APRENDENDO A SER TRABALHADOR: Escola,
resistência e reprodução social”
Autor: Paul Willis
Editora Artes Médicas, Porto Alegre,
1991
(Tradução de tomaz Tadeu da Silva e
Daise Batista)
Prefácio, Agradecimentos, Chave para as
transcrições,
Introdução, Parte I – Cap. 2
(Etnografia): pág. 7 a 56
Prefácio
Este
livro surgiu de um projeto financiado pelo Social Science Research Council,
de 1972 a 1975, sobre a transição da escola para o trabalho de jovens do sexo
masculino e de classe operária que cursavam um currículo secundário
não-acadêmico. Os métodos usados foram: estudo de caso, entrevista, discussões
de grupo e observação participante, enquanto esses jovens viviam seus dois
últimos anos de escola e seus primeiros meses de trabalho. A Parte I apresenta
os dados empíricos e as principais descobertas deste estudo. Ela se constitui
basicamente de uma etnografia da escola e particularmente das formas culturais
oposicionistas e de classe operária em seu interior, e de uma contribuição prática
à literatura sobre a transição da escola para o trabalho. A Parte II é mais
teórica. Ela analisa o significado intrínseco, a racionalidade e a dinâmica dos
processos culturais antes registrados e as formas pelas quais eles contribuem,
por um lado, para a cultura operária em geral, e por outro, de forma mais
inesperada, para a manutenção e a reprodução da ordem social.
Um
objetivo geral do livro é tornar seus argumentos mais acessíveis para
cientistas sociais, pessoas envolvidas no trabalho prático e leitores em geral.
As referências e os argumentos mais especializados foram, por isso, deslocados
para as notas. Aquelas pessoas envolvidas no trabalho prático podem estar mais
interessadas na Parte I e na Conclusão; os teóricos sociais na Parte II.
Na
época em que o livro estava sendo encaminhado para publicação o SSRC havia
aprovado um financiamento para a continuação da pesquisa aqui descrita,
focalizando desta vez "o jovem trabalhador e a cultura do chão de
fábrica". A intenção é que essa pesquisa constitua uma continuação do
presente volume.
Agradecimentos
Obrigado à ajuda, aos conselhos, ao estímulo e ao exemplo de Stuart Hall
Richard Hoggart. Obrigado também às pessoas que leram os rascunhos deste livro e
fizeram comentários substanciais: Tony Jefferson, Dan Finn, Michael Green,
Allan O'Shea e membros do Grupo de Educação do CCCS. Obrigado também
datilógrafas: Deirdre Barker, Aleene Hall e Pearl New.
De forma mais geral, devo agradecer ao Centre for Contemporary Cultural
Studies e a todos os seus membros, às escolas e a todos os seus membros e
particularmente aos "rapazes" da escola masculina de Hammertown. Eles
tornaram a pesquisa possível.
Pág. 8
Os indivíduos não podem exercer
domínio sobre suas interconexões sociais antes que as tenham criado. Mas
constitui uma idéia inaceitável conceber esse vínculo objetivo como um atributo
espontâneo, natural, dos indivíduos e inseparável de sua natureza (em antítese
com seu conhecimento e vontade conscientes). Esse vínculo é produto deles. É um
produto histórico. Pertence a uma fase específica de seu desenvolvimento. O
caráter estranho e independente através do qual ele atualmente existe vis à vis
aos indivíduos apenas prova que esses últimos ainda estão envolvidos na criação
das condições de sua vida social e que eles ainda não começaram, tendo como
base essas condições, a vivê-lo... Indivíduos universalmente desenvolvidos...
não são, de modo algum, um produto da natureza, mas da história.
Karl Marx, Grundrisse, 1857
[Penguin, pp. 161-2]
INTRODUÇÃO
A
coisa difícil de ser explicada a respeito da forma como jovens de classe média
obtêm empregos de classe média é por que os outros deixam que isso aconteça. A
coisa difícil de ser explicada a respeito da forma como jovens de classe operária
acabam em empregos de classe operária é por que eles próprios deixam que isso
aconteça com eles.
É
demasiado fácil dizer simplesmente que eles não têm escolha. A forma pela qual
se faz com que o trabalho manual seja aplicado à produção vai, em diferentes
sociedades, desde a coerção exercida através de metralhadoras, balas e tanques,
até o convencimento ideológico em massa de um exército industrial voluntário.
Nossa própria sociedade democrático-liberal fica situada nalgum ponto
intermediário. Não há nenhuma coerção física evidente, existindo até mesmo um
certo grau de auto-condução. Isso ocorre apesar das baixas recompensas
atribuídas ao trabalho manual, de sua definição social como indesejável e de
sua crescente intrínseca falta de sentido: numa palavra, de sua localização no
nível mais baixo da sociedade de classes.' O objetivo principal deste livro é
lançar alguma luz sobre esse surpreendente processo.
Pensa-se,
com bastante freqüência, nos talentos educacionais e ocupacionais como estando
situados numa curva contínua de capacidades decrescentes, que se vai achatando.
Nesse modelo, as pessoas da classe operária estariam situadas nos seus pontos
mais baixos, assumindo, sem questionar, as piores ocupações e pensando, de
alguma forma: "Admito que eu seja tão estúpido que é justo e correto que
tenha de passar o resto de minha vida apertando parafusos numa fábrica de
carros". Naturalmente, este modelo em forma de gradiente tem que pressupor
que na base a capacidade seja igual a zero ou quase. Isso significaria que as
pessoas reais situadas na extremidade inferior dificilmente teriam um motivo
para estarem vivas, muito menos para serem humanas. Uma vez que esses
indivíduos, neste momento, longe de serem cadáveres ambulantes, estão, pelo
contrário, colocando o sistema inteiro em crise, esse modelo está claramente
precisando de uma revisão. A economia de mercado de empregos numa sociedade
capitalista decisivamente não se estende para uma economia de mercado de
satisfações.
Sugiro
que os jovens "fracassados" da classe operária não entram simplesmente
na curva descendente de empregos no ponto em que os jovens menos bem-sucedidos
da classe média, ou os mais bem-sucedidos da classe operária, a deixam. Ao
invés de pressupor uma curva achatada e contínua de capacidades na estrutura
ocupacional ou na estrutura de classes, devemos pensar em rupturas radicais
representadas pela interface de formas culturais. Estaremos olhando, neste
livro, para a forma pela qual o padrão cultural de "fracasso" da classe
operária é bastante diferente e descontínuo com relação aos outros padrões.
Embora, num contexto determinado, ele tenha seus próprios processos, suas
próprias definições, sua própria descrição daqueles outros grupos
convencionalmente tidos como mais bem-sucedidos. E essa cultura de classe não é
um padrão neutro, uma categoria mental, um conjunto de variáveis imposto sobre
a escola, a partir de fora. Ela compreende experiências, relações e conjuntos
de tipos sistemáticos de relações que determinam não apenas "escolhas"
específicas e "decisões" em períodos específicos, mas também
estruturam, real e experiencialmente, a forma como essas "escolhas"
surgem e são definidas, antes de mais nada.
É
objetivo relacionado e subsidiário deste livro examinar aspectos centrais e
importantes da cultura operária através do estudo concreto de uma de suas
manifestações mais reveladoras. Meu interesse original de pesquisa estava
centrado, na verdade, na cultura operária em geral; fui levado a olhar para
jovens ressentidos, do sexo masculino, que seguiam o currículo não-acadêmico do
curso secundário, e sua adaptação ao trabalho, como um momento privilegiado e
crucial da regeneração contínua das formas culturais operárias em relação à
estrutura mais essencial da sociedade — suas relações de trabalho.
Ambos
os conjuntos de preocupações estão relacionados, na verdade, ao importante
conceito de força de trabalho e à forma como ela é preparada em nossa sociedade
para ser aplicada ao trabalho manual. Força de trabalho é a capacidade humana
para trabalhar sobre a natureza com o uso de instrumentos para produzir coisas
para a satisfação de necessidades e para a reprodução da vida. O trabalho não é
uma atividade humana universal, imutável e trans-histórica. Ele assume formas e
significados específicos em diferentes tipos de sociedade. Os processos através
dos quais a força de trabalho vem a ser subjetivamente entendida e
objetivamente aplicada, e suas inter-relações, são de profundo significado para
o tipo de sociedade que é produzida e para a natureza e formação particular de
suas classes. Esses processos ajudam a construir as identidades de indivíduos
particulares, assim como formas distintivas de classe tanto nos níveis
cultural e simbólico quanto nos níveis econômico e estrutural.
A
identidade de classe não é verdadeiramente reproduzida até que tenha passado de
forma apropriada pelo indivíduo e pelo grupo, até que tenha sido recriada no
contexto daquilo que parece ser uma escolha pessoal e coletiva. As pessoas
realmente vivem (e não simplesmente tomam emprestado) seu destino de classe
quando aquilo que é dado é re-formado, reforçado e aplicado a novos propósitos.
A força de trabalho é um pivô importante disso tudo porque é o principal modo
de conexão ativa com o mundo: a forma par excellence de articulação do
eu mais íntimo com a realidade externa. Ela representa, na verdade, a dialética
entre o eu e o eu, através do mundo concreto. Uma vez que esse vínculo básico
com o futuro tenha sido feito, tudo o mais pode passar por senso comum.
Sustento
que o milieu específico no qual uma certa idéia subjetiva da força de
trabalho manual e uma decisão objetiva para aplicá-la ao trabalho manual são
produzidas é a cultura contra-escolar operária. E aqui onde os temas operários
são mediados até os indivíduos e grupos em seu próprio contexto determinado e
onde os jovens da classe operária criativamente desenvolvem, transformam e
acabam por reproduzir aspectos da cultura mais ampla em sua própria práxis, de
uma forma tal que acaba, ao final, direcionando-os para certos tipos de
trabalho.
A
Parte I do livro apresenta uma etnografia da cultura contra-escolar operária,
constituída por jovens do sexo masculino e de cor branca. Por questões de
clareza e de ênfase, o que de forma alguma implica em sua falta de importância,
outras variantes étnicas e de gênero não serão examinadas.
Podemos
apenas observar aqui que a existência desta cultura tem sido apresentada
convencionalmente, e especialmente pelos meios de comunicação em sua forma
sensacionalista, como violência e indisciplina na sala de aula.' A Lei de
Elevação da Idade de Escolarização Compulsória (Raising of the School
Leaving Age = RSLA), promulgada na Inglaterra em setembro de 1972, que
elevava a idade de educação compulsória de 14 para 16 anos, parece ter posto em
evidência e exposto ainda mais os aspectos mais agressivos dessa cultura.' Os
dois principais sindicatos de professores encomendaram relatórios especiais4 e
assinaram protocolos que garantiam o apoio do sindicato na expulsão da sala de
aula dos "causadores de problemas". Mais da metade das autoridades
municipais da Inglaterra e do País de Gales instituíram classes especiais nas
escolas, e até mesmo "santuários" bastante segregados, para esses
jovens, como no caso da Zona Central de Londres. O Ministro da Educação
encomendou uma pesquisa nacional em toda essa áreas As desordens nas escolas e
as faltas às aulas constituem prioridades na pauta do "grande debate"
sobre a educação convocado por Mr. Callaghan, o atual Primeiro Ministro.'
No
sentido, portanto, daquilo que eu argumento, que é sua própria cultura que mais
eficazmente prepara alguns rapazes da classe operária para a oferta manual de
sua força de trabalho, podemos dizer que existe um certo elemento de auto-condenação
na adoção de papéis subordinados no capitalismo ocidental. Entretanto, esta
condenação é experienciada, paradoxalmente, como um verdadeiro aprendizado,
como uma afirmação, como uma apropriação e como uma forma de resistência. Além
disso, argumentarei na Parte II, onde analiso a etnografia apresentada na Parte
I, que existe uma base objetiva para esses sentimentos e processos culturais subjetivos.
Eles envolvem uma penetração parcial das condições de existência realmente
determinantes da classe operária, a qual é definitivamente superior àquelas
versões oficiais da realidade que são oferecidas através da escola e das várias
agências estatais. É somente com base numa tal articulação cultural real com
suas condições que os grupos de rapazes da classe operária vêm a tomar parte em
sua própria danação. A tragédia e a contradição estão no fato de que essas
formas de "penetração" são limitadas, distorcidas e voltam-se contra
si próprias, freqüentemente de forma involuntária, através de complexos
processos que se estendem desde os processos ideológicos gerais e os que se
produzem na escola e nas agências de aconselhamento vocacional até a influência
generalizada de uma forma de dominação masculina patriarcal e sexista existente
dentro da própria cultura da classe operária.
Por fim,
argumentarei, na Parte II, que os processos de auto-inscrição no processo de
trabalho constituem um aspecto da regeneração da cultura da classe operária em
geral, e um importante exemplo de como essa cultura está relacionada, sob
importantes aspectos, com as instituições estatais de regulação. Eles têm uma
Importante função na reprodução global da totalidade social e especialmente em
relação à reprodução das condições sociais necessárias para um certo tipo de
produção.
Esta é
a coluna vertebral deste livro. Em busca desses objetivos o livro faz
contribuição em várias outras áreas, explora o paradigma educacional que está
centro da relação de ensino de nossas escolas, faz uma crítica do
aconselhamento tonal e sugere algumas explicações para o persistente fracasso
da educação em aumentar radicalmente as oportunidades de vida das crianças e
jovens da classe operária.
Há também,
na Parte II, uma contribuição à discussão do processo de de estereótipos
sexuais em relação com o patriarcado e o capitalismo, e notas de elaboração
teórica sobre a natureza e a forma da relação entre Ideologia.
Ao
métodos qualitativos e a Observação Participante usada na pesquisa, assim como
o formato etnográfico da apresentação, foram ditados pela natureza de meu interesse
no "cultural". Essas técnicas são apropriadas para registrar esse
nível e s a significados e valores, assim como são capazes de representar e es
articulações, práticas e formas simbólicas da produção cultural. Em a descrição
etnográfica, sem que nem sempre se saiba como, permite que um certo grau da
atividade, da criatividade e da ação humana presentes no estudo chegue à
análise e à experiência do leitor. Isto é vital para os meus propósitos na
medida em que vejo o cultural, não simplesmente como um conjunto de estruturas
internas transferidas (como nas noções usuais de socialização), nem como o
resultado passivo da ação, de cima para baixo, da ideologia dominante (como em
certos tipos de marxismo), mas, ao menos em parte, como o produto da praxis
humana coletiva.
O
estudo de caso de Hammertown
Um
estudo de caso principal e cinco estudos comparativos foram realizados na
pesquisa relatada neste livro. O estudo principal refere-se a um grupo de doze
rapazes de classe operária que cursavam o currículo secundário não-acadêmico
numa escola que chamaremos de Hammertown Boys, numa cidade que
chamaremos de Hammertown. Eles foram selecionados com base nos laços de amizade
e por pertencerem a algum tipo de cultura de oposição numa escola de classe
operária. A escola fora construída nos anos de entre-guerras e está situada no
centro de um loteamento municipal formado no mesmo período e densamente
povoado, composto de casas comuns e em estado razoável, freqüentemente
possuindo um pátio, interligadas por um labirinto de ruas, becos e ruelas, e
servidas por numerosos e grandes bares e por conjuntos de lojas e pequenos supemercados.
Durante
o período da pesquisa esta escola caracterizava-se por ser uma escola
secundária moderna não-seletiva, exclusivamente masculina, mas com uma escola
geminada, exclusivamente feminina, do mesmo padrão. Depois do término da
pesquisa, ela se tornou uma escola unificada (comprehensive) e destinada
a um único sexo, como parte de uma reorganização geral da educação secundária
no município. Em vista dessa esperada mudança e sob a pressão dos eventos e em
preparação para a Lei de Elevação da Idade de Escolarização Compulsória (RSLA),
a escola estava se expandindo em termos de construções e introduzindo ou
experimentando algumas novas técnicas durante o período da pesquisa. A prática
da divisão em turmas homogêneas em capacidade (streaming) fora
substituída pela divisão em grupos heterogêneos em capacidade, introduziu-se um
centro de criatividade, fizeram-se experiências com ensino em equipe e com programas
de desenvolvimento de currículos, e uma gama inteira de novas disciplinas
"opcionais" foi desenvolvida para "o ano da RSLA". Fiz
contato com o grupo no início do segundo período letivo de seu penúltimo ano e
acompanhei-os por esse tempo todo, incluindo seis meses já no trabalho (seu
último ano coincidiria com o primeiro ano de vigência da RSLA). A escola tinha
cerca de 600 alunos e continha um número significativo de estudantes
pertencentes às minorias procedentes da Ásia e do Caribe. Basicamente, esta
escola foi selecionada porque estava no centro de uma área originária do
período de entre-guerras, caracteristicamente de classe operária, ela própria
localizada no centro de Hammertown. Os alunos procediam exclusivamente da
classe operária, mas ela tinha a reputação de ser uma "boa" escola.
Isto parecia significar, essencialmente, que ela tinha "padrões
razoáveis" de comportamento e formas de vestir reconhecidos, e estava aos
cuidados de uma equipe experiente, competente e interessada. Eu queria estar o
mais seguro possível de que o grupo selecionado era típico da classe operária
numa área industrial, e de que a educação oferecida era tão boa, se não
levemente melhor, que qualquer outra disponível em contextos ingleses
similares. Uma vantagem adicional da escola selecionada era que ela tinha uma
nova e bem equipada ala juvenil que era bem freqüentada pelos alunos e lhes
proporcionava a oportunidade de uni primeiro contato bastante aberto e informal
com a escola.
Realizei
alguns estudos de caso comparativos no mesmo período. Eles consistiram de: um
grupo de jovens conformistas da mesma classe dos doze rapazes de Hammertown; um
grupo de jovens conformistas de classe operária de uma escola secundária
vizinha, unificada e mista (em termos de classe), informalmente conhecida como
uma escola um tanto mais "pesada"; um grupo de jovens
não-conformistas de classe operária na escola tradicional (grammar) e
unicamente masculina de Hammertown; um grupo similar numa escola unificada
próxima ao centro da malha urbana maior da qual Hammertown faz parte; e um
grupo masculino, não-conformista, misto (em termos de classe), numa escola do
tipo tradicional (grammar) de alto status, na área residencial mais exclusiva
da mesma malha urbana mais ampla. Tanto quanto possível, todos os grupos eram
do mesmo ano escolar, constituíam grupos de amizade, e foram selecionados com
base na probabilidade de deixarem a escola na idade mínima legal de dezesseis
anos. No caso da escola tradicional (grammar) de alto status, esta última
condição determinou totalmente a escolha do grupo e sua característica de ser
de classe social mista --eles eram os únicos rapazes que pretendiam deixar a
escola aos dezesseis anos no quarto ano escolar (quando eu inicialmente entrei
em contato com eles) e, de fato, subseqüentemente, apenas dois deles realmente
deixaram a escola nesse ponto. Esses grupos foram selecionados para dar uma
dimensão comparativa ao estudo ao longo dos parâmetros de classe, capacidade,
regime escolar e atitude frente à escola.
O
grupo principal foi estudado intensivamente por meio de: observação e de
observação participante na classe, ao redor da escola e durante as atividades
de lazer; discussões regulares de grupo, registradas; entrevistas informais; e
diários. Assisti às aulas de todas as matérias e outras atividades (não como
professor, mas como aluno) assistidas pelo grupo em vários períodos e a seqüência
completa de sessões de orientação vocacional dirigidas por um professor
experiente e dedicado recém-regressado de um treinamento em orientação
educacional e vocacional. Também gravei longas conversas com todos os pais do
grupo principal, e com todos os professores mais antigos da escola, com os
principais professores mais novos que tinham contato com os membros do grupo e
com os orientadores vocacionais que vinham à escola.
Acompanhei
os doze rapazes do grupo principal, assim como os três rapazes escolhidos dos
grupos comparativos, no seu ingresso no trabalho. Quinze períodos curtos de
observação participante foram dedicados a realmente trabalhar lado a lado com
cada um dos garotos em seu emprego, terminando com entrevistas gravadas
individualmente e entrevistas selecionadas com supervisores, gerentes e
delegados sindicais.
Hammertown
aparece registrada pela primeira vez no Doomsday Books como uma pequena aldeia.
Está situada no centro da Inglaterra, como parte de um aglomerado urbano muito maior.
Como muitas outras cidades pequenas da redondeza, o tamanho de sua população e
sua importância cresceram aceleradamente durante a Revolução Industrial. A
chegada dos canais e a construção de uma fundição por Boulton e Watt para
fabricar moldes metálicos para outras indústrias em meados do século dezoito
transformaram suas características. Foi uma das primeiras cidades industriais e
sua população deu lugar a um dos primeiros proletariados industriais. Por volta
de 1800, ela possuía muitas fábricas de objetos de ferro fundido e fundições,
assim como fábricas de sabão, chumbo e vidro. Mais recentemente, tomou-se um
importante centro de produção de mancais, amortecedores, componentes para
bicicletas, vidro, parafusos e tornearia. Constitui-se, de fato, numa das
cidades de tornearia da Midlands, a qual foi, no seu devido tempo, o berço da
Revolução Industrial.
Ela
faz agora parte de um grande aglomerado, industrial da Midlands. As pessoas
ainda a imaginam pesada e suja, muito embora sua folha corrida de serviços
públicos e de política habitacional seja melhor que a da maioria das cidades da
região. Casas dilapidadas e conjuntos habitacionais decadentes da época
vitoriana foram agora removidos e substituídos por apartamentos e casas
modernas construídos pela municipalidade. Mas quando rapazes de Hammertown
namoram garotas de fora, eles ainda gostam de dizer que são da grande cidade vizinha
que, de forma conveniente, lhes fornece o código postal.
A
população da cidade alcançou seu ponto máximo no início dos anos 50 e vem
caindo desde então, apesar da chegada de quantidades substanciais de imigrantes
negros. A população é agora de 60.000 e, curiosamente, tem uma das mais altas
"taxas de atividades (9) — especialmente para as mulheres — de todo o
país. A estrutura de idade e sexo de Hammertown é similar à do resto da
Inglaterra e do País de Gales, mas sua estrutura de classes é notavelmente
diferente. Trata-se essencialmente de uma cidade de classe operária. Apenas 8 %
de seus habitantes têm uma ocupação de nível profissional ou gerencial (a
metade da taxa nacional) e a grande maioria da população está envolvida em
alguma forma de trabalho manual. Há um fluxo diário impressionante de cerca de
3.000 pessoas de classe média procedentes do sul e oeste, que trabalham, mas
não moram, em Hammertown. A pequena proporção de pessoas da classe média
reflete-se no fato de que menos de 2 por cento dos adultos estão envolvidos na
educação em tempo integral (outra vez, a metade da taxa nacional).
A
estrutura de emprego demonstra o caráter distintivamente industrial da
comunidade de classe operária. Há uma força de trabalho total de cerca de
36.000 pessoas, das quais 79 % trabalham em algum tipo de fábrica, em contraste
com uma taxa nacional de 35 % e com uma taxa de 55 % para o aglomerado urbano
do qual Hammertown faz parte. O setor metalúrgico é responsável por mais da
metade desse emprego. As outras fontes principais de emprego estão nas
indústrias alimentícias, de bebida e de fumo, na engenharia mecânica, veículos,
cerâmica, vidro e na distribuição. As perspectivas de emprego são geralmente
boas em Hammertown e mesmo durante o período de recessão, sua taxa de
desemprego tem-se mantido cerca de 1% abaixo da média nacional.
Embora
a cidade tenha-se industrializado há mais de 200 anos, e tenha mantido muitas
das mesmas indústrias básicas — especialmente as metalúrgicas e de fundição —
ela não tem a infra-estrutura das empresas familiares ou pequenas de muitas
cidades similares. Na verdade, sua estrutura organizacional industrial é
notavelmente moderna. A maior parte do emprego em Hammertown está em grandes
fábricas, as quais freqüentemente são filiais de empresas nacionais ou
multinacionais. Sessenta por cento da força de trabalho total trabalha em
empresas que empregam mais de 1.000 pessoas. Menos de 5% dos empregados na
indústria trabalham em empresas com menos de 25 empregados. Cinqüenta e oito por
cento da área industrial total concentra-se em 38 fábricas de uma extensão de
mais de 1.000 m2. Mais de 20% da área total da cidade está destinada ao uso
industrial.
Em
suma, Hammertown aproxima-se da cidade industrial típica. Possui todas as
características industriais clássicas, assim como as do capitalismo monopolista
moderno, em combinação com um proletariado que é precisamente o mais antigo do
mundo.
Notas
1. Há
toneladas de estatísticas demonstrando diferenças sistemáticas entre as classes
médias e as classes operárias na Grã-Bretanha. Existe pouca discordância quanto
à confiabilidade dessas estatísticas e o volume mais recente de Social
Trends (nº 6, 1975, HMSO) reúne a maior parte dos dados oficiais. Sessenta
e três por cento dos chefes de família estão envolvidos em algum tipo de
trabalho manual. Quanto mais baixa a classe social, mais baixa a renda, maior a
probabilidade de desemprego, maior a probabilidade de más condições de
trabalho, maior a probabilidade de não comparecer ao trabalho por doença. Veja
também a distribuição de riqueza e renda: A.Atkinson, Unequal Shares,
Penguin, 1974; F.Field, Unequal Britain, Arrow, 1974.
2.
Veja, por exemplo, "Experiência de controle", The Guardian, 18
de março de 1975; "Eles transformam nossas escolas numa selva de
violência", Sunday Express, 9 de junho de 1974 (por Angus Maude
MP); e "Disciplina ou terror" e "Em nossas escolas...
insolência, guerra de gangues e assaltos", Sunday People, 16 de junho de
1974; e o filme de Angela Pope no Panorama da BBC, "Os melhores
anos?", levado ao ar em 23 de março de 1977.
3. Até
mesmo o relatório governamental oficial sobre o primeiro ano do RSLA, sobretudo
notável por seu otimismo em contraste com outras análises, aceitava que havia
um "núcleo de dissidentes" e registrava uma "forte impressão de
que o mau comportamento havia aumentado". DES Reports on Education, The First Year After
RSLA, abril de 1975.
4. Veja National Association of School Masters,
"Discipline in Schools", 1975; NAS, "The Retreat from
Authority", 1976; National Union of Teachers, Executive Report,
"Discipline in Schools", in 1976 Conference Report.
5.
Relatado no The Guardian, 27 de junho de 1976. Veja também J.Mack,
"Disruptive Pupils", New Society, 5 de agosto de 1976.
6. Num
importante discurso no Ruskin College, Oxford, em outubro de 1976, Mr.
