências, acho, porque lá você pode dar umas risadas, às vezes.

Esse auto-governo e subversão dos objetivos organizacionais formais constituem também um ataque às noções oficiais de tempo. A mais árdua tarefa do vice-diretor é a de construção de horários. Em escolas grandes, com várias opções abertas no quinto ano, tudo tem que se encaixar com o maior cuidado. As primeiras semanas do ano são gastas em uma permanente revisão, à medida que os professores mais novos se queixam e se demonstra que certas combinações são impossíveis. O tempo, como o dinheiro, é valioso e não deve ser desperdiçado. Tudo tem que ser organizado numa espécie de uma gigantesca rota que conduza aos objetivos da escola. As disciplinas tomam-se blocos medidos de tempo, colocados numa cuidadosa relação mútua. O horário com a distribuição das atividades torna-se tão importante quanto os prédios escolares, como instituição reguladora do tempo. Os complexos quadros na parede do vice-diretor mostram como tudo funciona. Em teoria é possível verificar onde cada indivíduo está em cada momento do dia. Mas para os "rapazes" isso parece que não funciona. Se alguém deseja contatá-los, é muito mais importante saber e entender - seus próprios ritmos e padrões de movimento. Esses ritmos rejeitam os objetivos óbvios do horário escolar e suas implícitas noções de tempo. A queixa comum a respeito dos "rapazes" por parte dos professores e dos cê-dê-efes é que eles "desperdiçam tempo valioso". O tempo para os "rapazes" não é algo que se cultive cuidadosamente e se gaste parciosa­mente na realização de objetivos desejados no futuro. Para os "rapazes" o tempo é algo que reivindicam para si próprios agora como um aspecto de sua identidade e auto-governo imediatos. O tempo é usado para a manutenção de um estado — estar com os "rapazes" —, não para a obtenção de uma meta — qualificações.
Há, naturalmente, às vezes, um sentimento de urgência, e os indivíduos podem ver o final do ano chegando e a necessidade de arrumar um emprego. Mas,. naquilo que diz respeito à sua cultura, o tempo é, de forma importante, simples­mente o estado de se ver livre do tempo institucional. Seu próprio tempo passa-se Iodo ele como sendo essencialmente a mesma coisa, medido nas mesmas unidades. NIIo é planejado, e não é contabilizado em termos de perdas, nem calculado como uma troca esperada.

"Dando umas risadas"
              
                           Até os comunistas dão risadas (Joey).

O espaço conquistado à escola e suas regras, pelo grupo informal, é usado para a formação e o desenvolvimento de habilidades culturais particulares que são devotadas sobretudo a "dar umas boas risadas". A "risada" é um implemento multi-facetado de extraordinária importância na cultura contra-escolar. Como vimos antes, a habilidade para produzi-la é uma das características definidoras de ser um dos "rapazes" — "Nós podemos fazer eles rirem, eles não podem fazer a gente rir". Mas é também usada em outros contextos: para vencer o tédio e o medo, para enfrentar situações difíceis e problemas — como uma saída para quase tudo. Sob muitos aspectos a "risada" é o instrumento privilegiado do informal, como a ordem de mando o é do formal. Os "rapazes" certamente compreendem a importância especial da "risada":

Numa discussão individual

Joey: Acho que dar risadas é a coisa mais importante pra tudo. Nada me impede de dar risadas (...). Eu lembro uma vez, estavam eu, John, e este outro garoto, certo?, e vieram esses dois garotos e me bateram por uma razão qualquer. John e este outro garoto estavam longe, fora, aí eu tentei revidar, mas eu continuei apanhando... aí eu corri e enquanto corria peguei uma mãozada de neve e empurrei no meu rosto e comecei a rir como louco. Eles ficaram dizendo: "Você não pode rir assim". Eu deveria ter ficado com medo, mas eu estava rindo (...).
PW: O que é que há com dar risadas, (...) por que é tão importante? (...)
Joey: (...) Eu não sei porque é que eu quero rir, não sei porque é tão importante assim. É apenas (...) acho que é apenas um dom, só isso, porque você pode se safar de qualquer situação. Se você pode rir, se você pode fazer você mesmo rir, quer dizer, rir mesmo, de forma convincente, isto pode fazer você se safar de milhões de coisas (...) Você acabaria louco se você não tivesse uma risada de vez em quando.

A escola é geralmente um terreno fértil para a "risada". De forma importante, a escola desenvolve e molda o contexto particular para o humor distintivo dos "rapazes". Num capítulo posterior, estaremos examinando estilos pedagógicos particulares como unia fonte para o desenvolvimento cultural e humorístico.  Por enquanto, entretanto, podemos observar as formas pelas quais temas específicos de autoridade são aproveitados, trabalhados e usados em seu humor. Muitas de suas peças e brincadeiras não significariam a mesma coisa nem teriam graça em nenhum outro lugar. Quando uma professor chega na sala, eles dizem: "Está tudo bem, professor, o vice-diretor vai se encarregar de nós, o senhor pode ir. Ele disse que você não precisava dar esta aula". Os "rapazes" detêm alunos do segundo ou do terceiro ano no pátio da escola e dizem: "Mr. Argyle quer falar com você, acho que você se meteu em encrenca". Logo, logo, o gabinete de Mr. Argyle está ' entupido de garotos preocupados. Eles encontram um novo professor e dizem: "Sou novo na escola, o vice-diretor pediu para o senhor me mostrar a escola". O novo professor começa a fazer exatamente isto antes que as risadas ao fundo entreguem o jogo. Enquanto circula o boato de que o diretor está examinando a caligrafia de todo mundo para descobrir quem esteve pichando a parede do novo bloco, Fuzz se vangloria: "O filho da puta não pode examinar a minha, eu nem tenho caligrafia". Numa exploração bem-humorada do ponto crucial em que a autoridade cruza com o código informal através do tabu sagrado a respeito da delação, há um fluxo de histórias de intriga meio que compelindo o professor a desempenhar seu papel formal de forma mais eficaz: "Professor, professor, Joey está conversando/pegando alguns compassos/furuncando o nariz/batendo no Percival/se masturbando/esva­ziando os pneus do seu carro".
Num nível mais geral, a "risada" é parte de uma irreverente má conduta de pilhagem. Como um exército de ocupação do invisível, da dimensão informal, os "rapazes" desembarcam no campo em busca de incidentes que divirtam, subvertam e estimulem. Mesmo áreas rígidas e bem vigiadas como a sala de reuniões apresentam muitas possibilidades de utilizar esse outro modo. Durante uma reunião Spanksy esvazia o bolso do casaco de alguém sentado em frente dele, e pergunta ostensivamente: "De quem é isto?", enquanto Joey prende os casacos nos assentos, e os outros arruínam o canto coletivo:

Joey: A principal ocupação quando estamos todos na sala de reuniões é brincar com os grampos que prendem as cadeiras. A gente tira eles fora e prende o casaco de alguém na cadeira e aí é só esperar que ele se levante... e a gente nunca escuta realmente... a gente tem que ser realmente discreto pro Clark [o vice-diretor] não ver e gritar com a gente, com os outros professores não tem impor­tância.
(...)
Joey: Mesmo durante o hino... quando eles fazem a gente cantar...
PW: Mas eles fazem vocês cantarem? Eu vi que muitos de vocês não cantavam...
__ Eu só ficava lá de pé, movendo minha boca.
__ Nós só temos um livro para toda a turma. Um para vinte e cinco.
__ Quando a gente canta, a gente faz como uma brincadeira.
Fuzz: A gente canta com a letra errada... Assim, quando a gente devia estar cantando a primeira estrofe, a gente canta a terceira.
[Risos]

Durante os filmes na sala de reuniões, eles dão nós cegos nos cabos do projetor, fazem figuras de animais ou formas obscenas na tela, com os dedos, e gratuitamente enfiam os dedos nas costas dos cê-dê-efes que estão à sua frente.
Quando passeiam pelo parque próximo à escola, na hora do almoço, eles ligam o dínamo da bicicleta do guarda: "Isto vai fazer com que o filho-da-puta ande mais devagar". Eles puxam e empurram tudo que esteja solto ou seja transportável, esvaziam lixeiras e depredam sinais e placas. Tudo aquilo que parece propriedade privada indefesa também vira alvo:

Numa discussão de grupo sobre vandalismo


Pete: Portões: é o último grito em matéria de brincadeira. Trocar portões. Pegar um portão, arrancar e colocar numa outra casa.
Bill: Foi isto que fizemos. Estávamos indo por boliche, entende?, seguindo pela rua Brompton, tinha lá uma casa à venda. Nós pegamos a placa de "Vende-se" e colocamos na casa do lado, aí pegamos a vasilha pro leiteiro de uma casa e colocamos na do lado (...), pegamos uma espécie de marco de janela que estava na varanda e colocamos na casa do lado. Trocamos uma carrada de coisas.
Spanksy: E cestos de lixo! [Risos]... todas as noites, a gente vai num jardim, pega um anãozinho, e no final tem um anãozinho, um relógio de sol, uma ponte, um anãozinho pescando, tudo isto num jardim só, e tem um relógio de sol bem grande no meio da rua. Ele pegou numa ponta, eu peguei na outra e a gente carregou toda aquela distância e colocou no (...).

Visitas fora da escola são um pesadelo para a direção e para os professores. Por exemplo, a visita ao museu. Os assentos de trás do ônibus são solenemente deixados vagos para os "rapazes", uma vez que eles chegam sempre atrasados. Logo surge uma densa nuvem de fumaça nos fundos do ônibus, embora não haja nenhuma ponta rubra de cigarro à vista. Quando o ônibus é devolvido o gerente verifica que todos os assentos traseiros estão manchados com nomes e garatujas feitos com tinta indelével. O diretor manda os culpados para a garagem no dia seguinte para limpar o ônibus "em nome da reputação da escola".
No museu os "rapazes" são como uma praga de gafanhotos devorando e enuviando toda pompa e respeitabilidade. Numa farmácia vitoriana de imitação, diante da bem visível proibição "Por favor, não toque", os "rapazes" mexem, empurram, puxam, experimentam tudo que há à vista. Eles tiram punhados de antigas pastilhas para a tosse de altos recipientes de vidros sobre o balcão e sentam-se nas cadeiras de espaldar alto, equilibrando-as nos pés "para ver se são fortes".
A maquete de uma cidade é rodeada e encoberta da vista de um sempre atento funcionário pelas costas de quinze garotos. Spanksy diz com voz de fingido alarme: "Oh, olha só, um bonde deu uma batida", ao mesmo tempo em que o golpeia com o dedo e Joey pega um dos homenzinhos cuidadosamente preparados e posiciona­dos: "Vejam só, seqüestrei um cidadão".
Eles saem para a rua para fumar um cigarro tão logo possam escapar à vigilância do professor. Joey está dissecando seu homenzinho "pra ver o que tem dentro" e Spanksy está preocupado com o fato de que as pastilhas possam matá-lo. Eles se juntam todos e apontam para o céu: "Lá está, bem acima do edifício", ou olham fixamente para o chão, e caem na gargalhada quando se junta uma pequena multidão. Eles param fora de uma loja de aparelhos de TV e ficam olhando para a mulher arrumando a vitrina: "Vamos ficar olhando para a mulher pra ver se ela se encabula". Eles conseguem e vão embora. Finalmente, aqueles que têm algum dinheiro se separam do resto e vão para o pub onde falam em voz alta sobre a escola e riem um tanto nervosamente quando alguém olha para eles. Quando voltam para o ônibus, novamente atrasados, os assentos traseiros ainda vazios, eles fingem se delatarem mutuamente para o jovem professor: "Tem algo errado com Spanksy, professor, ele está com um mau hálito", "A boca de Eddie está pegando fogo, professor, daria pro senhor apagar?".
No dia seguinte, de volta à escola, eles são chamados ao gabinete do diretor porque a empresa de ônibus acabou de telefonar. Do lado de fora do gabinete, entretanto, eles ainda não sabem qual falta lhes será imputada desta vez: "Talvez seja por causa das pastilhas para tosse", "Talvez por cantar no ônibus", "Talvez por causa da bebida", "Talvez por colocar fogo na grama do parque", "Talvez por ter mandado o guarda à puta que o pariu", "Talvez pelo que fizemos com a maquete". Eles ficam surpreendidos e aliviados quando descobrem que o problema é com as manchas nos assentos do ônibus. Sempre que um dos "rapazes" é chamado ao gabinete do diretor, seu primeiro problema é o de mentalmente listar as muitas coisas pelas quais ele pode ser questionado, e segundo o de inventar uma boa desculpa para cada uma delas. Quando o formal e o informal se cruzam, a culpa e a confusão em sua cabeça são muito maiores que o senso mais agudo de culpabilidade na cabeça do diretor. Há, com freqüência, uma surpresa real diante da natureza trivial e marginal da falta que "causou todo o barulho" — especialmente tendo em vista toda a área oculta que podia ter sido descoberta.
Naturalmente, nem sempre os "rapazes" estão atrás de estimulantes ou vítimas externas para suas "risadas". A interação e a conversação na grupo, freqüentemente tomam a forma de "gozação". Eles têm uma relação muito física e dura entre eles, com chutes, socos, golpes de karatê, quedas de braço, empurrões e rasteiras estendendo-se por longos períodos e dirigidos contra indivíduos particulares, chegando muitas vezes a lágrimas. A gozação, ou “tirar sarro”, é, dá mesma forma, dura e muitas vezes dirigida contra os mesmos indivíduos pelas mesmas coisas. Com frequência isto consiste na suposta falta de inteligência de alguém. Isso é irônico tendo em vista a rejeição geral, por parte dos "rapazes", do trabalho escolar, e mostra uma oculta influência de valores convencionais que eles prontamente negariam. Embora os "rapazes" usualmente resistam às formas convencionais de mostrar suas capacidades, certamente os mais capazes gostam de ser vistos como "espertos". Certos valores culturais, como falar rapidamente e o senso de humor, aparecem de qualquer forma em algumas matérias acadêmicas. Joey, por exemplo, equilibra-se numa corda bamba em Inglês, entre "dar uma risada" com os "rapazes" e ocasionalmente fazer uma brilhante redação. Sob certos aspectos a falta de inteligência óbvia é castigada mais pesadamente pelos "rapazes" que pelos professores, que "não esperam nada melhor". Muito freqüentemente o tema da "gozação" é sexual, embora possa ser qualquer coisa — quanto mais pessoal, preciso e apropriado, melhor. O máximo da espirituosidade para eles reside em destacar aquilo que é degradante: a busca contínua dos pontos fracos. E necessária uma certa habilidade e algum know-how para realizar tais ataques e mais ainda para resistir a eles:

Um grupo de "rapazes" durante o recreio

Eddie: X faz a namorada segurar o pinto dele, enquanto ele dá uma mijada. [Risos]
Will: Pergunta pra ele quem é que limpa sua bunda. [Risos]
Spike: Que filho-da-puta! Aposto como ele troca o modess pra ela. Com os dentes! [Mais risos]

X chega no grupo

Spanksy: Você teve uma sessão de mijo?
Bill: Ou de merda?
Spanksy: Seu nojentinho... Eu não conseguiria fazer aquilo.
Bill: Espera aí um pouco, quero que você segure meu pinto enquanto dou uma mijada. [Risos]
X: Por que eu estou...
Will (interrompendo): Ele nem sabe do que estamos falando.
Bill: É verdade que tua namorada segura o pinto quando você vai dar uma mijada?
X: Quem é que faz isso? [Risos e interrupções]
__ Você.
__ Quem?
__ Você.
__ Quando?
Spike: Você fez isso, você contou pro Joey e o Joey me contou.

