Fracasso Escolar - Bernard Charlot


Este capítulo apresenta a problemática da pesquisa: discorre, primeiramente, sobre os marcos teóricos que a guiaram desde sua formulação. Além disso, apresenta a experiência de dois outros países na área da formação educacional de suas respectivas populações.
São quatro os tópicos a seguir: (1) Fracasso escolar: questão antiga, problema novo; (2) Sucesso e fracasso na escola: o que se sabe, sobre quê se debate, (3) Experiências para melhorar o nível de formação da população — os casos dos Estados Unidos e da França e (4) Brasil: desafios da formação da população.

FRACASSO ESCOLAR: QUESTÃO ANTIGA, PROBLEMA NOVO
Quem aprende espera atingir seus objetivos, mas sempre corre o risco de fracassar. Desse ponto de vista, a possibilidade do fracasso consta da própria idéia de aprendizagem. Aprender é arriscar e expor-se; é uma aventura, ao mesmo tempo excitante e psicologicamente perigosa. Sabe-se, por sinal, que, algumas vezes, crianças se recusam a aprender por medo de fracassar, de serem devoradas, destruídas (BOIMARE, 1999). Esse medo é tanto maior quando já viveram a experiência de fracasso, humilhação e desvalorização de si mesmas.
Sendo assim, pode-se dizer que o fracasso sempre existiu, uma vez que o ser humano não pode viver sem aprender e, quando aprende, às vezes fracassa. Entretanto, é outra a questão que hoje se coloca sobre o fracasso escolar, que passou a ser um problema importante nas sociedades contemporâneas. Já não se trata de uma mera questão pedagógica, mas de um problema social e econômico. Para melhor entender como adveio essa perspectiva, poder-se­ia distinguir, grosso modo, três momentos históricos.
Na época em que a maioria da população nem sabia ler ou escrever ou não tinha completado a instrução primária, isto é, o que equivale à 5a série no Brasil atual, nem fazia sentido falar em fracasso escolar.
A maioria não entrava na escola e quem tinha a sorte de ser escolarizado e a desgraça de ter fracassado não estava em uma situação particular. Sabia poucas coisas, como os demais. O fracasso na escola não trazia problema social algum. Ao contrário, chamava a atenção quem adquiria inesperadamente um saber que não correspondia à sua situação social. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, na Europa, ouviram-se e leram-se freqüentemente queixas a respeito dos que aprendiam além do que convinha à sua posição social e que, por isso, passavam a ser amargos e sediciosos. Até o iluminista Voltaire, admirado por ter um espírito aberto e tolerante, escreveu coisas muito elitistas sobre este assunto:

É conveniente que o povo seja guiado, e não seja instruído. Ele não é digno de sê-lo. Parece-me essencial que haja indigentes ignorantes. Se vocês fizessem valer uma terra, como eu, e se vocês tivessem arados, seriam da minha opinião, não é a mão-de-obra que é preciso instruir; é o bom burguês, é o habitante das cidades, essa tarefa é bastante árdua e bastante grande1. 1 Voltaire, cartas de 19 de março ode l de abril de 1766, citadas por B. Charlot (1979).