Callaghan, o primeiro ministro, apelou em favor de "um grande debate"
sobre a educação
Para
examinar algumas das novas técnicas de ensino, o “desconforto” dos pais, a
possibilidade de um "currículo
nuclear" e "as prioridades (educacionais) (...) para assegurar
uma alta eficiência (...) pela utilização inteligente de 6 trilhões de libras dos recursos atuais".
uma alta eficiência (...) pela utilização inteligente de 6 trilhões de libras dos recursos atuais".
7. A. H. Halsey declarou recentemente, mesmo depois da ajuda recebida de um seminário da
OECD sobre “Educação, desigualdade c oportunidades de vida", que "ainda estamos longe
uma completa compreensão ... do por quê o rendimento educacional está tão firmemente
relacionado com a origem social" ("Would chance still be a fine thing", The Guardian,
do fevereiro dc 1975).
8. Livro
compilado por ordem de William, O Conquistador, contendo um censo de todas as
da Inglaterra, com várias estatísticas, inclusive sobre sua população (N. dos
T.).
9. A taxa
de atividade é a proporção da população de 15 anos ou mais que é economicamente
ativa. Esta e a maior parte da informação que se segue são extraídas do plano
oral da municipalidade. As estatísticas referem-se normalmente ao ano de 1970.
Parte I - Etnografia
Capítulo 2 : Os elementos de uma cultura
Oposição à autoridade e rejeição do
conformista
A
dimensão mais básica, óbvia e explícita da cultura contra-escolar é uma
oposição cerrada, nos planos pessoal e geral, à autoridade. Esse sentimento é
facilmente verbalizado pelos "rapazes" (lads — o título que os
membros da cultura contraescolheram para si próprios).
Em umadiscussão
de grupo, sobre os professores:
Joey: (...)
eles podem nos castigar. Eles são maiores que nós, representam uma coisa
importante, nós não, nós somos pouca coisa e eles grande coisa, e a gente tenta
é se cuidar. É, não sei, desconfiança da autoridade, acho.
Eddie: Os
professores pensam que são importantes e poderosos porque são professores, mas
eles não são ninguém realmente, são apenas gente igual a todas as outras pessoas,
não é mesmo?
Bill: Os
professores pensam que são tudo. Eles são melhores que nós, mas eles pensam que
são muito melhores, mas não são.
Spanksy: Gostaria
de tratá-los por tu... mas eles pensam que são Deus.
Pete: Aí
seria muito melhor.
PW: Entendo
que vocês dizem que eles são melhores. Vocês aceitam realmente que eles sabem
mais sobre as coisas?
__
Joey: Sim,
mas eles não tem que se pôr acima da gente, só porque são um pouco mais
inteligentes.
Bill: Eles
deveriam nos tratar como eles gostam que tratemos eles.
(...)
Joey: (...)
temos que nos submeter a tudo que eles querem. Eles querem que alguma coisa
seja feita e nós temos de fazer de alguma forma, porque, bem, nós estamos como
que por baixo deles. Tínhamos uma professora aqui, uma mulher, e porque nós
usamos anéis o um ou dois de nós, pulseiras, como este cara aqui, e de repente,
sem mais nem menos, sem nenhum motivo, ela disse: "tirem tudo isto
fora".
PW: Verdade?
Joey: É! Eu
falei: "Um não quer sair". E ela disse: "Tire-o". Eu disse:
"Então a senhora vai ter que cortar o meu dedo primeiro".
PW: Por
que ela queria que vocês tirassem os anéis?
Joey: Só
pra aparecer, acho. Os professores fazem isto, de repente lhes dá na veneta
fazer com que a gente arrume o nó da gravata, coisas assim. A gente tem que se
sujeitar a todos os seus caprichos. Se eles querem que alguma coisa seja feita
e a gente acha que não está certo, e a gente protesta, eles mandam a gente pro
Simmondsy [o diretor], ou a gente apanha de palmatória, ou leva trabalho extra
pra casa.
PW: Vocês
pensam na maior parte dos professores como sendo inimigos (...)?
__ Sim.
__ Sim.
__ A maioria deles.
Joey: A
vida fica mais saborosa quando a gente tenta devolver o que eles fazem pra
gente.
Essa
oposição envolve uma aparente inversão dos valores usuais mantidos pela
autoridade. Diligência, deferência, respeito tomam-se coisas que podem ser
lidas de forma bem diferente.
Numa
discussão de grupo:
PW: Evans
[o orientador ocupacional] disse que vocês tinham sido grosseiros, que não
tiveram a delicadeza de ouvir o palestrante [durante uma sessão de orientação
vocacional]. Ele disse que vocês não entendiam que só estavam tornando o mundo
muito duro pro futuro, quando vocês crescessem e, Deus nos livre, quando
tivessem filhos, porque eles vão ser ainda piores. O que vocês acham disso?
Joey: Não
serão piores. Serão francos. Não serão uns idiotas submissos. Serão o tipo de
pessoas francas, honradas.
Spanksy: Se os
meus filhos forem assim como nós estarei satisfeito.
Essa
oposição expressa-se principalmente como um estilo. Manifesta-se de incontáveis
pequenas maneiras, que são peculiares da instituição escolar e que são
instantaneamente reconhecidas pelos professores, constituindo uma parte quase
ritual trama diária da vida dos garotos. Os professores são ótimos teóricos da conspiração.
Eles não têm outra alternativa. Isso explica em parte seu fervor por ir a
"verdade" de supostos culpados. Eles vivem rodeados pela conspiração
em formas mais óbvias — mesmo que isso muitas vezes não chegue a ter são
verbal. Isso pode facilmente se transformar numa condenação paranóica de
grandes proporções. (1)
À medida
que os "rapazes" entram na sala de aula, observam-se acenos conspirativos
entre eles que dizem: "Vem e senta aqui conosco para uma farrinha", oblíquos para verificar onde
está o professor e sorrisos maliciosos. Paralisado por um momento por uma ordem
direta ou um olhar de reprovação, o Invento nervoso é facilmente retomado, com
os garotos andando para lá e para m o olhar de quem diz "Professor, eu só
estava passando", com o objetivo de chegar mais perto de seus colegas.
Surpreendidos novamente, há sempre uma desculpa pronta: "Ia tirar meu
casaco, professor", "E que fulano me chamou, professor". Depois
que a aula começa, o garoto que ainda está afastado de seus colegas,
esgueira-se por detrás das cadeiras ou por detrás de uma cortina, ao longo da
parede, batendo em outros garotos, ou tentando, na passagem, derrubar uma cadeira
(com alguém em cima).
Os
"rapazes" especializam-se numa animosidade reprimida que se situa precisamente
na fronteira do confronto aberto. Ajeitados na sala, o mais próximo quanto
possam, a fim de formarem um grupo, há um contínuo arrastar de cadeiras, um resmungo
desaprovativo à mais simples solicitação e uma contínua agitação na qual se
exploram todas as permutações dos modos possíveis de se sentar ou se estender
numa cadeira. Durante o estudo individual, alguns abertamente mostram indiferença,
fingindo que procuram dormir, com a cabeça apoiada de lado na carteira; outros
se põem de costas a olhar pela janela ou simplesmente fitam com vazio o teto e
as paredes. Há um ar indefinido de insubordinação, com justificativas espúrias
e impossíveis de serem flagradas. Se alguém está sentado em cima do aquecedor a
desculpa é de que suas calças estão molhadas da chuva, se está passeando pela
sala é porque está indo buscar papel para o trabalho escrito, ou se alguém está
saindo da sala é porque vai esvaziar o lixo, "como sempre faz".
Revistas em quadrinhos, revistas masculinas e jornais, ocultos sob carteiras
com tampos semi-erguidos se transformam em enganosos livros didáticos. Um contínuo
zum-zum de conversas sobrepõe-se a ordens para fazerem silêncio, tal como a
inevitável maré à areia quase seca, e por toda parte há um revirar de olhos e um
espetáculo de caretas a esconder segredos conspiratórios.
Durante
a aula um imaginário diálogo serve de contraponto para a instrução formal:
"Não, eu não compreendo, seu idiota"; "Qual é a tua, seu
merda?"; "Vai te foder, que eu não vou fazer nada disso";
"Posso ir pra casa, agora, por favor?".
À mais
vaga alusão a alguma frase de duplo sentido de fundo sexual, risadinhas e urros
se levantam do fundo da sala acompanhados talvez por alguém fazendo de conta
que masturba um gigantesco pênis, com as mãos em volta do topo da cabeça e
fazendo gestos lascivos com a boca apertada. Se o segredo da conspiração é
posto em risco, surgem vês de vitória por trás da cabeça do professor, uma
rajada de dedos estalados pelos flancos, enquanto que na frente o que o
professor vê são ares de inocência disfarçada. A atenção focaliza-se na
gravata, nos anéis, nos sapatos, nos dedos, em manchas na carteira — em tudo,
menos nos olhos do professor.
Se por
acaso passa o vice-diretor, observa-se nos corredores um arrastar de pés, ou um
"oi" exageradamente cordial, ou um súbito silêncio. De repente
irrompe uma risada maluca ou irônica, que pode ser dirigida ou não a alguém que
acabou de passar e para quem é difícil decidir se pára ou continua, pois tanto
uma quanto outra coisa são humilhantes. Eles têm um jeito de formar um grupo ao
longo dos lados do corredor a fim de fazer um corredor polonês — embora isto
nunca possa ser provado: "Só estávamos esperando pelo Spanksy,
professor".
Naturalmente,
as situações individuais podem ser diferentes e diferentes estilos de ensino
podem ser mais ou menos capazes de controlar ou suprimir essa oposição
expressiva. Mas os conformistas da escola — ou os cê-dê-efes (ear'oles)
para os rapazes — têm uma orientação visivelmente diferente. Não se trata tanto
do fato de que eles apóiam os professores, mas antes do fato de que eles apóiam
a própria idéia de professor. Tendo investido uma parte de suas próprias
identidades nos objetivos formais da educação e na aprovação da instituição
escolar — em um certo sentido, tendo renunciado a seu próprio direito de terem
um tempo divertido — eles exigem que os professores ao menos respeitem a mesma
autoridade. Ninguém melhor que um crente para recordar ao pastor os seus
deveres.
Numa
discussão de grupo com os conformistas da seção masculina da Escola de
Hammertown
Gary: Bem,
acho que eles não são o bastante rigorosos hoje em dia (...) Quero dizer, assim
como Mr. Gracey e alguns dos outros professores, como Groucho, até os do
primeiro ano fazem brincadeiras com ele (...) eles ["os rapazes"]
deveriam ser castigados, assim eles aprenderiam a não serem tão insolentes
(...) Com alguns dos outros dá pra gente se entender bem. Quer dizer, desde o
início, com Mr. Peters todo mundo ficava quieto e se você não fazia o trabalho
direito tinha que fazer de novo. Quer dizer, alguns dos outros professores,
como os dos primeiros anos, eles passam um trabalho para casa e se você não
faz, eles nunca mais cobram, eles não se importam.
É essencialmente aquilo que parece ser seu entusiasmo e cumplicidade com
a autoridade imediata que faz dos conformistas — ou cê-dê-efes (ear’oles ou
lobes) - o segundo alvo preferido
dos rapazes. O próprio termo ear'ole conota, para os rapazes a
passividade e o ridículo dos conformistas. Parece que eles estão sempre ouvindo,
nunca fazendo: nunca movidos por sua própria vida interna, mas sempre
amorfos, numa posição de recepção rígida. O ouvido é um dos órgãos menos expressivos do corpo humano: ele responde à expressividade dos demais. É um sentido sem cor e fácil de ser descrito como obsceno. E assim que os rapazes gostam de descrever aqueles que se conformam à idéia oficial de escola. Crucialmente, os rapazes não apenas rejeitam, eles sentem-se mesmo superiores aos cê-dê-efes. O meio óbvio utilizado para a exercitar esta superioridade é aquele que, aparentemente, produzem os rapazes - diversão, independência e emoção; em suma, fazer uma "farra".
amorfos, numa posição de recepção rígida. O ouvido é um dos órgãos menos expressivos do corpo humano: ele responde à expressividade dos demais. É um sentido sem cor e fácil de ser descrito como obsceno. E assim que os rapazes gostam de descrever aqueles que se conformam à idéia oficial de escola. Crucialmente, os rapazes não apenas rejeitam, eles sentem-se mesmo superiores aos cê-dê-efes. O meio óbvio utilizado para a exercitar esta superioridade é aquele que, aparentemente, produzem os rapazes - diversão, independência e emoção; em suma, fazer uma "farra".
Numa
discussão de grupo
PW: (...)
por que não fazer como os cê-dê-efes, por que não tentar conseguir o CSE?°
__ Eles
não se divertem, né?
Derek: Porque
eles são uns viados, um deles recebeu os resultados agora, ele teve cinco As e
um B.
__ Quem
é ele?
Derek: Birchall.
Spanksy: Quer
dizer, o que eles vão lembrar da época de estudante? Quais as recordações que
eles terão? A de ficarem sentados numa sala de aula, achatando a bunda, né,
enquanto que nós... quer dizer, olha pras coisas que poderemos recordar: as
brigas com os paquis [os paquistaneses], as brigas com os JAs [os jamaicanos].
Quando você pensa nas coisas que fizemos pros professores... vai ser divertido
quando nos lembrarmos disso tudo.
(...)
Perce: Você
sabe, eles não se divertem muito. Já Spanksy fica por aí inventando coisas o
dia todo, ele se diverte. Bannister fica lá achatando a bunda o dia todo,
enquanto Spanksy fica se divertindo.
Spanksy: No
primeiro e no segundo ano eu era estudioso de verdade. Eu estava no 2A, 3A,
entende, e quando chegava em casa, eu ficava deitado na cama pensando:
"Ah, amanhã tem escola", entende, eu não tinha feito o tema de casa
ainda, entende... e dizia: "Tenho que fazer o tema".
__ E,
está certo, é isto mesmo.
Spanksy: Mas
agora quando chego em casa, numa boa, não tenho nada em que pensar, eu digo: “Oh, legal,
tem escola amanhã, vai ser divertido”, entende?
Will: Mas
você nunca vem!
Spanksy: Quem?
Will: Você
[Risos]
(...)
__ Não
dá pra imagina...
__ Não
dá pra imaginar o [inaudível] indo ao Plough e dizendo: "Uma cervejinha,
por favor".
Fred: Não
dá pra imaginar o Bookley indo pra casa com a namorada e dando uns bons agarros
nela.
__ Eu
posso, eu vi!
__ Ele
tem uma gata, o Bookley!
__ É,
ele tem.
Fred: Mas
não consigo imaginar ele dando umas boas agarradas nela, como a gente faz,
entende?
E
especialmente no terreno sexual que os "rapazes" sentem sua
superioridade sobre os cê-dê-efes. "Sair da casca", "perder a
timidez", fazem parte do processo de se tornar "um dos rapazes",
mas também são formas de "ganhar as gatas" com êxito. De forma
curiosa, há aqui uma reflexão distorcida das relações dos professores com os
cê-dê-efes. Os "rapazes" sentem que ocupam um papel estrutural
similar de superioridade e experiência, mas de uma forma diferente e mais
anti-social.
Numa
entrevista individual
Joey: Nós
[os rapazes] todos já estivemos com mulheres, essas coisas todas (...), nós
contamos o outro dia, quantos garotos tinham estado com mulheres, quantos
garotos tinham tido uma transa, acho que chegamos a vinte e quatro (...) no
quinto ano, isto num total de cem, quer dizer, é um quarto, né?
PW: Mas
será que dá pra ter certeza?
Joey: Sim,
eu (...) A coisa se espalha, né, dentro do nosso próprio grupo, com os garotos
que conhecemos que são uma espécie de semi-cê-dê-efes... eles são um grupo
separado de nós e dos cê-dê-efes. Caras como Dover, Simms e Willis, e mais um
ou dois como eles. Eles só se misturam com os da turma deles, mas são infantis
pra caramba, o jeito como falam, o jeito como agem. Eles não conseguem fazer a
gente rir, nós conseguimos fazer eles rir, eles se mijam de rir com a gente, Às
vezes, mas não conseguem fazer algum de nós rir, e depois nós (...), alguns
deles [os semicê-dê-efes] estiveram com mulheres, a gente fica sabendo. Os cêdê-efes
(...) não sabem de nada. Quer dizer, olha o Tom Bradley, você sabe quem é? Eu
sempre olho pra ele e digo: Pois é, nós passamos por todos os prazeres e
desprazeres da vida, nós bebemos, brigamos, conhecemos a frustração, o sexo, o
diabo do ódio, o amor e todas essas coisas, e ele não conheceu nada disso. Ele
nunca esteve com uma mulher, nunca esteve num pub. Não vou dizer que a gente
sabe isto, mas a gente como que adivinha — garanto que ele mesmo vinha dizer
pra gente se ele tivesse estado com uma mulher — mas ele nunca esteve, ele
nunca bebeu. Eu nunca vi ele numa briga.'Ele não conhece muitas das emoções que
nós vivemos e ele ainda tem muito por que passar.
Joey é
um líder reconhecido do grupo, com uma tendência a aparecer como homem
experimentado na vida. Como fica claro aqui, e em outros locais, ele é também
um rapaz de inteligência considerável e de um poder expressivo. De certo modo,
isso pode parecer que o desqualifica como típico dos rapazes não-conformistas de
classe operária da escola. Entretanto, embora Joey possa não ser típico dos
rapazes de classe operária, ele é certamente representativo deles. Ele vive em
um bairro proletário, vem de uma família grande, conhecida como lutadora, cujo cabeça
trabalha em uma fundição. Ele vai deixar a escola sem um certificado e é universalmente
identificado como um criador de casos — tanto mais que "ele tem alguma
coisa de estranho". Embora talvez exageradas, e embora expressadas com
muita força, as experiências que ele descreve só podem vir daquilo que ele experienciou
na contra-cultura. O sistema cultural que ele descreve é representativo e
central, mesmo que sua relação com ele seja uma relação especial.
Vale a
pena observar que, nos seus próprios termos e através das mediações do grupo,
Joey dá por assentados uma compreensão e um domínio completos do ano letivo e
de sua paisagem social. Ele dá por assentado que a informação chegará até os
"rapazes" tomados como o ponto focal daquela paisagem. Um marco claro
deste "sair para fora" é o desenvolvimento deste tipo de perspectiva
social e de esquema de avaliação. Deve também ser observado que os padrões alternativos
construídos pelos "rapazes" são um tanto vagamente reconhecidos pelos
professores — pelo menos em particular. Há, freqüentemente, comentários de
apreciação na sala dos professores sobre a aparente habilidade sexual de certos
indivíduos, por parte dos professores mais jovens: "te garanto que ele
teve mais mulheres que eu".
Membros
do grupo mais conformista em relação aos valores da escola não têm o mesmo tipo
de mapa social e nem desenvolvem um jargão para descrever outros grupos. Sua
reação aos "rapazes" é mais uma reação de medo ocasional, de uma
incômoda inveja e de uma ansiedade geral para não serem pegos na mesma rede disciplinar,
e de frustração pelo fato de os "rapazes" impedirem o fluxo normal do
processo educacional. Seu investimento no sistema formal e o sacrifício daquilo
que os outros desfrutam (assim como o grau de medo presente) significa que os
conformistas da escola esperam que os líderes reconhecidos do sistema, os
professores, lidem com a transgressão, em vez de eles mesmos tentarem
suprimi-la.
Numa
discussão de grupo com os conformistas na escola masculina de Hammertown
Barry: ...ele
[um dos professores] sempre está com aquela de "Todo mundo...",
entende. Eu não gosto deste tipo de coisas, quando eles dizem: "Todo mundo
isso, todo mundo aquilo. Vocês estão todos enrascados". Eles deveriam
dizer: "Alguns de vocês...". Como Mr. Peters, ele faz isto, ele não
diz: "Todo mundo", só se refere àqueles poucos. Assim é melhor,
porque alguns de nós estão interessados (...)
Nigel: O
problema é quando eles começam, entende, a gozar dos professores (...)
significa que você está perdendo tempo, tempo valioso, tempo de estudo, tudo
isso, de modo que é prejudicial para você, entende? Algumas vezes eu queria que
eles pegassem as suas coisas e fossem embora (...)
Barry: É
melhor como fizeram agora... puseram todos eles juntos [os grupos de CSE não
são mistos quanto ao nível de capacidade]. Realmente pouco importa se eles
fazem qualquer trabalho ou não... A gente vai pra frente, a gente só vai pra
frente agora [nos grupos de CSE], porque se alguém está falando, ele manda você
se calar, entende, continuar o trabalho.
PW: (...)
vocês já pensaram alguma vez que vocês deveriam tentar fazer com que parassem?
Barry:
Eu simplesmente nunca me preocupei com eles (...) agora, no quinto ano,
eles deveriam... você entende, você simplesmente não pode sair por aí gritando
com as pessoas na sala de aula, entende, você deve falar de modo calmo. [Os
professores] deveriam ser mais rigorosos.
A
oposição aos professores e uma clara separação com relação aos cê-dê-efes são
continuamente expressadas no contexto global de seu comportamento, mas é
concretizada também naquilo que podemos pensar como sendo certos discursos
estilísticos/simbólicos que se centram nos três grandes bens de consumo
fornecidos pelo capitalismo e que são apropriados de diferentes formas pela
classe operária para seus próprios fins: roupa, cigarros e álcool. Como o mais
visível,, personalizado e instantaneamente compreendido elemento de resistência
aos professores e de ascendência sobre os cê-dê-efes, a roupa tem grande
importância para os "rapazes". Os primeiros sinais indicativos de que
um "rapaz" está "se revelando" são dados por uma mudança
bastante rápida em sua forma de se vestir e de se pentear. A forma particular
dessa vestimenta alternativa é determinada por influências externas,
especialmente pelas modas em voga no sistema simbólico mais amplo da cultura
juvenil. No momento a aparência ideal dos "rapazes" inclui cabelos longos
e bem cuidados, sapatos tipo plataforma, camisas com uma grande gola branca
dobrada sobre casacos acinturados ou jaquetas jeans, além das ainda
obrigatórias calças boca-de-sino. Seja lá qual for a forma particular de se
vestir, é quase certo que não é o uniforme da escola, raramente inclui uma
gravata (a segunda melhor opção para os diretores quando eles não conseguem
impor um uniforme) e explora cores calculadas para marcar o máximo de distância
com relação à monotonia e ao conformismo institucionais. Há um conceito
estereotipado claro a respeito daquilo que constitui a forma institucional de
se vestir — Spike, por exemplo, tentando descrever a forma de um colarinho:
"Você entende, como o dos professores!".
Podemos
observar a importância que o sistema mais amplo da cultura juvenil comercial
tem aqui, ao fornecer uma lexicografia do estilo, com significados já
conotados, que podem ser adaptados pelos "rapazes" para expressar
seus próprios significados, mais particulares. Embora boa parte deste estilo, e
a música associada com ele, possam ser acuradamente expressadas como tendo
origem em interesses puramente comerciais, sem representar nenhuma autêntica
aspiração de seus adeptos, deve ser reconhecido que a forma com que é adotada e
usada pelos jovens pode ter uma autenticidade e uma natureza direta de
expressão pessoal que está ausente de sua produção comercial original.
Não é por acaso que no momento boa parte do
conflito entre professores e estudantes se dá em ao vestir-se. Para quem vê de
fora, isto pode parecer tolo. Os professores e os garotos envolvidos,
entretanto, sabem que este é um de seus terrenos escolhidos para a luta com
respeito à autoridade. É uma das formas atuais de uma luta entre culturas. Ela
pode culminar, ao final, numa questão a respeito da legitimidade da escola como
uma instituição.
Estreitamente
relacionada com o estilo de vestir-se dos "rapazes" está,
naturalmente, toda a questão de sua atratividade pessoal. Vestir roupas
modernas e "bacanas", além de lhes permitir se "lixarem"
para a escola e se diferenciarem dos cê-dê-efes, dá-lhes a oportunidade de se
mostrarem mais atraentes diante do sexo oposto. É um fato objetivo que os
"rapazes" realmente saem muito mais com garotas que quaisquer outros
grupos da mesma idade e que, como vimos, uma grande maioria deles é sexualmente
experiente. A atratividade sexual, sua associação com a maturidade, e a
proibição com respeito à atividade sexual na escola é o que valoriza o
vestir-se e as roupas como algo mais que um código artificial através do qual
se pode expressar uma identidade institucional/cultural. Essa dupla articulação
é característica da cultura contra-escolar.
Se a
maneira de se vestir é atualmente a principal causa aparente de discordância
entre professores e garotos, o fumo vem logo em seguida. Outra vez, encontramos
aqui uma outra marca característica dos "rapazes" com relação aos cê-dê-efes.
A maioria deles fuma e, de forma talvez mais importante, são vistos fumando. A
essência do ato de fumar na escola está em fumar junto aos portões da escola.
Uma grande parte do tempo é tipicamente gasta pelos "rapazes" em
planejar a próxima fumada e em "escapar" das aulas para "uma
rápida tragada". E se os "rapazes" se comprazem em fumar e em
alardear sua insolência, não há como os professores mais velhos deixarem de
notar. Há normalmente regras estritas e bastante divulgadas a respeito do fumo.
Se, por esta razão, os "rapazes" são levados a fumar, praticamente
como que por uma questão de honra, os professores mais velhos se sentem atingidos
por aquilo que eles tomam como sendo um desafio à sua autoridade. Isso é
especialmente verdadeiro quando aliado àquele outro grande desafio: a mentira.
Num
discussão de grupo sobre recentes escaramuças com os professores
Spike: E nós
entramos e eu disse: "Nós não estávamos fumando". Ele disse (...) e
ficou realmente furioso. Eu pensei que ele ia me bater ou algo assim.
Spanksy: "Vocês
estão me chamando de mentiroso", "Eu não sou mentiroso",
"Volta aqui, então", e no fim nós confessamos: nós estávamos fumando
(...). Ele estava tendo um ataque. Ele disse: "Estão me chamando de
mentiroso". Nós dissemos que não estávamos fumando, tentamos ficar firme,
mas Simmondsy estava tendo um ataque.
Spike: Ele
tinha realmente visto a gente acender o cigarro.
Com os
professores mais velhos a punição para o ato de fumar é automática e isto é
entendido pelos garotos.
Spanksy: Bem, ele não podia fazer nada [o vice-diretor], ele teve que me dar
três vezes com a palmatória. Eu gosto daquele cara, acho que ele faz o serviço
dele direito, entende? Mas eu estava no portão da frente fumando e Bert vem
direto por trás de mim. Eu me viro, ele me flagrou, eu fui direto pra ele e ele
me bateu. Na segunda-feira de manhã, logo que cheguei na escola, levei três
batidas de palmatória... Ele não podia me deixar escapar, entende?