Fazem-se continuamente planos para pregar peças em indivíduos que não estão presentes na ocasião: "Vamos mandar ele para Coventry quando ele chegar", "Vamos rir de tudo o que ele disser", "Vamos fingir que não entendemos e dizer o tempo todo: `O que você quer dizer com isto?'". Indivíduos particulares podem ganhar uma certa fama e atraírem uma constante gozação por serem "sujos", ou "tão burro quanto uma porta", ou até mesmo por vestirem sempre a mesma "jaqueta esfarrapada". A linguagem usada no grupo, especialmente no contexto da zombaria e da "gozação", é muito mais dura que a usada pelos cê-dê-efes, cheia de palavrões e com a forte utilização do dialeto local e de um jargão especial. Conversar, pelos menos em seus próprios domínios e à sua própria maneira, é algo que acontece muito naturalmente entre os "rapazes":

Numa discussão de grupo a respeito de gazear aulas

Joey: (...) A gente está sempre procurando por alguém [quando deixa de ir à aula] e a gente sempre tem alguma coisa pra falar... alguma coisa.
PW: Então o que é que impede vocês de se chatearem.
Joey: Conversar, a gente pode ficar conversando o dia todo, quando ficamos juntos é só conversa, conversa, conversa.

O tédio e a emoção

PW: Qual é o contrário do tédio?
Joey: Emoção.
PW: Mas o que é emoção?
Joey: Desafiar a lei, quebrar a lei, como beber, por exemplo.
Spike: Roubar
Spanksy: Andar pelas ruas.
Joey: Destruir coisas(...) isto é o contrário do tédio — emoção, desafiar a lei e quando a gente está no Plough [o pub] e fala com o leão­-de-chácara, desafia o leão-de-chácara, bebendo e tal, sabendo que a gente tem 14 ou 15 anos e pra poder estar ali tinha que ter 18.

A risada, a conversa e o comportamento de pilhagem são bastante eficazes, mas não totalmente, para vencer o tédio — um tédio aumentado por seu próprio êxito em "mexer com o sistema".
A emoção particular e a glória por pertencer aos "rapazes" advêm antes das práticas mais anti-sociais que daqueles comportamentos. São essas atividades mais extremadas que os distinguem mais completamente, tanto dos cê-dê-efes quanto da escola. Há uma alegria positiva em brigar, em causar brigas mediante intimidação, e falar sobre brigas e sobre as táticas da situação toda de briga. Muitos valores culturais importantes são expressados através da briga. A arrogância masculina, a exibição dramática, a solidariedade do grupo, a importância do pensamento rápido, claro e não-moralista, aparecem sempre. As atitudes em relação aos cê-dê-efes também são claramente expressadas e com um surpreendente grau de precisão através da agressão física. A violência e o julgamento da violência constituem o eixo mais fundamental da ascendência dos "rapazes" sobre os conformistas, quase da mesma forma que o conhecimento constitui o eixo fundamental para os professores.
Na violência há o mais completo — ainda que não especificado — compro­misso com uma forma cega ou distorcida de revolta, rompendo com a tirania convencional da regra, contrapondo-a ao machismo. E a última forma de romper um fluxo de significados que são insatisfatórios, impostos de cima, ou limitados pelas circunstâncias. É uma forma de fazer com que o mundano de repente importe. A suposição usual a respeito do fluxo do eu indo do passado para o futuro é interrompida: a dialética do tempo é rompida. Brigas, assim como acidentes e outras crises, jogam a pessoa dolorosamente no "agora". Tédio e detalhes insignificantes desaparecem. Realmente importa como os próximos segundos serão passados. E uma vez experienciado, o medo da briga e a euforia que se seguem, à medida que o eu retoma em segurança sua jornada, são viciantes. Eles se tornam possibilidades permanentes para o alívio do tédio e elementos onipresentes de uma presença e de um estilo masculinos.

Joey: Não tem nada de cavalheirismo, nada dessas frescuras, você entende?, é só... se você vai brigar, é uma briga selvagem, de qualquer forma, então é melhor ir até o fim e ganhar, mesmo que tenha que apelar pra alguém que lhe ajude ou pros métodos mais
sujos que você possa pensar, como enfiar os dedos nos olhos Ou morder a orelha e coisas deste tipo.
(...)
PW: O que vocês acham, tem garotos na escola aqui que não entram numa briga de jeito nenhum?
Spike: É de deixar a gente louco, entende?, se você bate em alguém e ele não reage.
PW: Por que?
Eddie: Eu odeio esse tipo de garoto.
Spanksy: É, "Não vou bater em você, você é meu amigo".
PW: Bem, o que vocês acham dessa atitude?
Joey: Depende daquilo que você tem contra ele, se for apenas uma coisa trivial, como, por exemplo, ele deu um chute em você, mas na hora não quis brigar pra valer... ou se ele realmente tem algo contra você, entende?, não importa se ele reage ou não, ainda assim você bate nele.
PW: O que vocês sentem quando estão lutando?
Joey: (...) é divertido, é como levar um susto... é o que você sente depois que tudo acabou... eu sei o que sinto quando estou lutando... é que eu tenho que matar ele, fazer o máximo pra matar ele...
PW: Vocês realmente sentem medo quando estão lutando?
Joey: Sim, eu tremo antes de começar a lutar. Eu fico realmente assustado, mas depois que você realmente está no meio da coisa aí você começa a coordenar seus pensamentos, entende?, vai ficando cada vez melhor e aí, se você é mesmo bom, você acaba com o sacana. Você faz ele beijar o chão e aí simplesmente salta em cima da cabeça dele.

Deve-se observar que apesar de sua destrutividade, sua natureza anti-social e aparente irracionalidade, a violência não é completamente aleatória, ou em qualquer sentido a derrubada absoluta da ordem social. Mesmo quando dirigida contra grupos de fora (e por isso mesmo, naturalmente, ajudando a definir quem pertence ao grupo), um dos aspectos mais importantes da violência é precisamente seu significado anti-social no interior da própria cultura dos "rapazes". Ela marca a entrada final no sistema informal de status e sua validação última. Ela regula uma espécie de "honra" — ainda que deslocada, distorcida ou seja lá o que for. A briga é o momento em que se é completamente testado na cultura alternativa . E desastroso para a posição informal e para a reputação masculina de alguém recusar-se a lutar, ou sair-se mal numa briga. Embora não se espere que ser um dos "rapazes" implique necessariamente em procurar brigas — quem faz isto é o "durão", uma figura respeitada, embora com freqüência não muito querida e dificilmente capaz de dar uma "risada"   certamente espera-se dele que lute quando ofendido ou intimidado, que seja capaz de "cuidar de si mesmo", que "não Nota nenhum frouxo", que impeça as pessoas de "mexer" com ele.
Entre os líderes e os membros mais influentes — que comumente não são os "durões" — é a capacidade para lutar que determina a hierarquia final. E a freqüentemente não testada habilidade para lutar que valoriza o status, o qual comumente, e de forma interessante, tem como base outros elementos: uma fachada masculina, ser de uma família "famosa", ser engraçado, ser bom em "passar a lábia", a extensão dos contatos informais.
A violência é reconhecida, entretanto, como uma sentença final imprevisível e perigosa que não se deve permitir que fique fora do controle entre pares. A violência simbólica ou verbal deve ser preferida, e se uma luta real torna-se inevitável os controles sociais normais e o sistema., estabelecido de status e de prestígio devem ser restaurados tão logo quanto possível:

PW: (...) Quando foi a última briga que você teve, Joey?
Joey: Duas semanas atrás... cerca de uma semana atrás, na segunda-feira de noite, circulou este boato idiota. Foi uma bobagem, realmente, não deviam ter ido dizer praquele idiota que eu ia bater nele, mas como não fui eu que espalhei, e ele não queria se abaixar, ele espalhou que ia me pegar, nós tivemos uma luta e o pessoal nos separou. Eu deixei ele todo marcado. Ele me deixou com a boca inchada, me deu uma cabeçada, machucou o meu nariz aqui. Mas eu acertei o olho dele com meu dedo, parti a cabeça dele, aí, depois que nos separaram, peguei ele, levei ele prum canto e disse pra ele que eu não estava com medo dele, e eu sei que eu não estava com medo dele, ele estava com medo de mim, ele estava com medo de mim, foi só isso. Foi uma espécie de...ahn... ele é de uma família, uma família enorme como a nossa, eles são durões, são brigões os Jones, e...ahn... eu não queria começar uma briga com eles, por isso eu só peguei ele e mostrei pra ele quem tinha força.

De uma forma mais geral, o clima de violência, com suas conotações de masculinidade, espalha-se pela cultura contra-escolar inteira. A natureza física de todas as interações, as lutas e os empurrões de faz-de-conta, a exibição em frente das garotas, as demonstrações de superioridade e de desprezo com relação aos conformistas, tudo isto é tomado de empréstimo à gramática da situação real de luta. É difícil simular este estilo a menos que se tenha experimentado a violência real. O tema da luta emerge freqüentemente no trabalho escolar oficial — especialmente agora na era do progressivismo e da relevância. Uma das redações de Inglês de Bill começa assim: "Não podíamos enfrentar os paquis [paquistaneses] só em quatro", e continua: "Eu vi seu pé atingir sua virilha" e "chutando a cabeça do imbecil", até chegar a: "e aí escureceu tudo" (quando "acertam" o próprio autor). Na opção existente no RSLA, de realização de uma atividade cinematográ­fica, na qual os alunos podem fazer seus próprios curta-metragens, os "rapazes" invariavelmente rodam histórias sobre roubos de banco, assaltos e perseguições violentas. Joey se envolve mais na atividade do que em qualquer outra ocasião durante todo o ano. Quando está dirigindo uma seqüência de luta e ocorre de Spanksy não provocar seu adversário de forma realista, ele diz: "Provoca ele de verdade, provoca ele de verdade, você deve dizer: ‘Vou te pegar, seu filho da puta’ e não ‘Está bem, vamos lutar'. Mais tarde, ele se mostra contrariado quando Eddie mergulha em cima de alguém para concluir uma luta: "Você não deve fazer isto, você só tem que chutar ele pra evitar que suje tua roupa".
Os perenes temas da violência física e simbólica, a fachada de dureza e a pressão exercida por um certo tipo de masculinidade ampliam-se e são mais claramente expressados entre os "rapazes" à noite, na rua, e particularmente nas danças numa discoteca de propriedade particular. Embora sejam relativamente caras e não muito diferentes das que se têm, por um décimo do preço, no Clube da Juventude, essas danças são o lazer preferido dos "rapazes". Isso se deve basicamente ao fato de que aí há uma margem de perigo e competição no clima e nas relações sociais que estão ausentes no Clube da Juventude. Aquilo que é oferecido nesses salões pode ser criticado sob muitos aspectos, não estando entre os menos importantes o seu custo relativamente elevado e o uso instrumental que faz daqueles para os quais se dirige. Entretanto, ao menos eles respondem aos desejos de seus clientes, tal como eles são sentidos, sem colocar nenhuma restrição moral com relação à forma como eles se expressam. Num certo sentido, os "rapazes" têm uma espécie de liberdade nesses salões. Sua forma alienada e exploradora deixa-os, pelo menos, livres da claustrofobia e das restrições impostas por imperativos morais irrelevantes ou opressivos nas organizações oficiais de lazer. Toma-se possível aí o aparecimento e a interação de formas culturais internas, sem intervenção de cima:

Spike: O bom é quando tem um bar na discoteca.
Will: É, acho que se tem um bar lá a gente tem que ser mais... cuidar o que está fazendo, não contar muita vantagem, porque algumas pessoas quando estão cheias de cerveja (...) elas vêem um monte de gatas lá e pensam: "Vou mostrar que sou o bom" e ficam andando pra lá e pra cá, como durões, entende? (...). Estão loucos pra aprontar uma briga por nada.
Spike: O Billy Everett, caras como ele, ele dá uma circulada, alguém olha pra ele e ele já começa uma briga com al uém ...).
PW: Como é que se inicia uma briga, você olha pra alguém.
Spike: Não, alguém olha pra você.
Will: É isto, você simplesmente dá uma voltinha e alguém olha pra você.
Spike: Ou se você passa por alguém, você esbarra nele de propósito e você jura que foi que ele que te empurrou.
PW: Então, se você está numa discoteca e quer evitar uma briga, você tem que ficar olhando pros pés o tempo todo, não é mesmo?
__ Não.
__ Não mesmo.
Spike: (...) Tem que olhar pra eles e dar o fora.
Fuzz: Se você conhece um monte de pessoas lá, você está falando com elas, então você também se sente seguro, se você conhece um monte de gente.
Will: Não tem problema se você conhece um monte de gente lá.
Spike: Se você vai a uma discoteca em que você não conhece ninguém aí é duro.
(...)
Spike: Lá [na ala juvenil da escola] não tem clima, pra começo de conversa não tem um bar. Você tem que ficar tomando refrigeran­tes e chupando balas a noite toda.
Will: Eu acho... este clube até que daria se eles arrumassem uns caras que a gente nunca viu antes.
Spike: Aí seria legal.
Will: Aí seria legal, porque haveria um certo clima e entende?, a gente ficaria olhando um pro outro, aí você voltaria e diria: "Não gosto daquele viado, olha só o jeito que ele está olhando pra gente". Aí então haveria alguma coisa acontecendo dentro e fora depois... mas agora só tem o Jules [o líder juvenil] caminhando por ali, coisas deste tipo, entende?

As atividades noturnas e de fim-de-semana fazem com que todas as divisões existentes na escola, além de outras — algumas vezes mais ambíguas, especialmente as que envolvem diferenças de classe social — se projetem ainda mais nas roupas, na música e no estilo físico. Ser um dos "rapazes" na escola está também associado com "sair" à noite e desenvolver uma compreensão social não apenas da escola, mas também do bairro, da cidade e das ruas:

Will: Vestem-se com classe, como os garotos modernos, certo?, os que se vestem de forma moderna. Têm os durões, depois têm os que são quietos (...) mas que sabem se cuidar, quer dizer, se vestem de forma moderna e andam com os durões, coisas deste tipo. Depois têm os que abrem a mão, os caras de quem você pode
tirar alguma grima, que compram amizade. Depois você entra na turma dos arrumadinhos, dos almofadinhas (...).
PW: Arrumadinho não é a mesma coisa que bicha, é?
Will: Não, quer dizer a mesma coisa que cê-dê-efe, os bonzinhos, os comportadinhos, que não vêem o lado ruim de nada (...). Acho que os durões e a turma do reggae, entende o que quero dizer?, reggae e soul, eles não dão bola pra essas coisas loucas, os arrumadinhos, os almofadinhas, como os... Osmonds, entende?, Gary Glitter.
PW: (...) os malucões, os tipos estranhos, como eles se encaixam nisto, Will?
Will: É, bem, não sei (...), a gente descobre que um monte desses tipos esquisitos são intelectuais e tudo.
Spike: Não são do nosso tipo.
Fuzz: Quero dizer, por exemplo, você vai até o The Plough, quando a discoteca está funcionando (...), quando tem toda aquela música pesada, e vê os caras com seus cabelos longos, roupas surradas (...) jeans e tudo, e você vai numa noite de soul, e vê os caras com calças largas, entende?, camisas de colarinho grande, dá pra gente ver que é diferente.
(...)
Will: Acho que você se sente por fora do mesmo jeito, porque eu estive no Junction, no centro da cidade, é um lugar da pesada, tem drogas e tudo, e todo mundo estava vestido de forma realmente esquisita (...) e eu me senti por fora, bem, me senti por fora daquilo, entende o que quero dizer?, me senti mais esperto que o resto, como se eu estivesse indo prum casamento, ou estivesse num casamento, e eles estivessem trabalhando numa fazenda.