Ainda na primeira metade do século XX não se falava em fracasso escolar. Quem detinha a atenção era o personagem do bolsista, ou seja, o jovem europeu oriundo do povo que continuava seus estudos graças a uma bolsa recebida por suas qualidades pouco comuns.
Mais tarde chegou um outro momento histórico, em que a maioria da população completava quatro, cinco, e até oito ou nove anos de escolaridade, sem por isso seguir estudando no ensino médio e, muito menos, no ensino superior. Foi o que aconteceu na Europa do século XX até a década de 1970 ou 1980 e o que está acontecendo no Brasil de hoje. Em uma configuração sociohistórica desse gênero, quem fracassa na escola encontra problemas mais tarde, na medida em que não sabe, ou não sabe fazer o que todos sabem. Todavia, o fracasso escolar não pesa demasiadamente em sua vida e não o impede ter uma vida normal, isto é, uma vida com trabalho, sustento, família, condições decentes de vida. Realmente, ainda existem empregos formais ou informais em que os saberes adquiridos na escola não são muito úteis e, em todo caso, não são imprescindíveis. Naquela época, quando uma pessoa passava fome, não era por ter fracassado na escola e, sim, por ter nascido no lugar e tempo errados, na periferia pobre de uma grande cidade ou no sertão.
A esse momento histórico se segue um outro, em que os Estados Unidos, a Europa, o Japão, os países do Sudeste Asiático e alguns outros já entraram e que, ao que parece, constitui hoje
em dia o desafio educacional para o Brasil. Nessa configuração sócio-escolar, a norma é que todos os jovens de uma geração completem o ensino médio, geral, técnico ou profissionalizante. Na verdade, esse é o objetivo e, de fato, há jovens que não conseguem concluir o ensino médio, nem sequer o ensino fundamental. São considerados em situação de fracasso escolar.
Cabe notar que esse chamado fracasso sempre é relativo a uma sociedade em determinada época. No século XVIII, quer na Europa quer no Brasil, quem sabia ler e escrever e não sabia mais do que isso desfrutava de uma fama de pessoa instruída. Há não muito tempo, quem tinha completado o ensino fundamental constava do grupo dos brasileiros instruídos. Hoje, no Brasil, quem sabe apenas ler e escrever é pouco instruído e quem não estudou além do ensino fundamental não é muito instruído. Até pouco tempo, essas pessoas não eram rotuladas de fracassadas, já que, na maioria das vezes, não haviam tido a oportunidade de estudar. Hoje, já se pode considerar como fracassado o jovem que não concluiu o ensino fundamental e, em breve será também o caso de quem não completar o ensino médio.
As pessoas que não atingiram o nível educacional considerado básico na sociedade moderna correm cada vez mais o risco de ficarem desempregadas. Na França, por exemplo, exigem-se diplomas para quase todos os tipos de empregos, incluídos os de caminhoneiro e barman, a ponto de ser muito difícil encontrar ocupação quando não se tem diploma algum. Até o camponês deve ter diploma para obter um empréstimo bancário. Em uma situação desse gênero, quem fracassou na escola, isto é, quem não alcançou o mesmo nível que a maioria da população, enfrenta muitas dificuldades para ter uma vida normal, ou seja, igual à dos demais. Sendo assim, o fracasso escolar passa a ser um fracasso socioeconômico e incide em todos os aspectos da vida.
Cabe também destacar o fato de que, na sociedade moderna, ou pós-moderna, não é apenas a atividade profissional que requer um nível de escolaridade cada vez mais alto, é também a vida cotidiana. Estamos entrando em um mundo de auto-atendimento, senhas, processos seqüenciais, bulas de remédios, etc., que exige de nós novas competências, formas de pensar e novos modos de nos relacionarmos com os outros. Isto não significa dizer que será impossível usar o programa da máquina de lavar roupa ou usufruir de todas as possibilidades do celular sem ter conhecimentos de mecânica, eletrônica e informática. Trata-se de outra coisa: de lógica seqüencial, de inteligência das situações, de sentido de responsabilidade. O segurança do banco ou do condomínio deve ter uma cultura básica que não era necessária 20 anos atrás, bem como a faxineira, que deve saber que não se limpa o computador ou a impressora com baldes de água.
Em suma, tanto do ponto de vista da produção e do trabalho como no que tange ao consumo e à vida cotidiana, melhorar o nível de educação e formação da população como um todo se tornou um imperativo econômico, social e cultural. Já não é suficiente ter bons médicos e enfermeiras, como há no Brasil, chegou a hora de formar também a pessoa que cuida da agenda do médico e de educar os próprios pacientes para pôr fim ao desperdício de milhares de horas de trabalho, a cada ano, nas ante-salas dos gabinetes médicos brasileiros.
É nesse novo cenário que começa a ser colocada, hoje, a questão do sucesso e do fracasso escolar no Brasil. Trata-se de caminhar, o quanto antes, para uma situação em que o nível básico de formação do brasileiro será a conclusão do ensino médio. Perante tamanho desafio, é preciso definir recursos e métodos para melhorar a qualidade e a eficácia do ensino e das escolas. Já se sabia que, quando uma criança deixa a escola sem saber ler, é uma lástima tanto para ela como para os adultos. Hoje se sabe que é também um absurdo econômico.
Entretanto, por ter se tornado um problema econômico e social, a questão do fracasso escolar não deixou de ser também uma questão institucional, pedagógica, relacional, didática e cognitiva. A ambição desta pesquisa é também melhor entender as situações e os processos que levam ao chamado sucesso ou fracasso escolar. Com a esperança de contribuir para a sua redução.