Dado
esse fato da vida, e no contexto da permanente guerra de guerrilhas dentro da
escola, uma das formas mais notáveis usadas pelos "rapazes" para identificar
simpatizantes — com freqüência, simplesmente os fracos e tolos — no campo
inimigo é ver quais professores, normalmente os mais jovens, não fazem nada ao
ver claramente que um cigarro está sendo aceso.
Fuzz: Por exemplo, Archy, ele me vê quase toda manhã fumando, vindo pelo
Padlock, porque estou esperando minha gata, ele me vê toda manhã Ele nunca diz
nada.
Will: Ele disse pra mim na matrícula __
PW: (interrompendo): Quem é este tal de Archer?
Will: Archy, sim, ele disse: "Não fique por aí na hora do jantar".
"O que o senhor quer dizer com `por aí'?" Ele disse: "Por aí,
pelas redondezas". Eu disse: "Ah, no Bush [pub]", mas ele é
legal, entende?, e demos uma boa risada.
Outra
vez, numa conjunção bastante típica de significados que se baseiam na escola e
de significados externos, o ato de fumar para os "rapazes" é
valorizado como um ato de insurreição perante a escola por sua associação com
as práticas e valores adultos. Recorre-se ao mundo adulto, especificamente ao
mundo do varão proletário adulto, como uma fonte de materiais para a resistência
e a exclusão.
Além
do fato de produzir um efeito "legal", a bebida é adotada abertamente
porque é o sinal mais veemente passado aos cê-dê-efes e aos professores de que
os "rapazes" se distanciam da escola e têm uma presença num modo
alternativo, superior e mais maduro de vida social. Casos de professores
flagrando garotos em pubs são animadamente contados pelos "rapazes"
com muito mais deleite que os meros casos de flagrantes com cigarros e a
ausência de ação por parte de algum professor após um flagrante de bebida é uma
prova ainda mais deliciosa de que se trata de um traidor/simpatizante/fraco
situado no campo inimigo do que o fazer vista grossa a um cigarro aceso. Sua
percepção dessa matriz particular de significados coloca alguns membros mais
jovens e progressistas da equipe de professores num sério dilema. Alguns deles
aparecem com estranhas soluções que permanecem incompreensíveis para os
"rapazes". Esse incidente envolve um jovem professor comprometido e
progressista:
Numa
discussão de grupo sobre os professores
Derek: E Alf
disse: "Tudo bem, professor" [ao encontrar um professor em um pub]
e ele não respondeu, entende?, aí ele diz: "Tudo bem, professor?" e
ele se voltou, olhou pra ele assim, entende?, e... ele não respondeu e ele
disse, no dia seguinte, ele disse: "Quero falar com você, Alf'. Ele se
volta pra ele e diz: "Que é que você estava fazendo lá ontem de
noite?". Ele disse: "Eu estava numa reunião do time de futebol".
Ele disse: "Bem, você não acha que aquilo foi como dar um soco na
boca!". "Não", ele disse. "O que você sentiria se eu lhe
desse um soco na boca?". "O que você quer dizer com isso?", ele
disse. "Dando oi daquela forma lá", ele disse, "que é que você
esperava que eu dissesse?". Ele disse: "Bem, não me fale assim outra
vez a menos que eu lhe dirija a palavra antes". Ele disse: "Está bem,
professor, não vou lhe dizer oi outra vez", ele disse, "mesmo que lhe
encontre na rua".
Certamente
os "rapazes" entendem de forma auto-consciente a importância
simbólica de beber como um ato de associação com os adultos e de oposição à
escola. É da máxima importância para eles que o último almoço de seu último ano
seja feito num pub, e que o máximo possível de álcool seja consumido. Este é o
momento em que eles finalmente ficam livres da escola, o momento a ser lembrado
anos adiante:
Entrevista
individual no local de trabalho:
PW: Por
que era tão importante tomar um porre no último dia?
Spanksy: É uma
coisa especial. Só acontece uma vez na tua vida, não é mesmo? Quer dizer,
entende?, naquele dia nós ainda estamos na escola, tu és um escolar, mas no dia
seguinte eu estou no trabalho, entende o que quero dizer?
PW: É
claro, você foi para o emprego logo no dia seguinte.
Spanksy:
Sim, eu tomei um porre, tirei uma soneca, e fui trabalhar (...). Se não
tivéssemos feito aquilo, entende?, nós não íamos lembrar, se tivéssemos ficado
na escola [isto é, em vez de ir ao pub], teria sido um dia igual aos outros.
Não, quando fizemos aquilo, ficamos com uma coisa pra recordar o último dia,
ficamos com uma coisa pra lembrar o tempo de escola.
No pub
instaura-se de fato um clima muito especial entre os "rapazes" de
Hammertown. Spike explica de forma expansiva que embora tenha se comportado
como um autêntico imbecil, às vezes, ele realmente gosta de seus amigos e
sentirá falta deles. Eddie está determinado a beber oito cervejas para manter o
"record" — e mais tarde é "detido bêbado" (nas palavras do
diretor) na escola e é conduzido, de forma inglória, por ele, para casa. Fuzz
explica como quase deixara Sampson (um professor) louco esta manhã e tinha sido
mandado para a direção, "mas não era por nada, não, ele só estava
brincando". O que é mais importante, eles são aceitos pelo dono do pub e
por outros clientes adultos, que lhes pagam bebidas e lhes perguntam sobre seu
trabalho futuro. Na hora de fechar eles vão embora, trocando promessas adultas
que eles ainda não aprenderam que não são para valer, dirigindo-se para pessoas
em particular, dizendo-lhes que vão arrumar seus encanamentos, ou prestar-lhes
serviços de pedreiro ou outras coisas do gênero.
O fato
de que eles não estão ainda realmente livres (e de que os professores querem
frisar isso) é demonstrado quando os "rapazes" retornam tarde à
escola, cheirando a álcool e, em alguns casos, bastante bêbados. Como para
lembrar-lhes que o poder da escola está respaldado, em última instância, na lei
e na coerção estatal, o diretor tinha chamado a polícia. Um policial está
esperando fora da escola com o diretor. Isto atemoriza os "rapazes" e
uma estranha comédia se desenvolve enquanto eles tentam escapar do policial.
Mais
tarde, numa discussão de grupo
Will: Eu estava caminhando na calçada [em
direção à escola], eu estava tentando segurar Spike e Spanksy (...), tentando
que eles ficassem direito, entende? Joey viu este tira descendo a rua (...) Eu
me meti no fosso [no fim da rua, limitada nos fundos apenas por uma cerca]. Eu
vi o tira: "Se ele não me vê, posso pular a cerca e me escapar, ninguém
vai me ver, estarei salvo". Aí eu pensei: "Olha bem pra ver se ele
está vindo", assim eu desabotoei as minhas calças como se estivesse
mijando, como se estive atrasado ou coisa parecida. Aí Bill veio correndo. Eu
pensei: "Ai, meu Deus!" e pulei a cerca dos fundos e fui me
arrastando (...). Simmondsy tinha visto Bill e disse: "Ah, quero falar com
vocês dois". Ele disse: "Vocês dois", e eu nem pensei, entende?,
apenas fui caminhando pela rua abaixo.
Ao
final os "rapazes" são reunidos e enviados, em estado de excitação,
para o gabinete do diretor, onde são rudemente tratados pelo policial. Como diz
Spike: "Ele me pegou pelo colarinho e me atirou contra a parede" (eu
próprio não presenciei este incidente). O diretor subseqüentemente escreve para
todos os pais ameaçando reter seus certificados finais até que houvesse uma
retratação. No caso de Spike ele escreveu:
...
seu filho esteve claramente bebendo, e seu comportamento subseqüente mostrou
falta de cooperação, foi insolente e quase beligerante. Ele parecia determinado
a justificar seu comportamento e chegou ao ponto de descrever a escola como
sendo parecida com Colditzs... como é meu costume, quero dar aos pais dos
garotos uma oportunidade para que venham falar comigo antes que eu decida qual
ação final deve ser tomada.
Mesmo
os professores jovens e que simpatizavam com o grupo consideraram o incidente
"surpreendente" e se perguntaram por que os "rapazes" não
esperaram até a noite, e aí então "podiam fazer a coisa de forma
conveniente". O ponto central, é claro, é que a bebedeira tem que ser
feita no horário do almoço e em desafio às normas da escola. Não é feita
simplesmente para marcar uma transição neutra — um mero ritual. Ela representa
uma rejeição e uma ruptura definitivas. De alguma forma, eles derrotaram
finalmente a escola de um modo que está além do alcance dos cê-dê-efes e que
torna praticamente impossível uma reação por parte dos professores e da
direção. É a transcendência daquilo que eles tomam como sendo a vida madura, a
vida real, frente à opressiva adolescência da escola - representada pelo comportamento
tanto dos cê-dê-efes quanto dos professores.
Alguns
dos pais dos "rapazes" partilham da visão que seus filhos têm da
situação. Obviamente nenhum deles aceitou a oferta do diretor para ir falar com
ele.
Numa
discussão de grupo
Will: Minha
mãe guarda todas as cartas, entende?, como as cartas que Simmondsy mandou
[sobre a bebedeira]. Eu disse: "Pra quê você está guardando?". Ela
disse: "Bom, vai ser bom recordar, né?, mostrar pros teus filhos como você
era, o terror que você era". Eu estou guardando as cartas, estou mesmo.
Entrevista
individual no local de trabalho
PW: O teu
velho compreendeu o fato de você beber no último dia do ano letivo?
Spanksy:
Oh, ah (...) ele deu uma risada. Ele disse: "A idéia deles,
mandando uma carta!", entende? Veio o pai do Joey e deu uma risada,
entende?
Não
importando quais sejam as ameaças e apesar do medo da lei, todo o episódio
"vale a pena" para os "rapazes". É o episódio escolar mais
freqüentemente repetido, floreado e exagerado na situação futura de trabalho.
Torna-se logo parte de um folclore personalizado. À medida que o uniforme e o
fumo deixam de ser as causas mais óbvias de conflito nas escolas com a
introdução de regimes mais liberais, é de se esperar que a bebida torne-se a
próxima área principal em que as linhas do campo de batalha serão traçadas.
O
grupo informal
Numa
noite salmos
pelas
ruas
Mexendo
com os outros,
Dizem
que somos anti-sociais,
Mas
nós nos divertimos.
A geração
mais velha,
Eles
não gostam de nossos cabelos,
Ou das
roupas que usamos
Eles
parecem gostar
De
falar mal da gente.
Não
sei o que faria
se eu
não tivesse a minha turma.
(Extrato
de um poema escrito por Derek numa aula de Inglês).
Sob
muitos aspectos a oposição que estivemos observando pode ser entendida como um
exemplo clássico da oposição entre o formal e o informal. A escola é a zona do
formal. Tem uma estrutura clara: o edifício escolar, as normas escolares, a
prática pedagógica, uma hierarquia de autoridade — em que o poder é, em última
instância, respaldado pelo estado, como tivemos oportunidade de ver, embora
numa escala pequena —, a pompa e a grandiosidade da lei, e o braço repressivo
do aparato estatal, a polícia. Os cê-dê-efes apostam nesta estrutura formal, e
em troca de certa perda de autonomia esperam que os guardiões oficiais
mantenham o respeito às regras sagradas — muitas vezes, acima e além daquilo
que impõcm suas reais obrigações. Aquilo que é livremente sacrificado pelos
fiéis não deve ser permitido aos infiéis.
A
cultura contra-escolar é a zona do informal. É onde as exigências invasivas do
formal são negadas — mesmo que ao preço de ter que expresar essa oposição por
meio de um estilo, de micro-interações e de discursos não-públicos. De forma
geral, a oposição na cultura operária é freqüentemente assinalada por uma
retirada em direção ao informal e se expressa, sob suas formas características,
precisamente para além do alcance da "norma".
Mesmo
que não haja normas públicas, estruturas físicas, hierarquias reconhecidas ou
sanções institucionalizadas na cultura contra-escolar, ela não pode funcionar
no ar. Ela tem que ter sua própria base material,_sua própria infra-estrutura.
Essa base material é, naturalmente, o grupo social. O grupo informal é a
unidade básica dessa cultura, a fonte fundamental e elementar de sua
resistência. Ele posiciona e torna possível todos os outros elementos da
cultura, e sua presença distingue de forma clara os "rapazes" dos
"cê-dê-fes".
A importância
do grupo é muito clara para os membros da contra-cultura escolar.
Numa
discussão de grupo
Will: (...)
a gente se vê todos os dias, não é mesmo?, na escola (...). Quer dizer, nós
criamos certas maneiras de falar, certas maneiras de agir, e criamos uma
antipatia pelos paquis [paquistaneses], jamaicanos e todos os diferentes... por
toda essa gentinha e todos os idiotas dos cê-dê-efes, essa gente toda (...).
Nós estamos conhecendo isto agora, estamos conseguindo aprender todos os
macetes, como, por exemplo, escapar das aulas e coisas assim, e sabemos onde
podemos dar uma boa fumada. A gente pode vir aqui para o pavilhão juvenil e
fazer alguma coisa, e... todos os teus amigos estão aqui, entende?, é o que a
gente vai encontrar lá, aquilo que ainda vai estar lá no ano que vem, e você
sabe que você tem que vir pra escola hoje, mas se você não está bem, teu amigo
logo vai te animar, porque não dá pra ficar dez minutos nesta escola sem gozar
de uma coisa ou outra.
PW: Os
teus amigos são mesmo uma coisa importante na escola agora? Sim.
__ Sim.
__ Sim.
Joey: Eles
são, na verdade, a melhor coisa.
A
essência de ser um dos "rapazes" situa-se dentro do grupo. Sozinho é
impossível formar-se uma cultura distintiva. Sozinho não se pode produzir
diversão, clima e uma identidade social. Associar-se à contra-cultura escolar
significa associar-se a um grupo, e comprazer-se com ela significa estar com o
grupo:
Numa
discussão de grupo a respeito de ser um dos "rapazes"
Joey: (...)
quando a gente está de farra sozinho, não é legal, mas quando a gente está de
farra com os amigos, aí então estamos todos juntos, a gente se diverte e aí sim
é uma farra.
Bill: Se a
gente não faz o que os outros fazem, a gente se sente por fora.
Fred: A
gente se sente por fora, é isso. Eles meio que pensam, a gente fica pensando
que os outros são...
Will: Nas
turmas do segundo ano...
Spanksy: Posso
imaginar... entende?, quando eu falto, quando a gente volta no outro dia, e
aconteceu alguma coisa no dia em que a gente faltou, a gente sente: "Por
que é que eu faltei naquele dia?", entende?, "eu também podia ter me
divertido". Entende o que eu quero dizer? A gente volta e eles estão
dizendo: "Oh, você deveria estar aqui ontem", entende?
Will: (...)
como no primeiro e no segundo ano, você pode dizer que...você é um pouco
cê-dê-efe. Aí você quer tentar ver o que é ser, vamos dizer, um dos
"rapazes". Você quer experimentar um pouco o gostinho daquilo, não
ser como um cê-dê-efe, e aí você acaba gostando daquilo.
Embora informais, esses grupos, entretanto, têm regras que podem ser
passíveis de descrição — mesmo que elas obedeçam a um esquema característico,
em contraste com aquilo que normalmente se entende por "regras".
PW: (...)
Entre vocês existe alguma regra?
Pete: Nós
apenas quebramos as outras regras.
Fuzz: Nós
não temos nenhuma regra entre nós, não é mesmo?
(...)
Pete: A
gente inverte as regras.
Will: Não
temos regras, mas existem certas coisas entre nós, entende?,
como,
por exemplo, eu não mexo com a namorada de ninguém ou a namorada de Joey, e
eles também não fazem isso comigo, entende o que quero dizer? Coisas assim como...
se você dá um cigarro a alguém você espera também receber um depois, coisas
desse tipo.
Fred: Não são regras, são só uns entendimentos, na verdade.
Will: É isso aí.
PW: (...) Quais seriam esses entendimentos?
Will: Ahn... Acho... eu mesmo... acho que não não há muitos de nós
que mexem com o 12 e 24 anos, é realmente isso...Mas se digamos, Fred
chega para mim e diz: "Eu acabei de cavar uma grana lá no segundo
ano", eu fico pensando: "Que sacana!". Entende?
(...)
Fred: Nós somos muito unidos, estamos juntos pro que der e vier.
Há um
tabu (7) universal em grupos informais
contra passar informações incriminadoras de outros àqueles que detêm
o poder formal. A delação infringe a essência da natureza informal do grupo: a manutenção
de significados de oposição contra a penetração daquilo que se considera "a
regra”. Os "rapazes" de Hammertown chamam a isso de
"dedurar" (grassing). Os professores chamam-no de
"dizer a verdade". A "verdade" é o complemento formal do
"dedurar". É apenas ao fazer com que alguém "dedure" —
forçando-o a romper com o mais importante tabu — que a primazia da organização
formal pode ser mantida. Não é de admirar, portanto, que uma escola inteira
possa ser sacudida por paroxismos a respeito de um grande incidente, assim como
não é se de estranhar o inquérito que se segue. Trata-se de uma luta atávica em
torno da autoridade e da legitimidade da autoridade. A escola tem que ganhar, e
alguém, ao fim e ao cabo, tem que "dedurar": esta é uma das formas
pelas quais a própria escola é reproduzida e a fé dos cê-dê-efes restaurada.
Mas aquele que dedurou, não importa quem, torna-se especial, fraco e marcado.
Há uma retrospectiva maciça e uma avaliação contínua entre os
"rapazes" quanto à falha de personalidade desse indivíduo. A suposição
é de que essa falha tinha estado sempre presente, mas não tinha sido revelada
até aquele momento:
Numa
discussão de grupo a respeito do célebre "incidente do extintor de
incêndio"no qual os "rapazes" tiraram um hidrante da escola e
largaram-no no parque local
PW: Foi o maior caso do ano, não é mesmo?
Joey: Acabou numa coisa sensacional. Quando fizemos aquilo, pra mim era
apenas uma coisinha de nada, era como fumar escondido ou ir até o bar comprar
umas batatinhas fritas.
PW: O que aconteceu (...)?
__ Webby [situado nas franjas da cultura contra-escolar] dedurou.
Joey: Simmondsy me pegou sozinho e disse: "Um de vocês confessou e
tentou pôr toda a culpa no Fuzz". Mas ele só tinha o Webby lá dentro.
Spanksy: Nós estavámos fumando aqui fora.
Spike: Ele é assim. Você tinha um cigarro, não é? [Para Fuzz].
Spanksy: E Webby pede uma tragada, aí ele dá o cigarro para Webby. Rogers [um
professor] apareceu na porta e aí ele fez assim [demonstra] e disse: "Não
é meu, professor, só estou segurando para o Fuzz".
Will: Lá no parque antes, (...) tinha esta coisa frouxa, eu e Eddie tiramos
ela fora, não foi?, e o guarda do parque vinha vindo, dando a volta, aí eu e o
Eddie fomos pro outro lado, e simplesmente sentamos lá, como dois macacos,
entende? E Webby estava lá em pé, e o guarda veio pra ele e disse: "Cai
fora. Cai fora do parque. Você está expulso daqui". E o guarda disse, ele
passou por nós, por mim e Eddie, e disse: "Eu sei que vocês não estavam
lá, vocês estavam sentados aqui". E Webby começou dizer: "Não fui eu,
foi...", e ele estava quase nos dedurando, não é mesmo?
Eddie: Foi
isso mesmo, e eu fiz: "Psss", e aí ele resolveu não nos dedurar.
O fato
de pertencer a um grupo informal sensibiliza o indivíduo para a dimensão
informal oculta da vida em geral. Por detrás da definição oficial das coisas
descortina-se todo um panorama interno. Desenvolve-se uma espécie de capacidade
dupla para registrar descrições e objetivos públicos, por um lado, e para olhar
por detrás deles, considerar suas implicações e descobrir o que realmente vai
ocorrer, por outro. Essa habilidade interpretativa é muito freqüentemente
sentida como uma espécie de maturação, um sentimento de que se está tornando um
"homem do mundo", de saber como as coisas realmente funcionam na realidade".
Ela fornece o verdadeiro conhecimento de quem está "por dentro", o
qual realmente ajuda a enfrentar o dia-a-dia.
PW: Vocês
acham que aprenderam alguma coisa na escola, ela mudou ou moldou os valores de
vocês?
Joey: Não
acho que a escola faça porra alguma à gente (...) Nunca teve efeito algum sobre
ninguém, não acho que teve, depois que a gente tenha aprendido o fundamental.
Quer dizer, a escola é uma merda quatro horas por dia. Mas não são os
professores que moldam a gente, são os caras que a gente conhece. A gente está
com os professores apenas 30 por cento do tempo da escola, os restantes dois
terços é só conversar, arrumar encrenca e enrolar.
O
grupo também fornece aqueles contatos que possibilitam que o indivíduo trace
mapas alternativos da realidade social, ele dá os elementos de informação para
que o indivíduo descubra por si mesmo que é que movimenta as coisas. É
basicamente,apenas através do grupo que outros grupos são conhecidos, e através
deles sucessões de outros grupos. Os grupos escolares se fundem e se vinculam
com grupos do bairro, formando uma rede para a transmissão de tipos distintivos
de conhecimento e de perspectivas que progressivamente colocam a escola numa
posição tangencial com relação à experiência global de ser um adolescente
de classe operária numa cidade industrial. É a
infraestrutura do grupo informal que torna de todo possível um tipo distintivo
de contato de classe, ou cultura de classe, naquilo que isto tem de
distinto da classe dominante.
A
cultura contra-escolar já tem uma forma desenvolvida de troca e de intercâmbio
não-oficial que se baseia em "furtos", "trapaças" e na
obtenção de um dinheiro extra através da venda de objetos furtados — um padrão
que, naturalmente, emerge muito mais completamente no mundo operário adulto:
Fuzz: Se, digamos, algém dissesse algo
assim: "Estou atrás de um toca-fitas barato". Entende?, ele fala
sobre isto, algum de nós escuta a respeito de um toca-fitas barato, entende?, a
gente arranja
o negócio e aí diz: "Ah, eu
vou conseguir o toca-fitas pra você".
Valores
e interpretações culturais circulam "ilicita" e informalmente,
exatamente da mesma forma que mercadorias.
Matando
tempo, "enrolando" e gazeando
A oposição
à escola manifesta-se principalmente na luta por ganhar espaço físico e
simbólico da instituição e suas regras e por derrotar aquilo que é percebido
como seu principal propósito: fazer você "trabalhar". Tanto a vitória
quanto o prêmio — obtenção de um
auto-governo — desenvolvem, de forma profunda, significados e práticas
culturais informais. Os aspectos dinâmicos da relação entre alunos e
professores serão examinados mais tarde. No momento em que uma cultura
contra-escolar encontra-se plenamente desenvolvida seus membros tornam-se
hábeis em lidar com o sistema formal e em limitar suas exigências ao mínimo
absoluto. Tirando proveito da complexidade dos modernos regimes de grupos de
capacidade mista, dos horários em bloco e das múltiplas opções do RSLA, em
muitos casos esse mínimo reduz-se simplesmente a registrar a presença durante a
chamada.
Numa
discussão de grupo sobre o currículo da escola
Joey: (...)
na segunda de tarde, não temos nada, não é? Quase nada que se relacione com
trabalho escolar. Na terça de tarde temos natação e eles grudam a gente numa
sala de aula pelo resto da tarde. Na quarta de tarde temos jogos e é só na
quinta e na sexta que a gente trabalha, se é que se pode chamar aquilo de
trabalho. Na última aula na sexta-feira a gente costumava matar o tempo, a
metade fugia da aula e a outra metade ia pra sala de aula, sentava e ficava
matando tempo (...).
Spanksy: (...)
Você falta uma aula, vai até um canto, fuma um cigarro, e na próxima aula você
vai porque o professor faz a chamada (...). Bill Também é fácil ir pra casa, como ele [Eddie)... na
última quarta de tarde, ele recebeu a nota e foi pra casa...
Eddie: Eu não devia estar na escola hoje de
tarde, eu devia estar no
colégio
[num programa combinado onde os estudantes passam um dia por semana num colégio
de instrução profissionalizante].
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PW: Qual
foi a última vez que vocês escreveram alguma coisa?
Will: Quando foi que escrevemos a
última vez?
Fuzz: Ah, a
última vez foi na orientação vocacional, porque eu escrevi "sim" numa
folha, e aquilo me partiu o coração.
PW: Por
que é que te partiu o coração?
Fuzz: Quero
dizer, escrever, porque eu estava tentando terminar sem escrever nada. Porque
desde que voltamos, eu não tinha nada [estava na metade do ano].
O
faltar às aulas dá apenas uma medida muito imprecisa, até mesmo se sentido, da
rejeição à escola. Isso ocorre não apenas por causa da prática de dar uma
passada na classe para responder a chamada antes de "dar o fora" (uma
prática transformada numa arte refinada pelos "rapazes"), mas também
porque apenas mede um aspecto daquilo que poderia ser mais acuradamente
descrito como a mobilidade estudantil informal. Alguns dos "rapazes"
desenvolvem a um grau notável a habilidade de perambular pela escola de acordo
com sua própria vontade. Eles virtualmente fazem seu próprio dia a partir daquilo
que é oferecido pela escola. O faltar às aulas é apenas uma variante
relativamente sem importância grosseira deste princípio de auto-governo que
corta muitas partes do currículo cobre muitas e variadas atividades: livrar-se
da aula, estar em classe e não faze trabalho algum, estar na aula errada,
perambular pelos corredores à procura d diversão, dormir escondido. A
habilidade central que une essas possibilidades é e ser capaz de cair fora de
qualquer aula: a manutenção da mobilidade pessoal.
Numa discussão
de grupo
PW: Mas
ninguém se importa com o fato de vocês não estarem na aula?
Fuzz: Eu
consegui um bilhete dos cozinheiros dizendo que eu estava ajudando eles (...).
John: Você
só tem que ir até o professor e dizer pra ele: "Posso sair pra fazer um
trabalho?". Ele diz: "Certamente, não há dúvida", porque eles
querem se ver livres da gente.
Fuzz:
Especialmente quando eu lhes peço.
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Pete: Sabe
aqueles buracos no corredor? Eu não queria ir para os jogos, ele me disse pra
ir buscar as chaves dele, aí eu deixei cair as chaves no buraco do corredor, e
aí tive que ir buscar uma lanterna pra poder achar as chaves.
Para
os bem-sucedidos, pode haver um problema de escolher entre tantas alternativas
disponíveis. Pode tornar-se difícil escolher entre tantas possibilidades de
vias auto-organizadas no decorrer do dia.