É a perspectiva mais ampla, a liberdade adicional e as maiores oportunidades para emoções que tornam a noite infinitamente preferível ao dia (na escola). Sob alguns aspectos a escola é um espaço em branco em meio a oportunidades para emoções na rua ou numa discoteca com os amigos, ou para tentar "acertar" com uma garota. Nos diários mantidos pelos "rapazes", com a intenção de registrar as "coisas principais que acontecem com a gente durante o dia", a escola aparece registrada apenas com a simples frase "fui à escola" (ou no caso de Will, com imensos parênteses), enquanto a metade de cada página detalha aquilo que acontece depois da escola, incluindo o importantíssimo "Fui pra casa, troquei de roupa, saí pra rua". Entretanto, embora a escola possa ser suprimida da vida de muitos desses garotos, esta "invisibilidade" não nos deve levar a crer que a escola não seja importante em termos do que eles vivenciam (veja o capítulo seguinte).
A pressão para sair à noite, ir a urna discoteca em vez de a um clube juvenil, ir a pubs em vez de ficar em casa, para comprar roupas da moda, fumar e sair com gaotas — todas essas coisas que são sentidas como constituindo a "verdadeira essência da vida" — exercem uma enorme pressão financeira sobre os "rapazes". A falta de dinheiro é a maior pressão existente em suas vidas, vindo imediatamente após a de ter que ir à escola:

Numa discussão individual

Joey: (...) afinal não dá pra viver sem comer, sejamos francos, a merda do dinheiro é o que dá sabor à vida, dinheiro é vida. Sem dinheiro você está morto. Quero dizer, não há nada ao alcance da mão que você possa comer, você não pode comer árvores, você não pode comer casca de árvore.

Exploram-se todos os possíveis contatos na família e entre os amigos e conhecidos ocasionais e percorre-se o bairro em busca de trabalho em pequenos negócios, lojas, na entrega de leite, como faxineiros, chaveiro, sorveteiro e como caixa e empacotador em supermercados. Algumas vezes eles trabalham em mais de um emprego desse tipo. Trabalhar mais de dez horas por semana não é incomum. A partir do quarto ano, Spike acha que seu trabalho num atacadista de tecidos é mais importante que a escola. Ele alegremente deixa de ir à escola por dias e até semanas para poder trabalhar. Ele tem orgulho do dinheiro que ganha e gasta: ele chega até mesmo a ajudar na conta de gás de seus pais quando eles "estão mal de grana numa determinada semana". Joey trabalha com seu irmão como pintor e decorador durante o verão. Ele vê o seu trabalho como um trabalho "real" e a escola como uma espécie de férias forçadas. Não há dúvida nenhuma de que sua capacidade para "se dar bem" no mundo real, para lidar às vezes com grandes quantidades de dinheiro (Spike regularmente ganha mais de vinte libras por semana, embora a média para os outros esteja abaixo de cinco libras) e para lidar com adultos quase que em igualdade de condições reforça a auto-confiança dos "rapazes" e sua sensação, pelo menos nesta altura, de qualquer forma, de que eles "sabem mais" que a escola.
Existe até mesmo uma sensação de superioridade com relação aos professores. Eles não sabem "como é o mundo", porque estiveram em escolas ou faculdades todo o tempo de suas vidas — "O que é que eles sabem pra ficarem nos ensinan­do?". Como o próximo capítulo mostrará, existem também muitas semelhanças profundas entre a contra-cultura escolar e a cultura do chão de fábrica A cultura escolar emergente tanto se vê reforçada quanto provida diretamente de material por aquilo que os "rapazes" consideram como sendo a única fonte verdadeira de conhecimento do mundo: o mundo do trabalho da classe operária.


Capítulo V – pp. 151-167

Penetrações


Embora tenhamos olhado com algum detalhe, através do estudo de caso, para a experiência e os processos culturais vividos por alguém situado na posição dos "rapazes" (sexo masculino, branco, de classe operária, sem qualificações, ressentido e destinado ao trabalho manual no capitalismo contemporâneo), há ainda aguns mistérios a serem explicados. Num certo sentido, poderia parecer que um conjunto de causalidades aleatórias — patologia individual e privação cultural — foi simplesmente substituído por um outro — criatividade cultural e continuidade. Observamos como alguns jovens de classe operária se distanciam da instituição. Mas por que isto acontece? Vimos a convicção com que eles defendem suas opiniões, insights e sentimentos de eleição cultural. Mas qual é a base dessa exaltação subjetiva? Vimos sua atitude para com a estrutura ocupacional. Mas como podemos explicar o fato de isso se constituir simplesmente no outro lado da mesma avaliação convencional? Vimos como suas convicções e insights genuinamente sustentados conduzem ao fim e ao cabo a uma situação objetiva de trabalho que parece ser mais um aprisionamento que uma libertação. Mas de que forma isso ocorre? Quais são os determinantes básicos dessas formas culturais cujas tensões, inversões, continuidades e resultados finais nós já exploramos?

Elementos de análise

A fim de responder a algumas dessas questões e contradições, temos que penetrar sob a superfície da etnografia de uma forma mais interpretativa. Sugiro que podemos obter uma compreensão mais profunda da cultura que estudamos através das noções de penetração e limitação.
"Penetração" designa impulsos no interior de uma forma cultural dirigidos à compreensão das condições de existência de seus membros e de suas posições no interior do todo social, de uma forma não centrada, não essencialista ou individua­lista. "Limitação" designa aqueles bloqueios, digressões e efeitos ideológicos que confundem e dificultam o desenvolvimento pleno e a expressão desses impulsos. O termo um tanto canhestro, mas rigorosamente exato, "penetração parcial", designa a interação desses dois termos numa cultura concreta. A etnografia descreve o campo de jogo no qual os impulsos e limitações se combinam, mas ela não pode isolá-los teoricamente ou mostrá-los de forma separada.
As penetrações são não apenas crucialmente distorcidas e privadas de sua independência por limitações internas e externas, mas são também, ao final, trazidas de volta por essas limitações, através de formas complexas, à estrutura que elas estão desvelando. Existe, em ultima instância, uma relação culpada e não-reconhecida — precisamente, uma relação "parcial" — entre essas penetrações e aquilo do qual elas parecem ser independentes e que parecem entrever. É somente essa combinação específica de "insight" cultural e parcialidade que propicia a força mediada da validação pessoal e da identidade ao comportamento individual que conduz, no foral, ao aprisionamento. Existe realmente, em algum nível, uma base racional e potencialmente formativa para resultados que parecem ser completamente racionais e regressivos. E, eu argumento, apenas esta dupla articulação contraditória que possibilita que uma sociedade de classes exista sob formas liberais e democráti­cas, que possibilita que as pessoas se engajem livremente numa condição não-livre. Mais concretamente, a auto-preparação cultural e subjetiva específica da força de trabalho que examinamos envolve uma progressão potencial em direção a alternativas mais racionais, a qual é travada e desequilibrada, sem salvaguardas, por limitações cruciais. Isto se resolve, ao fim e ao cabo — sem nenhuma âncora no convencional e todavia também ainda não no alternativo — na internalização subjetiva de uma certa definição da capacidade de trabalho manual. Esta é uma solução, entretanto, que, não obstante, carrega consigo alguma coisa da afirmação e da eleição que se baseiam em penetrações culturais bloqueadas ou distorcidas. A coisa surpreendente que este livro tenta apresentar é que há um momento — e é necessário apenas isto para que as portas se fechem sobre o futuro — na cultura operária em que a oferta manual da capacidade de trabalho representa tanto uma liberdade, uma escolha e uma transcendência, quanto uma precisa inserção num sistema de exploração e opressão para as pessoas da classe operária. O primeiro termo da equação promete o futuro, o segundo mostra o presente. É o futuro existente no presente que funde liberdade e desigualdade na realidade do capitalismo contemporâneo.
O resto deste capítulo traça alguns dos impulsos dirigidos à penetração na cultura contra-escolar. Os dois próximos capítulos lidam com aquelas limitações internas e externas que distorcem e impedem que eles cheguem às condições realmente determinantes e ao contexto pleno da forma cultural. Muito do que segue é relevante para a cultura operária em geral. Antes disso, entretanto, é necessário examinar mais de perto os elementos envolvidos na noção de "penetração": a forma real de sua ação no mundo, o âmbito de sua ação e sua base na agência humana. Em particular, devemos definir em que sentido as penetrações culturais das relações e categorias fundamentais da sociedade podem ser ou "racionais" ou "criativas".
A cultura contra-escolar e seus processos originam-se sob circunstâncias definidas, numa relação história específica, e não são, em nenhum sentido, acidentalmente produzidas. O reconhecimento da determinação não descarta, entretanto, a criatividade. Devemos, contudo, imediatamente, insistir sobre duas matizações. A criatividade não está em nenhum ato individual, em nenhuma cabeça particular, e não é o resultado da intenção consciente. Sua lógica só pode se dar, como eu argumento mais adiante, ao nível do grupo. Em segundo lugar, a criatividade não pode ser descrita como uma capacidade singular ou uma capacidade apta a produzir resultados ilimitados. Ela também não pode ser considerada em qualquer sentido um domínio, um controle — sobre o futuro ou sobre o presente. Pelo contrário, ela conduz, paradoxalmente, a aprisionamentos profundos, que são ainda mais reforçados pelo fluxo da certeza subjetiva.
Tendo feito estas advertências, entretanto, deve-se também insistir que essa forma cultural não é produzida por uma simples determinação externa. Ela é produzida também a partir das atividades e lutas de cada nova geração. Estamos lidando aqui com vontade e ação — mesmo que não conscientemente dirigidas — coletivas, no momento em que elas se sobrepõem e assumem elas próprias posições "criativas", com relação às quais acabam por reproduzir o que chamamos de "determinações externas". São esses processos subjetivos e culturais e as ações que deles fluem que realmente produzem e reproduzem o que pensamos como sendo aspectos da estrutura. É apenas através da passagem por esse momento que as determinações se tornam realmente efetivas no mundo social. Os indivíduos, "livre" e "consentidamente", tomam decisões nesse campo que nenhuma quantidade de comando externo poderia produzir. Se os garotos de classe operária, em seu caminho para o mundo do trabalho, não acreditassem na lógica de suas ações por si próprios, não haveria ninguém de fora, nem evento externo algum, que pudesse convencê-los — especialmente em vista do julgamento convencional daquilo que eles estão fazendo e do lugar para onde estão indo. A cultura fornece os princípios do movimento e da ação individuais.
As penetrações produzidas ao nível cultural na classe operária, entretanto, por aquilo que eu ainda quero chamar de uma certa criatividade, não são de forma alguma completamente abertas. Elas correm ao longo de certas linhas cujos determinantes básicos se situam fora do indivíduo, grupo ou classe. Não é por acaso que diferentes grupos em diferentes escolas, por exemplo, aparecem com insights semelhantes, mesmo que eles sejam os produtos de esforços separados, e se combinem assim para criar vínculos de classe distintos. Todos os grupos estão realizando penetrações praticamente sob as mesmas condições realmente determi­nantes, as quais presidem suas possibilidades presentes e futuras. O objeto da criatividade, portanto, é algo para ser descoberto, não para ser imaginado. Os limites do que é descoberto já estão estabelecidos, assim como suas relações internas. Em outra sociedade o caminho teria sido mostrado aos "rapazes"; eles não teriam descoberto o seu próprio caminho
Naturalmente toda a especificidade do nível cultural desenvolvido aqui consiste no fato de que esses insights não são simplesmente lições aprendidas, nem informações passivamente absorvidas. Eles são vividos e são o resultado de uma exploração concreta e incerta. É com base nesses insights desenvolvidos profunda­mente que são afirmadas aquelas outras formas de comportamento, ação e prazer que dão a aparência mais vistosa e a vida criativa mais óbvia a uma cultura.
Num certo sentido esse ponto mais central de referência é um centro ausente, ou ao menos silencioso, por debaixo da esplêndida fantasia de uma cultura. É impossível provar sua racionalidade. Nenhuma quantidade de perguntas diretas conseguirá extraí-lo dos participantes culturais. A variedade de formas e desafios na superfície da cultura fazem duvidar da noção de que eles possam ter uma causa concêntrica. É por isso que a etnografia das formas visíveis é limitada. As características externas, mais obviamente criativas, variadas e algumas vezes aleatórias, devem ser referidas a seu âmago. A lógica de uma forma de vida deve ser traçada até ao âmago de suas relações conceituais, se quisermos. entender a criatividade social de uma cultura. Isso sempre diz respeito, em algum nível, a um reconhecimento da (e uma ação sobre a) particularidade de seu lugar no interior de urna estrutura social determinada.
Uma das razões mais profundas pelas quais essa criatividade social não pode ser expressada racionalmente ao nível superficial da cultura é que isso constitui verdadeiramente apenas a metade da história. Ela não provém realmente, com um propósito expressivo puro, do centro da cultura. Devemos supor a penetração como sendo um insight límpido e coerente a fim de dizer o que ela é, mas as formas concretas das culturas, como a etnografia insistentemente nos faz recordar, não permitem uma dinâmica pura e única. Em sua formação mesma esses "insights" são distorcidos, virados e depositados em cima de outras formas (tais como a afirmação subjetiva do trabalho manual), o que faz com que se torne difícil acreditar que alguma vez tenha havido, ou que pudesse alguma vez ter havido, até mesmo alguma idéia de um núcleo racional (e muito menos ainda um núcleo que pudesse ser facilmente expressado). Isso significa, entre outras coisas, que devemos distinguir entre o nível do cultural e o nível da consciência prática em nossa especificação da criatividade e da racionalidade.