Will: (...)
o que estivemos fazendo... jogando cartas nesta sala porque podemos chavear a
porta.
PW: Que
sala é esta?
Will: O
centro comunitário, onde estamos fazendo os marcos de madeira [para um novo
púlpito para o vice-diretor), pelo menos é isso que eles esperam.
PW: Ah!,
vocês ainda estão fazendo os marcos!
Will: Já
deveríamos ter terminado, a gente só fica lá em cima dos marcos, jogando
cartas, ou tentando tirar uma soneca (...) Bem, acaba ficando um pouco chato,
até preferiria ir pra aula, entende?
PW: Que
tipo de aulas você pensaria ir?
Will: Ahn,
ciências, acho, porque lá você pode dar umas risadas, às vezes.
Esse
auto-governo e subversão dos objetivos organizacionais formais constituem
também um ataque às noções oficiais de tempo. A mais árdua tarefa do
vice-diretor é a de construção de horários. Em escolas grandes, com várias
opções abertas no quinto ano, tudo tem que se encaixar com o maior cuidado. As
primeiras semanas do ano são gastas em uma permanente revisão, à medida que os
professores mais novos se queixam e se demonstra que certas combinações são
impossíveis. O tempo, como o dinheiro, é valioso e não deve ser desperdiçado.
Tudo tem que ser organizado numa espécie de uma gigantesca rota que conduza aos
objetivos da escola. As disciplinas tomam-se blocos medidos de tempo, colocados
numa cuidadosa relação mútua. O horário com a distribuição das atividades
torna-se tão importante quanto os prédios escolares, como instituição
reguladora do tempo. Os complexos quadros na parede do vice-diretor mostram
como tudo funciona. Em teoria é possível verificar onde cada indivíduo está em
cada momento do dia. Mas para os "rapazes" isso parece que não
funciona. Se alguém deseja contatá-los, é muito mais importante saber e
entender - seus próprios ritmos e padrões de movimento. Esses ritmos rejeitam
os objetivos óbvios do horário escolar e suas implícitas noções de tempo. A
queixa comum a respeito dos "rapazes" por parte dos professores e dos
cê-dê-efes é que eles "desperdiçam tempo valioso". O tempo para os
"rapazes" não é algo que se cultive cuidadosamente e se gaste
parciosamente na realização de objetivos desejados no futuro. Para os
"rapazes" o tempo é algo que reivindicam para si próprios agora como
um aspecto de sua identidade e auto-governo imediatos. O tempo é usado para a
manutenção de um estado — estar com os "rapazes" —, não para a
obtenção de uma meta — qualificações.
Há,
naturalmente, às vezes, um sentimento de urgência, e os indivíduos podem ver o
final do ano chegando e a necessidade de arrumar um emprego. Mas,. naquilo que
diz respeito à sua cultura, o tempo é, de forma importante, simplesmente o
estado de se ver livre do tempo institucional. Seu próprio tempo passa-se Iodo
ele como sendo essencialmente a mesma coisa, medido nas mesmas unidades. NIIo é
planejado, e não é contabilizado em termos de perdas, nem calculado como uma
troca esperada.
"Dando
umas risadas"
Até os
comunistas dão risadas (Joey).
O
espaço conquistado à escola e suas regras, pelo grupo informal, é usado para a
formação e o desenvolvimento de habilidades culturais particulares que são
devotadas sobretudo a "dar umas boas risadas". A "risada" é
um implemento multi-facetado de extraordinária importância na cultura
contra-escolar. Como vimos antes, a habilidade para produzi-la é uma das
características definidoras de ser um dos "rapazes" — "Nós podemos
fazer eles rirem, eles não podem fazer a gente rir". Mas é também usada em
outros contextos: para vencer o tédio e o medo, para enfrentar situações
difíceis e problemas — como uma saída para quase tudo. Sob muitos aspectos a
"risada" é o instrumento privilegiado do informal, como a ordem de
mando o é do formal. Os "rapazes" certamente compreendem a
importância especial da "risada":
Numa
discussão individual
Joey: Acho
que dar risadas é a coisa mais importante pra tudo. Nada me impede de dar
risadas (...). Eu lembro uma vez, estavam eu, John, e este outro garoto,
certo?, e vieram esses dois garotos e me bateram por uma razão qualquer. John e
este outro garoto estavam longe, fora, aí eu tentei revidar, mas eu continuei
apanhando... aí eu corri e enquanto corria peguei uma mãozada de neve e
empurrei no meu rosto e comecei a rir como louco. Eles ficaram dizendo:
"Você não pode rir assim". Eu deveria ter ficado com medo, mas eu
estava rindo (...).
PW: O que
é que há com dar risadas, (...) por que é tão importante? (...)
Joey: (...) Eu
não sei porque é que eu quero rir, não sei porque é tão importante assim. É
apenas (...) acho que é apenas um dom, só isso, porque você pode se safar de
qualquer situação. Se você pode rir, se você pode fazer você mesmo rir, quer
dizer, rir mesmo, de forma convincente, isto pode fazer você se safar de milhões
de coisas (...) Você acabaria louco se você não tivesse uma risada de vez em
quando.
A
escola é geralmente um terreno fértil para a "risada". De forma
importante, a escola desenvolve e molda o contexto particular para o humor
distintivo dos "rapazes". Num capítulo posterior, estaremos
examinando estilos pedagógicos particulares como unia fonte para o
desenvolvimento cultural e humorístico.
Por enquanto, entretanto, podemos observar as formas pelas quais temas
específicos de autoridade são aproveitados, trabalhados e usados em seu humor.
Muitas de suas peças e brincadeiras não significariam a mesma coisa nem teriam
graça em nenhum outro lugar. Quando uma professor chega na sala, eles dizem: "Está
tudo bem, professor, o vice-diretor vai se encarregar de nós, o senhor pode ir.
Ele disse que você não precisava dar esta aula". Os "rapazes"
detêm alunos do segundo ou do terceiro ano no pátio da escola e dizem:
"Mr. Argyle quer falar com você, acho que você se meteu em encrenca".
Logo, logo, o gabinete de Mr. Argyle está ' entupido de garotos preocupados.
Eles encontram um novo professor e dizem: "Sou novo na escola, o
vice-diretor pediu para o senhor me mostrar a escola". O novo professor
começa a fazer exatamente isto antes que as risadas ao fundo entreguem o jogo.
Enquanto circula o boato de que o diretor está examinando a caligrafia de todo
mundo para descobrir quem esteve pichando a parede do novo bloco, Fuzz se
vangloria: "O filho da puta não pode examinar a minha, eu nem tenho
caligrafia". Numa exploração bem-humorada do ponto crucial em que a
autoridade cruza com o código informal através do tabu sagrado a respeito da
delação, há um fluxo de histórias de intriga meio que compelindo o professor a
desempenhar seu papel formal de forma mais eficaz: "Professor, professor,
Joey está conversando/pegando alguns compassos/furuncando o nariz/batendo no
Percival/se masturbando/esvaziando os pneus do seu carro".
Num
nível mais geral, a "risada" é parte de uma irreverente má conduta de
pilhagem. Como um exército de ocupação do invisível, da dimensão informal, os "rapazes"
desembarcam no campo em busca de incidentes que divirtam, subvertam e
estimulem. Mesmo áreas rígidas e bem vigiadas como a sala de reuniões
apresentam muitas possibilidades de utilizar esse outro modo. Durante uma
reunião Spanksy esvazia o bolso do casaco de alguém sentado em frente dele, e
pergunta ostensivamente: "De quem é isto?", enquanto Joey prende os
casacos nos assentos, e os outros arruínam o canto coletivo:
Joey: A
principal ocupação quando estamos todos na sala de reuniões é brincar com os
grampos que prendem as cadeiras. A gente tira eles fora e prende o casaco de
alguém na cadeira e aí é só esperar que ele se levante... e a gente nunca
escuta realmente... a gente tem que ser realmente discreto pro Clark [o
vice-diretor] não ver e gritar com a gente, com os outros professores não tem
importância.
(...)
Joey: Mesmo
durante o hino... quando eles fazem a gente cantar...
PW: Mas
eles fazem vocês cantarem? Eu vi que muitos de vocês não cantavam...
__ Eu
só ficava lá de pé, movendo minha boca.
__ Nós
só temos um livro para toda a turma. Um para vinte e cinco.
__ Quando
a gente canta, a gente faz como uma brincadeira.
Fuzz: A gente
canta com a letra errada... Assim, quando a gente devia estar cantando a
primeira estrofe, a gente canta a terceira.
[Risos]
Durante
os filmes na sala de reuniões, eles dão nós cegos nos cabos do projetor, fazem
figuras de animais ou formas obscenas na tela, com os dedos, e gratuitamente
enfiam os dedos nas costas dos cê-dê-efes que estão à sua frente.
Quando
passeiam pelo parque próximo à escola, na hora do almoço, eles ligam o dínamo
da bicicleta do guarda: "Isto vai fazer com que o filho-da-puta ande mais
devagar". Eles puxam e empurram tudo que esteja solto ou seja
transportável, esvaziam lixeiras e depredam sinais e placas. Tudo aquilo que
parece propriedade privada indefesa também vira alvo:
Numa
discussão de grupo sobre vandalismo
Pete: Portões:
é o último grito em matéria de brincadeira. Trocar portões. Pegar um portão,
arrancar e colocar numa outra casa.
Bill: Foi
isto que fizemos. Estávamos indo por boliche, entende?, seguindo pela rua
Brompton, tinha lá uma casa à venda. Nós pegamos a placa de
"Vende-se" e colocamos na casa do lado, aí pegamos a vasilha pro
leiteiro de uma casa e colocamos na do lado (...), pegamos uma espécie de marco
de janela que estava na varanda e colocamos na casa do lado. Trocamos uma
carrada de coisas.
Spanksy:
E cestos de lixo! [Risos]... todas as noites, a gente vai num jardim,
pega um anãozinho, e no final tem um anãozinho, um relógio de sol, uma ponte,
um anãozinho pescando, tudo isto num jardim só, e tem um relógio de sol bem
grande no meio da rua. Ele pegou numa ponta, eu peguei na outra e a gente
carregou toda aquela distância e colocou no (...).
Visitas
fora da escola são um pesadelo para a direção e para os professores. Por
exemplo, a visita ao museu. Os assentos de trás do ônibus são solenemente deixados
vagos para os "rapazes", uma vez que eles chegam sempre atrasados.
Logo surge uma densa nuvem de fumaça nos fundos do ônibus, embora não haja
nenhuma ponta rubra de cigarro à vista. Quando o ônibus é devolvido o gerente
verifica que todos os assentos traseiros estão manchados com nomes e garatujas
feitos com tinta indelével. O diretor manda os culpados para a garagem no dia
seguinte para limpar o ônibus "em nome da reputação da escola".
No
museu os "rapazes" são como uma praga de gafanhotos devorando e
enuviando toda pompa e respeitabilidade. Numa farmácia vitoriana de imitação,
diante da bem visível proibição "Por favor, não toque", os
"rapazes" mexem, empurram, puxam, experimentam tudo que há à vista.
Eles tiram punhados de antigas pastilhas para a tosse de altos recipientes de
vidros sobre o balcão e sentam-se nas cadeiras de espaldar alto,
equilibrando-as nos pés "para ver se são fortes".
A
maquete de uma cidade é rodeada e encoberta da vista de um sempre atento
funcionário pelas costas de quinze garotos. Spanksy diz com voz de fingido
alarme: "Oh, olha só, um bonde deu uma batida", ao mesmo tempo em que
o golpeia com o dedo e Joey pega um dos homenzinhos cuidadosamente preparados e
posicionados: "Vejam só, seqüestrei um cidadão".
Eles
saem para a rua para fumar um cigarro tão logo possam escapar à vigilância do
professor. Joey está dissecando seu homenzinho "pra ver o que tem
dentro" e Spanksy está preocupado com o fato de que as pastilhas possam
matá-lo. Eles se juntam todos e apontam para o céu: "Lá está, bem acima do
edifício", ou olham fixamente para o chão, e caem na gargalhada quando se
junta uma pequena multidão. Eles param fora de uma loja de aparelhos de TV e
ficam olhando para a mulher arrumando a vitrina: "Vamos ficar olhando para
a mulher pra ver se ela se encabula". Eles conseguem e vão embora.
Finalmente, aqueles que têm algum dinheiro se separam do resto e vão para o pub
onde falam em voz alta sobre a escola e riem um tanto nervosamente quando
alguém olha para eles. Quando voltam para o ônibus, novamente atrasados, os
assentos traseiros ainda vazios, eles fingem se delatarem mutuamente para o
jovem professor: "Tem algo errado com Spanksy, professor, ele está com um
mau hálito", "A boca de Eddie está pegando fogo, professor, daria pro
senhor apagar?".
No dia
seguinte, de volta à escola, eles são chamados ao gabinete do diretor porque a
empresa de ônibus acabou de telefonar. Do lado de fora do gabinete, entretanto,
eles ainda não sabem qual falta lhes será imputada desta vez: "Talvez seja
por causa das pastilhas para tosse", "Talvez por cantar no
ônibus", "Talvez por causa da bebida", "Talvez por colocar
fogo na grama do parque", "Talvez por ter mandado o guarda à puta que
o pariu", "Talvez pelo que fizemos com a maquete". Eles ficam
surpreendidos e aliviados quando descobrem que o problema é com as manchas nos
assentos do ônibus. Sempre que um dos "rapazes" é chamado ao gabinete
do diretor, seu primeiro problema é o de mentalmente listar as muitas coisas
pelas quais ele pode ser questionado, e segundo o de inventar uma boa desculpa
para cada uma delas. Quando o formal e o informal se cruzam, a culpa e a
confusão em sua cabeça são muito maiores que o senso mais agudo de
culpabilidade na cabeça do diretor. Há, com freqüência, uma surpresa real
diante da natureza trivial e marginal da falta que "causou todo o
barulho" — especialmente tendo em vista toda a área oculta que podia ter
sido descoberta.
Naturalmente,
nem sempre os "rapazes" estão atrás de estimulantes ou vítimas
externas para suas "risadas". A interação e a conversação na grupo,
freqüentemente tomam a forma de "gozação". Eles têm uma relação muito
física e dura entre eles, com chutes, socos, golpes de karatê, quedas de braço,
empurrões e rasteiras estendendo-se por longos períodos e dirigidos contra
indivíduos particulares, chegando muitas vezes a lágrimas. A gozação, ou “tirar
sarro”, é, dá mesma forma, dura e muitas vezes dirigida contra os mesmos
indivíduos pelas mesmas coisas. Com frequência isto consiste na suposta falta
de inteligência de alguém. Isso é irônico tendo em vista a rejeição geral, por
parte dos "rapazes", do trabalho escolar, e mostra uma oculta
influência de valores convencionais que eles prontamente negariam. Embora os
"rapazes" usualmente resistam às formas convencionais de mostrar suas
capacidades, certamente os mais capazes gostam de ser vistos como
"espertos". Certos valores culturais, como falar rapidamente e o
senso de humor, aparecem de qualquer forma em algumas matérias acadêmicas. Joey,
por exemplo, equilibra-se numa corda bamba em Inglês, entre "dar uma
risada" com os "rapazes" e ocasionalmente fazer uma brilhante
redação. Sob certos aspectos a falta de inteligência óbvia é castigada mais
pesadamente pelos "rapazes" que pelos professores, que "não
esperam nada melhor". Muito freqüentemente o tema da "gozação" é
sexual, embora possa ser qualquer coisa — quanto mais pessoal, preciso e
apropriado, melhor. O máximo da espirituosidade para eles reside em destacar
aquilo que é degradante: a busca contínua dos pontos fracos. E necessária uma
certa habilidade e algum know-how para realizar tais ataques e mais
ainda para resistir a eles:
Um
grupo de "rapazes" durante o recreio
Eddie:
X faz a namorada segurar o pinto dele, enquanto ele dá uma mijada.
[Risos]
Will: Pergunta
pra ele quem é que limpa sua bunda. [Risos]
Spike:
Que filho-da-puta! Aposto como ele troca o modess pra ela. Com os
dentes! [Mais risos]
X chega
no grupo
Spanksy:
Você teve uma sessão de mijo?
Bill: Ou de
merda?
Spanksy:
Seu nojentinho... Eu não conseguiria fazer aquilo.
Bill: Espera
aí um pouco, quero que você segure meu pinto enquanto dou uma mijada. [Risos]
X: Por
que eu estou...
Will
(interrompendo): Ele nem sabe do que estamos falando.
Bill: É
verdade que tua namorada segura o pinto quando você vai dar uma mijada?
X: Quem é
que faz isso? [Risos e interrupções]
__ Você.
__ Quem?
__ Você.
__ Quando?
Spike:
Você fez isso, você contou pro Joey e o Joey me contou.
Fazem-se
continuamente planos para pregar peças em indivíduos que não estão presentes na
ocasião: "Vamos mandar ele para Coventry quando ele chegar",
"Vamos rir de tudo o que ele disser", "Vamos fingir que não
entendemos e dizer o tempo todo: `O que você quer dizer com isto?'". Indivíduos
particulares podem ganhar uma certa fama e atraírem uma constante gozação por
serem "sujos", ou "tão burro quanto uma porta", ou até
mesmo por vestirem sempre a mesma "jaqueta esfarrapada". A linguagem
usada no grupo, especialmente no contexto da zombaria e da "gozação",
é muito mais dura que a usada pelos cê-dê-efes, cheia de palavrões e com a
forte utilização do dialeto local e de um jargão especial. Conversar, pelos
menos em seus próprios domínios e à sua própria maneira, é algo que acontece
muito naturalmente entre os "rapazes":
Numa
discussão de grupo a respeito de gazear aulas
Joey: (...)
A gente está sempre procurando por alguém [quando deixa de ir à aula] e a gente
sempre tem alguma coisa pra falar... alguma coisa.
PW: Então
o que é que impede vocês de se chatearem.
Joey: Conversar,
a gente pode ficar conversando o dia todo, quando ficamos juntos é só conversa,
conversa, conversa.
O
tédio e a emoção
PW: Qual é
o contrário do tédio?
Joey: Emoção.
PW: Mas o
que é emoção?
Joey: Desafiar
a lei, quebrar a lei, como beber, por exemplo.
Spike:
Roubar
Spanksy: Andar
pelas ruas.
Joey:
Destruir coisas(...) isto é o contrário do tédio — emoção, desafiar a lei e
quando a gente está no Plough [o pub] e fala com o leão-de-chácara,
desafia o leão-de-chácara, bebendo e tal, sabendo que a gente tem 14 ou 15 anos
e pra poder estar ali tinha que ter 18.
A
risada, a conversa e o comportamento de pilhagem são bastante eficazes, mas não
totalmente, para vencer o tédio — um tédio aumentado por seu próprio êxito em
"mexer com o sistema".
A
emoção particular e a glória por pertencer aos "rapazes" advêm antes
das práticas mais anti-sociais que daqueles comportamentos. São essas
atividades mais extremadas que os distinguem mais completamente, tanto dos
cê-dê-efes quanto da escola. Há uma alegria positiva em brigar, em causar
brigas mediante intimidação, e falar sobre brigas e sobre as táticas da
situação toda de briga. Muitos valores culturais importantes são expressados
através da briga. A arrogância masculina, a exibição dramática, a solidariedade
do grupo, a importância do pensamento rápido, claro e não-moralista, aparecem
sempre. As atitudes em relação aos cê-dê-efes também são claramente expressadas
e com um surpreendente grau de precisão através da agressão física. A violência
e o julgamento da violência constituem o eixo mais fundamental da ascendência
dos "rapazes" sobre os conformistas, quase da mesma forma que o
conhecimento constitui o eixo fundamental para os professores.
Na
violência há o mais completo — ainda que não especificado — compromisso com
uma forma cega ou distorcida de revolta, rompendo com a tirania convencional da
regra, contrapondo-a ao machismo. E a última forma de romper um fluxo de
significados que são insatisfatórios, impostos de cima, ou limitados pelas
circunstâncias. É uma forma de fazer com que o mundano de repente importe. A
suposição usual a respeito do fluxo do eu indo do passado para o futuro é
interrompida: a dialética do tempo é rompida. Brigas, assim como acidentes e
outras crises, jogam a pessoa dolorosamente no "agora". Tédio e
detalhes insignificantes desaparecem. Realmente importa como os próximos
segundos serão passados. E uma vez experienciado, o medo da briga e a euforia
que se seguem, à medida que o eu retoma em segurança sua jornada, são viciantes.
Eles se tornam possibilidades permanentes para o alívio do tédio e elementos
onipresentes de uma presença e de um estilo masculinos.
Joey: Não
tem nada de cavalheirismo, nada dessas frescuras, você entende?, é só... se
você vai brigar, é uma briga selvagem, de qualquer forma, então é melhor ir até
o fim e ganhar, mesmo que tenha que apelar pra alguém que lhe ajude ou pros
métodos mais
sujos
que você possa pensar, como enfiar os dedos nos olhos Ou morder a orelha e
coisas deste tipo.
(...)
PW: O que
vocês acham, tem garotos na escola aqui que não entram numa briga de jeito
nenhum?
Spike:
É de deixar a gente louco, entende?, se você bate em alguém e ele não
reage.
PW: Por
que?
Eddie:
Eu odeio esse tipo de garoto.
Spanksy:
É, "Não vou bater em você, você é meu amigo".
PW: Bem, o
que vocês acham dessa atitude?
Joey: Depende
daquilo que você tem contra ele, se for apenas uma coisa trivial, como, por
exemplo, ele deu um chute em você, mas na hora não quis brigar pra valer... ou
se ele realmente tem algo contra você, entende?, não importa se ele reage ou
não, ainda assim você bate nele.
PW: O que
vocês sentem quando estão lutando?
Joey: (...)
é divertido, é como levar um susto... é o que você sente depois que tudo
acabou... eu sei o que sinto quando estou lutando... é que eu tenho que matar
ele, fazer o máximo pra matar ele...
PW: Vocês
realmente sentem medo quando estão lutando?
Joey: Sim,
eu tremo antes de começar a lutar. Eu fico realmente assustado, mas depois que
você realmente está no meio da coisa aí você começa a coordenar seus
pensamentos, entende?, vai ficando cada vez melhor e aí, se você é mesmo bom,
você acaba com o sacana. Você faz ele beijar o chão e aí simplesmente salta em
cima da cabeça dele.
Deve-se
observar que apesar de sua destrutividade, sua natureza anti-social e aparente
irracionalidade, a violência não é completamente aleatória, ou em qualquer
sentido a derrubada absoluta da ordem social. Mesmo quando dirigida contra
grupos de fora (e por isso mesmo, naturalmente, ajudando a definir quem
pertence ao grupo), um dos aspectos mais importantes da violência é
precisamente seu significado anti-social no interior da própria cultura dos
"rapazes". Ela marca a entrada final no sistema informal de status e
sua validação última. Ela regula uma espécie de "honra" — ainda que
deslocada, distorcida ou seja lá o que for. A briga é o momento em que se é
completamente testado na cultura alternativa . E desastroso para a posição
informal e para a reputação masculina de alguém recusar-se a lutar, ou sair-se
mal numa briga. Embora não se espere que ser um dos "rapazes"
implique necessariamente em procurar brigas — quem faz isto é o
"durão", uma figura respeitada, embora com freqüência não muito
querida e dificilmente capaz de dar uma "risada" certamente espera-se dele que lute quando
ofendido ou intimidado, que seja capaz de "cuidar de si mesmo", que
"não Nota nenhum frouxo", que impeça as pessoas de "mexer"
com ele.
Entre
os líderes e os membros mais influentes — que comumente não são os "durões"
— é a capacidade para lutar que determina a hierarquia final. E a
freqüentemente não testada habilidade para lutar que valoriza o status, o qual
comumente, e de forma interessante, tem como base outros elementos: uma fachada
masculina, ser de uma família "famosa", ser engraçado, ser bom em
"passar a lábia", a extensão dos contatos informais.
A
violência é reconhecida, entretanto, como uma sentença final imprevisível e
perigosa que não se deve permitir que fique fora do controle entre pares. A
violência simbólica ou verbal deve ser preferida, e se uma luta real torna-se
inevitável os controles sociais normais e o sistema., estabelecido de status e
de prestígio devem ser restaurados tão logo quanto possível:
PW: (...)
Quando foi a última briga que você teve, Joey?
Joey: Duas
semanas atrás... cerca de uma semana atrás, na segunda-feira de noite, circulou
este boato idiota. Foi uma bobagem, realmente, não deviam ter ido dizer
praquele idiota que eu ia bater nele, mas como não fui eu que espalhei, e ele não
queria se abaixar, ele espalhou que ia me pegar, nós tivemos uma luta e o
pessoal nos separou. Eu deixei ele todo marcado. Ele me deixou com a boca
inchada, me deu uma cabeçada, machucou o meu nariz aqui. Mas eu acertei o olho
dele com meu dedo, parti a cabeça dele, aí, depois que nos separaram, peguei
ele, levei ele prum canto e disse pra ele que eu não estava com medo dele, e eu
sei que eu não estava com medo dele, ele estava com medo de mim, ele estava com
medo de mim, foi só isso. Foi uma espécie de...ahn... ele é de uma família, uma
família enorme como a nossa, eles são durões, são brigões os Jones, e...ahn...
eu não queria começar uma briga com eles, por isso eu só peguei ele e mostrei
pra ele quem tinha força.
De uma
forma mais geral, o clima de violência, com suas conotações de masculinidade,
espalha-se pela cultura contra-escolar inteira. A natureza física de todas as
interações, as lutas e os empurrões de faz-de-conta, a exibição em frente das
garotas, as demonstrações de superioridade e de desprezo com relação aos
conformistas, tudo isto é tomado de empréstimo à gramática da situação real de
luta. É difícil simular este estilo a menos que se tenha experimentado a
violência real. O tema da luta emerge freqüentemente no trabalho escolar
oficial — especialmente agora na era do progressivismo e da relevância. Uma das
redações de Inglês de Bill começa assim: "Não podíamos enfrentar os paquis
[paquistaneses] só em quatro", e continua: "Eu vi seu pé atingir sua
virilha" e "chutando a cabeça do imbecil", até chegar a: "e
aí escureceu tudo" (quando "acertam" o próprio autor). Na opção
existente no RSLA, de realização de uma atividade cinematográfica, na qual os
alunos podem fazer seus próprios curta-metragens, os "rapazes"
invariavelmente rodam histórias sobre roubos de banco, assaltos e perseguições
violentas. Joey se envolve mais na atividade do que em qualquer outra ocasião
durante todo o ano. Quando está dirigindo uma seqüência de luta e ocorre de
Spanksy não provocar seu adversário de forma realista, ele diz: "Provoca
ele de verdade, provoca ele de verdade, você deve dizer: ‘Vou te pegar, seu
filho da puta’ e não ‘Está bem, vamos lutar'. Mais tarde, ele se mostra
contrariado quando Eddie mergulha em cima de alguém para concluir uma luta:
"Você não deve fazer isto, você só tem que chutar ele pra evitar que suje
tua roupa".