O argumento não é o de que os insights são formados conscientemente em uma determinada mente ou mesmo na mesma mente ou grupos de mentes ao longo do tempo — embora a palavra falada cotidiana possa iluminar seus aspectos de forma variável e em contradição consigo mesma ou talvez de forma inconsciente. A consciência direta e explícita pode em alguns sentidos ser nosso guia mais pobre e menos racional. Ela pode muito bem refletir apenas os estádios finais dos processos culturais e as formas mistificadas e contraditórias que os insights básicos assumem à medida que eles são vividos. Além disso, em diferentes pontos no tempo ela pode representar os momentos contraditórios dos conflitos e processos culturais existentes sob ela. Quanto a isso, por exemplo, não é surpreendente que perguntas verbais produzam contradições verbais. Não apenas isto, mas consciência prática é a mais aberta à distração e à influência momentânea. repetição de determinados padrões, as tentativas de agradar ao outro, o mimetismo superficial, as tentativas honestas para observar normas abstratas de, digamos, polidez, elegância ou do que é tomado como inteligência, podem ser misturados com comentários e respostas que têm uma ressonância cultural verdadeira. Os métodos de pesquisa de opinião e todas as formas de método que confiam basicamente em respostas orais ou escritas, não importa qual seja seu refinamento, não podem jamais distinguir estas categorias.
Isto não significa de forma alguma descartar a consciência. Ela é uma fonte privilegiada de informação e significado se apropriadamente contextualizada e, em última instância, a única âncora na luta por significados. Ela é parte do nível cultural e está relacionada mais basicamente a esse como a expressão imediata de sua lei. Ela une-se a ele e tem uma consistência, uma validade e um papel diretamente formativo com respeito à sua complexidade. A consciência é, em qualquer sentido concebível, "falsa" apenas quando ela é separada de seu contexto cultural variável e é solicitada a responder a perguntas.
A criatividade e os impulsos racionais da cultura contra-escolar não são, portanto, idealistas, ou o produto fantástico da imaginação. Eles também não estã basicamente centrados no indivíduo em ação e em sua consciência. Além disso, ele` também não são capazes de efetuar qualquer movimento que queiram. Eles não sã capazes, finalmente, de nenhuma forma, de prefigurar o futuro. Uma visão romântica das formas culturais operárias afirma que elas estão experimentando de alguma forma com o futuro. Isto supõe que elas fornecem esboços concretos d vida para quando o capitalismo for derrubado. Não há nenhuma forma pela qual essas idéias possam prometer o que oferecem ou dar o que prometem. É bastante errado descrever a cultura ou a consciência operária, otimisticamente, como vanguarda na grande marcha em direção à racionalidade e ao socialismo. Se alguma coisa pode ser dita — o argumento central deste livro — é que são esses elementos de racionalidade e de futuro da cultura operária, e particularmente da cultura da, escola, que atuam, ao fim e ao cabo, em sua forma social atual e de form complexa e involuntária, para impedir precisamente isso. É a aparente ascensão cultural da classe operária que traz o inferno de seu próprio e real presente.
Devemos fechar essa lista de negativas, entretanto, apresentando aquele potencial distintivo e freqüentemente não reconhecido que a criatividade cultural e insight da classe operária realmente têm. Ele está embutido na única classe na formação social capitalista que não tem um interesse escuso, estruturalmente fundamentado, em mistificar a si própria. Embora haja muitas barreiras a uma compreensão apropriada, embora haja muitas inversões e distorções ideológicas, e embora os instrumentos para a análise estejam muitas vezes ausentes, ainda resta o fato de que a classe operária é a única classe não inerentemente estruturada a partir do interior pela complexidade ideológica da organização capitalista. Ela não toma, nem precisa, portanto, sustentar a "iniciativa" cultural e social e estai, assim, potencialmente mais livre de sua lógica.
A classe operária não tem que acreditar na ideologia dominante. Ela não precisa da máscara da democracia para ocultar sua face de opressão. A própria existência e consciência da classe média estão profundamente integradas naquela estrutura que lhe dá o domínio. Não existe ninguém que acredite mais firmemente do que aqueles que oprimem como homens honestos. Que tipo de burguesia seria aquela que não acreditasse de alguma forma na sua própria legitimação? Isso seria a sua própria negação. Seria a solução de um problema do qual eles são a principal charada. Isso conduziria à auto-destruição como o seguinte movimento lógico. A classe operária é o único grupo no capitalismo que não tem que acreditar nas legitimações capitalistas como uma condição de sua própria sobrevivência.
Limites claros devem, entretanto, ser outra vez traçados. Esse potencial para a desmistificação não chega a constituir-se numa capacidade para prefigurar outras formas — esta capacidade deve esperar por uma mudança estrutural para reflexivamente determinar suas próprias práticas culturais e formas estáveis de padrões e circuitos de intenção e não-intenção. Tudo que podemos dizer é que a desmistificação da ideologia, legitimações e auto-ilusão capitalistas é uma pré-condição para uma sociedade apropriadamente socialista. Não temos, entretanto, ainda, nenhum exemplo dessa. Por enquanto, e especialmente para nosso objeto imediato de estudo, essa maior capacidade para a penetração cultural tem resultado, em sua forma social real, num aprisionamento mais profundo e mais enredado no interior da ordem capitalista. Estamos longe de ter respondido a questão de se esta capacidade, sob qualquer forma que ela tenha realmente assumido, é uma bênção ou uma maldição.'
Isso significa argumentar, portanto, em favor de um certo tipo de criatividade. Ela permanece, entretanto, flutuando livremente no ar, a menos que possamos especificar a base humana a partir da qual ela surge e sua forma particular de atuar sobre o mundo, sua forma de práxis.
Sugiro que a menor unidade, a mais fundamental, que funciona como base para a penetração cultural é o grupo informal. O grupo é algo especial e mais que a soma de suas partes individuais. Ele tem, em particular, uma dinâmica social que é relativamente independente dos problemas e localizações, pré-concepções e preconceitos. Uma força social que podemos simplesmente chamar de lealdade tende a sobredeterminar atitudes anteriores e as condições específicas da existência do grupo. A microsociologia americana tem demonstrado que a liderança, os objetivos da liderança, a manutenção do grupo e a convergência das opiniões individuais, são características permanentes dos grupos (ao menos no capitalismo ocidental).5 A forte sustentação de opiniões e objetivos grupais constitui um requisito para a existência continuada do grupo. A psicologia social chama a isso de "moral alto". O poder que é assim gerado no grupo e sua natureza aberta não   especificada constituem uma força social importante. E em parte a partir dessa fonte que articulações culturais simbólicas mais amplas são geradas.
Temos, portanto, no grupo informal, uma relativa suspensão dos interesses individuais e um compromisso para com a realidade do grupo e seus objetivos, os quais não estão estreitamente especificados na história de seus membros ou na localização do grupo. Neste sentido o grupo pode, portanto, ser considerado como um sujeito de direito próprio. Ele tem um impulso interno para encontrar um objetivo específico para seu próprio nível de uma forma não limitada pelo conhecimento anterior, pela experiência ou pela ideologia de seus membros individuais.' Desejo sugerir que a cultura contra-escolar operária, sustentada pelo grupo informal e por uma série infinita de contatos entre grupos passando adiante o que é melhor e mais relevante, coloca  sua força aberta, ao menos em parte, a serviço de uma desmistificação, à sua própria maneira, das condições e possibilidades reais de seus membros numa sociedade de classes. Isto não significa afirmar que essas intenções, ou o conteúdo final da compreensão, esteja realmente na cabeça de alguém, que seja o resultado de uma vontade subjetiva individual, ou mesmo que esteja na forma de uma racionalidade individual. Estamos lidando com a unidade do grupo e com o nível específico do "insight" cultural. Deve também ser lembrado que a parcialidade das penetrações feitas a esse nível impede, de qualquer forma, seu pleno desenvolvimento e expressão racionais.
Tendo indicado a base, a força e a abrangência daquilo que, em minha opinião, deve ser visto como uma espécie de criatividade, resta ainda indicar a forma característica de sua atuação sobre o mundo, a práxis que permite aquilo que eu chamei de penetrações culturais. A expressão característica dessa força sobre o mundo é, eu sugiro, uma espécie de produção. O cultural não traduz simplesmente, de forma mecânica, nem expressa, de alguma forma simples, as contradições sociais mais amplas. Ele atua sobre elas com seus próprios recursos para chegar a soluções parciais, recombinações, transformações limitadas, que são incertas, sem dúvida, mas concretas, específicas, com relação a seu próprio nível, e a base para ações e decisões que são vitalmente importantes para a ordem social mais ampla.
            Os materiais relevantes para esse tipo de atuação e produção não são necessariamente produzidos a partir do exterior. Na verdade, a práxis para a qual estou apontando produz parcialmente seus próprios materiais para sua própria atividade, numa luta com as limitações impostas pelas formas disponíveis.' O que libera a força do grupo em direção à forma concreta do especificamente cultural, tal como analisado na parte I do livro é, de forma importante, uma deflexão do modo dominante de significação — a linguagem — para formas de expressão
comportamentais, visuais e estilísticas de oposição. As palavras convencionais não podem, de forma apropriada, submeter e "dizer" os materiais das penetrações feitas ao nível da unidade infraestrutural do grupo, sob o modo cultural. As palavras criadas sob a influência burguesa, sob determinadas condições, não podem expressar aquilo que não entrou em sua formação. Parte da reação à instituição escolar representa, de qualquer forma, uma rejeição das palavras e da linguagem respeitável como a expressão da vida mental. A forma pela qual esses insights criativos são expressados é, portanto, um dos antagonismos expressivos com relação ao modo burguês dominante de significação — a linguagem. Num sentido real, o cultural, para a classe operária, está em luta com a linguagem. Isto não significa reduzir o cultural a um comportamento anti-abstrato. Significa formulá-lo, em parte, como uma forma antagonística de expressar a vida mental e abstrata que esteja centrada não no sujeito individual, mas no grupo: não na linguagem convencional, mas na demonstração vivida, no envolvimento direto e no domínio prático.
Isto não significa negar a consciência individual e o uso da linguagem em sua conexão dialética com a prática de classe, mas significa sugerir a possibilidade, numa sociedade de classes, de uma forma assimétrica e distanciada de uma relação entre as duas. A linguagem na cultura contra-escolar não é menos rica que na cultura conformista — na realidade é bastante mais incisiva e viva — mas ela não pode expressar, e não é, portanto. usada daquele modo, aqueles insights mentais que são, de qualquer forma, excessivos para a linguagem convencional. Os significados criativos advindos da força da criatividade em grupos informais são canalizados de volta para o grupo e para o cultural para aí orientar, fazer valer e moldar muitas outras formas de práticas físicas e estilísticas. Práticas culturais relativamente autônomas, tais como transformações em roupas, hábitos, estilos de comportamento, aparência pessoal e interação grupal, podem todas ser vistas à luz dessa práxis mais ampla.
Entre outras coisas, esse nível da atividade cultural "expressa", medeia, ou transmite, através de seus próprios materiais e práticas, uma noção do mundo tal como ele é de forma especial ocupado pelos grupos sociais que constituem seu terreno. Nem que seja apenas por causa dessa posição social e pela ausência de auto-mistificação discutida anteriormente, é provável que haja elementos de insight radical (talvez distorcidos ou deslocados), assim como muitas outras coisas, além disso, encobertos sob atividades especificamente culturais. Essas atividades — ao operar sobre materiais reais em contextos particulares e ao produzir resultados surpreendentes, inesperados ou transformados — também atuam para expor e colocar em dúvida as operações das ideologias, instituições e relações estruturais mais amplas da sociedade inteira. Isto é alcançado sem nenhum direcionamento, intenção ou propósito necessários. Ocorre quase incidentalmente, como se fosse um subproduto, em meio às preocupações imediatas da cultura do dia-a-dia. Isto reforça, não obstante, a cultura, pode mudar a sua base e aumentar o âmbito de sua confiança e ação. Isto aumenta a sensação, existente entre os seus membros, de eleição e afirmação e fornece uma base mais completa e mais precisamente avaliada para as atividades culturais, o estilo e as atitudes, a qual é sentida como tendo uma relevância e uma ressonância maiores que aquela que pode ser diretamente explicada. Experiencialmente, constitui-se num aspecto de como a cultura "funciona" para seus membros de uma forma que não o faz para os outros. A combinação desses dois tipos de produção cultural e sua interação, especialmente em relação às principais transições e decisões de vida, ajudam a formar o que chamei de penetrações culturais.
Uma análise interpretativa torna possível investigar esse nível. Pode-se interrogar o cultural a respeito de quais pressupostos não-declarados se encontram por detrás dele. Quais são os fundamentos que fazem com que essa atitude seja sensível? Qual é o contexto que faz com que essa ação seja razoável? Que é que está sendo expressado, através de qual tipo de deslocamento ou projeção, sobre determinado objeto, artefato ou complexo simbólico? É através dessas questões que é possível traçar um esquema do impulso racional, existente na cultura contra-escolar, dirigido à penetração de seu contexto e condições. Estamos lidando, naturalmente, com unia categoria analítica, e nossas "penetrações" não podem jamais ser obtidas da boca dos agentes sociais, mas ela tem um referente concreto no cultural e em seu nível específico de coletividade. As formas culturais podem não dizer o que sabem, assim como podem não saber o que dizem, mas elas se expressam através do que fazem — ao menos na lógica de sua práxis. Não há nenhuma desonestidade em se interpretar isso.