Os
perenes temas da violência física e simbólica, a fachada de dureza e a pressão
exercida por um certo tipo de masculinidade ampliam-se e são mais claramente
expressados entre os "rapazes" à noite, na rua, e particularmente nas
danças numa discoteca de propriedade particular. Embora sejam relativamente
caras e não muito diferentes das que se têm, por um décimo do preço, no Clube
da Juventude, essas danças são o lazer preferido dos "rapazes". Isso
se deve basicamente ao fato de que aí há uma margem de perigo e competição no
clima e nas relações sociais que estão ausentes no Clube da Juventude. Aquilo
que é oferecido nesses salões pode ser criticado sob muitos aspectos, não estando
entre os menos importantes o seu custo relativamente elevado e o uso
instrumental que faz daqueles para os quais se dirige. Entretanto, ao menos
eles respondem aos desejos de seus clientes, tal como eles são sentidos, sem
colocar nenhuma restrição moral com relação à forma como eles se expressam. Num
certo sentido, os "rapazes" têm uma espécie de liberdade nesses
salões. Sua forma alienada e exploradora deixa-os, pelo menos, livres da
claustrofobia e das restrições impostas por imperativos morais irrelevantes ou
opressivos nas organizações oficiais de lazer. Toma-se possível aí o
aparecimento e a interação de formas culturais internas, sem intervenção de
cima:
Spike:
O bom é quando tem um bar na discoteca.
Will: É,
acho que se tem um bar lá a gente tem que ser mais... cuidar o que está
fazendo, não contar muita vantagem, porque algumas pessoas quando estão cheias
de cerveja (...) elas vêem um monte de gatas lá e pensam: "Vou mostrar que
sou o bom" e ficam andando pra lá e pra cá, como durões, entende? (...).
Estão loucos pra aprontar uma briga por nada.
Spike:
O Billy Everett, caras como ele, ele dá uma circulada, alguém olha pra
ele e ele já começa uma briga com al uém ...).
PW: Como é
que se inicia uma briga, você olha pra alguém.
Spike:
Não, alguém olha pra você.
Will: É
isto, você simplesmente dá uma voltinha e alguém olha pra você.
Spike:
Ou se você passa por alguém, você esbarra nele de propósito e você jura
que foi que ele que te empurrou.
PW: Então,
se você está numa discoteca e quer evitar uma briga, você tem que ficar olhando
pros pés o tempo todo, não é mesmo?
__ Não.
__ Não
mesmo.
Spike: (...)
Tem que olhar pra eles e dar o fora.
Fuzz: Se
você conhece um monte de pessoas lá, você está falando com elas, então você
também se sente seguro, se você conhece um monte de gente.
Will: Não
tem problema se você conhece um monte de gente lá.
Spike:
Se você vai a uma discoteca em que você não conhece ninguém aí é duro.
(...)
Spike:
Lá [na ala juvenil da escola] não tem clima, pra começo de conversa não
tem um bar. Você tem que ficar tomando refrigerantes e chupando balas a noite
toda.
Will: Eu
acho... este clube até que daria se eles arrumassem uns caras que a gente nunca
viu antes.
Spike:
Aí seria legal.
Will: Aí
seria legal, porque haveria um certo clima e entende?, a gente ficaria olhando
um pro outro, aí você voltaria e diria: "Não gosto daquele viado, olha só
o jeito que ele está olhando pra gente". Aí então haveria alguma coisa
acontecendo dentro e fora depois... mas agora só tem o Jules [o líder juvenil]
caminhando por ali, coisas deste tipo, entende?
As
atividades noturnas e de fim-de-semana fazem com que todas as divisões
existentes na escola, além de outras — algumas vezes mais ambíguas,
especialmente as que envolvem diferenças de classe social — se projetem ainda
mais nas roupas, na música e no estilo físico. Ser um dos "rapazes"
na escola está também associado com "sair" à noite e desenvolver uma
compreensão social não apenas da escola, mas também do bairro, da cidade e das
ruas:
Will: Vestem-se
com classe, como os garotos modernos, certo?, os que se vestem de forma
moderna. Têm os durões, depois têm os que são quietos (...) mas que sabem se
cuidar, quer dizer, se vestem de forma moderna e andam com os durões, coisas
deste tipo. Depois têm os que abrem a mão, os caras de quem você pode
tirar
alguma grima, que compram amizade. Depois você entra na turma dos arrumadinhos,
dos almofadinhas (...).
PW: Arrumadinho
não é a mesma coisa que bicha, é?
Will: Não,
quer dizer a mesma coisa que cê-dê-efe, os bonzinhos, os comportadinhos, que
não vêem o lado ruim de nada (...). Acho que os durões e a turma do reggae,
entende o que quero dizer?, reggae e soul, eles não dão bola pra essas coisas
loucas, os arrumadinhos, os almofadinhas, como os... Osmonds, entende?, Gary
Glitter.
PW: (...)
os malucões, os tipos estranhos, como eles se encaixam nisto, Will?
Will: É,
bem, não sei (...), a gente descobre que um monte desses tipos esquisitos são
intelectuais e tudo.
Spike:
Não são do nosso tipo.
Fuzz: Quero
dizer, por exemplo, você vai até o The Plough, quando a discoteca está
funcionando (...), quando tem toda aquela música pesada, e vê os caras com seus
cabelos longos, roupas surradas (...) jeans e tudo, e você vai numa noite de
soul, e vê os caras com calças largas, entende?, camisas de colarinho grande,
dá pra gente ver que é diferente.
(...)
Will: Acho
que você se sente por fora do mesmo jeito, porque eu estive no Junction, no
centro da cidade, é um lugar da pesada, tem drogas e tudo, e todo mundo estava
vestido de forma realmente esquisita (...) e eu me senti por fora, bem, me
senti por fora daquilo, entende o que quero dizer?, me senti mais esperto que o
resto, como se eu estivesse indo prum casamento, ou estivesse num casamento, e
eles estivessem trabalhando numa fazenda.
É a
perspectiva mais ampla, a liberdade adicional e as maiores oportunidades para
emoções que tornam a noite infinitamente preferível ao dia (na escola). Sob
alguns aspectos a escola é um espaço em branco em meio a oportunidades para
emoções na rua ou numa discoteca com os amigos, ou para tentar
"acertar" com uma garota. Nos diários mantidos pelos
"rapazes", com a intenção de registrar as "coisas principais que
acontecem com a gente durante o dia", a escola aparece registrada apenas
com a simples frase "fui à escola" (ou no caso de Will, com imensos
parênteses), enquanto a metade de cada página detalha aquilo que acontece
depois da escola, incluindo o importantíssimo "Fui pra casa, troquei de
roupa, saí pra rua". Entretanto, embora a escola possa ser suprimida da
vida de muitos desses garotos, esta "invisibilidade" não nos deve
levar a crer que a escola não seja importante em termos do que eles vivenciam
(veja o capítulo seguinte).
A
pressão para sair à noite, ir a urna discoteca em vez de a um clube juvenil, ir
a pubs em vez de ficar em casa, para comprar roupas da moda, fumar e sair com gaotas
— todas essas coisas que são sentidas como constituindo a "verdadeira essência
da vida" — exercem uma enorme pressão financeira sobre os
"rapazes". A falta de dinheiro é a maior pressão existente em suas
vidas, vindo imediatamente após a de ter que ir à escola:
Numa discussão individual
Joey: (...)
afinal não dá pra viver sem comer, sejamos francos, a merda do dinheiro é o que
dá sabor à vida, dinheiro é vida. Sem dinheiro você está morto. Quero dizer,
não há nada ao alcance da mão que você possa comer, você não pode comer
árvores, você não pode comer casca de árvore.
Exploram-se
todos os possíveis contatos na família e entre os amigos e conhecidos
ocasionais e percorre-se o bairro em busca de trabalho em pequenos negócios,
lojas, na entrega de leite, como faxineiros, chaveiro, sorveteiro e como caixa
e empacotador em supermercados. Algumas vezes eles trabalham em mais de um emprego
desse tipo. Trabalhar mais de dez horas por semana não é incomum. A partir do
quarto ano, Spike acha que seu trabalho num atacadista de tecidos é mais
importante que a escola. Ele alegremente deixa de ir à escola por dias e até
semanas para poder trabalhar. Ele tem orgulho do dinheiro que ganha e gasta:
ele chega até mesmo a ajudar na conta de gás de seus pais quando eles
"estão mal de grana numa determinada semana". Joey trabalha com seu
irmão como pintor e decorador durante o verão. Ele vê o seu trabalho como um
trabalho "real" e a escola como uma espécie de férias forçadas. Não
há dúvida nenhuma de que sua capacidade para "se dar bem" no mundo
real, para lidar às vezes com grandes quantidades de dinheiro (Spike
regularmente ganha mais de vinte libras por semana, embora a média para os
outros esteja abaixo de cinco libras) e para lidar com adultos quase que em
igualdade de condições reforça a auto-confiança dos "rapazes" e sua
sensação, pelo menos nesta altura, de qualquer forma, de que eles "sabem
mais" que a escola.
Existe
até mesmo uma sensação de superioridade com relação aos professores. Eles não
sabem "como é o mundo", porque estiveram em escolas ou faculdades
todo o tempo de suas vidas — "O que é que eles sabem pra ficarem nos
ensinando?". Como o próximo capítulo mostrará, existem também muitas
semelhanças profundas entre a contra-cultura escolar e a cultura do chão de
fábrica A cultura escolar emergente tanto se vê reforçada quanto provida
diretamente de material por aquilo que os "rapazes" consideram como
sendo a única fonte verdadeira de conhecimento do mundo: o mundo do trabalho da
classe operária.
Capítulo V – pp. 151-167
Penetrações
Embora
tenhamos olhado com algum detalhe, através do estudo de caso, para a experiência
e os processos culturais vividos por alguém situado na posição dos "rapazes"
(sexo masculino, branco, de classe operária, sem qualificações, ressentido e
destinado ao trabalho manual no capitalismo contemporâneo), há ainda aguns
mistérios a serem explicados. Num certo sentido, poderia parecer que um
conjunto de causalidades aleatórias — patologia individual e privação cultural
— foi simplesmente substituído por um outro — criatividade cultural e
continuidade. Observamos como alguns jovens de classe operária se distanciam da
instituição. Mas por que isto acontece? Vimos a convicção com que eles defendem
suas opiniões, insights e sentimentos de eleição cultural. Mas qual é a
base dessa exaltação subjetiva? Vimos sua atitude para com a estrutura
ocupacional. Mas como podemos explicar o fato de isso se constituir
simplesmente no outro lado da mesma avaliação convencional? Vimos como suas
convicções e insights genuinamente sustentados conduzem ao fim e ao cabo
a uma situação objetiva de trabalho que parece ser mais um aprisionamento que
uma libertação. Mas de que forma isso ocorre? Quais são os determinantes
básicos dessas formas culturais cujas tensões, inversões, continuidades e
resultados finais nós já exploramos?
Elementos
de análise
A fim
de responder a algumas dessas questões e contradições, temos que penetrar sob a
superfície da etnografia de uma forma mais interpretativa. Sugiro que podemos
obter uma compreensão mais profunda da cultura que estudamos através das noções
de penetração e limitação.
"Penetração"
designa impulsos no interior de uma forma cultural dirigidos à compreensão das
condições de existência de seus membros e de suas posições no interior do todo
social, de uma forma não centrada, não essencialista ou individualista.
"Limitação" designa aqueles bloqueios, digressões e efeitos
ideológicos que confundem e dificultam o desenvolvimento pleno e a expressão
desses impulsos. O termo um tanto canhestro, mas rigorosamente exato,
"penetração parcial", designa a interação desses dois termos numa
cultura concreta. A etnografia descreve o campo de jogo no qual os impulsos e
limitações se combinam, mas ela não pode isolá-los teoricamente ou mostrá-los
de forma separada.
As
penetrações são não apenas crucialmente distorcidas e privadas de sua
independência por limitações internas e externas, mas são também, ao final,
trazidas de volta por essas limitações, através de formas complexas, à
estrutura que elas estão desvelando. Existe, em ultima instância, uma relação
culpada e não-reconhecida — precisamente, uma relação "parcial" —
entre essas penetrações e aquilo do qual elas parecem ser independentes e que
parecem entrever. É somente essa combinação específica de "insight"
cultural e parcialidade que propicia a força mediada da validação pessoal e da
identidade ao comportamento individual que conduz, no foral, ao aprisionamento.
Existe realmente, em algum nível, uma base racional e potencialmente formativa
para resultados que parecem ser completamente racionais e regressivos. E, eu
argumento, apenas esta dupla articulação contraditória que possibilita que uma
sociedade de classes exista sob formas liberais e democráticas, que
possibilita que as pessoas se engajem livremente numa condição não-livre. Mais
concretamente, a auto-preparação cultural e subjetiva específica da força de
trabalho que examinamos envolve uma progressão potencial em direção a
alternativas mais racionais, a qual é travada e desequilibrada, sem
salvaguardas, por limitações cruciais. Isto se resolve, ao fim e ao cabo — sem
nenhuma âncora no convencional e todavia também ainda não no alternativo — na
internalização subjetiva de uma certa definição da capacidade de trabalho
manual. Esta é uma solução, entretanto, que, não obstante, carrega consigo
alguma coisa da afirmação e da eleição que se baseiam em penetrações culturais
bloqueadas ou distorcidas. A coisa surpreendente que este livro tenta
apresentar é que há um momento — e é necessário apenas isto para que as portas
se fechem sobre o futuro — na cultura operária em que a oferta manual da
capacidade de trabalho representa tanto uma liberdade, uma escolha e uma
transcendência, quanto uma precisa inserção num sistema de exploração e
opressão para as pessoas da classe operária. O primeiro termo da equação
promete o futuro, o segundo mostra o presente. É o futuro existente no presente
que funde liberdade e desigualdade na realidade do capitalismo contemporâneo.
O
resto deste capítulo traça alguns dos impulsos dirigidos à penetração na
cultura contra-escolar. Os dois próximos capítulos lidam com aquelas limitações
internas e externas que distorcem e impedem que eles cheguem às condições
realmente determinantes e ao contexto pleno da forma cultural. Muito do que
segue é relevante para a cultura operária em geral. Antes disso, entretanto, é
necessário examinar mais de perto os elementos envolvidos na noção de
"penetração": a forma real de sua ação no mundo, o âmbito de sua ação
e sua base na agência humana. Em particular, devemos definir em que sentido as
penetrações culturais das relações e categorias fundamentais da sociedade podem
ser ou "racionais" ou "criativas".
A
cultura contra-escolar e seus processos originam-se sob circunstâncias
definidas, numa relação história específica, e não são, em nenhum sentido,
acidentalmente produzidas. O reconhecimento da determinação não descarta,
entretanto, a criatividade. Devemos, contudo, imediatamente, insistir sobre
duas matizações. A criatividade não está em nenhum ato individual, em nenhuma
cabeça particular, e não é o resultado da intenção consciente. Sua lógica só
pode se dar, como eu argumento mais adiante, ao nível do grupo. Em
segundo lugar, a criatividade não pode ser descrita como uma capacidade
singular ou uma capacidade apta a produzir resultados ilimitados. Ela também
não pode ser considerada em qualquer sentido um domínio, um controle — sobre o
futuro ou sobre o presente. Pelo contrário, ela conduz, paradoxalmente, a
aprisionamentos profundos, que são ainda mais reforçados pelo fluxo da certeza
subjetiva.
Tendo
feito estas advertências, entretanto, deve-se também insistir que essa forma
cultural não é produzida por uma simples determinação externa. Ela é produzida
também a partir das atividades e lutas de cada nova geração. Estamos lidando aqui
com vontade e ação — mesmo que não conscientemente dirigidas — coletivas, no
momento em que elas se sobrepõem e assumem elas próprias posições
"criativas", com relação às quais acabam por reproduzir o que
chamamos de "determinações externas". São esses processos subjetivos
e culturais e as ações que deles fluem que realmente produzem e reproduzem o
que pensamos como sendo aspectos da estrutura. É apenas através da passagem por
esse momento que as determinações se tornam realmente efetivas no mundo social.
Os indivíduos, "livre" e "consentidamente", tomam decisões
nesse campo que nenhuma quantidade de comando externo poderia produzir. Se os
garotos de classe operária, em seu caminho para o mundo do trabalho, não
acreditassem na lógica de suas ações por si próprios, não haveria ninguém de
fora, nem evento externo algum, que pudesse convencê-los — especialmente em
vista do julgamento convencional daquilo que eles estão fazendo e do lugar para
onde estão indo. A cultura fornece os princípios do movimento e da ação
individuais.
As
penetrações produzidas ao nível cultural na classe operária, entretanto, por
aquilo que eu ainda quero chamar de uma certa criatividade, não são de forma
alguma completamente abertas. Elas correm ao longo de certas linhas cujos
determinantes básicos se situam fora do indivíduo, grupo ou classe. Não é por
acaso que diferentes grupos em diferentes escolas, por exemplo, aparecem com
insights semelhantes, mesmo que eles sejam os produtos de esforços separados, e
se combinem assim para criar vínculos de classe distintos. Todos os grupos
estão realizando penetrações praticamente sob as mesmas condições realmente
determinantes, as quais presidem suas possibilidades presentes e futuras. O
objeto da criatividade, portanto, é algo para ser descoberto, não para ser
imaginado. Os limites do que é descoberto já estão estabelecidos, assim como
suas relações internas. Em outra sociedade o caminho teria sido mostrado aos
"rapazes"; eles não teriam descoberto o seu próprio caminho
Naturalmente
toda a especificidade do nível cultural desenvolvido aqui consiste no fato de
que esses insights não são simplesmente lições aprendidas, nem
informações passivamente absorvidas. Eles são vividos e são o resultado de uma
exploração concreta e incerta. É com base nesses insights desenvolvidos
profundamente que são afirmadas aquelas outras formas de comportamento, ação e
prazer que dão a aparência mais vistosa e a vida criativa mais óbvia a uma
cultura.
Num
certo sentido esse ponto mais central de referência é um centro ausente, ou ao
menos silencioso, por debaixo da esplêndida fantasia de uma cultura. É
impossível provar sua racionalidade. Nenhuma quantidade de perguntas diretas
conseguirá extraí-lo dos participantes culturais. A variedade de formas e desafios
na superfície da cultura fazem duvidar da noção de que eles possam ter uma
causa concêntrica. É por isso que a etnografia das formas visíveis é limitada.
As características externas, mais obviamente criativas, variadas e algumas
vezes aleatórias, devem ser referidas a seu âmago. A lógica de uma forma de
vida deve ser traçada até ao âmago de suas relações conceituais, se quisermos.
entender a criatividade social de uma cultura. Isso sempre diz respeito, em
algum nível, a um reconhecimento da (e uma ação sobre a) particularidade de seu
lugar no interior de urna estrutura social determinada.
Uma
das razões mais profundas pelas quais essa criatividade social não pode ser
expressada racionalmente ao nível superficial da cultura é que isso constitui
verdadeiramente apenas a metade da história. Ela não provém realmente, com um
propósito expressivo puro, do centro da cultura. Devemos supor a penetração
como sendo um insight límpido e coerente a fim de dizer o que ela é, mas as
formas concretas das culturas, como a etnografia insistentemente nos faz
recordar, não permitem uma dinâmica pura e única. Em sua formação mesma esses
"insights" são distorcidos, virados e depositados em cima de
outras formas (tais como a afirmação subjetiva do trabalho manual), o que faz
com que se torne difícil acreditar que alguma vez tenha havido, ou que pudesse
alguma vez ter havido, até mesmo alguma idéia de um núcleo racional (e muito
menos ainda um núcleo que pudesse ser facilmente expressado). Isso significa,
entre outras coisas, que devemos distinguir entre o nível do cultural e o nível
da consciência prática em nossa especificação da criatividade e da
racionalidade.
O
argumento não é o de que os insights são formados conscientemente em uma
determinada mente ou mesmo na mesma mente ou grupos de mentes ao longo do tempo
— embora a palavra falada cotidiana possa iluminar seus aspectos de forma
variável e em contradição consigo mesma ou talvez de forma inconsciente. A
consciência direta e explícita pode em alguns sentidos ser nosso guia mais
pobre e menos racional. Ela pode muito bem refletir apenas os estádios finais
dos processos culturais e as formas mistificadas e contraditórias que os insights
básicos assumem à medida que eles são vividos. Além disso, em diferentes pontos
no tempo ela pode representar os momentos contraditórios dos conflitos e
processos culturais existentes sob ela. Quanto a isso, por exemplo, não é
surpreendente que perguntas verbais produzam contradições verbais. Não apenas
isto, mas consciência prática é a mais aberta à distração e à influência
momentânea. repetição de determinados padrões, as tentativas de agradar ao
outro, o mimetismo superficial, as tentativas honestas para observar normas
abstratas de, digamos, polidez, elegância ou do que é tomado como inteligência,
podem ser misturados com comentários e respostas que têm uma ressonância
cultural verdadeira. Os métodos de pesquisa de opinião e todas as formas de
método que confiam basicamente em respostas orais ou escritas, não importa qual
seja seu refinamento, não podem jamais distinguir estas categorias.
Isto
não significa de forma alguma descartar a consciência. Ela é uma fonte
privilegiada de informação e significado se apropriadamente contextualizada e,
em última instância, a única âncora na luta por significados. Ela é parte do
nível cultural e está relacionada mais basicamente a esse como a expressão
imediata de sua lei. Ela une-se a ele e tem uma consistência, uma validade e um
papel diretamente formativo com respeito à sua complexidade. A consciência é,
em qualquer sentido concebível, "falsa" apenas quando ela é separada
de seu contexto cultural variável e é solicitada a responder a perguntas.
A
criatividade e os impulsos racionais da cultura contra-escolar não são,
portanto, idealistas, ou o produto fantástico da imaginação. Eles também não
estã basicamente centrados no indivíduo em ação e em sua consciência. Além
disso, ele` também não são capazes de efetuar qualquer movimento que queiram.
Eles não sã capazes, finalmente, de nenhuma forma, de prefigurar o futuro. Uma
visão romântica das formas culturais operárias afirma que elas estão
experimentando de alguma forma com o futuro. Isto supõe que elas fornecem
esboços concretos d vida para quando o capitalismo for derrubado. Não há
nenhuma forma pela qual essas idéias possam prometer o que oferecem ou dar o
que prometem. É bastante errado descrever a cultura ou a consciência operária,
otimisticamente, como vanguarda na grande marcha em direção à racionalidade e
ao socialismo. Se alguma coisa pode ser dita — o argumento central deste livro
— é que são esses elementos de racionalidade e de futuro da cultura operária, e
particularmente da cultura da, escola, que atuam, ao fim e ao cabo, em sua
forma social atual e de form complexa e involuntária, para impedir precisamente
isso. É a aparente ascensão cultural da classe operária que traz o inferno de
seu próprio e real presente.
Devemos
fechar essa lista de negativas, entretanto, apresentando aquele potencial
distintivo e freqüentemente não reconhecido que a criatividade cultural e insight
da classe operária realmente têm. Ele está embutido na única classe na formação
social capitalista que não tem um interesse escuso, estruturalmente
fundamentado, em mistificar a si própria. Embora haja muitas barreiras a uma
compreensão apropriada, embora haja muitas inversões e distorções ideológicas,
e embora os instrumentos para a análise estejam muitas vezes ausentes, ainda
resta o fato de que a classe operária é a única classe não inerentemente
estruturada a partir do interior pela complexidade ideológica da organização
capitalista. Ela não toma, nem precisa, portanto, sustentar a
"iniciativa" cultural e social e estai, assim, potencialmente mais
livre de sua lógica.
A
classe operária não tem que acreditar na ideologia dominante. Ela não precisa
da máscara da democracia para ocultar sua face de opressão. A própria
existência e consciência da classe média estão profundamente integradas naquela
estrutura que lhe dá o domínio. Não existe ninguém que acredite mais firmemente
do que aqueles que oprimem como homens honestos. Que tipo de burguesia seria
aquela que não acreditasse de alguma forma na sua própria legitimação? Isso
seria a sua própria negação. Seria a solução de um problema do qual eles são a
principal charada. Isso conduziria à auto-destruição como o seguinte movimento
lógico. A classe operária é o único grupo no capitalismo que não tem que
acreditar nas legitimações capitalistas como uma condição de sua própria
sobrevivência.
Limites
claros devem, entretanto, ser outra vez traçados. Esse potencial para a
desmistificação não chega a constituir-se numa capacidade para prefigurar
outras formas — esta capacidade deve esperar por uma mudança estrutural para
reflexivamente determinar suas próprias práticas culturais e formas estáveis de
padrões e circuitos de intenção e não-intenção. Tudo que podemos dizer é que a
desmistificação da ideologia, legitimações e auto-ilusão capitalistas é uma
pré-condição para uma sociedade apropriadamente socialista. Não temos, entretanto,
ainda, nenhum exemplo dessa. Por enquanto, e especialmente para nosso objeto
imediato de estudo, essa maior capacidade para a penetração cultural tem
resultado, em sua forma social real, num aprisionamento mais profundo e mais
enredado no interior da ordem capitalista. Estamos longe de ter respondido a
questão de se esta capacidade, sob qualquer forma que ela tenha realmente
assumido, é uma bênção ou uma maldição.'
Isso
significa argumentar, portanto, em favor de um certo tipo de criatividade. Ela
permanece, entretanto, flutuando livremente no ar, a menos que possamos
especificar a base humana a partir da qual ela surge e sua forma particular de
atuar sobre o mundo, sua forma de práxis.
Sugiro
que a menor unidade, a mais fundamental, que funciona como base para a
penetração cultural é o grupo informal. O grupo é algo especial e mais que a
soma de suas partes individuais. Ele tem, em particular, uma dinâmica social
que é relativamente independente dos problemas e localizações, pré-concepções e
preconceitos. Uma força social que podemos simplesmente chamar de lealdade
tende a sobredeterminar atitudes anteriores e as condições específicas da
existência do grupo. A microsociologia americana tem demonstrado que a
liderança, os objetivos da liderança, a manutenção do grupo e a convergência
das opiniões individuais, são características permanentes dos grupos (ao menos
no capitalismo ocidental).5 A forte sustentação de opiniões e objetivos grupais
constitui um requisito para a existência continuada do grupo. A psicologia
social chama a isso de "moral alto". O poder que é assim gerado no
grupo e sua natureza aberta não especificada constituem uma força social
importante. E em parte a partir dessa fonte que articulações culturais
simbólicas mais amplas são geradas.
Temos,
portanto, no grupo informal, uma relativa suspensão dos interesses individuais
e um compromisso para com a realidade do grupo e seus objetivos, os quais não
estão estreitamente especificados na história de seus membros ou na localização
do grupo. Neste sentido o grupo pode, portanto, ser considerado como um sujeito
de direito próprio. Ele tem um impulso interno para encontrar um objetivo
específico para seu próprio nível de uma forma não limitada pelo conhecimento
anterior, pela experiência ou pela ideologia de seus membros individuais.'
Desejo sugerir que a cultura contra-escolar operária, sustentada pelo grupo
informal e por uma série infinita de contatos entre grupos passando adiante o
que é melhor e mais relevante, coloca
sua força aberta, ao menos em parte, a serviço de uma desmistificação, à
sua própria maneira, das condições e possibilidades reais de seus membros numa
sociedade de classes. Isto não significa afirmar que essas intenções, ou o
conteúdo final da compreensão, esteja realmente na cabeça de alguém, que seja o
resultado de uma vontade subjetiva individual, ou mesmo que esteja na forma de
uma racionalidade individual. Estamos lidando com a unidade do grupo e com o
nível específico do "insight" cultural. Deve também ser lembrado que
a parcialidade das penetrações feitas a esse nível impede, de qualquer forma,
seu pleno desenvolvimento e expressão racionais.
Tendo indicado a base, a força e a abrangência daquilo que, em minha opinião,
deve ser visto como uma espécie de criatividade, resta ainda indicar a forma
característica de sua atuação sobre o mundo, a práxis que permite aquilo que eu
chamei de penetrações culturais. A expressão característica dessa força sobre o
mundo é, eu sugiro, uma espécie de produção. O cultural não traduz
simplesmente, de forma mecânica, nem expressa, de alguma forma simples, as
contradições sociais mais amplas. Ele atua sobre elas com seus próprios
recursos para chegar a soluções parciais, recombinações, transformações
limitadas, que são incertas, sem dúvida, mas concretas, específicas, com
relação a seu próprio nível, e a base para ações e decisões que são vitalmente
importantes para a ordem social mais ampla.
Os materiais relevantes para esse tipo de atuação e produção não são necessariamente produzidos a partir do exterior. Na verdade, a práxis para a qual estou apontando produz parcialmente seus próprios materiais para sua própria atividade, numa luta com as limitações impostas pelas formas disponíveis.' O que libera a força do grupo em direção à forma concreta do especificamente cultural, tal como analisado na parte I do livro é, de forma importante, uma deflexão do modo dominante de significação — a linguagem — para formas de expressão
comportamentais, visuais e estilísticas de oposição. As palavras convencionais não podem, de forma apropriada, submeter e "dizer" os materiais das penetrações feitas ao nível da unidade infraestrutural do grupo, sob o modo cultural. As palavras criadas sob a influência burguesa, sob determinadas condições, não podem expressar aquilo que não entrou em sua formação. Parte da reação à instituição escolar representa, de qualquer forma, uma rejeição das palavras e da linguagem respeitável como a expressão da vida mental. A forma pela qual esses insights criativos são expressados é, portanto, um dos antagonismos expressivos com relação ao modo burguês dominante de significação — a linguagem. Num sentido real, o cultural, para a classe operária, está em luta com a linguagem. Isto não significa reduzir o cultural a um comportamento anti-abstrato. Significa formulá-lo, em parte, como uma forma antagonística de expressar a vida mental e abstrata que esteja centrada não no sujeito individual, mas no grupo: não na linguagem convencional, mas na demonstração vivida, no envolvimento direto e no domínio prático.
Os materiais relevantes para esse tipo de atuação e produção não são necessariamente produzidos a partir do exterior. Na verdade, a práxis para a qual estou apontando produz parcialmente seus próprios materiais para sua própria atividade, numa luta com as limitações impostas pelas formas disponíveis.' O que libera a força do grupo em direção à forma concreta do especificamente cultural, tal como analisado na parte I do livro é, de forma importante, uma deflexão do modo dominante de significação — a linguagem — para formas de expressão
comportamentais, visuais e estilísticas de oposição. As palavras convencionais não podem, de forma apropriada, submeter e "dizer" os materiais das penetrações feitas ao nível da unidade infraestrutural do grupo, sob o modo cultural. As palavras criadas sob a influência burguesa, sob determinadas condições, não podem expressar aquilo que não entrou em sua formação. Parte da reação à instituição escolar representa, de qualquer forma, uma rejeição das palavras e da linguagem respeitável como a expressão da vida mental. A forma pela qual esses insights criativos são expressados é, portanto, um dos antagonismos expressivos com relação ao modo burguês dominante de significação — a linguagem. Num sentido real, o cultural, para a classe operária, está em luta com a linguagem. Isto não significa reduzir o cultural a um comportamento anti-abstrato. Significa formulá-lo, em parte, como uma forma antagonística de expressar a vida mental e abstrata que esteja centrada não no sujeito individual, mas no grupo: não na linguagem convencional, mas na demonstração vivida, no envolvimento direto e no domínio prático.
Isto
não significa negar a consciência individual e o uso da linguagem em sua
conexão dialética com a prática de classe, mas significa sugerir a
possibilidade, numa sociedade de classes, de uma forma assimétrica e
distanciada de uma relação entre as duas. A linguagem na cultura contra-escolar
não é menos rica que na cultura conformista — na realidade é bastante mais
incisiva e viva — mas ela não pode expressar, e não é, portanto. usada daquele
modo, aqueles insights mentais que são, de qualquer forma, excessivos para a
linguagem convencional. Os significados criativos advindos da força da
criatividade em grupos informais são canalizados de volta para o grupo e para o
cultural para aí orientar, fazer valer e moldar muitas outras formas de
práticas físicas e estilísticas. Práticas culturais relativamente autônomas,
tais como transformações em roupas, hábitos, estilos de comportamento,
aparência pessoal e interação grupal, podem todas ser vistas à luz dessa práxis
mais ampla.
Entre
outras coisas, esse nível da atividade cultural "expressa", medeia,
ou transmite, através de seus próprios materiais e práticas, uma noção do mundo
tal como ele é de forma especial ocupado pelos grupos sociais que constituem
seu terreno. Nem que seja apenas por causa dessa posição social e pela ausência
de auto-mistificação discutida anteriormente, é provável que haja elementos de insight
radical (talvez distorcidos ou deslocados), assim como muitas outras coisas,
além disso, encobertos sob atividades especificamente culturais. Essas
atividades — ao operar sobre materiais reais em contextos particulares e ao
produzir resultados surpreendentes, inesperados ou transformados — também atuam
para expor e colocar em dúvida as operações das ideologias, instituições e
relações estruturais mais amplas da sociedade inteira. Isto é alcançado sem
nenhum direcionamento, intenção ou propósito necessários. Ocorre quase
incidentalmente, como se fosse um subproduto, em meio às preocupações imediatas
da cultura do dia-a-dia. Isto reforça, não obstante, a cultura, pode mudar a
sua base e aumentar o âmbito de sua confiança e ação. Isto aumenta a sensação,
existente entre os seus membros, de eleição e afirmação e fornece uma base mais
completa e mais precisamente avaliada para as atividades culturais, o estilo e
as atitudes, a qual é sentida como tendo uma relevância e uma ressonância
maiores que aquela que pode ser diretamente explicada. Experiencialmente,
constitui-se num aspecto de como a cultura "funciona" para seus
membros de uma forma que não o faz para os outros. A combinação desses dois
tipos de produção cultural e sua interação, especialmente em relação às
principais transições e decisões de vida, ajudam a formar o que chamei de penetrações
culturais.
Uma
análise interpretativa torna possível investigar esse nível. Pode-se interrogar
o cultural a respeito de quais pressupostos não-declarados se encontram por
detrás dele. Quais são os fundamentos que fazem com que essa atitude seja
sensível? Qual é o contexto que faz com que essa ação seja razoável? Que é que
está sendo expressado, através de qual tipo de deslocamento ou projeção, sobre
determinado objeto, artefato ou complexo simbólico? É através dessas questões
que é possível traçar um esquema do impulso racional, existente na cultura
contra-escolar, dirigido à penetração de seu contexto e condições. Estamos
lidando, naturalmente, com unia categoria analítica, e nossas
"penetrações" não podem jamais ser obtidas da boca dos agentes
sociais, mas ela tem um referente concreto no cultural e em seu nível
específico de coletividade. As formas culturais podem não dizer o que sabem,
assim como podem não saber o que dizem, mas elas se expressam através do que
fazem — ao menos na lógica de sua práxis. Não há nenhuma desonestidade em se
interpretar isso.
Penetrações
Educação
e qualificações
A
rejeição à escola e a oposição aos professores por parte dos
"rapazes" podem ser vistas à luz da penetração do paradigma do ensino
esboçado no capítulo 3. Sua cultura nega que o conhecimento seja, em qualquer
sentido, um "eqüivalente" significativo para a maioria dos garotos da
classe operária. Ela "entrevê" as modificações tautológicas e
manipuladoras do paradigma básico — quer este adquira uma aura de respeitabilidade
com teorias "relevantes"/"progressivistas". (10), quer não.
Ela "sabe", mais que a nova orientação vocacional," qual é o
estado real do mercado de trabalho.
A
cultura contra-escolar fornece assim um olho crítico para vislumbrar o que se
passa por baixo do pano da agitação institucional costumeira da escola. Ela tem
suas próprias práticas específicas, mas ela também busca e expõe de forma
crítica algumas das transações e contradições sociais cruciais no interior da
educação. Estas podem ser agrupadas em três conjuntos. Elas estão todas
dirigidas para desmascarar a natureza do "equivalente" que é
oferecido.
Em
primeiro lugar, a cultura contra-escolar está envolvida, à sua própria maneira,
com uma avaliação relativamente sutil, dinâmica e atenta ao que pode custar sua
possível rejeição, das recompensas ao conformismo e à obediência que a escola
procura obter dos garotos de classe operária. Em particular, isto envolve um
ceticismo profundamente arraigado quanto ao valor das qualificações, em comparação
com o que deve ser sacrificado para obtê-las: um sacrifício, afinal, não do
simples tempo morto, mas da qualidade da ação, do envolvimento e da
independência. A gratificação imediata não é apenas imediata, ela é um estilo
de vida e oferece hoje a mesma coisa que será oferecida daqui a dez anos. Ser
um cêdê-efe agora e obter qualificações de valor duvidoso significaria
renunciar para sempre às habilidades que permitem e geram gratificações
imediatas, de qualquer tipo, em qualquer tempo.
O
sacrifício pode, portanto, ser exorbitante, mas o objeto do sacrifício pode,
também, não ter significado. Os valores e orientações culturais sugerem que o
resultado trazido pelas qualificações nem sempre é uma pura bênção. As
qualificações tenderão, de qualquer forma, a ser baixas e a não afetar a
escolha do emprego ("O que adianta fazer o exame para o CSE quando os
outros obtiveram níveis ‘O’?" — Spike) e não são vistas, de qualquer
forma, como um critério tão importante para a seleção nos empregos que os
"rapazes" tenderão a obter ("Sempre será possível mostrar pra
eles que eu posso fazer" - Joey). Mas qual seria o significado, de
qualquer modo, do "sucesso" acadêmico e seu provável resultado de uma
mobilidade vertical apenas modesta na hierarquia dos empregos? A possibilidade
de uma mobilidade vertical real parece demasiado remota, ao ponto de não ter
sentido. Para os "rapazes" sucesso significa tornar-se aprendiz num
trabalho fabril ou obter um trabalho de escritório. Esses trabalhos parecem
oferecer pouco e exigir muito. E essa avaliação é claramente feita sob o modo
cultural. O envolvimento cultural livre, a coletividade social, o risco da rua
e do chão de fábrica e a independência mental seriam todas coisas perdidas em
troca de um prêmio que é principalmente formal, não real. A escolha cultural é
feita em favor da incerta aventura da sociedade civil e contra a segurança
limitadora do conformismo e apenas relativa ou mesmo ilusória do progresso
oficial.
Essas
penetrações culturais o são, é meu argumento, de algo real. Sua forma é a da
atividade cultural direta e da ausência de mediação, mas elas expõem irais
coisas do que aquilo que elas têm consciência. Em primeiro lugar, existe uma
falácia educacional comum que diz que as oportunidades podem ser construídas pela
educação, que a mobilidade vertical é basicamente uma questão de esforço
individual, que as qualificações podem abrir suas próprias vagas. (12) Parte da
crença social democrática na educação, inclusive, parece estar em que o
agregado de todas essas oportunidades criadas pelo impulso para cima que ela
daria realmente transforma as possibilidades para toda a classe operária, e põe
assim em xeque a própria estrutura de classe.
Na
verdade, naturalmente, as oportunidades são criadas apenas pelo impulso para
cima realizado pela economia, e mesmo assim apenas em número relativamente
pequeno para a classe operária. A natureza inteira do capitalismo ocidental é,
além disso, tal que as classes são estruturadas e persistentes, de forma que
mesmo taxas relativamente altas de mobilidade individual não fazem diferença
alguma para a existência ou a posição da classe operária. Nenhuma quantidade possível de certificados e diplomas
distribuídos à classe operária contribuirá para a criação de uma sociedade sem
classes ou convencerá os industriais e empregadores — mesmo que eles fossem capazes disso — de que
eles devem criar mais empregos.
Pode
muito bem ser argumentado que é até mais provável que (tal como penetrado ao
nível cultural à sua própria maneira e para seus próprios e diferentes
propósitos imediatos), ao invés de criar empregos que exijam mais qualificação
ou de refletir o aumento desse tipo de postos, a proliferação dos vários
certificados e diplomas para membros da classe operária esconda a falta de significado
do trabalho e construa falsas hierarquias e faça com que as pessoas fiquem
ideologicamente nelas aprisionadas.
Em
segundo lugar, a cultura faz urna espécie de avaliação da qualidade do trabalho
disponível. Mesmo que seja questionável que elas assegurem qualquer tipo de
emprego, pode-se sugerir que aquilo que as qualificações parecem prometer para
seus portadores pertencentes à classe operária com respeito à qualidade do
trabalho que eles podem esperar é basicamente ilusório, para começo de conversa.
A maioria dos empregos na indústria é basicamente sem significado. Outra vez,
podemos ver a acurácia geral da penetração cultural com respeito ao caráter
comum e igual de todas as formas de trabalho moderno (assim como o caráter
questionável do caminho conformista e de sua absorção ao trabalho), ao manter
uma relevância em outro nível (que é refletida de volta ao nível vivido,
naturalmente), mesmo que ela seja produzida em seu próprio e imediato terreno
cultural.
Mais
que nunca hoje as formas concretas da maioria dos empregos estão convergindo
para formas padronizadas. Elas exigem muito pouca habilidade ou treino de seus
ocupantes e não podem oferecer oportunidades realistas de satisfação
intrínseca. A despeito da ação de retaguarda dos esquemas de reestruturação de
postos e de enriquecimento de tarefas"13 o volume esmagador das evidências
são de que cada vez mais empregos estão sendo desqualificados, padronizados e
intensificados. (14) E bastante ilusório descrever o mercado de trabalho como
determinado pela reserva de qualificações e capacidades existentes entre os
trabalhadores jovens. Basta mencionar a inédita taxa de desemprego entre
trabalhadores jovens atualmente15 e a tendência preocupante em direção ao
desemprego estrutural dos jovens sem qualificação,1ó para se questionar o
poder, em qualquer sentido significativo, que têm os jovens sobre o mercado
ocupacional.
Bases
objetivas, portanto, certamente existem para questionar se é sensível investir
o eu e suas energias em qualificações, quando tanto sua eficácia quanto seu
objeto devem ser postos em grande dúvida. A cultura contra-escolar coloca esse
problema — ao menos ao nível cultural — para seus membros; a escola não.
Bourdieu
e Passeron têm argumentado que a importância das qualificações e do conhecimento
institucionalizados reside na exclusão social e não na promoção técnica ou
humanística. Eles legitimam e reproduzem a sociedade de classes. Uma moeda
aparentemente mais democrática substituiu o capital real como o árbitro social
na sociedade moderna. Bourdieu e Passeron argumentam que é o exclusivo
"capital cultural" — conhecimento e capacidade na manipulação
simbólica da linguagem e dos números — dos grupos dominantes da sociedade que
assegura o sucesso de sua prole e assim a reprodução da posição e do privilégio
de classe. Isto ocorre porque a promoção educacional é controlada através do
"honesto" exame meritocrático precisamente daquelas capacidades que o
"capital cultural" fornece."
Na
medida em que isto constitui-se numa avaliação acurada do papel e da
importância das qualificações, dá sustentação à visão de que é insensato para
os garotos da classe operária colocar sua confiança em diplomas e certificados.
Essas coisas atuam não para fazer avançar as pessoas — como na descrição oficial
— mas para manter lá aqueles que já estão no topo. Na medida em que o
conhecimento é sempre tendencioso e está sempre imbuído com um sentido de
classe,18 o estudante de classe operária deve, para começar, superar sua
embutida desvantagem em possuir a cultura de classe e os decodificadores
educacionais errados. Uns poucos podem consegui-lo. A classe inteira não pode
nunca ir junto. É através da tentativa de um bom número, entretanto, que a
estrutura de classe é legitimada. A classe média desfruta seu privilégio não em
virtude de herança ou nascimento, mas em virtude de uma aparentemente
comprovada maior competência e mérito. A recusa em competir, implícita na
cultura contra-escolar, é, portanto, nesse sentido, um ato radical: ela se
recusa a contribuir para sua própria supressão educacional.
Finalmente,
a cultura contra-escolar efetua uma real penetração daquilo que pode ser
chamado de diferença entre a lógica individual e a do grupo e da natureza de
sua confusão ideológica na educação moderna. A essência da penetração cultural
com respeito à escola — efetivada de forma não-auto-consciente no interior do
milieu cultural com suas próprias práticas e objetos, mas determinando ainda
assim uma perspectiva inerentemente coletiva — é que a lógica dos interesses de
classe ou de grupo é diferente da lógica dos interesses individuais. Para a
pessoa da classe operária, individualmente, a mobilidade pessoal nesta
sociedade pode significar alguma coisa. Alguns indivíduos de classe operária
conseguem "vencer" e qualquer indivíduo particular pode esperar ser
um deles. Para a classe ou grupo em seu próprio e adequado nível, entretanto, a
mobilidade não significa absolutamente nada. A única mobilidade verdadeira a
esse nível seria a destruição da sociedade de classes como um todo.
O
conformismo pode carregar uma certa lógica para o indivíduo, portanto, mas para
a classe ele não traz nenhuma recompensa: ele equivale a renunciar a todas as
possibilidades de independência e criação em favor de nada mais que um ideal
ilusório de ausência de classes. O indivíduo pode ser convencido pela aparente
palavra final da educação sobre o que acontece na sociedade — promoção, através
do esforço, para todos os que tentam — mas a cultura contra-escolar
"sabe", mais que o estado e suas agências, o que esperar — exclusão
elitista das massas através do apelo espúrio ao mérito. A cultura
contra-escolar e outras formas culturais operárias contêm elementos dirigidos
para uma profunda crítica da ideologia dominante do individualismo em nossa sociedade.
Elas expõem, em certo nível, para seus membros, as conseqüências,
possibilidades, realidades e ilusões de se pertencer a uma classe — mesmo
quando os indivíduos que a constituem estão ainda se comportando talvez de
forma individualista e competitiva em algumas coisas e nas esferas privadas de
suas vidas. Em particular, a cultura contra-escolar identifica as falsas
promessas individualistas da ideologia dominante tal como elas operam na
escola.
É na
escola, com seu paradigma básico de ensino, que aquelas atitudes necessárias
para o sucesso individual são apresentadas como necessárias em geral. A
contradição de que nem todos podem ser bem-sucedidos não é nunca admitida,
assim como não se diz que não adianta os fracassados seguirem receitas para o sucesso
— trabalhar duro, diligência, conformismo, aceitar o conhecimento como um
equivalente de valor real. Há uma generalização na escola, que parte de uma
lógica individualista para uma de grupo, sem um reconhecimento da natureza e do
nível de abstração muito diferentes da última.
Naturalmente
a versão vocacional e certas modificações e formulações teóricas do paradigma
básico de ensino sustentam que o "sucesso" não pode ser medido apenas
com base numa escala vertical de qualificações ou dos diferentes status
relacionados aos diferentes postos de trabalho. Existiria, além disso, um
quociente horizontal. E possível "ser bem-sucedido" num emprego
convencionalmente tido como de baixo status se ele exige, utiliza ou permite a
expressão de capacidades que não as convencionais. É possível, por exemplo, que
mesmo um trabalho sem sentido possa se tornar um sucesso se for feito com
orgulho e honestidade. A escala vertical classista das ocupações realmente
enfrentada pelos garotos de classe operária é convertida, tanto moral quanto
praticamente, numa estrutura diferencial multi-dimensional que promete riqueza
para todos.
A
incômoda tensão entre a apresentação do trabalho duro e do conformismo tanto
como um caminho específico para o sucesso quanto como uma característica
geralmente desejável; a ambigüidade que constitui apresentar-se o gradiente
acadêmico como uma ladeira que vale a pena escalar, mas que de modo algum
esgota todas as fontes de valor e realização; a tentativa contraditória para se
infundir toda capacidade humana com o potencial para o auto-desenvolvimento e o
valor, mesmo que isto se desvie do quadro das medidas acadêmicas respeitáveis:
tudo isto reconhece, de alguma forma, a dificuldade de se estender uma lógica
individualista para uma lógica de classe, mas tenta uma reconstituição do mesmo
lance sob formas ainda mais mistificadas. Essas produzem as oscilações mais
básicas do eixo institucional, as quais a cultura contra-escolar rapidamente
apreende de acordo com seu próprio modo. A penetração cultural das contradições
existentes no âmago da educação é uma força poderosa para a origem e o reforço
da diferenciação nas biografias individuais. A cultura contra-escolar
reafirma, como uma das bases de suas formas visíveis, uma versão apropriada da
lógica de classe e dá uma identidade à posição de seus membros
("explica-a"), não por uma acomodação ilusória ao gradiente acadêmico
e ocupacional dominante, mas por uma transformação e uma inversão. Para a
classe como uma classe, o gradiente acadêmico e ocupacional mede não
capacidades, mas simplesmente sua própria e inalterável repressão. A classe
operária é a metade inferior desse gradiente, não importando como se movem seus
átomos. A sensatez que poderia consistir em se escalar o gradiente como um
indivíduo é substituída pela estupidez em que realmente consiste realizar esse
movimento com membro de uma classe. Através da penetração da contradição
existente no âmago do processo de escolarização da classe operária, a cultura
contra-escolar ajuda a libertar seus membros do peso do conformismo e da
realização convencional. Ela possibilita que suas capacidades e potenciais
finquem raízes em outro local.
Força
de trabalho: uma mercadoria como nenhuma outra
A
cultura contra-escolar enfrenta diretamente a realidade da instituição escolar
e expõe algo da troca injusta que ela tenta fazer — especialmente à luz dos
outros tipos de troca que a cultura inventou em seu próprio nome. No seu
próprio nível, ela também explora a natureza especial da força de trabalho
humana. Ela tem materiais com os quais pode sugerir a natureza potencialmente
ilimitada do compromisso. Em particular, ela demonstra que a força de trabalho
não é uma quantidade fixa, mas variável, e que não importa como é apresentado
normalmente ou oficialmente, o indivíduo tem ao menos algum controle sobre seu
consumo.
Um
compromisso com o trabalho e o conformismo na escola não é a doação de alguma
coisa finita: um bloco determinado de tempo e atenção. É a renúncia ao uso de
um conjunto de atividades potenciais de uma forma que não pode ser medida ou
controlada e que impede seu uso alternativo. Passar um período letivo sem
escrever nada, o contínuo esquivar-se à autoridade do professor, a guerra de
guerrilhas da sala de aula e dos corredores, constituem, em parte, formas de
pôr limites àquelas pressões exercidas sobre o eu. Esses são importantes campos
para a aprendizagem, por parte dos indivíduos, de um certo sentido daquilo que
constitui a força de trabalho. Quando os "rapazes" chegam ao chão de
fábrica eles não precisam de ninguém que lhes diga: "vai devagar",
"faz que não vê" ou "eles [a gerência] sempre querem mais, você
estará perdido se fizer tudo o que eles querem". Na verdade, sob vários e
importantes aspectos, os garotos de classe operária, experimentados em desviar
as exigências de um sistema externo, canalizando-as de acordo com seus próprios
interesses e energias vitais, estão em melhores condições que seus futuros
colegas para conhecer, arranjar e controlar suas próprias atividades. Isso
ocorre porque, ao menos em parte, não faz diferença, ao final, se eles deixam
de pôr sua força de trabalho em ação na escola, enquanto, por outro lado,
aqueles que estão envolvidos na cultura do chão de fábrica estão mais
estritamente coagidos a produzir e não podem limitar seu esforço aquém daquele
ponte relativamente alto fixado pela necessidade de reproduzir ao menos sua
própria subsistência.
A
derrubada da troca educacional, que corre paralela com formas mais básicas de
troca no capitalismo, dá forma a uma penetração cultural (expressada,.
naturalmente, não em palavras ou numa asserção direta, mas através de práticas
culturais em seu próprio nível) do fato de que embora a força de trabalho seja
comprada e vendida no mercado, ela é, na verdade, uma mercadoria como nenhuma
outra. Ela é diferente de todas as outras mercadorias porque não é uma
quantidade fixa. Não importa como a questão seja julgada moral ou
politicamente, é uma verdade que a força de trabalho é o único elemento
variável no sistema capitalista. Ela deve ser, portanto, a fonte do capital
ampliado e do lucro. Em essência, o trabalhador pode produzir mais em valor do
que aquilo que é representado por seu salário. (19) Uma melhor administração ou
capitalização — intensificação — de suas capacidades variáveis produz um valor
maior. (20) A força de trabalho é a única coisa na natureza que pode ser
comprada tendo essa capacidade variável. A teoria marxista clássica nos diz que
é a cegueira do trabalhador individual quanto à natureza especial da mercadoria
que ele vende que está no âmago da legitimação ideológica do capitalismo. Ele
oculta os processos de exploração e a fonte do lucro. A cultura contra-escolar,
entretanto, responde à sua própria maneira à natureza especial da força de
trabalho. Como que por instinto, ela a limita. Em sua própria e imediata
lógica, isto serve para manter a pré-condição para o envolvimento físico e
mental de seus membros em suas próprias atividades.