Penetrações

Educação e qualificações

A rejeição à escola e a oposição aos professores por parte dos "rapazes" podem ser vistas à luz da penetração do paradigma do ensino esboçado no capítulo 3. Sua cultura nega que o conhecimento seja, em qualquer sentido, um "eqüivalente" significativo para a maioria dos garotos da classe operária. Ela "entrevê" as modificações tautológicas e manipuladoras do paradigma básico — quer este adquira uma aura de respeitabilidade com teorias "relevantes"/"progressivistas". (10), quer não. Ela "sabe", mais que a nova orientação vocacional," qual é o estado real do mercado de trabalho.
A cultura contra-escolar fornece assim um olho crítico para vislumbrar o que se passa por baixo do pano da agitação institucional costumeira da escola. Ela tem suas próprias práticas específicas, mas ela também busca e expõe de forma crítica algumas das transações e contradições sociais cruciais no interior da educação. Estas podem ser agrupadas em três conjuntos. Elas estão todas dirigidas para desmascarar a natureza do "equivalente" que é oferecido.
Em primeiro lugar, a cultura contra-escolar está envolvida, à sua própria maneira, com uma avaliação relativamente sutil, dinâmica e atenta ao que pode custar sua possível rejeição, das recompensas ao conformismo e à obediência que a escola procura obter dos garotos de classe operária. Em particular, isto envolve um ceticismo profundamente arraigado quanto ao valor das qualificações, em comparação com o que deve ser sacrificado para obtê-las: um sacrifício, afinal, não do simples tempo morto, mas da qualidade da ação, do envolvimento e da independência. A gratificação imediata não é apenas imediata, ela é um estilo de vida e oferece hoje a mesma coisa que será oferecida daqui a dez anos. Ser um cê­dê-efe agora e obter qualificações de valor duvidoso significaria renunciar para sempre às habilidades que permitem e geram gratificações imediatas, de qualquer tipo, em qualquer tempo.
O sacrifício pode, portanto, ser exorbitante, mas o objeto do sacrifício pode, também, não ter significado. Os valores e orientações culturais sugerem que o resultado trazido pelas qualificações nem sempre é uma pura bênção. As qualifica­ções tenderão, de qualquer forma, a ser baixas e a não afetar a escolha do emprego ("O que adianta fazer o exame para o CSE quando os outros obtiveram níveis ‘O’?" — Spike) e não são vistas, de qualquer forma, como um critério tão importante para a seleção nos empregos que os "rapazes" tenderão a obter ("Sempre será possível mostrar pra eles que eu posso fazer" - Joey). Mas qual seria o significado, de qualquer modo, do "sucesso" acadêmico e seu provável resultado de uma mobilidade vertical apenas modesta na hierarquia dos empregos? A possibilidade de uma mobilidade vertical real parece demasiado remota, ao ponto de não ter sentido. Para os "rapazes" sucesso significa tornar-se aprendiz num trabalho fabril ou obter um trabalho de escritório. Esses trabalhos parecem oferecer pouco e exigir muito. E essa avaliação é claramente feita sob o modo cultural. O envolvimento cultural livre, a coletividade social, o risco da rua e do chão de fábrica e a independência mental seriam todas coisas perdidas em troca de um prêmio que é principalmente formal, não real. A escolha cultural é feita em favor da incerta aventura da sociedade civil e contra a segurança limitadora do conformismo e apenas relativa ou mesmo ilusória do progresso oficial.
Essas penetrações culturais o são, é meu argumento, de algo real. Sua forma é a da atividade cultural direta e da ausência de mediação, mas elas expõem irais coisas do que aquilo que elas têm consciência. Em primeiro lugar, existe uma falácia educacional comum que diz que as oportunidades podem ser construídas pela educação, que a mobilidade vertical é basicamente uma questão de esforço individual, que as qualificações podem abrir suas próprias vagas. (12) Parte da crença social democrática na educação, inclusive, parece estar em que o agregado de todas essas oportunidades criadas pelo impulso para cima que ela daria realmente transforma as possibilidades para toda a classe operária, e põe assim em xeque a própria estrutura de classe.
Na verdade, naturalmente, as oportunidades são criadas apenas pelo impulso para cima realizado pela economia, e mesmo assim apenas em número relativamente pequeno para a classe operária. A natureza inteira do capitalismo ocidental é, além disso, tal que as classes são estruturadas e persistentes, de forma que mesmo taxas relativamente altas de mobilidade individual não fazem diferença alguma para a existência ou a posição da classe operária. Nenhuma quantidade  possível de certificados e diplomas distribuídos à classe operária contribuirá para a criação de uma sociedade sem classes ou convencerá os industriais e empregadores  — mesmo que eles fossem capazes disso — de que eles devem criar mais empregos.
Pode muito bem ser argumentado que é até mais provável que (tal como penetrado ao nível cultural à sua própria maneira e para seus próprios e diferentes propósitos imediatos), ao invés de criar empregos que exijam mais qualificação ou de refletir o aumento desse tipo de postos, a proliferação dos vários certificados e diplomas para membros da classe operária esconda a falta de significado do trabalho e construa falsas hierarquias e faça com que as pessoas fiquem ideologicamente nelas aprisionadas.
Em segundo lugar, a cultura faz urna espécie de avaliação da qualidade do trabalho disponível. Mesmo que seja questionável que elas assegurem qualquer tipo de emprego, pode-se sugerir que aquilo que as qualificações parecem prometer para seus portadores pertencentes à classe operária com respeito à qualidade do trabalho que eles podem esperar é basicamente ilusório, para começo de conversa. A maioria dos empregos na indústria é basicamente sem significado. Outra vez, podemos ver a acurácia geral da penetração cultural com respeito ao caráter comum e igual de todas as formas de trabalho moderno (assim como o caráter questionável do caminho conformista e de sua absorção ao trabalho), ao manter uma relevância em outro nível (que é refletida de volta ao nível vivido, naturalmente), mesmo que ela seja produzida em seu próprio e imediato terreno cultural.
Mais que nunca hoje as formas concretas da maioria dos empregos estão convergindo para formas padronizadas. Elas exigem muito pouca habilidade ou treino de seus ocupantes e não podem oferecer oportunidades realistas de satisfação intrínseca. A despeito da ação de retaguarda dos esquemas de reestruturação de postos e de enriquecimento de tarefas"13 o volume esmagador das evidências são de que cada vez mais empregos estão sendo desqualificados, padronizados e intensificados. (14) E bastante ilusório descrever o mercado de trabalho como determinado pela reserva de qualificações e capacidades existentes entre os trabalhadores jovens. Basta mencionar a inédita taxa de desemprego entre trabalhadores jovens atualmente15 e a tendência preocupante em direção ao desemprego estrutural dos jovens sem qualificação,1ó para se questionar o poder, em qualquer sentido significativo, que têm os jovens sobre o mercado ocupacional.
Bases objetivas, portanto, certamente existem para questionar se é sensível investir o eu e suas energias em qualificações, quando tanto sua eficácia quanto seu objeto devem ser postos em grande dúvida. A cultura contra-escolar coloca esse problema — ao menos ao nível cultural — para seus membros; a escola não.
Bourdieu e Passeron têm argumentado que a importância das qualificações e do conhecimento institucionalizados reside na exclusão social e não na promoção técnica ou humanística. Eles legitimam e reproduzem a sociedade de classes. Uma moeda aparentemente mais democrática substituiu o capital real como o árbitro social na sociedade moderna. Bourdieu e Passeron argumentam que é o exclusivo "capital cultural" — conhecimento e capacidade na manipulação simbólica da linguagem e dos números — dos grupos dominantes da sociedade que assegura o sucesso de sua prole e assim a reprodução da posição e do privilégio de classe. Isto ocorre porque a promoção educacional é controlada através do "honesto" exame meritocrático precisamente daquelas capacidades que o "capital cultural" fornece."
Na medida em que isto constitui-se numa avaliação acurada do papel e da importância das qualificações, dá sustentação à visão de que é insensato para os garotos da classe operária colocar sua confiança em diplomas e certificados. Essas coisas atuam não para fazer avançar as pessoas — como na descrição oficial — mas para manter lá aqueles que já estão no topo. Na medida em que o conhecimento é sempre tendencioso e está sempre imbuído com um sentido de classe,18 o estudante de classe operária deve, para começar, superar sua embutida desvantagem em possuir a cultura de classe e os decodificadores educacionais errados. Uns poucos podem consegui-lo. A classe inteira não pode nunca ir junto. É através da tentativa de um bom número, entretanto, que a estrutura de classe é legitimada. A classe média desfruta seu privilégio não em virtude de herança ou nascimento, mas em virtude de uma aparentemente comprovada maior competência e mérito. A recusa em competir, implícita na cultura contra-escolar, é, portanto, nesse sentido, um ato radical: ela se recusa a contribuir para sua própria supressão educacional.
Finalmente, a cultura contra-escolar efetua uma real penetração daquilo que pode ser chamado de diferença entre a lógica individual e a do grupo e da natureza de sua confusão ideológica na educação moderna. A essência da penetração cultural com respeito à escola — efetivada de forma não-auto-consciente no interior do milieu cultural com suas próprias práticas e objetos, mas determinando ainda assim uma perspectiva inerentemente coletiva — é que a lógica dos interesses de classe ou de grupo é diferente da lógica dos interesses individuais. Para a pessoa da classe operária, individualmente, a mobilidade pessoal nesta sociedade pode significar alguma coisa. Alguns indivíduos de classe operária conseguem "vencer" e qualquer indivíduo particular pode esperar ser um deles. Para a classe ou grupo em seu próprio e adequado nível, entretanto, a mobilidade não significa absolutamente nada. A única mobilidade verdadeira a esse nível seria a destruição da sociedade de classes como um todo.
O conformismo pode carregar uma certa lógica para o indivíduo, portanto, mas para a classe ele não traz nenhuma recompensa: ele equivale a renunciar a todas as possibilidades de independência e criação em favor de nada mais que um ideal ilusório de ausência de classes. O indivíduo pode ser convencido pela aparente palavra final da educação sobre o que acontece na sociedade — promoção, através do esforço, para todos os que tentam — mas a cultura contra-escolar "sabe", mais que o estado e suas agências, o que esperar — exclusão elitista das massas através do apelo espúrio ao mérito. A cultura contra-escolar e outras formas culturais operárias contêm elementos dirigidos para uma profunda crítica da ideologia dominante do individualismo em nossa sociedade. Elas expõem, em certo nível, para seus membros, as conseqüências, possibilidades, realidades e ilusões de se pertencer a uma classe — mesmo quando os indivíduos que a constituem estão ainda se comportando talvez de forma individualista e competitiva em algumas coisas e nas esferas privadas de suas vidas. Em particular, a cultura contra-escolar identifica as falsas promessas individualistas da ideologia dominante tal como elas operam na escola.
É na escola, com seu paradigma básico de ensino, que aquelas atitudes necessárias para o sucesso individual são apresentadas como necessárias em geral. A contradição de que nem todos podem ser bem-sucedidos não é nunca admitida, assim como não se diz que não adianta os fracassados seguirem receitas para o sucesso — trabalhar duro, diligência, conformismo, aceitar o conhecimento como um equivalente de valor real. Há uma generalização na escola, que parte de uma lógica individualista para uma de grupo, sem um reconhecimento da natureza e do nível de abstração muito diferentes da última.
Naturalmente a versão vocacional e certas modificações e formulações teóricas do paradigma básico de ensino sustentam que o "sucesso" não pode ser medido apenas com base numa escala vertical de qualificações ou dos diferentes status relacionados aos diferentes postos de trabalho. Existiria, além disso, um quociente horizontal. E possível "ser bem-sucedido" num emprego convencionalmente tido como de baixo status se ele exige, utiliza ou permite a expressão de capacidades que não as convencionais. É possível, por exemplo, que mesmo um trabalho sem sentido possa se tornar um sucesso se for feito com orgulho e honestidade. A escala vertical classista das ocupações realmente enfrentada pelos garotos de classe operária é convertida, tanto moral quanto praticamente, numa estrutura diferencial multi-dimensional que promete riqueza para todos.
A incômoda tensão entre a apresentação do trabalho duro e do conformismo tanto como um caminho específico para o sucesso quanto como uma característica geralmente desejável; a ambigüidade que constitui apresentar-se o gradiente acadêmico como uma ladeira que vale a pena escalar, mas que de modo algum esgota todas as fontes de valor e realização; a tentativa contraditória para se infundir toda capacidade humana com o potencial para o auto-desenvolvimento e o valor, mesmo que isto se desvie do quadro das medidas acadêmicas respeitáveis: tudo isto reconhece, de alguma forma, a dificuldade de se estender uma lógica individualista para uma lógica de classe, mas tenta uma reconstituição do mesmo lance sob formas ainda mais mistificadas. Essas produzem as oscilações mais básicas do eixo institucional, as quais a cultura contra-escolar rapidamente apreende de acordo com seu próprio modo. A penetração cultural das contradições existentes no âmago da educação é uma força poderosa para a origem e o reforço da diferenciação nas biografias individuais. A cultura contra-escolar reafirma, como uma das bases de suas formas visíveis, uma versão apropriada da lógica de classe e dá uma identidade à posição de seus membros ("explica-a"), não por uma acomodação ilusória ao gradiente acadêmico e ocupacional dominante, mas por uma transformação e uma inversão. Para a classe como uma classe, o gradiente acadêmico e ocupacional mede não capacidades, mas simplesmente sua própria e inalterável repressão. A classe operária é a metade inferior desse gradiente, não importando como se movem seus átomos. A sensatez que poderia consistir em se escalar o gradiente como um indivíduo é substituída pela estupidez em que realmente consiste realizar esse movimento com membro de uma classe. Através da penetração da contradição existente no âmago do processo de escolarização da classe operária, a cultura contra-escolar ajuda a libertar seus membros do peso do conformismo e da realização convencional. Ela possibilita que suas capacidades e potenciais finquem raízes em outro local.

Força de trabalho: uma mercadoria como nenhuma outra

A cultura contra-escolar enfrenta diretamente a realidade da instituição escolar e expõe algo da troca injusta que ela tenta fazer — especialmente à luz dos outros tipos de troca que a cultura inventou em seu próprio nome. No seu próprio nível, ela também explora a natureza especial da força de trabalho humana. Ela tem materiais com os quais pode sugerir a natureza potencialmente ilimitada do compromisso. Em particular, ela demonstra que a força de trabalho não é uma quantidade fixa, mas variável, e que não importa como é apresentado normalmente ou oficialmente, o indivíduo tem ao menos algum controle sobre seu consumo.
Um compromisso com o trabalho e o conformismo na escola não é a doação de alguma coisa finita: um bloco determinado de tempo e atenção. É a renúncia ao uso de um conjunto de atividades potenciais de uma forma que não pode ser medida ou controlada e que impede seu uso alternativo. Passar um período letivo sem escrever nada, o contínuo esquivar-se à autoridade do professor, a guerra de guerrilhas da sala de aula e dos corredores, constituem, em parte, formas de pôr limites àquelas pressões exercidas sobre o eu. Esses são importantes campos para a aprendizagem, por parte dos indivíduos, de um certo sentido daquilo que constitui a força de trabalho. Quando os "rapazes" chegam ao chão de fábrica eles não precisam de ninguém que lhes diga: "vai devagar", "faz que não vê" ou "eles [a gerência] sempre querem mais, você estará perdido se fizer tudo o que eles querem". Na verdade, sob vários e importantes aspectos, os garotos de classe operária, experimentados em desviar as exigências de um sistema externo, canalizando-as de acordo com seus próprios interesses e energias vitais, estão em melhores condições que seus futuros colegas para conhecer, arranjar e controlar suas próprias atividades. Isso ocorre porque, ao menos em parte, não faz diferença, ao final, se eles deixam de pôr sua força de trabalho em ação na escola, enquanto, por outro lado, aqueles que estão envolvidos na cultura do chão de fábrica estão mais estritamente coagidos a produzir e não podem limitar seu esforço aquém daquele ponte relativamente alto fixado pela necessidade de reproduzir ao menos sua própria subsistência.
A derrubada da troca educacional, que corre paralela com formas mais básicas de troca no capitalismo, dá forma a uma penetração cultural (expressada,. naturalmente, não em palavras ou numa asserção direta, mas através de práticas culturais em seu próprio nível) do fato de que embora a força de trabalho seja comprada e vendida no mercado, ela é, na verdade, uma mercadoria como nenhuma outra. Ela é diferente de todas as outras mercadorias porque não é uma quantidade fixa. Não importa como a questão seja julgada moral ou politicamente, é uma verdade que a força de trabalho é o único elemento variável no sistema capitalista. Ela deve ser, portanto, a fonte do capital ampliado e do lucro. Em essência, o trabalhador pode produzir mais em valor do que aquilo que é representado por seu salário. (19) Uma melhor administração ou capitalização — intensificação — de suas capacidades variáveis produz um valor maior. (20) A força de trabalho é a única coisa na natureza que pode ser comprada tendo essa capacidade variável. A teoria marxista clássica nos diz que é a cegueira do trabalhador individual quanto à natureza especial da mercadoria que ele vende que está no âmago da legitimação ideológica do capitalismo. Ele oculta os processos de exploração e a fonte do lucro. A cultura contra-escolar, entretanto, responde à sua própria maneira à natureza especial da força de trabalho. Como que por instinto, ela a limita. Em sua própria e imediata lógica, isto serve para manter a pré-condição para o envolvimento físico e mental de seus membros em suas próprias atividades.
Esse instinto cultural, é meu argumento, constitui também uma espécie de penetração das relações ideológicas e materiais gerais, importantes em nossa sociedade. Esse êxito, por assim dizer, em outro nível, retroage, entretanto, ao fim e ao cabo, para desenvolver a cultura sob uma forma particular e para garantir sua relevância e êxito a longo prazo.
O marco teórico do sistema capitalista é este: o trabalhador vende sua força de trabalho de forma justa e livre no mercado, como qualquer outra mercadoria, e então a entrega, não em uma quantidade finita como com qualquer outra merca­doria, mas como a expressão plena de suas próprias capacidades naturais variáveis. Ela pode produzir, portanto, uma quantidade bem maior que seu preço, isto é, o salário. A aparente eqüivalência entre o salário e as capacidades humanas em sua própria barganha com o capital convence o trabalhador da liberdade e da independência de todos perante a lei — a liberdade e a igualdade do estado capitalista e do judiciário. Essa aparente eqüivalência, entronizada na parafernália e na majestade do estado e de suas leis, oculta-lhe a natureza de sua própria exploração e também aquilo que ele tem em comum com sua classe e que poderia formar a base para a solidariedade de classe: aquela mesma exploração. Em essência, uma capacidade infinita foi comprada por uma soma finita e foi socialmente legitimada de uma forma tal que possibilita que essa compra e uso permaneçam sem oposição. É essa especial conjunção entre a legitimação do acesso a uma capacidade variável e a sua exploração aquilo que remove os limites à produção no capitalismo, enquanto que no feudalismo, por exemplo, a inveja e um conhecimento muito próximo da exploração direta na relação de exploração face-a­-face entre senhor e servo limitavam-na. A produtividade do capital é a produtivi­dade liberada da força de trabalho, dada não como uma quantidade, mas como uma capacidade. (21) A forma ainda comum de pagamento do salário por semana pode servir de exemplo revelador e concreto dessa clássica jogada ideológica. Nas profissões de classe média está claro que o salário anual é pago em troca do uso de serviços contínuos e flexíveis. A remuneração neste caso não se baseia na quantidade particular de tempo gasto no emprego e naturalmente espera-se que aqueles que estão situados em posições gerenciais ou administrativas façam horas extras e trabalhem em casa sem nenhum pagamento adicional. Esses trabalhadores — sua forma de pagamento do salário deixa isso claro — estão sendo pagos pelo que eles são: pelo uso de suas capacidades, por seu potencial geral como gerentes, contadores, etc. As implicações sociais da forma de pagamento por semana são muito diferentes. A capacidade geral da força de trabalho que é reconhecida pela forma salarial é neste caso dividida em porções semanais e associada a uma recompensa direta e regular. Pagamentos semanais, não salários anuais, assinalam a entrega do trabalho. A quantia no envelope semanal assinala a passagem quantitativa do tempo. Sua diminuição assinala a perda do tempo transcorrido; seu aumento, a "hora extra". Com essa associação torna-se muito mais fácil deixar de ver a real qualidade contínua, sensual e variável da força de trabalho e de ver o sentido no qual sua entrega plena ao longo do tempo libera enormes energias humanas que são realmente imensuráveis.
Aquilo que vem a se constituir num fetichismo do pacote salarial — com gordos envelopes pardos, bem fechados com cola, sendo cuidadosamente acariciados e exibidos nas quintas-feiras à tarde, a dominação da moeda bem visível na aba destacável com um puxão dos dedos e no grosso fundo prateado — divide as semanas, quantifica o esforço e apresenta à consciência o esforço e o potencial enorme da força de trabalho humana como um simples equivalente semanal concreto do cristalino e "justo" salário. Enquanto um cheque mensal depositado de forma invisível numa conta bancária pode servir para revelar o segredo contido nessa troca desigual, aquela associação semanal impede qualquer possível compreensão da disjunção entre o potencial variável do esforço vital de longo prazo e o retorno de um salário fixo.
Embora possa ser errado imputar aos "rapazes", individualmente, qualquer crítica ou motivo analítico, está claro que sua cultura coletiva demonstra tanto uma certa compreensão da singularidade da força de trabalho humana quanto, à sua própria maneira, faz um esforço para derrubar uma certa definição ideológica que dela se faz. Vimos na etnografia que os "rapazes", a partir dos recursos de sua cultura, viam sua própria força de trabalho como uma barreira contra exigências exorbitantes do mundo do trabalho — mais que como uma conexão especial e privilegiada com ele. Isso flui diretamente para as culturas de oposição do chão de fábrica, cujo objetivo consiste, ao menos em parte, em limitar a produção e as exigências potencialmente vorazes postas pela produção capitalista sobre os indivíduos. (22)
Deve ser também enfatizado outra vez que esse tipo de penetração cultural está vinculado com a natureza inteira da cultura e é mais que uma simples categoria mental. Ela é a base da qualidade da reação especificamente cultural. Há um uso contrário e intencional claro daquelas capacidades ativamente libertadas das demandas de um compromisso ilimitado. Esse uso é caracteristicamente de classe operária e está relativamente livre das superstições, das reservas puritanas e das mistificações que presidem sua absorção usual ao conformismo da produção capitalista. (23)
A liberdade que o capitalismo falsamente promete ao indivíduo como um todo pode ser unilateral e ironicamente resgatada por uma coletividade de indivíduos pondo em ação todas aquelas partes de si próprios subtraídas da absorção à produção. Para os "rapazes", há uma liberdade distorcida na dança da discoteca, nas ruas, nas brigas, em gastar dinheiro, em rejeitar outros, que nenhum outro sistema, exceto o capitalismo, garante. Não é culpa da classe operária — justamente o oposto — se, essas liberdades, sendo o que são, são usadas para propósitos culturais de classe.
Os produtos desta habilidade independente da classe operária — o questiona-mento profano do formal, uma linguagem aguda e não-reificada, a solidariedade oposicionista e uma presença bem-humorada, um estilo e um valor não baseados no status formal do emprego — não são, sob suas formas subversivas ou potencial­mente subversivas, em nenhuma medida, o produto da era capitalista. Embora estas coisas não devam ser exageradas, ou romantizadas, ou vistas em desproporção à liberdade real e à base material mínimas que as possibilitam, elas advém, contudo, não simplesmente do ato de se sofrer passivamente as exigências do capitalismo, mas de uma reação criativa a elas.

Trabalho geral e abstrato

Vimos na seção sobre a etnografia que, para todas as intenções e propósitos, os "rapazes" basicamente não fazem diferença entre os tipos concretos e particulares de trabalho que eles consideram disponíveis para eles — ao menos em nenhum sentido intrínseco. Há uma quase indiferença ao tipo particular de trabalho finalmente escolhido, desde que ele permaneça dentro de certos limites definidos, não tecnicamente, mas social e culturalmente. Algumas vezes a escolha real é feita literalmente por acidente. Esse sentimento a respeito da comum e igual natureza dos trabalhos está em marcante contraste com a idéia da existência de uma ampla gama e variedade de empregos, projetada pelos serviços de aconselhamento ocupacional e pela educação vocacional.


CAPÍTULO VIII – pág. 209 a 223


Notas para uma teoria das formas culturais da reprodução social

Embora nós tenhamos olhado para apenas uma das formas específicas da reprodução da força de trabalho e das atitudes subjetivas que possibilitam que ela seja aplicada ao processo de produção, há neste estudo algumas linhas gerais para o desenvolvimento de uma teoria mais geral das formas culturais e seu papel na reprodução social ou, mais exatamente, para seu papel na manutenção das condições para a produção material continuada no modo capitalista.
Em primeiro lugar, o estudo adverte-nos contra uma compreensão demasiada­mente reducionista ou puramente materialista do nível cultural. Não é verdade, por exemplo, que as exigências de mão de obra da indústria determinem, de qualquer forma direta, a formação subjetiva e cultural de tipos particulares de força de trabalho. Também não é verdade que instituições determinadas, como a escola, produzam — ou possam produzir, se forem, de alguma forma, mais bem adminis­tradas — pacotes padronizados, desprovidos de características de classe, de força de trabalho. Em seu desejo por trabalhadores de um certo tipo, o braço do processo de produção deve passar pelo semi-autônomo nível cultural, o qual é determinado pela produção apenas em parte e mesmo assim de acordo com os termos próprios e específicos daquele nível. Esses termos incluem: consciência, criatividade da associação coletiva, racionalidade, limitação, involuntariedade e divisão. Suas contribuições particulares para a formação do trabalho manual, por exemplo, são constituídas por uma espécie particular de afirmação da atividade manual e por uma penetração e transferência de outros conjuntos de divisões (principalmente a manual/mental e a homem/mulher).3
Num sentido mais geral, não se pode presumir que as formas culturais são determinadas de alguma forma, como um reflexo automático, por determinações macro, tais como localização de classe, região e nível educacional. Certamente essas variáveis são importantes e não podem ser deixadas de lado, mas de que forma elas influenciam o comportamento, a tala e a atitude? Precisamos entender como as estruturas se tornam fontes de significado e determinantes do comporta­mento no milieu cultural, a seu próprio nível. Só porque existe aquilo que podemos chamar de determinantes estruturais e econômicos não significa que as pessoas se curvarão a eles sem maiores problemas. Em algumas sociedades as pessoas são forçadas, sob a mira de uma metralhadora, a se comportarem de uma certa forma. Em nossa própria sociedade, isto é conseguido através de aparentes liberdades. Para que tenhamos uma explicação satisfatória precisamos ver qual é o poder simbólico da determinação estrutural no interior do campo mediador do humano e do cultural. E a partir dos recursos desse nível que são tomadas as decisões que levam a resultados obtidos sem coerção e que têm a função de manter a estrutura da sociedade e o status quo. Embora seja uma simplificação para nossos objetivos aqui, e ignorando formas e forças importantes tais como o estado, a ideologia e várias instituições, podemos dizer que os determinantes macro precisam, para se reproduzir de alguma forma, passar pelo milieu cultural.
No caso da escolha de emprego, para a classe operária desqualificada, por exemplo, podemos predizer o emprego final bastante bem a partir da classe de origem, localização geográfica, estrutura local de oportunidade e nível e rendimento educacional. Certamente esses fatores nos dão uma idéia melhor que a intenção expressa pelos indivíduos, digamos, durante as sessões de aconselhamento vocacional. Mas o que significa, em qualquer sentido, dizer que essas variáveis determinam a escolha de emprego? Ainda ficamos com o problema das formas da tomada de decisão e da base aparente da aceitação voluntária de oportunidades restritas. Mencionar os fatores mais amplos não constitui absolutamente nenhuma forma de explicação; não identifica uma cadeia ou conjunto de causalidades que indiquem resultados particulares obtidos dentre muitos resultados possíveis. Isto simplesmente descreve um pouco mais uma situação que ainda precisa, contudo, ser explicada: como e por que os jovens assumem os empregos restritos e freqüente­mente sem sentido disponíveis, através de formas que lhes parecem sensatas em seu mundo familiar, tal como ele é realmente vivido. Para um tratamento adequado dessas questões precisamos ir ao milieu cultural estudado neste livro e aceitar uma certa autonomia dos processos a esse nível, a qual, ao mesmo tempo, põe por terra qualquer noção simplista de causação mecânica e concede aos agentes sociais algum escopo significativo para que vejam, ocupem e construam seu próprio mundo de uma forma que seja reconhecidamente humana e não teoricamente reducionista. O abraçar o trabalho manual não é uma experiência de absoluta incoerência, na qual os indivíduos deixam de ter uma visão lúcida por causa de influências culturais perversas, assim como não é uma experiência de atávica inocência, profundamente marcada por ideologias pré-estabelecidas. Ela tem a natureza profana de si própria: ela não se apresenta nem sem um significado, nem com o significado de outros. Ela só pode ser vivida porque é internamente autêntica e auto-construída. Ela é sentida, subjetivamente, come um profundo processo de aprendizagem: é a organuMtiao do eu em relação ao futuro.
Se queremos argumentar em favor da existência de um nível distintivo do cultural, como vamos, então, especificar sua abrangência e natureza? Em minha opinião, é equivocado tentar uma especificação desse tipo em termos mecAnicos ou estruturais. A cultura não é estática, ou composta de um conjunto de categorias invariantes que possam ser deduzidas ao mesmo nível em qualquer tipo de sociedade. A essência do cultural e das formas culturais em nossa sociedade capitalista está em sua contribuição para a reprodução criativa, incerta e tensa de tipos distintivos de relações. A reprodução cultural, em particular, sempre carrega consigo a possibilidade de produzir — na verdade, em um certo sentido, ela realmente os vive — resultados alternativos. As relações principais que as formas culturais ajudam a reproduzir são aquelas entre seus membros e os agrupamentos de classe básicos da sociedade e aquela entre eles e o processo produtivo. Embora os casos possam variar de forma acentuada, não quero dar a entender que as principais culturas de classe sejam conceitualmente diferentes a esse nível formal.
Dentro desta especificação mais ampla do processo, é possível descrever três características específicas do nível cultural em nossa sociedade que ajudam a realizar esse objetivo principal. Em primeiro lugar, o material básico do cultural é constituído pelas variedades de sistemas e articulações simbólicos. Esses se estendem desde a linguagem até tipos sistemáticos de interação física; desde tipos particulares de atitude, reação, ação e comportamento ritualizado até artefatos expressivos e objetos concretos. É provável que haja distinções e contradições entre essas formas, de tal modo que, por exemplo, as ações possam desmentir as palavras, ou a lógica entranhada em práticas e rituais culturais pode ser bastante diferente dos significados particulares expressados ao nível da consciência imediata. São essas pressões e tensões que proporcionam o texto para a análise interpretativa subjacente à etnografia, necessária para que a descrição de uma cultura seja, em qualquer sentido, completa.
Em segundo lugar, sugiro que essas coisas são produzidas, ao menos em parte, por formas reais de produção cultural bastante comparáveis à produção material. Na verdade, em áreas tais como a geração de um estilo distintivo de vestir ou mudanças no ambiente físico, a produção é produção material. A base e o ímpeto para essa produção é o grupo social informal e suas energias coletivas, em seu próprio e devido nível. Essas energias são expressadas através de duas formas vinculadas. Uma é direta. E a tentativa para desenvolver alguma descrição e representação significativa do mundo (com freqüência numa relação antagônica com a linguagem), do lugar cultural dos membros no seu interior e para fazer experiências com as possibilidades de se obter dele alguma emoção e prazer. A outra é a investigação profana, a exploração inconscientemente revelatória do mundo e de suas categorias organizacionais fundamentais, realizada no curso do primeiro processo. A construção simbólica do mundo cultural e das possibilidades no seu interior (a pioneira) envolve trabalho sobre materiais que    especialmente onde eles são novos, apenas parcialmente usados ou não apropriadamente incorporados ideologicamente — podem trazer resultados reais e inesperados. Esses advêm, de forma importante, da natureza dos materiais e da construção do mundo, tal como eles são manipulados pela agência humana para seus próprios objetivos. O primeiro processo é relativamente involuntário — embora não numa base individual. O segundo pode ser bastante descentrado da cultura particular e não envolve nenhuma teleologia particular, embora influencie, de forma importante, a atividade cultural direta e seja a base para sua relevância e ressonância de longo prazo para indivíduos particulares.
Finalmente, sugiro que as formas culturais proporcionam os materiais para a construção de subjetividades e a confirmação da identidade e seu contexto imediato. Elas proporcionam, por assim dizer, as explicações mais críveis e recompensadoras para o indivíduo, seu futuro e, especialmente, para a expressão de suas energias vitais. Elas parecem marcar as coisas e dar-lhes sentido. Sugiro, em particular, que a identidade individual é, de forma importante, formada pela compreensão culturalmente aprendida da força de trabalho e por sua ocupação subjetiva e, no. momento inverso, que as próprias formas culturais são, de forma importante, articuladas, sustentadas e organizadas pela compreensão distintiva que têm seus membros da força de trabalho e por seu modo coletivo de funcionamento no mundo.
Essas são algumas das formas, funções e práticas distintivas a serem encontra­das no nível cultural. Sua natureza básica e sua própria reprodução plena só podem ser compreendidas, entretanto, com respeito à forma pela qual elas ajudam a produzir as principais relações do grupo social consigo mesmo, com as outras classes e com o processo produtivo. Podemos pensar neste processo de reprodução como tendo dois momentos básicos. Em primeiro lugar, estruturas externas e relações básicas de classe são apreendidas como relações simbólicas e conceituais ao nível especificamente cultural. Isto toma a forma, eu sugiro, de penetrações culturais (isto é, não centradas no indivíduo ou na prática consciente) das condições de existência do grupo social que sustenta a cultura. As determinações estruturais agem, não por efeito mecânico direto, mas pela mediação através do nível cultural, onde suas próprias relações se tornam sujeitas a formas de exposição e explicação. No segundo momento do processo, as estruturas que se tornaram agora fonte de significado, definição e identidade, fornecem o marco e a base para decisões e escolhas na vida — em nossa democracia liberal, feitas livremente — que, tomadas sistematicamente e agregadas em grande número, realmente ajudam a reproduzir as principais estruturas e funções da sociedade. Isto é: as fábricas se enchem na segunda-feira de manhã, e em todas as segundas-feiras, com trabalhadores apresentando as necessárias e aparentes gradações entre capacidade mental e manual e as correspondentes atitudes, necessárias para manter, dentro de amplos limites, a estrutura existente de classe e produção. Aos processos que interagem com as penetrações do primeiro momento para produzir uru campo cultural tal que as decisões de vida são tomadas para reproduzir e não para rejeitar ou derrubar aa estruturas existentes eu chamo de limitações. Quando as penetrações tendem a uma exposição da desigualdade e das relações determinantes do capitalismo e para a construção de uma possível base para a ação coletiva em favor da mudança por parte do grupo em questão, as limitações rompem e distorcem estas tendências e as aplicam a diferentes fins. As limitações são específicas do nível cultural, impedem qualquer leitura essencialista das formas culturais, não podem ser derivadas do processo de produção em si, e incluem as duas fraquezas funcionais inerentes ao processo cultural: os efeitos de sistemas de significado relativamente independentes, tais como o racismo e o sexismo, e as ações de poderosas ideologias externas. No caso que estudamos, as penetrações culturais da natureza especial do trabalho no capitalismo moderno convertem-se numa celebração surda e abafada da masculini­dade da força de trabalho. As penetrações culturais não chegam a constituir nenhuma resistência ou a construção concreta de alternativas políticas, resultando numa aceitação sem ilusões dos papéis de trabalho disponíveis e num uso mistificado deles para uma certa vantagem e ressonância cultural — especialmente no que diz respeito ao sexismo e à expressividade masculina. Não devemos subestimar o grau remanescente de racionalidade e insight existente aqui. Aquela situação de trabalho recebe apenas o mínimo de interesse e envolvimento intrínsecos. A auto-abnegação de se viver a subordinação como se fosse igualdade, e nos termos da ideologia oficial, é — em face da evidência e experiência cotidiana que mostram o contrário — no mínimo, negada.
O argumento aqui, então, é o de que as formas culturais não podem ser reduzidas ou vistas como mero epifenômeno de fatores estruturais básicos. Elas não são variáveis acidentais ou livremente abertas à determinação no par estrutura/cul­tura. Elas são parte de um círculo necessário no qual nenhum dos termos é pensável em separado. É na passagem através do nível cultural que as relações estruturais reais da sociedade são transformadas em relações conceituais e vice-versa. O cultural é parte da necessária dialética da reprodução)
Essa visão das formas culturais e da reprodução é ao mesmo tempo pessimista e otimista. Ela é pessimista ao sugerir a ironia de que é na forma de penetrações criativas que as culturas vivem sua própria danação e que, por exemplo, uma boa parte dos garotos de classe operária condenam a si mesmos a um futuro de trabalho manual. Ela é otimista, entretanto, ao mostrar que não existe nenhuma inevitabili­dade de resultados. A subordinação e o fracasso não são irrespondíveis. Se há momentos em que as formas culturais realizam reais penetrações do mundo, então, não importa quais distorções se sigam, existe sempre a possibilidade de se fortalecer e se trabalhar a partir dessa base. Se os resultados conservadores têm uma gênese radical, então ao menos existe aí a capacidade para a oposição. Temos a possibilidade lógica da radicalidade. As teorias estruturalistas da reprodução' apresentam a ideologia dominante (sob a qual a cultura é subsumida) como impenetrável. Tudo se ajusta de forma demasiadamente perfeita. A ideologia parece sempre pré-existir e se antecipar a qualquer critica autêntica. Não há nenhuma rachadura na superfície perfeitamente lisa — como de bola de bilhar — do processo. Todas as contradições e conflitos específicos são aplainados através das funções reprodutivas universais da ideologia. Este estudo sugere ao contrário, e em minha opinião de forma mais otimista, que existem profundas disjunções e desesperadas tensões no interior da reprodução social e cultural. Os agentes sociais não são passivos portadores da ideologia, mas apropriadores ativos, que reproduzem as estruturas existentes tão-somente através de luta, contestação e uma penetração parcial daquelas estruturas. Bastante à parte das características estruturais de uma sociedade particular, é o tipo desse acordo contestado que ajuda a dar-lhe sua especial natureza. Uma sociedade, por exemplo, é profundamente marcada pelas formas específicas pelas quais sua força de trabalho é preparada.
Esta advertência contra uma noção demasiadamente fechada ou acautelatória das formas culturais e da reprodução é também um argumento em favor de se reconhecer uma necessária incerteza. Muito freqüentemente, presume-se que o capitalismo significa uma dominação totalmente eficaz sobre a classe subordinada. Longe disto, o capitalismo em suas formas modernas, democrático-liberais, é luta permanente. Aquilo que é acomodatício na cultura de classe operária é também aquilo que é resistente, de modo que o capitalismo nunca está seguro. Não pode nunca ser uma dinastia. Na medida em que tem uma estabilidade, é a estabilidade dinâmica de arriscar a instabilidade através da concessão de liberdades relativas a esferas de comportamento involuntário, na esperança de receber de volta um mínimo de consentimento ao seu domínio. Existe, portanto, uma profunda incerteza e um equilíbrio instável de contradições sempre crescentes no centro do capitalismo. A reprodução cultural contestada e plena é mais importante para o capitalismo que para qualquer outro sistema, mas as condições para sua própria sobrevivência são também as condições para sua substituição.
As liberdades capitalistas são potencialmente liberdades reais e o capitalismo faz a aposta, a qual é a essência da reprodução, de que as liberdades serão usadas para a auto-danação. A classe dominante não poderia nunca controlar essas liberdades sem auxilio de baixo. E se essas liberdades não são usadas neste momento para seus plenos propósitos subversivos, oposicionistas ou independentes, então o capitalismo não poderá ser culpado por isto. Ele faz sua própria aposta na incerteza; que os outros façam as suas.
A incerteza profunda — embora não ilimitada — no âmago do sistema deveria nos prevenir contra um visão demasiado funcionalista dos processos culturais de classe. É certo, por exemplo, que os círculos de contradição e involuntariedade descritos neste livro trabalham neste momento para o capitalismo. Mas qualquer sistema que seja estável o suficiente para ser estudado deve trabalhar assim. Deve, portanto, haver sempre um nível funcional de análise na reprodução. Mas isto não deve permitir que se ocultem as lutas que, através das incertezas, movimentam as partes do mecanismo. Muitos aspectos da cultura dos rapazes, por exemplo, são desafiadores e subversivos e continuam ameaçadores. Há muitas rupturas, distâncias, antagonismos, lutas profundas e uma lógica subversiva real no interior e por detrás dos processos culturais da reprodução, os quais lutam por resultados diferentes daqueles que no momento satisfazem o sistema.
Essa incerteza também deveria nos prevenir contra uma noção teleológica simplista a respeito do desenvolvimento capitalista. O gigantesco crescimento do estado nos setores de seguridade social e educação, por exemplo, não se dá necessariamente em favor dos melhores interesses do capitalismo. Ele foi, em alguma medida, imposto ao capitalismo por grupos em competição, utilizando suas próprias liberdades reais, para seu próprio avanço, tal como eles o enxergaram. Naturalmente, as agências do estado têm sido utilizadas e modificadas para ajudar a disfarçar, ou a desviar, problemas que o capitalismo produz, mas não pode resolver. Mas embora ajudem a resolver problemas, essas instituições não podem ser totalmente absorvidas de volta ao capitalismo. Elas mantêm espaços e oposições potenciais, mantêm vivas questões e espicaçam nervos que o capitalismo preferiria que fossem esquecidos. Seus funcionários não são, em nenhum sentido simples, empregados do capitalismo. Com muita freqüência, eles resolvem, confundem, ou adiam seus problemas no curto prazo por causa de seu compromisso com objetivos profissionais que são, ao final e de forma embaraçosa, independentes das necessidades funcionais do capitalismo. Eles podem ajudar, inconscientemente, de forma involuntária, o processo de reprodução de classe, mas, de uma maneira ou de outra, isso pode também envolver o recrudescimento de oposições e críticas, que a classe dominante certamente pode muito bem dispensar. Agências e instituições do estado, com muita freqüência, levam as contradições mais longe, de forma mais rápida e mais deslocada e desorientada, do que poderia ser imaginada por qualquer capitalismo puro. A máquina burocrática estatal de seguridade social e de educação, tão característica do capitalismo ocidental, deve ser vista, em parte, como o resultado de uma infiltração cumulativa que o capitalismo tenta fazer funcionar a seu favor mais que como a expressão de sua própria vontade ou dominação direta. Sua própria incerteza torna-o propício à mutação e nesse processo de mutação dá-lhe nova vida.