Esse
instinto cultural, é meu argumento, constitui também uma espécie de penetração
das relações ideológicas e materiais gerais, importantes em nossa sociedade.
Esse êxito, por assim dizer, em outro nível, retroage, entretanto, ao fim e ao
cabo, para desenvolver a cultura sob uma forma particular e para garantir sua
relevância e êxito a longo prazo.
O
marco teórico do sistema capitalista é este: o trabalhador vende sua força de
trabalho de forma justa e livre no mercado, como qualquer outra mercadoria, e
então a entrega, não em uma quantidade finita como com qualquer outra mercadoria,
mas como a expressão plena de suas próprias capacidades naturais variáveis. Ela
pode produzir, portanto, uma quantidade bem maior que seu preço, isto é, o
salário. A aparente eqüivalência entre o salário e as capacidades humanas em
sua própria barganha com o capital convence o trabalhador da liberdade e da
independência de todos perante a lei — a liberdade e a igualdade do estado
capitalista e do judiciário. Essa aparente eqüivalência, entronizada na
parafernália e na majestade do estado e de suas leis, oculta-lhe a natureza de
sua própria exploração e também aquilo que ele tem em comum com sua classe e
que poderia formar a base para a solidariedade de classe: aquela mesma
exploração. Em essência, uma capacidade infinita foi comprada por uma soma finita
e foi socialmente legitimada de uma forma tal que possibilita que essa compra e
uso permaneçam sem oposição. É essa especial conjunção entre a legitimação do
acesso a uma capacidade variável e a sua exploração aquilo que remove os
limites à produção no capitalismo, enquanto que no feudalismo, por exemplo, a
inveja e um conhecimento muito próximo da exploração direta na relação de
exploração face-a-face entre senhor e servo limitavam-na. A produtividade do
capital é a produtividade liberada da força de trabalho, dada não como uma
quantidade, mas como uma capacidade. (21) A forma ainda comum de pagamento do
salário por semana pode servir de exemplo revelador e concreto dessa clássica
jogada ideológica. Nas profissões de classe média está claro que o salário
anual é pago em troca do uso de serviços contínuos e flexíveis. A remuneração
neste caso não se baseia na quantidade particular de tempo gasto no emprego e
naturalmente espera-se que aqueles que estão situados em posições gerenciais ou
administrativas façam horas extras e trabalhem em casa sem nenhum pagamento
adicional. Esses trabalhadores — sua forma de pagamento do salário deixa isso
claro — estão sendo pagos pelo que eles são: pelo uso de suas capacidades, por
seu potencial geral como gerentes, contadores, etc. As implicações sociais da
forma de pagamento por semana são muito diferentes. A capacidade geral da força
de trabalho que é reconhecida pela forma salarial é neste caso dividida em
porções semanais e associada a uma recompensa direta e regular. Pagamentos
semanais, não salários anuais, assinalam a entrega do trabalho. A quantia no
envelope semanal assinala a passagem quantitativa do tempo. Sua diminuição
assinala a perda do tempo transcorrido; seu aumento, a "hora extra".
Com essa associação torna-se muito mais fácil deixar de ver a real qualidade
contínua, sensual e variável da força de trabalho e de ver o sentido no qual
sua entrega plena ao longo do tempo libera enormes energias humanas que são
realmente imensuráveis.
Aquilo
que vem a se constituir num fetichismo do pacote salarial — com gordos
envelopes pardos, bem fechados com cola, sendo cuidadosamente acariciados e
exibidos nas quintas-feiras à tarde, a dominação da moeda bem visível na aba
destacável com um puxão dos dedos e no grosso fundo prateado — divide as
semanas, quantifica o esforço e apresenta à consciência o esforço e o potencial
enorme da força de trabalho humana como um simples equivalente semanal concreto
do cristalino e "justo" salário. Enquanto um cheque mensal depositado
de forma invisível numa conta bancária pode servir para revelar o segredo
contido nessa troca desigual, aquela associação semanal impede qualquer
possível compreensão da disjunção entre o potencial variável do esforço vital
de longo prazo e o retorno de um salário fixo.
Embora
possa ser errado imputar aos "rapazes", individualmente, qualquer
crítica ou motivo analítico, está claro que sua cultura coletiva demonstra
tanto uma certa compreensão da singularidade da força de trabalho humana
quanto, à sua própria maneira, faz um esforço para derrubar uma certa definição
ideológica que dela se faz. Vimos na etnografia que os "rapazes", a
partir dos recursos de sua cultura, viam sua própria força de trabalho como uma
barreira contra exigências exorbitantes do mundo do trabalho — mais que como
uma conexão especial e privilegiada com ele. Isso flui diretamente para as
culturas de oposição do chão de fábrica, cujo objetivo consiste, ao menos em
parte, em limitar a produção e as exigências potencialmente vorazes postas pela
produção capitalista sobre os indivíduos. (22)
Deve
ser também enfatizado outra vez que esse tipo de penetração cultural está
vinculado com a natureza inteira da cultura e é mais que uma simples categoria
mental. Ela é a base da qualidade da reação especificamente cultural. Há um uso
contrário e intencional claro daquelas capacidades ativamente libertadas das
demandas de um compromisso ilimitado. Esse uso é caracteristicamente de classe
operária e está relativamente livre das superstições, das reservas puritanas e
das mistificações que presidem sua absorção usual ao conformismo da produção
capitalista. (23)
A
liberdade que o capitalismo falsamente promete ao indivíduo como um todo pode
ser unilateral e ironicamente resgatada por uma coletividade de indivíduos
pondo em ação todas aquelas partes de si próprios subtraídas da absorção à
produção. Para os "rapazes", há uma liberdade distorcida na dança da
discoteca, nas ruas, nas brigas, em gastar dinheiro, em rejeitar outros, que
nenhum outro sistema, exceto o capitalismo, garante. Não é culpa da classe
operária — justamente o oposto — se, essas liberdades, sendo o que são, são
usadas para propósitos culturais de classe.
Os
produtos desta habilidade independente da classe operária — o questiona-mento
profano do formal, uma linguagem aguda e não-reificada, a solidariedade
oposicionista e uma presença bem-humorada, um estilo e um valor não baseados no
status formal do emprego — não são, sob suas formas subversivas ou potencialmente
subversivas, em nenhuma medida, o produto da era capitalista. Embora estas
coisas não devam ser exageradas, ou romantizadas, ou vistas em desproporção à
liberdade real e à base material mínimas que as possibilitam, elas advém,
contudo, não simplesmente do ato de se sofrer passivamente as exigências do
capitalismo, mas de uma reação criativa a elas.
Trabalho
geral e abstrato
Vimos
na seção sobre a etnografia que, para todas as intenções e propósitos, os
"rapazes" basicamente não fazem diferença entre os tipos concretos e
particulares de trabalho que eles consideram disponíveis para eles — ao menos
em nenhum sentido intrínseco. Há uma quase indiferença ao tipo particular de
trabalho finalmente escolhido, desde que ele permaneça dentro de certos limites
definidos, não tecnicamente, mas social e culturalmente. Algumas vezes a
escolha real é feita literalmente por acidente. Esse sentimento a respeito da
comum e igual natureza dos trabalhos está em marcante contraste com a idéia da
existência de uma ampla gama e variedade de empregos, projetada pelos serviços
de aconselhamento ocupacional e pela educação vocacional.
CAPÍTULO VIII – pág. 209 a 223
Notas para uma teoria das formas
culturais da reprodução social
Embora
nós tenhamos olhado para apenas uma das formas específicas da reprodução da
força de trabalho e das atitudes subjetivas que possibilitam que ela seja
aplicada ao processo de produção, há neste estudo algumas linhas gerais para o
desenvolvimento de uma teoria mais geral das formas culturais e seu papel na
reprodução social ou, mais exatamente, para seu papel na manutenção das
condições para a produção material continuada no modo capitalista.
Em
primeiro lugar, o estudo adverte-nos contra uma compreensão demasiadamente
reducionista ou puramente materialista do nível cultural. Não é verdade, por
exemplo, que as exigências de mão de obra da indústria determinem, de qualquer
forma direta, a formação subjetiva e cultural de tipos particulares de força de
trabalho. Também não é verdade que instituições determinadas, como a escola,
produzam — ou possam produzir, se forem, de alguma forma, mais bem administradas
— pacotes padronizados, desprovidos de características de classe, de força de
trabalho. Em seu desejo por trabalhadores de um certo tipo, o braço do processo
de produção deve passar pelo semi-autônomo nível cultural, o qual é determinado
pela produção apenas em parte e mesmo assim de acordo com os termos próprios e
específicos daquele nível. Esses termos incluem: consciência, criatividade da
associação coletiva, racionalidade, limitação, involuntariedade e divisão. Suas
contribuições particulares para a formação do trabalho manual, por exemplo, são
constituídas por uma espécie particular de afirmação da atividade manual e por
uma penetração e transferência de outros conjuntos de divisões (principalmente
a manual/mental e a homem/mulher).3
Num sentido mais geral, não se pode presumir que as formas culturais são
determinadas de alguma forma, como um reflexo automático, por determinações
macro, tais como localização de classe, região e nível educacional. Certamente
essas variáveis são importantes e não podem ser deixadas de lado, mas de que
forma elas influenciam o comportamento, a tala e a atitude? Precisamos
entender como as estruturas se tornam fontes de significado e determinantes do
comportamento no milieu cultural, a seu próprio nível. Só porque
existe aquilo que podemos chamar de determinantes estruturais e econômicos não
significa que as pessoas se curvarão a eles sem maiores problemas. Em algumas
sociedades as pessoas são forçadas, sob a mira de uma metralhadora, a se
comportarem de uma certa forma. Em nossa própria sociedade, isto é conseguido
através de aparentes liberdades. Para que tenhamos uma explicação satisfatória
precisamos ver qual é o poder simbólico da determinação estrutural no
interior do campo mediador do humano e do cultural. E a partir dos recursos
desse nível que são tomadas as decisões que levam a resultados obtidos sem
coerção e que têm a função de manter a estrutura da sociedade e o status quo.
Embora seja uma simplificação para nossos objetivos aqui, e ignorando formas e
forças importantes tais como o estado, a ideologia e várias instituições,
podemos dizer que os determinantes macro precisam, para se reproduzir de alguma
forma, passar pelo milieu cultural.
No
caso da escolha de emprego, para a classe operária desqualificada, por exemplo,
podemos predizer o emprego final bastante bem a partir da classe de
origem, localização geográfica, estrutura local de oportunidade e nível e
rendimento educacional. Certamente esses fatores nos dão uma idéia melhor que a
intenção expressa pelos indivíduos, digamos, durante as sessões de
aconselhamento vocacional. Mas o que significa, em qualquer sentido, dizer que
essas variáveis determinam a escolha de emprego? Ainda ficamos com o
problema das formas da tomada de decisão e da base aparente da aceitação
voluntária de oportunidades restritas. Mencionar os fatores mais amplos não
constitui absolutamente nenhuma forma de explicação; não identifica uma cadeia
ou conjunto de causalidades que indiquem resultados particulares obtidos dentre
muitos resultados possíveis. Isto simplesmente descreve um pouco mais uma
situação que ainda precisa, contudo, ser explicada: como e por que
os jovens assumem os empregos restritos e freqüentemente sem sentido
disponíveis, através de formas que lhes parecem sensatas em seu mundo familiar,
tal como ele é realmente vivido. Para um tratamento adequado dessas questões precisamos
ir ao milieu cultural estudado neste livro e aceitar uma certa autonomia
dos processos a esse nível, a qual, ao mesmo tempo, põe por terra qualquer
noção simplista de causação mecânica e concede aos agentes sociais algum escopo
significativo para que vejam, ocupem e construam seu próprio mundo de uma forma
que seja reconhecidamente humana e não teoricamente reducionista. O abraçar o
trabalho manual não é uma experiência de absoluta incoerência, na qual os
indivíduos deixam de ter uma visão lúcida por causa de influências culturais
perversas, assim como não é uma experiência de atávica inocência, profundamente
marcada por ideologias pré-estabelecidas. Ela tem a natureza profana de si
própria: ela não se apresenta nem sem um significado, nem com o significado de
outros. Ela só pode ser vivida porque é internamente autêntica e
auto-construída. Ela é sentida, subjetivamente, come um profundo processo de
aprendizagem: é a organuMtiao do eu em relação ao futuro.
Se
queremos argumentar em favor da existência de um nível distintivo do cultural,
como vamos, então, especificar sua abrangência e natureza? Em minha opinião, é
equivocado tentar uma especificação desse tipo em termos mecAnicos ou
estruturais. A cultura não é estática, ou composta de um conjunto de categorias
invariantes que possam ser deduzidas ao mesmo nível em qualquer tipo de
sociedade. A essência do cultural e das formas culturais em nossa sociedade
capitalista está em sua contribuição para a reprodução criativa, incerta e
tensa de tipos distintivos de relações. A reprodução cultural, em particular,
sempre carrega consigo a possibilidade de produzir — na verdade, em um certo
sentido, ela realmente os vive — resultados alternativos. As relações
principais que as formas culturais ajudam a reproduzir são aquelas entre seus
membros e os agrupamentos de classe básicos da sociedade e aquela entre eles e
o processo produtivo. Embora os casos possam variar de forma acentuada, não
quero dar a entender que as principais culturas de classe sejam conceitualmente
diferentes a esse nível formal.
Dentro
desta especificação mais ampla do processo, é possível descrever três
características específicas do nível cultural em nossa sociedade que ajudam a
realizar esse objetivo principal. Em primeiro lugar, o material básico do
cultural é constituído pelas variedades de sistemas e articulações simbólicos.
Esses se estendem desde a linguagem até tipos sistemáticos de interação física;
desde tipos particulares de atitude, reação, ação e comportamento ritualizado
até artefatos expressivos e objetos concretos. É provável que haja distinções e
contradições entre essas formas, de tal modo que, por exemplo, as ações possam
desmentir as palavras, ou a lógica entranhada em práticas e rituais culturais
pode ser bastante diferente dos significados particulares expressados ao nível
da consciência imediata. São essas pressões e tensões que proporcionam o texto
para a análise interpretativa subjacente à etnografia, necessária para que a
descrição de uma cultura seja, em qualquer sentido, completa.
Em
segundo lugar, sugiro que essas coisas são produzidas, ao menos em parte, por
formas reais de produção cultural bastante comparáveis à produção material. Na
verdade, em áreas tais como a geração de um estilo distintivo de vestir ou
mudanças no ambiente físico, a produção é produção material. A base e o ímpeto
para essa produção é o grupo social informal e suas energias coletivas, em seu
próprio e devido nível. Essas energias são expressadas através de duas formas
vinculadas. Uma é direta. E a tentativa para desenvolver alguma descrição e
representação significativa do mundo (com freqüência numa relação antagônica
com a linguagem), do lugar cultural dos membros no seu interior e para fazer
experiências com as possibilidades de se obter dele alguma emoção e prazer. A
outra é a investigação profana, a exploração inconscientemente revelatória do
mundo e de suas categorias organizacionais fundamentais, realizada no curso do
primeiro processo. A construção simbólica do mundo cultural e das
possibilidades no seu interior (a pioneira) envolve trabalho sobre materiais
que especialmente onde eles são novos,
apenas parcialmente usados ou não apropriadamente incorporados ideologicamente
— podem trazer resultados reais e inesperados. Esses advêm, de forma
importante, da natureza dos materiais e da construção do mundo, tal como eles
são manipulados pela agência humana para seus próprios objetivos. O primeiro
processo é relativamente involuntário — embora não numa base individual. O
segundo pode ser bastante descentrado da cultura particular e não envolve
nenhuma teleologia particular, embora influencie, de forma importante, a
atividade cultural direta e seja a base para sua relevância e ressonância de
longo prazo para indivíduos particulares.
Finalmente,
sugiro que as formas culturais proporcionam os materiais para a construção de
subjetividades e a confirmação da identidade e seu contexto imediato. Elas
proporcionam, por assim dizer, as explicações mais críveis e recompensadoras
para o indivíduo, seu futuro e, especialmente, para a expressão de suas
energias vitais. Elas parecem marcar as coisas e dar-lhes sentido. Sugiro, em
particular, que a identidade individual é, de forma importante, formada pela
compreensão culturalmente aprendida da força de trabalho e por sua ocupação
subjetiva e, no. momento inverso, que as próprias formas culturais são, de
forma importante, articuladas, sustentadas e organizadas pela compreensão
distintiva que têm seus membros da força de trabalho e por seu modo coletivo de
funcionamento no mundo.
Essas
são algumas das formas, funções e práticas distintivas a serem encontradas no
nível cultural. Sua natureza básica e sua própria reprodução plena só podem ser
compreendidas, entretanto, com respeito à forma pela qual elas ajudam a
produzir as principais relações do grupo social consigo mesmo, com as outras
classes e com o processo produtivo. Podemos pensar neste processo de reprodução
como tendo dois momentos básicos. Em primeiro lugar, estruturas externas e
relações básicas de classe são apreendidas como relações simbólicas e
conceituais ao nível especificamente cultural. Isto toma a forma, eu sugiro, de
penetrações culturais (isto é, não centradas no indivíduo ou na prática
consciente) das condições de existência do grupo social que sustenta a cultura.
As determinações estruturais agem, não por efeito mecânico direto, mas pela
mediação através do nível cultural, onde suas próprias relações se tornam
sujeitas a formas de exposição e explicação. No segundo momento do processo, as
estruturas que se tornaram agora fonte de significado, definição e identidade,
fornecem o marco e a base para decisões e escolhas na vida — em nossa
democracia liberal, feitas livremente — que, tomadas sistematicamente e
agregadas em grande número, realmente ajudam a reproduzir as principais
estruturas e funções da sociedade. Isto é: as fábricas se enchem na
segunda-feira de manhã, e em todas as segundas-feiras, com trabalhadores
apresentando as necessárias e aparentes gradações entre capacidade mental e manual
e as correspondentes atitudes, necessárias para manter, dentro de amplos
limites, a estrutura existente de classe e produção. Aos processos que
interagem com as penetrações do primeiro momento para produzir uru campo
cultural tal que as decisões de vida são tomadas para reproduzir e não para
rejeitar ou derrubar aa estruturas existentes eu chamo de limitações. Quando as
penetrações tendem a uma exposição da desigualdade e das relações determinantes
do capitalismo e para a construção de uma possível base para a ação coletiva em
favor da mudança por parte do grupo em questão, as limitações rompem e
distorcem estas tendências e as aplicam a diferentes fins. As limitações são
específicas do nível cultural, impedem qualquer leitura essencialista das
formas culturais, não podem ser derivadas do processo de produção em si, e
incluem as duas fraquezas funcionais inerentes ao processo cultural: os efeitos
de sistemas de significado relativamente independentes, tais como o racismo e o
sexismo, e as ações de poderosas ideologias externas. No caso que estudamos, as
penetrações culturais da natureza especial do trabalho no capitalismo moderno
convertem-se numa celebração surda e abafada da masculinidade da força de
trabalho. As penetrações culturais não chegam a constituir nenhuma resistência
ou a construção concreta de alternativas políticas, resultando numa aceitação
sem ilusões dos papéis de trabalho disponíveis e num uso mistificado deles para
uma certa vantagem e ressonância cultural — especialmente no que diz respeito
ao sexismo e à expressividade masculina. Não devemos subestimar o grau
remanescente de racionalidade e insight existente aqui. Aquela situação de
trabalho recebe apenas o mínimo de interesse e envolvimento intrínsecos. A
auto-abnegação de se viver a subordinação como se fosse igualdade, e nos termos
da ideologia oficial, é — em face da evidência e experiência cotidiana que
mostram o contrário — no mínimo, negada.
O
argumento aqui, então, é o de que as formas culturais não podem ser reduzidas
ou vistas como mero epifenômeno de fatores estruturais básicos. Elas não são
variáveis acidentais ou livremente abertas à determinação no par estrutura/cultura.
Elas são parte de um círculo necessário no qual nenhum dos termos é pensável em
separado. É na passagem através do nível cultural que as relações estruturais
reais da sociedade são transformadas em relações conceituais e vice-versa. O
cultural é parte da necessária dialética da reprodução)
Essa
visão das formas culturais e da reprodução é ao mesmo tempo pessimista e
otimista. Ela é pessimista ao sugerir a ironia de que é na forma de penetrações
criativas que as culturas vivem sua própria danação e que, por exemplo, uma boa
parte dos garotos de classe operária condenam a si mesmos a um futuro de
trabalho manual. Ela é otimista, entretanto, ao mostrar que não existe nenhuma
inevitabilidade de resultados. A subordinação e o fracasso não são
irrespondíveis. Se há momentos em que as formas culturais realizam reais
penetrações do mundo, então, não importa quais distorções se sigam, existe
sempre a possibilidade de se fortalecer e se trabalhar a partir dessa base. Se
os resultados conservadores têm uma gênese radical, então ao menos existe aí a
capacidade para a oposição. Temos a possibilidade lógica da radicalidade. As
teorias estruturalistas da reprodução' apresentam a ideologia dominante (sob a
qual a cultura é subsumida) como impenetrável. Tudo se ajusta de forma
demasiadamente perfeita. A ideologia parece sempre pré-existir e se antecipar a
qualquer critica autêntica. Não há nenhuma rachadura na superfície
perfeitamente lisa — como de bola de bilhar — do processo. Todas as
contradições e conflitos específicos são aplainados através das funções
reprodutivas universais da ideologia. Este estudo sugere ao contrário, e em
minha opinião de forma mais otimista, que existem profundas disjunções e
desesperadas tensões no interior da reprodução social e cultural. Os agentes
sociais não são passivos portadores da ideologia, mas apropriadores ativos, que
reproduzem as estruturas existentes tão-somente através de luta, contestação e
uma penetração parcial daquelas estruturas. Bastante à parte das
características estruturais de uma sociedade particular, é o tipo desse acordo
contestado que ajuda a dar-lhe sua especial natureza. Uma sociedade, por
exemplo, é profundamente marcada pelas formas específicas pelas quais sua força
de trabalho é preparada.
Esta
advertência contra uma noção demasiadamente fechada ou acautelatória das formas
culturais e da reprodução é também um argumento em favor de se reconhecer uma
necessária incerteza. Muito freqüentemente, presume-se que o capitalismo
significa uma dominação totalmente eficaz sobre a classe subordinada. Longe
disto, o capitalismo em suas formas modernas, democrático-liberais, é luta
permanente. Aquilo que é acomodatício na cultura de classe operária é também
aquilo que é resistente, de modo que o capitalismo nunca está seguro. Não pode
nunca ser uma dinastia. Na medida em que tem uma estabilidade, é a estabilidade
dinâmica de arriscar a instabilidade através da concessão de liberdades
relativas a esferas de comportamento involuntário, na esperança de receber de
volta um mínimo de consentimento ao seu domínio. Existe, portanto, uma profunda
incerteza e um equilíbrio instável de contradições sempre crescentes no centro
do capitalismo. A reprodução cultural contestada e plena é mais importante para
o capitalismo que para qualquer outro sistema, mas as condições para sua
própria sobrevivência são também as condições para sua substituição.
As
liberdades capitalistas são potencialmente liberdades reais e o capitalismo faz
a aposta, a qual é a essência da reprodução, de que as liberdades serão usadas
para a auto-danação. A classe dominante não poderia nunca controlar essas
liberdades sem auxilio de baixo. E se essas liberdades não são usadas neste
momento para seus plenos propósitos subversivos, oposicionistas ou
independentes, então o capitalismo não poderá ser culpado por isto. Ele faz sua
própria aposta na incerteza; que os outros façam as suas.
A
incerteza profunda — embora não ilimitada — no âmago do sistema deveria nos
prevenir contra um visão demasiado funcionalista dos processos culturais de
classe. É certo, por exemplo, que os círculos de contradição e involuntariedade
descritos neste livro trabalham neste momento para o capitalismo. Mas qualquer
sistema que seja estável o suficiente para ser estudado deve trabalhar assim.
Deve, portanto, haver sempre um nível funcional de análise na reprodução. Mas
isto não deve permitir que se ocultem as lutas que, através das incertezas,
movimentam as partes do mecanismo. Muitos aspectos da cultura dos rapazes, por
exemplo, são desafiadores e subversivos e continuam ameaçadores. Há muitas
rupturas, distâncias, antagonismos, lutas profundas e uma lógica subversiva
real no interior e por detrás dos processos culturais da reprodução, os quais
lutam por resultados diferentes daqueles que no momento satisfazem o sistema.
Essa
incerteza também deveria nos prevenir contra uma noção teleológica simplista a
respeito do desenvolvimento capitalista. O gigantesco crescimento do estado nos
setores de seguridade social e educação, por exemplo, não se dá necessariamente
em favor dos melhores interesses do capitalismo. Ele foi, em alguma medida,
imposto ao capitalismo por grupos em competição, utilizando suas próprias
liberdades reais, para seu próprio avanço, tal como eles o enxergaram.
Naturalmente, as agências do estado têm sido utilizadas e modificadas para
ajudar a disfarçar, ou a desviar, problemas que o capitalismo produz, mas não
pode resolver. Mas embora ajudem a resolver problemas, essas instituições não
podem ser totalmente absorvidas de volta ao capitalismo. Elas mantêm espaços e
oposições potenciais, mantêm vivas questões e espicaçam nervos que o
capitalismo preferiria que fossem esquecidos. Seus funcionários não são, em
nenhum sentido simples, empregados do capitalismo. Com muita freqüência, eles
resolvem, confundem, ou adiam seus problemas no curto prazo por causa de seu compromisso
com objetivos profissionais que são, ao final e de forma embaraçosa,
independentes das necessidades funcionais do capitalismo. Eles podem ajudar,
inconscientemente, de forma involuntária, o processo de reprodução de classe,
mas, de uma maneira ou de outra, isso pode também envolver o recrudescimento de
oposições e críticas, que a classe dominante certamente pode muito bem
dispensar. Agências e instituições do estado, com muita freqüência, levam as
contradições mais longe, de forma mais rápida e mais deslocada e desorientada,
do que poderia ser imaginada por qualquer capitalismo puro. A máquina
burocrática estatal de seguridade social e de educação, tão característica do
capitalismo ocidental, deve ser vista, em parte, como o resultado de uma infiltração
cumulativa que o capitalismo tenta fazer funcionar a seu favor mais que como a
expressão de sua própria vontade ou dominação direta. Sua própria incerteza
torna-o propício à mutação e nesse processo de mutação dá-lhe nova vida.