Reprodução e instituições do estado

Este estudo tem sugestões mais precisas — especialmente quanto ao significado do des-reconhecimento sistemático e às conseqüências involuntárias desses processos — para a conceptualização do papel das instituições na reprodução cultural e social.
           Em primeiro lugar, não devemos esperar que tipos particulares de reprodução ocorram higienicamente em tipos separados de instituições. Exatamente como a escola e seu cronograma formal apenas tangenciam os processos reais de aprendizagem e de preparação da força de trabalho manual, outros tipos de instituição podem embaraçosamente funcionar contra funções sociais reais. O significado e a abrangência particular do papel das instituições na reprodução podem ter menos a ver com sua natureza formal e comunicações manifestas que com os resultados involuntários e freqüentemente invisíveis de suas relações e padrões habituais de interação com culturas localizadas e informais. Além disso, a mesma instituição pode exercer papéis muito diferentes em diferentes tipos de reprodução, de forma que, por exemplo, a escola seja mais central à preparação da força de trabalho mental que da força de trabalho manual.
Em segundo lugar, este estudo sugere que as instituições não podem ser estudadas como simples unidades. Elas têm pelo menos três níveis que podemos descrever como o oficial, o pragmático e o cultural. No nível oficial, é provável que uma instituição tenha uma descrição formal de seu objetivo com relação à sua visão das características estruturais e organizacionais principais da sociedade e de como elas se inter-relacionam (ou de como elas podem ser obrigadas a se inter-relacionar). Numa sociedade democrático-liberal como a nossa, seria bastante equivocado presumir que instituições estatais tal como a escola são administradas de qualquer forma intencional ou óbvia para favorecer a classe dominante (como o são as escolas particulares, por exemplo). Seu objetivo consciente e centralmente dirigido não é promover dois tipos muito diferentes de ideologia, adaptados às necessidades de classes reconhecidas como inferior e superior. Seus educados, dedicados e liberais agentes não aprovariam isto. Além disto, esse nível da prática institucional está mais diretamente relacionado com o campo político propriamente dito e com todos os determinantes e interesses que operam aí. Parte da pressão política social-democrata, dominante desde a última guerra, tem sido no sentido de equalizar as oportunidades, ou ao menos de equalizar o acesso às oportunidades através da reforma e do desenvolvimento das instituições. Convergência, não divergência, tem sido a principal tendência oficial.
Constitui, naturalmente, uma exigência absoluta do sistema social existente que não sejam transmitidos os mesmos padrões, ideologias e aspirações a todos. O êxito da ideologia oficial, ou o que vem a dar no mesmo, o fracasso de sua reprodução cultural oposicionista, em muitas instituições, seria catastrófico para a reprodução social em geral. A "transição" da escola para o trabalho, por exemplo, dos garotos da classe trabalhadora que tivessem realmente absorvido o slogan do auto-desenvolvimento, da satisfação e interesse no trabalho, seria uma batalha aterrorizante. Presenciaríamos, por um lado, exércitos de garotos equipados com seus "auto-conceitos" lutando para obter os poucos empregos com sentido que estão disponíveis, e por outro, massas de empregadores debatendo-se para metê-los em trabalhos desprovidos de significado. Nessas circunstâncias, haveria, na verdade, um "problema" de "orientação ocupacional" muito maior do que o que temos agora. Seriam necessários, ou um gigantesco exercício de propaganda equivalente em proporção ao do tempo de guerra, ou a coerção física direta, para ter esses garotos trabalhando nas fábricas. Uma vez que isso ainda não é necessário, e uma vez que, em geral, a reprodução social da sociedade de classes continua, a despeito da intervenção do estado e de suas instituições, pode-se sugerir que algumas das funções reais das instituições operam contra seus fins proclamados. Esse des-reconhecimento, pode-se sugerir, ajuda a manter muitos dos processos culturais que ocorrem no interior de instituições particulares e que contribuem para a reprodução social. No segundo nível, o pragmático, as ideologias e fins oficiais são mediador aos agentes e funcionários de instituições particulares. E provável que ales concordem com alguma parte das justificativas mais teóricas da ideologia "oficial" predominante, mas eles estão também interessados em seus próprios problemas de controle e direção face-a-face e nas pressões cotidianas de sua própria sobrevivência no interior da instituição que lhes tocou fazer funcionar. Eles mantêm um olho prático na ideologia "oficial". Eles adotarão ideologias recentemente sancionadas, por exemplo, apenas quando vislumbrarem que elas oferecem ajuda real e prática — embora eles possam muito bem justificar a mudança, inclusive para eles próprios, usando os slogans da mais pura ideologia que lhes é passada. E esse engajamento prático que muito freqüentemente impede os agentes de verem o que está ocorrendo abaixo deles.
No terceiro nível, "abaixo" dos outros, estão as formas culturais de adaptação dos clientes da instituição na medida em que sua experiência externa de classe interage com as exigências e processos práticos das instituições, tais como eles os atingem. É provável que uma das variantes importantes disso seja uma cultura oposicionista informal que pode muito bem realmente ajudar a realizar a reprodução social mais ampla que a política oficial tem tentado derrotar ou mudar. Como vimos neste livro, quando ocorrem num nível cultural, a destruição dos mitos e ilusões oficiais e uma avaliação perspicaz do mundo não impedem a incorporação naquele mundo. Elas podem até mesmo contribuir para isso. Se a especificidade da instituição e a vulnerabilidade de sua ideologia ajudam a promover certos tipos de culturas de oposição e suas penetrações características, elas também ajudam a desorientá-las, dirigindo-as para suas formas acomodativas, através do fornecimento ou do reforçamento de poderosas limitações. Em particular, é provável que gere divisões, especialmente na área de suas próprias e apropriadas preocupações, e também entre o formal e o informal. Embora a escola, por exemplo, não seja eficaz da forma que ela espera ser, é um local extremamente importante, e a causa próxima do renascimento de uma cultura oposicionista de classe, experienciada por uma boa porcentagem dos garotos de classe operária durante o terceiro, quarto e quinto anos de escola. Esse renascimento conduz a mudanças e refinamentos na ocupação subjetiva da força de trabalho que levam a resultados muito concretos. Através de formas contraditórias e involuntárias, a cultura contra-escolar realmente realiza para a educação um de seus principais, embora des-reconhecidos, objetivos — a condução de uma parte dos garotos da classe trabalhadora, "voluntariamente", para o trabalho manual qualificado, semi-qualificado e desqualificado. Na verdade, longe de ajudar a causar a atual "crise" na educação, a cultura contra-escolar e os processos que ela promove têm ajudado a impedir uma crise real.
Sugiro que todas as mudanças principais na organização institucional podem ser analisadas em termos desses três níveis. No caso da educação, por exemplo, o progressivismo tem sido desenvolvido e teorizado como uma ideologia oficial por acadêmicos, em conjunção com movimentos democráticos sociais, políticos e institucionais mais amplos para aumentar as oportunidades e o acesso para a classe trabalhadora. No nível pragmático, entretanto, o progressivismo é adotado nas escolas principalmente como uma solução prática para problemas práticos, sem nenhuma mudança real nas filosofias básicas de educação. No nível cultural, pode-se argumentar que freqüentemente o "progressivismo" tem tido o efeito contradi­tório e involuntário de ajudar a reforçar processos no interior da cultura contra-escolar que são responsáveis pela preparação subjetiva particular da força de trabalho e aceitação de um futuro de classe trabalhadora de uma forma que é exatamente a oposta das intenções progressivas em educação. É essa reprodução cultural reforçada com relação à escola que naturalmente garante o futuro do experimento educacional, ao limitar sempre a abrangência de seu êxito.
Isto não constitui nenhum argumento simplista ou uma crítica contra o progressivismo ou outros tipos de reforma institucional. Qualquer tipo de mudança educacional ou de qualquer outra mudança pode encontrar suas próprias formas de involuntariedade, contradição e formas invisíveisde reprodução através de conexões complexas com culturas de classe e com as exigências objetivas do sistema externo. Este é que é exatamente o ponto: que nenhum objetivo institucional, nenhuma iniciativa moral ou pedagógica se move no ar estático e cristalino da boa intenção e da mecânica cultural newtoniana. Todo movimento deve ser considerado em relação com seu contexto e prováveis círculos de eficácia no interior do baixo-mundo (aos olhos oficiais e institucionais, em geral) da reprodução cultural e do mundo principal das relações sociais de classe.
O progressivismo e o RSLA, por exemplo, têm de fato atacado problemas reais, têm protegido os garotos por um pouco mais de tempo da dureza e da desigualdade da indústria e têm ajudado a proporcionar-lhes — de forma involuntária e inesperada, naturalmente — uma espécie decisiva de insight e de avanço cultural que não estava ao alcance de seus pais. Não devemos ser simplesmente ingênuos sobre o que esse avanço significa. Devemos questionar sob que forma, para quem, em qual direção, e através de que círculos de involuntariedade, com que conseqüên­cias reprodutivas para o sistema social em geral, avanços particulares são efetuados.
Naturalmente, há um risco na generalização e na extrapolação. Diferentes agências e instituições têm diferentes relações dominante/subordinado, profissional/clientes, diferentes distâncias, rupturas e inversões da ideologia, diferente momentos e pontos de luta, diferentes intersecções com o sistema de classe e com modos de reprodução cultural. É possível sugerir, entretanto, que, no mínimo, muitas instituições podem ter em comum, de alguma forma e em algum nível, uma crença auto-enganadora na unidade de sua própria ideologia oficial. O que ts t é que essa ideologia não é transmitida de forma não-crítica para balm), 011 aqueles situados no último degrau a recebam, de alguma forma, • nada algum ponto há uma ruptura e uma inversão nessa cadeia ideológica, conexões extremamente importantes com o resto do sistema social a reprodutivas cruciais com respeito a ele. Pode-se sugerir que em muitas instituições é o senso característico de penetração cultural (impedido por limitações) que realmente motiva os membros nas suas ações concretas, e que é, com freqüência, na vitória pártica (8) do domínio e do controle informal que a reproduçb decisivamente estabelecida.

Notas

1. Marx, por exemplo, nunca explica como a força de trabalho vem a ser formada subjetivamente ocupada, entregada e aplicada ao processo de produção de uma certa. Há quase como que um passe de mágica no uso conceitual do exército de reserva dos desempregados para explicar a obediência ideológica dos trabalhadores. Independentemente de quais sejam as pressões e a força adicional da competição, ainda assim precisa entender, antes de mais nada, os processos que produzem grandes ofertas de força de trabalho de um certo tipo — empregados ou não.

2. Embora eu tenha argumentado que a produção não determina mecanicamente o nível cultural e aqueles processos que aí ajudam a formar a força de trabalho que ela exige, é, nio obstante, claro, que os trabalhos que são produzidos seja lá de que forma devem de uma forma geral satisfazer as necessidades globais da produção num ponto particular qualquer. Essas exigências são em alguma medida influenciadas pelas formas pelas quais elas são satisfeitas e vice-versa, mas ainda assim precisamos confrontar o modo de articulação de sua lógica e desenvolvimento relativamente independentes. Alguns comentários preliminares podem ser feitos com relação a essa complexa área a partir da evidência deste estudo.
A emergência do capitalismo monopolista assinala um movimento sem precedentes em direção ao controle e à intensificação do processo de trabalho. O capitalismo competitivo, com a maior centralidade do mercado na troca de mercadoria, tem atuado como um freio sobre esse controle. Ele propiciou a possibilidade de alternativas concretas para o trabalhador individual se um emprego particular tornou-se demasiado árduo. Ele também tendeu a estabelecer um limite sobre o ritmo da inovação e do avanço tecnológico porque o investimento nestas coisas arriscava um ciclo de retorno de capital demasiado longo (ou mesmo um retorno insuficiente se o investimento fosse feito não para o desenvolvimento otimizado de capital mas para o avanço competitivo do produto) para ser viável com relação aos interesses de curto prazo que predominam no mercado livre. (Esta é a mesma lógica que impede os capitalistas individuais de introduzir a jornada de trabalho mais curta: veja Marx, Capital, trad. de Aveling e Moor, p. 256). A empresa moderna está relativamente isolada dessas pressões de mercado e pode continuar com o controle e a intensificação da força de trabalho cujo uso ela compra, mais de acordo com sua própria lógica interna de produção. Há uma real tendência em direção a uma intensificação aumentada dos processos de trabalho e uma apropriação adicional do controle das habilidades de ofício, assim como sua maior decomposição (comparar Braverman, Labour and Monopoly Capital, Monthly Review
Press). O controle tem se transferido centralmente para cima, para o controle especializado e racionalizado da produção de larga escala. Há, portanto, uma necessidade em geral (isto 6, à parte da pequena fração ainda altamente qualificada para a qual o controle foi passado) de uma força de trabalho menos qualificada, aberta a uma maior sistematização e a um maior ritmo de trabalho, em conjunção com um grau de flexibilidade que permita a permuta entre processos crescentementepadronizados. Em uma palavra, o capitalismo monopolista requer um afastamento acelerado, em sua força de trabalho, da "idiotia" do ofício, do orgulho no trabalho, e de uma fusão pessoal com a atividade de trabalho.
Os processos culturais e institucionais descritos neste livro — tomados como um todo — tendem a produzir grandes números de trabalhadores próximos desse tipo. A natureza das "penetrações parciais" que examinamos vai no sentido, precisamente de desvalorizar e desacreditar atitudes mais antigas com relação ao trabalho e sentimentos de controle e de significado no trabalho. Sob certos aspectos, esses desenvolvimentos são progressivos com respeito ao capital monopolista e tendem a fornecer aqueles trabalhadores instrumentais, flexíveis, desiludidos, "afiados", desqualificados, mas bem socializados, necessários para fazer parte de seus processos de trabalho crescentemente socializados.
O "avanço" dos trabalhadores proletários não precisa, obviamente, ir tão longe. O abandono de antigas habilidades, místicas e atitudes protetivas não deve se transformar na rejeição do trabalho moderno ou numa compreensão completa de sua falta de sentido. Não se deve permitir que a liberdade, a independência e a disposição à mudança dos novos trabalhadores instrumentais degenere numa falta de lealdade e numa erosão de motivações de qualquer tipo. Acima de tudo, a interdependência social objetiva desses trabalhadores proletários avançados — com menos preconceitos, cegueira e limitações que quaisquer outros antes deles — não se deve tornar uma interdependência e uma solidariedade em torno da consciência e de propósitos políticos.
As demandas que surgem dos monopólios modernos são, portanto, mutuamente contraditórias. Sua necessidade por um tipo mais avançado (ou menos qualificado e menos restrito a um único trabalho) de trabalhador conduz também a um trabalhador sem lealdade e motivação, um trabalhador potencialmente suscetível a cruciais perspectivas políticas de massa.
Sugiro, entretanto, que é também provável que essa contradição seja parcialmente preservada pelas formas culturais através das quais a força de trabalho é fornecida. Se as necessidades da indústria por um trabalhador mais flexível e desiludido são satisfeitas sobretudo por um certo tipo de processo cultural operário (numa relação mediada com essas mesmas necessidades, naturalmente), essa cultura também fornece (outra vez, numa relação mediada) outros processos que produzem formas inesperadas de afeição, divisões e motivação que fazem algum avanço na direção de satisfazer suas necessidades por um certo tipo de lealdade e de deslocamento politico. As variantes culturais conformistas da preparação da força de trabalho, especialmente com relação aos não-conformistas, tendem a produzir trabalhadores comprometidos com sua atividade e tendentes a acreditar no valor intrínseco do trabalho e das qualificações associadas, a despeito de sua tênue substância objetiva. Além disso, a simples existência dessas formas opostas de afeição cria a base para a hierarquia e a divisão na força de trabalho, que pode ser explorada para romper a solidariedade e também para legitimar, ideologicamente, divisões reais de classe. Esses conjuntos de bifurcações e distorções culturais que derivam do semi-autônomo nível cultural fazem, na verdade, com que seja extremamente difícil "ver através" deles para julgar, empiricamente, mudanças reais no processo de produção. Ainda assim, pode-se sugerir q por enquanto, as necessidades da indústria e as formas culturais da reprodução da força trabalho parecem mover-se numa harmonia aproximada, embora contraditória. A contradição de longo prazo não pode, entretanto, ser resolvida. Os processos ideológicos e os processos materiais movem-se em direções fundamentalmente opostas. O próprio processo de trabalho está se tornando mais desqualificado e proletarizado, embora os postos no seu interior estejam aparentemente se tornando mais estratificados e diferenciados — especialmente no que toca a qualificações. Deve continuar em aberto a questão de se as divisões elementares entre trabalho manual e mental e entre os gêneros sexuais na classe trabalhadora continu mente reproduzirão e ampliarão as divisões no momento em que as divisões técnicas objetivas do processo produtivo estão diminuindo ainda mais.
Uma das inovações gerenciais mais interessantes no controle e na direção de uma força de trabalho em mudança são as "novas" relações humanas: técnicas de re-estruturação do trabalho, satisfação no emprego e agrupamentos autônomos de trabalho (veja, por exemplo, Mary Weir (ed.). Job Satisfaction, Fontana, 1976; P.Warr e T.Wall, Work and Well-Being, Penguin, 1975; N.A.B.Wilson, On the Quality of Working Life: A Report Prepared for the Department of Employment, Manpower Papers, n.7, HMSO, 1973; Report of a Special Task Force to the Secretary of Health, Education and Welfare, Work in America, MIT Press, 1973; W.I.Paul e K.B.Robertson, Job Enrichment and Employee Motivation, Gower Press, 1970; F.Herzberg, Work and the Nature of Man, Staple Press, 1968). Tem havido bastante perplexidade com respeito à lógica intrínseca dessas técnicas com relação a formas de consciência e resistência do trabalhador. Em minha opinião, a perspectiva mais esclarecedora com relação a esses desenvolvimentos consiste em vê-los como uma resposta a um avanço (em contradição) da consciência proletária. A estrita divisão do processo de trabalho, uma alta lealdade à empresa e um alto moral estão se tornando mais difíceis de impor à medida que as formas culturais de classe e as ações a elas associadas pressionam, através de suas auto-impostas barreiras mental/manual, em favor de uma compreensão vivida do trabalho abstrato, através de suas próprias barreiras sexistas à estrita falta de sentido do trabalho, em favor de um maior controle informal do trabalho e em favor de uma maior solidariedade oposicionista — ao menos no poderoso campo do localizado e do informal. As "novas" relações humanas assinalam uma tentativa acautelatória por parte da gerência para conter esta consciência em formação e utilizá-la para uma maior flexibilidade e motivação.
O preço final desse arranjo estratégico pode ser bastante alto, tanto no sentido de que a lógica produtiva estrita da mais alta eficiência (um princípio fundamental para a estabilidade capitalista) foi abandonada, quanto no de que são criadas condições mais propícias ao desenvolvimento de opiniões mais críticas e desafiadoras entre a força de trabalho. A curto prazo é possível que a produção possa crescer por causa de menos conflitos e a oposição possa decrescer por causa da relativa atomização da força de trabalho. Se caracterizarmos toda esta tendência, entretanto, como uma internalização ordenada — sob condições — do capataz na cultura informal, a qual, por outro lado, anarquicamente usurpa e desafia o seu papel, então podemos ver que existe um limite estrito para lidar com a oposição ao, digamos, diretor administrativo, dessa forma. Concessões e transferência da autoridade do formal para o informal representam uma estratégia perigosa e todas as formas de participação constituem uma faca de dois gumes. A aposta, para o capitalismo, está entre poder chegar a uma nova divisão estabilizada entre controle e obediência ou ter sido posto em movimento numa permanente e suave ladeira de concessões menores. Podemos esperar um desenvolvimento ideológico da divisão c da legitimação, por avim dizer, um pouco mais acima na corrente, para reprimir uma ambição demasiada em termos de reivindicações por controle do local de trabalho.
Uma outra forma de conceptualizar estas mudanças nas técnicas de gerência é descrever o foco do esforço gerencial consciente como se transferindo das forças de produção para as relações de produção. Onde anteriormente essas relações tinham sido simplesmente de fornecer as condições para a operação das forças de produção, elas estio agora sendo concebidas como forças de direito próprio.
O taylorismo e o fordismo têm o objetivo de aumentar a utilização eficiente e racional das forças de produção. Isto envolve um objetivo de socialização da produção que tende, por sua vez, a causar o que podemos pensar como sendo uma socialização da consciência em que a interdependência é maciçamente reconhecida e usada pelos trabalhadores para controlar a produção. Taylor estava em parte trabalhando em sua própria época, contra o "fazer corpo mole" e o "fazer cera", mas a própria racionalização e expansão da produção produzidas dessa forma por suas técnicas criam as condições para um maior controle informal do processo de trabalho. A manipulação e o controle das forças de produção, portanto, trazem conseqüências reais visíveis para as relações sociais de produção que retroagem, elas próprias, sobre aquelas forças.
Podemos entender a primeira onda de relações humanas, originadas do trabalho de Elton Mayo, como uma tentativa para anular e paralisar as tendências contraproducentes das relações sociais de produção assim afetadas. Essas técnicas de RH de primeira geração em nenhum sentido reorganizam conscientemente as forças de produção para levar em conta as relações sociais. Elas operam dentro do próprio grupo — no nível superestrutural, por assim dizer — para administrar, manipular e acomodar os processo de grupo, particularmente através da influência do líder de grupo.
A emergência da segunda onda das técnicas de relações humanas assinala os limites dessas soluções "idealistas". Há uma concepção mais materialista do grupo informal e das culturas em jogo no local de trabalho. Em vez de meramente tentar limitar as infelizes conseqüências da atividade informal de grupo dentro de um processo de trabalho fixo, o próprio processo de trabalho é reconhecido como um determinante do grupo informal e a manipulação é pensada como um meio de controlar as formas culturais. O êxito ou o fracasso desse até agora limitado micro-experimento de um socialismo de proveta sob controle pode ser menos importante que o reconhecimento por parte do capitalismo, em certos pontos de pressão, de que são as relações sociais de produção que materialmente limitam a produção e não o desenvolvimento inadequado das forças de produção. Vemos aqui a variedade infinita de recursos e a flexibilidade do capitalismo na medida em que solta seu ácido para agir sobre as condições de sua própria supremacia. Pode mesmo ser correto pensar ainda outra vez que os enredamentos do radicalismo operário serão ainda mais confundidos pelas concessões espontâneas feitas pelo capitalismo e que um novo nível de equilíbrio é possível no interior de um sistema capitalista ainda mais transformado.

3. Elementos do processo produtivo têm que carregar o peso dessas construções ideológicas colocadas sobre seus próprios processos, assim como reproduzi-las e retorná-las.

4. Um argumento notavelmente desenvolvido por Ken Roberts ao criticar o serviço de aconselhamento ocupacional e a centralidade da orientação vocacional escolar nesse processo, "Where is the careers service heading", Careers Bulletin, DE, 1976.

5. Nessa tentativa para criticar uma leitura redutora ou epifenomenal não desejo dar a entender que as estruturas são, ou completamente transformadas em idéias e símbolos - isto significaria postular uma clareza historicista das formas culturais que eu rejeitei —, ou não têm modos alternativos de eficácia sobre o cultural e outros níveis, através da ideologia, do estado e das instituições. Há outras formas de reprodução social além do cultural, quo b a razão pela qual separei os termos.

6. Veja, por exemplo, L.Althusser, "Ideology and Ideological State Apparatuses", in B.R.Cosin(ed.). Education, Structure and Society, Penguin, 1972.

7. Também a sociologia convencional, com sua noção de socialização e seu pressuposto de uma transmissão passiva, deixa de ver a tensão e a incerteza desse processo. Não é que a classe trabalhadora seja o tempo todo diferente da classe média (seja por qual razão) e transmita suas desvantagens indefinidamente e sem rupturas às gerações sucessivas (veja as teorias sobre o ciclo de pobreza e teorias semelhantes) através de inelutáveis leis de socialização.
Os padrões e atividades culturais são desenvolvidos em precisa conjunção com exigências reais e são produzidos e reproduzidos em cada geração por suas próprias boas razões. Padrões de desenvolvimento da força de trabalho para um tipo específico de aplicação à indústria devem em cada geração ser obtidos, desenvolvidos e elaborados através de luta e contestação. O fato de que certas características óbvias dessa reprodução contínua e arranjo permanentemente empreendido de forma renovada mostrem um certo grau de continuidade visível ao longo do tempo não nos deveria levar a deduzir leis e dinâmicas férreas de socialização a partir dessa mera sucessão de coisas semelhantes. Os mecanismos interiores dessas continuidades são mais complexos, incertos, relacionados com o exterior, e suscetíveis de mudança do que o dá a entender a noção de socialização.

8.Pártico = relativo. aos partos ou partas, antigo povo da Ásia. Figuradamente, o adjetivo pórtico designa um golpe ou ataque inesperado, causado por alguém que finge fugir, à semelhança dos arqueiros párticos que desfechavam flechas nos inimigos enquanto fingiam estar em retirada (N. dos T.).

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