Reprodução
e instituições do estado
Este
estudo tem sugestões mais precisas — especialmente quanto ao significado do des-reconhecimento
sistemático e às conseqüências involuntárias desses processos — para a
conceptualização do papel das instituições na reprodução cultural e social.
Em primeiro lugar, não devemos esperar que tipos particulares de reprodução ocorram higienicamente em tipos separados de instituições. Exatamente como a escola e seu cronograma formal apenas tangenciam os processos reais de aprendizagem e de preparação da força de trabalho manual, outros tipos de instituição podem embaraçosamente funcionar contra funções sociais reais. O significado e a abrangência particular do papel das instituições na reprodução podem ter menos a ver com sua natureza formal e comunicações manifestas que com os resultados involuntários e freqüentemente invisíveis de suas relações e padrões habituais de interação com culturas localizadas e informais. Além disso, a mesma instituição pode exercer papéis muito diferentes em diferentes tipos de reprodução, de forma que, por exemplo, a escola seja mais central à preparação da força de trabalho mental que da força de trabalho manual.
Em primeiro lugar, não devemos esperar que tipos particulares de reprodução ocorram higienicamente em tipos separados de instituições. Exatamente como a escola e seu cronograma formal apenas tangenciam os processos reais de aprendizagem e de preparação da força de trabalho manual, outros tipos de instituição podem embaraçosamente funcionar contra funções sociais reais. O significado e a abrangência particular do papel das instituições na reprodução podem ter menos a ver com sua natureza formal e comunicações manifestas que com os resultados involuntários e freqüentemente invisíveis de suas relações e padrões habituais de interação com culturas localizadas e informais. Além disso, a mesma instituição pode exercer papéis muito diferentes em diferentes tipos de reprodução, de forma que, por exemplo, a escola seja mais central à preparação da força de trabalho mental que da força de trabalho manual.
Em
segundo lugar, este estudo sugere que as instituições não podem ser estudadas
como simples unidades. Elas têm pelo menos três níveis que podemos descrever
como o oficial, o pragmático e o cultural. No nível oficial, é provável que uma
instituição tenha uma descrição formal de seu objetivo com relação à sua visão
das características estruturais e organizacionais principais da sociedade e de
como elas se inter-relacionam (ou de como elas podem ser obrigadas a se
inter-relacionar). Numa sociedade democrático-liberal como a nossa, seria
bastante equivocado presumir que instituições estatais tal como a escola são
administradas de qualquer forma intencional ou óbvia para favorecer a classe
dominante (como o são as escolas particulares, por exemplo). Seu objetivo
consciente e centralmente dirigido não é promover dois tipos muito diferentes
de ideologia, adaptados às necessidades de classes reconhecidas como inferior e
superior. Seus educados, dedicados e liberais agentes não aprovariam isto. Além
disto, esse nível da prática institucional está mais diretamente relacionado
com o campo político propriamente dito e com todos os determinantes e
interesses que operam aí. Parte da pressão política social-democrata, dominante
desde a última guerra, tem sido no sentido de equalizar as oportunidades, ou ao
menos de equalizar o acesso às oportunidades através da reforma e do
desenvolvimento das instituições. Convergência, não divergência, tem sido a
principal tendência oficial.
Constitui,
naturalmente, uma exigência absoluta do sistema social existente que não sejam
transmitidos os mesmos padrões, ideologias e aspirações a todos. O êxito da
ideologia oficial, ou o que vem a dar no mesmo, o fracasso de sua reprodução
cultural oposicionista, em muitas instituições, seria catastrófico para a
reprodução social em geral. A "transição" da escola para o trabalho,
por exemplo, dos garotos da classe trabalhadora que tivessem realmente
absorvido o slogan do auto-desenvolvimento, da satisfação e interesse no
trabalho, seria uma batalha aterrorizante. Presenciaríamos, por um lado,
exércitos de garotos equipados com seus "auto-conceitos" lutando para
obter os poucos empregos com sentido que estão disponíveis, e por outro, massas
de empregadores debatendo-se para metê-los em trabalhos desprovidos de
significado. Nessas circunstâncias, haveria, na verdade, um "problema"
de "orientação ocupacional" muito maior do que o que temos agora.
Seriam necessários, ou um gigantesco exercício de propaganda equivalente em
proporção ao do tempo de guerra, ou a coerção física direta, para ter esses
garotos trabalhando nas fábricas. Uma vez que isso ainda não é necessário, e
uma vez que, em geral, a reprodução social da sociedade de classes continua, a despeito
da intervenção do estado e de suas instituições, pode-se sugerir que algumas das
funções reais das instituições operam contra seus fins proclamados. Esse
des-reconhecimento, pode-se sugerir, ajuda a manter muitos dos processos
culturais que ocorrem no interior de instituições particulares e que contribuem
para a reprodução social. No segundo nível, o pragmático, as ideologias e fins
oficiais são mediador aos agentes e funcionários de instituições particulares.
E provável que ales concordem com alguma parte das justificativas mais teóricas
da ideologia "oficial" predominante, mas eles estão também
interessados em seus próprios problemas de controle e direção face-a-face e nas
pressões cotidianas de sua própria sobrevivência no interior da instituição que
lhes tocou fazer funcionar. Eles mantêm um olho prático na ideologia
"oficial". Eles adotarão ideologias recentemente sancionadas, por
exemplo, apenas quando vislumbrarem que elas oferecem ajuda real e prática —
embora eles possam muito bem justificar a mudança, inclusive para eles
próprios, usando os slogans da mais pura ideologia que lhes é passada. E esse
engajamento prático que muito freqüentemente impede os agentes de verem o que
está ocorrendo abaixo deles.
No
terceiro nível, "abaixo" dos outros, estão as formas culturais de
adaptação dos clientes da instituição na medida em que sua experiência externa
de classe interage com as exigências e processos práticos das instituições,
tais como eles os atingem. É provável que uma das variantes importantes disso
seja uma cultura oposicionista informal que pode muito bem realmente ajudar a
realizar a reprodução social mais ampla que a política oficial tem tentado
derrotar ou mudar. Como vimos neste livro, quando ocorrem num nível cultural, a
destruição dos mitos e ilusões oficiais e uma avaliação perspicaz do mundo não
impedem a incorporação naquele mundo. Elas podem até mesmo contribuir para
isso. Se a especificidade da instituição e a vulnerabilidade de sua ideologia
ajudam a promover certos tipos de culturas de oposição e suas penetrações
características, elas também ajudam a desorientá-las, dirigindo-as para suas
formas acomodativas, através do fornecimento ou do reforçamento de poderosas
limitações. Em particular, é provável que gere divisões, especialmente na área
de suas próprias e apropriadas preocupações, e também entre o formal e o
informal. Embora a escola, por exemplo, não seja eficaz da forma que ela espera
ser, é um local extremamente importante, e a causa próxima do renascimento de
uma cultura oposicionista de classe, experienciada por uma boa porcentagem dos
garotos de classe operária durante o terceiro, quarto e quinto anos de escola.
Esse renascimento conduz a mudanças e refinamentos na ocupação subjetiva da
força de trabalho que levam a resultados muito concretos. Através de formas
contraditórias e involuntárias, a cultura contra-escolar realmente realiza para
a educação um de seus principais, embora des-reconhecidos, objetivos — a
condução de uma parte dos garotos da classe trabalhadora,
"voluntariamente", para o trabalho manual qualificado,
semi-qualificado e desqualificado. Na verdade, longe de ajudar a causar a atual
"crise" na educação, a cultura contra-escolar e os processos que ela
promove têm ajudado a impedir uma crise real.
Sugiro
que todas as mudanças principais na organização institucional podem ser
analisadas em termos desses três níveis. No caso da educação, por exemplo, o progressivismo
tem sido desenvolvido e teorizado como uma ideologia oficial por acadêmicos, em
conjunção com movimentos democráticos sociais, políticos e institucionais mais
amplos para aumentar as oportunidades e o acesso para a classe trabalhadora. No
nível pragmático, entretanto, o progressivismo é adotado nas escolas
principalmente como uma solução prática para problemas práticos, sem nenhuma
mudança real nas filosofias básicas de educação. No nível cultural, pode-se
argumentar que freqüentemente o "progressivismo" tem tido o efeito
contraditório e involuntário de ajudar a reforçar processos no interior da
cultura contra-escolar que são responsáveis pela preparação subjetiva
particular da força de trabalho e aceitação de um futuro de classe trabalhadora
de uma forma que é exatamente a oposta das intenções progressivas em educação.
É essa reprodução cultural reforçada com relação à escola que naturalmente
garante o futuro do experimento educacional, ao limitar sempre a abrangência de
seu êxito.
Isto
não constitui nenhum argumento simplista ou uma crítica contra o progressivismo
ou outros tipos de reforma institucional. Qualquer tipo de mudança educacional
ou de qualquer outra mudança pode encontrar suas próprias formas de involuntariedade,
contradição e formas invisíveisde reprodução através de conexões complexas com
culturas de classe e com as exigências objetivas do sistema externo. Este é que
é exatamente o ponto: que nenhum objetivo institucional, nenhuma iniciativa
moral ou pedagógica se move no ar estático e cristalino da boa intenção e da
mecânica cultural newtoniana. Todo movimento deve ser considerado em relação
com seu contexto e prováveis círculos de eficácia no interior do baixo-mundo
(aos olhos oficiais e institucionais, em geral) da reprodução cultural e do
mundo principal das relações sociais de classe.
O
progressivismo e o RSLA, por exemplo, têm de fato atacado problemas reais, têm
protegido os garotos por um pouco mais de tempo da dureza e da desigualdade da
indústria e têm ajudado a proporcionar-lhes — de forma involuntária e
inesperada, naturalmente — uma espécie decisiva de insight e de avanço cultural
que não estava ao alcance de seus pais. Não devemos ser simplesmente ingênuos
sobre o que esse avanço significa. Devemos questionar sob que forma, para quem,
em qual direção, e através de que círculos de involuntariedade, com que
conseqüências reprodutivas para o sistema social em geral, avanços
particulares são efetuados.
Naturalmente,
há um risco na generalização e na extrapolação. Diferentes agências e
instituições têm diferentes relações dominante/subordinado,
profissional/clientes, diferentes distâncias, rupturas e inversões da
ideologia, diferente momentos e pontos de luta, diferentes intersecções com o
sistema de classe e com modos de reprodução cultural. É possível sugerir,
entretanto, que, no mínimo, muitas instituições podem ter em comum, de alguma
forma e em algum nível, uma crença auto-enganadora na unidade de sua própria
ideologia oficial. O que ts t é que essa ideologia não é transmitida de forma
não-crítica para balm), 011 aqueles situados no último degrau a recebam, de
alguma forma, • nada algum ponto há uma ruptura e uma inversão nessa cadeia
ideológica, conexões extremamente importantes com o resto do sistema social a
reprodutivas cruciais com respeito a ele. Pode-se sugerir que em muitas
instituições é o senso característico de penetração cultural (impedido por limitações)
que realmente motiva os membros nas suas ações concretas, e que é, com
freqüência, na vitória pártica (8) do domínio e do controle informal que a
reproduçb decisivamente estabelecida.
Notas
1.
Marx, por exemplo, nunca explica como a força de trabalho vem a ser formada
subjetivamente ocupada, entregada e aplicada ao processo de produção de uma
certa. Há quase como que um passe de mágica no uso conceitual do exército de
reserva dos desempregados para explicar a obediência ideológica dos
trabalhadores. Independentemente de quais sejam as pressões e a força adicional
da competição, ainda assim precisa entender, antes de mais nada, os processos
que produzem grandes ofertas de força de trabalho de um certo tipo — empregados
ou não.
2.
Embora eu tenha argumentado que a produção não determina mecanicamente o nível
cultural e aqueles processos que aí ajudam a formar a força de trabalho que ela
exige, é, nio obstante, claro, que os trabalhos que são produzidos seja lá de
que forma devem de uma forma geral satisfazer as necessidades globais da
produção num ponto particular qualquer. Essas exigências são em alguma medida
influenciadas pelas formas pelas quais elas são satisfeitas e vice-versa, mas
ainda assim precisamos confrontar o modo de articulação de sua lógica e
desenvolvimento relativamente independentes. Alguns comentários preliminares
podem ser feitos com relação a essa complexa área a partir da evidência deste
estudo.
A
emergência do capitalismo monopolista assinala um movimento sem precedentes em
direção ao controle e à intensificação do processo de trabalho. O capitalismo
competitivo, com a maior centralidade do mercado na troca de mercadoria, tem
atuado como um freio sobre esse controle. Ele propiciou a possibilidade de
alternativas concretas para o trabalhador individual se um emprego particular
tornou-se demasiado árduo. Ele também tendeu a estabelecer um limite sobre o
ritmo da inovação e do avanço tecnológico porque o investimento nestas coisas
arriscava um ciclo de retorno de capital demasiado longo (ou mesmo um retorno
insuficiente se o investimento fosse feito não para o desenvolvimento otimizado
de capital mas para o avanço competitivo do produto) para ser viável com
relação aos interesses de curto prazo que predominam no mercado livre. (Esta é
a mesma lógica que impede os capitalistas individuais de introduzir a jornada
de trabalho mais curta: veja Marx, Capital, trad. de Aveling e Moor, p. 256). A
empresa moderna está relativamente isolada dessas pressões de mercado e pode
continuar com o controle e a intensificação da força de trabalho cujo uso ela
compra, mais de acordo com sua própria lógica interna de produção. Há uma real
tendência em direção a uma intensificação aumentada dos processos de trabalho e
uma apropriação adicional do controle das habilidades de ofício, assim como sua
maior decomposição (comparar Braverman, Labour and Monopoly Capital, Monthly
Review
Press).
O controle tem se transferido centralmente para cima, para o controle
especializado e racionalizado da produção de larga escala. Há, portanto, uma
necessidade em geral (isto 6, à parte da pequena fração ainda altamente
qualificada para a qual o controle foi passado) de uma força de trabalho menos
qualificada, aberta a uma maior sistematização e a um maior ritmo de trabalho,
em conjunção com um grau de flexibilidade que permita a permuta entre processos
crescentementepadronizados. Em uma palavra, o capitalismo monopolista requer um
afastamento acelerado, em sua força de trabalho, da "idiotia" do
ofício, do orgulho no trabalho, e de uma fusão pessoal com a atividade de
trabalho.
Os
processos culturais e institucionais descritos neste livro — tomados como um
todo — tendem a produzir grandes números de trabalhadores próximos desse tipo.
A natureza das "penetrações parciais" que examinamos vai no sentido,
precisamente de desvalorizar e desacreditar atitudes mais antigas com relação
ao trabalho e sentimentos de controle e de significado no trabalho. Sob certos
aspectos, esses desenvolvimentos são progressivos com respeito ao capital
monopolista e tendem a fornecer aqueles trabalhadores instrumentais, flexíveis,
desiludidos, "afiados", desqualificados, mas bem socializados,
necessários para fazer parte de seus processos de trabalho crescentemente
socializados.
O
"avanço" dos trabalhadores proletários não precisa, obviamente, ir
tão longe. O abandono de antigas habilidades, místicas e atitudes protetivas
não deve se transformar na rejeição do trabalho moderno ou numa compreensão
completa de sua falta de sentido. Não se deve permitir que a liberdade, a
independência e a disposição à mudança dos novos trabalhadores instrumentais
degenere numa falta de lealdade e numa erosão de motivações de qualquer tipo.
Acima de tudo, a interdependência social objetiva desses trabalhadores
proletários avançados — com menos preconceitos, cegueira e limitações que quaisquer
outros antes deles — não se deve tornar uma interdependência e uma
solidariedade em torno da consciência e de propósitos políticos.
As
demandas que surgem dos monopólios modernos são, portanto, mutuamente
contraditórias. Sua necessidade por um tipo mais avançado (ou menos qualificado
e menos restrito a um único trabalho) de trabalhador conduz também a um
trabalhador sem lealdade e motivação, um trabalhador potencialmente suscetível
a cruciais perspectivas políticas de massa.
Sugiro,
entretanto, que é também provável que essa contradição seja parcialmente
preservada pelas formas culturais através das quais a força de trabalho é
fornecida. Se as necessidades da indústria por um trabalhador mais flexível e
desiludido são satisfeitas sobretudo por um certo tipo de processo cultural
operário (numa relação mediada com essas mesmas necessidades, naturalmente),
essa cultura também fornece (outra vez, numa relação mediada) outros processos
que produzem formas inesperadas de afeição, divisões e motivação que fazem algum
avanço na direção de satisfazer suas necessidades por um certo tipo de lealdade
e de deslocamento politico. As variantes culturais conformistas da preparação
da força de trabalho, especialmente com relação aos não-conformistas, tendem a
produzir trabalhadores comprometidos com sua atividade e tendentes a acreditar
no valor intrínseco do trabalho e das qualificações associadas, a despeito de
sua tênue substância objetiva. Além disso, a simples existência dessas formas
opostas de afeição cria a base para a hierarquia e a divisão na força de
trabalho, que pode ser explorada para romper a solidariedade e também para
legitimar, ideologicamente, divisões reais de classe. Esses conjuntos de
bifurcações e distorções culturais que derivam do semi-autônomo nível cultural
fazem, na verdade, com que seja extremamente difícil "ver através"
deles para julgar, empiricamente, mudanças reais no processo de produção. Ainda
assim, pode-se sugerir q por enquanto, as necessidades da indústria e as formas
culturais da reprodução da força trabalho parecem mover-se numa harmonia
aproximada, embora contraditória. A contradição de longo prazo não pode,
entretanto, ser resolvida. Os processos ideológicos e os processos materiais
movem-se em direções fundamentalmente opostas. O próprio processo de trabalho
está se tornando mais desqualificado e proletarizado, embora os postos no seu
interior estejam aparentemente se tornando mais estratificados e diferenciados
— especialmente no que toca a qualificações. Deve continuar em aberto a questão
de se as divisões elementares entre trabalho manual e mental e entre os gêneros
sexuais na classe trabalhadora continu mente reproduzirão e ampliarão as
divisões no momento em que as divisões técnicas objetivas do processo produtivo
estão diminuindo ainda mais.
Uma
das inovações gerenciais mais interessantes no controle e na direção de uma
força de trabalho em mudança são as "novas" relações humanas:
técnicas de re-estruturação do trabalho, satisfação no emprego e agrupamentos
autônomos de trabalho (veja, por exemplo, Mary Weir (ed.). Job Satisfaction, Fontana, 1976; P.Warr e T.Wall, Work and
Well-Being, Penguin, 1975; N.A.B.Wilson, On the Quality of Working Life:
A Report Prepared for the Department of Employment, Manpower Papers,
n.7, HMSO, 1973; Report of a Special Task Force to the Secretary of Health,
Education and Welfare, Work in America, MIT Press, 1973; W.I.Paul e
K.B.Robertson, Job Enrichment and Employee Motivation, Gower Press,
1970; F.Herzberg, Work and the Nature of Man, Staple Press, 1968). Tem
havido bastante perplexidade com respeito à lógica intrínseca dessas técnicas
com relação a formas de consciência e resistência do trabalhador. Em minha
opinião, a perspectiva mais esclarecedora com relação a esses desenvolvimentos
consiste em vê-los como uma resposta a um avanço (em contradição) da
consciência proletária. A estrita divisão do processo de trabalho, uma alta
lealdade à empresa e um alto moral estão se tornando mais difíceis de impor à
medida que as formas culturais de classe e as ações a elas associadas
pressionam, através de suas auto-impostas barreiras mental/manual, em favor de
uma compreensão vivida do trabalho abstrato, através de suas próprias barreiras
sexistas à estrita falta de sentido do trabalho, em favor de um maior controle
informal do trabalho e em favor de uma maior solidariedade oposicionista — ao
menos no poderoso campo do localizado e do informal. As "novas"
relações humanas assinalam uma tentativa acautelatória por parte da gerência
para conter esta consciência em formação e utilizá-la para uma maior
flexibilidade e motivação.
O
preço final desse arranjo estratégico pode ser bastante alto, tanto no sentido
de que a lógica produtiva estrita da mais alta eficiência (um princípio
fundamental para a estabilidade capitalista) foi abandonada, quanto no de que
são criadas condições mais propícias ao desenvolvimento de opiniões mais
críticas e desafiadoras entre a força de trabalho. A curto prazo é possível que
a produção possa crescer por causa de menos conflitos e a oposição possa
decrescer por causa da relativa atomização da força de trabalho. Se
caracterizarmos toda esta tendência, entretanto, como uma internalização
ordenada — sob condições — do capataz na cultura informal, a qual, por outro
lado, anarquicamente usurpa e desafia o seu papel, então podemos ver que existe
um limite estrito para lidar com a oposição ao, digamos, diretor
administrativo, dessa forma. Concessões e transferência da autoridade do formal
para o informal representam uma estratégia perigosa e todas as formas de
participação constituem uma faca de dois gumes. A aposta, para o capitalismo,
está entre poder chegar a uma nova divisão estabilizada entre controle e
obediência ou ter sido posto em movimento numa permanente e suave ladeira de
concessões menores. Podemos esperar um desenvolvimento ideológico da divisão c
da legitimação, por avim dizer, um pouco mais acima na corrente, para reprimir
uma ambição demasiada em termos de reivindicações por controle do local de
trabalho.
Uma
outra forma de conceptualizar estas mudanças nas técnicas de gerência é
descrever o foco do esforço gerencial consciente como se transferindo das
forças de produção para as relações de produção. Onde anteriormente essas
relações tinham sido simplesmente de fornecer as condições para a operação das
forças de produção, elas estio agora sendo concebidas como forças de direito
próprio.
O
taylorismo e o fordismo têm o objetivo de aumentar a utilização eficiente e
racional das forças de produção. Isto envolve um objetivo de socialização da
produção que tende, por sua vez, a causar o que podemos pensar como sendo uma
socialização da consciência em que a interdependência é maciçamente reconhecida
e usada pelos trabalhadores para controlar a produção. Taylor estava em parte
trabalhando em sua própria época, contra o "fazer corpo mole" e o
"fazer cera", mas a própria racionalização e expansão da produção
produzidas dessa forma por suas técnicas criam as condições para um maior
controle informal do processo de trabalho. A manipulação e o controle das
forças de produção, portanto, trazem conseqüências reais visíveis para as
relações sociais de produção que retroagem, elas próprias, sobre aquelas
forças.
Podemos
entender a primeira onda de relações humanas, originadas do trabalho de Elton
Mayo, como uma tentativa para anular e paralisar as tendências
contraproducentes das relações sociais de produção assim afetadas. Essas
técnicas de RH de primeira geração em nenhum sentido reorganizam
conscientemente as forças de produção para levar em conta as relações sociais.
Elas operam dentro do próprio grupo — no nível superestrutural, por assim dizer
— para administrar, manipular e acomodar os processo de grupo, particularmente
através da influência do líder de grupo.
A
emergência da segunda onda das técnicas de relações humanas assinala os limites
dessas soluções "idealistas". Há uma concepção mais materialista do
grupo informal e das culturas em jogo no local de trabalho. Em vez de meramente
tentar limitar as infelizes conseqüências da atividade informal de grupo dentro
de um processo de trabalho fixo, o próprio processo de trabalho é reconhecido
como um determinante do grupo informal e a manipulação é pensada como um meio
de controlar as formas culturais. O êxito ou o fracasso desse até agora
limitado micro-experimento de um socialismo de proveta sob controle pode ser
menos importante que o reconhecimento por parte do capitalismo, em certos
pontos de pressão, de que são as relações sociais de produção que materialmente
limitam a produção e não o desenvolvimento inadequado das forças de produção.
Vemos aqui a variedade infinita de recursos e a flexibilidade do capitalismo na
medida em que solta seu ácido para agir sobre as condições de sua própria
supremacia. Pode mesmo ser correto pensar ainda outra vez que os enredamentos
do radicalismo operário serão ainda mais confundidos pelas concessões
espontâneas feitas pelo capitalismo e que um novo nível de equilíbrio é
possível no interior de um sistema capitalista ainda mais transformado.
3. Elementos
do processo produtivo têm que carregar o peso dessas construções ideológicas
colocadas sobre seus próprios processos, assim como reproduzi-las e
retorná-las.
4. Um
argumento notavelmente desenvolvido por Ken Roberts ao criticar o serviço de
aconselhamento ocupacional e a centralidade da orientação vocacional escolar
nesse processo, "Where is the careers service heading", Careers
Bulletin, DE, 1976.
5.
Nessa tentativa para criticar uma leitura redutora ou epifenomenal não desejo
dar a entender que as estruturas são, ou completamente transformadas em idéias
e símbolos - isto significaria postular uma clareza historicista das formas
culturais que eu rejeitei —, ou não têm modos alternativos de eficácia sobre o
cultural e outros níveis, através da ideologia, do estado e das instituições.
Há outras formas de reprodução social além do cultural, quo b a razão pela qual
separei os termos.
6. Veja, por exemplo, L.Althusser, "Ideology
and Ideological State Apparatuses", in B.R.Cosin(ed.). Education,
Structure and Society, Penguin, 1972.
7.
Também a sociologia convencional, com sua noção de socialização e seu
pressuposto de uma transmissão passiva, deixa de ver a tensão e a incerteza
desse processo. Não é que a classe trabalhadora seja o tempo todo diferente da
classe média (seja por qual razão) e transmita suas desvantagens
indefinidamente e sem rupturas às gerações sucessivas (veja as teorias sobre o
ciclo de pobreza e teorias semelhantes) através de inelutáveis leis de
socialização.
Os
padrões e atividades culturais são desenvolvidos em precisa conjunção com
exigências reais e são produzidos e reproduzidos em cada geração por suas
próprias boas razões. Padrões de desenvolvimento da força de trabalho para um
tipo específico de aplicação à indústria devem em cada geração ser obtidos,
desenvolvidos e elaborados através de luta e contestação. O fato de que certas
características óbvias dessa reprodução contínua e arranjo permanentemente
empreendido de forma renovada mostrem um certo grau de continuidade visível ao
longo do tempo não nos deveria levar a deduzir leis e dinâmicas férreas de
socialização a partir dessa mera sucessão de coisas semelhantes. Os mecanismos
interiores dessas continuidades são mais complexos, incertos, relacionados com
o exterior, e suscetíveis de mudança do que o dá a entender a noção de
socialização.
8.Pártico
= relativo. aos partos ou partas, antigo povo da Ásia. Figuradamente, o
adjetivo pórtico designa um golpe ou ataque inesperado, causado por alguém que
finge fugir, à semelhança dos arqueiros párticos que desfechavam flechas nos
inimigos enquanto fingiam estar em retirada (N. dos T.).
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