SUCESSO E FRACASSO NA ESCOLA: O QUE SE SABE, SOBRE O QUE SE DEBATE

Existem vários tipos de pensamento sobre o fracasso escolar, quer “espontâneos”, isto é, enraizados no senso comum ou nas ideologias sociais e profissionais, quer teóricos. Não cabe apresentar aqui a história do conceito, mas é importante destacar os principais argumentos, uma vez que teremos de analisar opiniões sobre o fracasso. Três configurações conceituais podem ser identificadas:
• acerca da noção de dom, já ultrapassada do ponto de vista teórico, mas ainda viva no senso comum e no discurso dos docentes;
• em torno da noção de reprodução social, que dominou o palco argumentativo nas décadas de 1970 e 1980 e ainda constitui o discurso dominante entre os docentes;
• em redor de noções como mobilização, atividade, relação com o saber, que propõem ir além da teoria da reprodução, sem por isso negar a desigualdade social perante a escola.

O DOM: UMA ABORDAGEM TEÓRICA ULTRAPASSADA, MAS UMA EVIDÊNCIA DO SENSO COMUM
Por muito tempo a capacidade intelectual de aprender foi considerada como natural, ou ligada à compleição natural do indivíduo.
Platão já falava de três tipos de almas: a alma racional do filósofo, a irascível do guerreiro e a concupiscível dos artesãos e agricultores. Só o filósofo podia contemplar as Idéias em si e, portanto, conhecer a verdadeira ordem do universo, o que lhe conferia o direito e, sobretudo, o dever de dirigir a cidade.
No século XIX, Gall, com a frenologia, sustentou a idéia de que as faculdades intelectuais das pessoas e, de modo mais amplo, as suas características psíquicas, são localizadas em órgãos específicos, passíveis de serem identificados, uma vez que se manifestam por protuberâncias no crânio. Foram assim identificados os órgãos “do roubo” e “da morte” (no crânio dos bandidos e assassinos), bem como outros órgãos mais simpáticos, como o da benevolência ou da auto-estima. Tudo isto não tem nenhum valor científico, é claro. Mas, apesar disso, foi feita uma longa necropsia no crânio de Einstein para saber de onde vinha a teoria da relatividade. Sem resultado algum, obviamente.
O desenvolvimento da genética poderia constituir um novo suporte, modernizado, dessas opiniões do senso comum. Não foi assim e, pelo contrário, esvaziou-as de toda aparência científica. Hoje em dia se sabe que não é possível imputar um comportamento a um gene ou a um conjunto de genes, muito menos quando se trata de um comportamento tão complexo como é a aprendizagem. Podem ser considerados conhecimentos sólidos as seguintes idéias a respeito deste assunto.

1.Não há dúvida de que um determinado processo ou comportamento psíquico precisa de uma base material, anatomofisiológica, e, portanto, genética. Se não tivéssemos um corpo, não teríamos nem emoções, nem idéias, nem nada. De forma mais precisa, sabe-se que determinadas funções cerebrais (visão, memória, fala, etc.) deixam de ser desempenhadas quando determinadas regiões cerebrais são afetadas e, ainda, que um distúrbio genético acarreta conseqüências psíquicas, em particular efeitos intelectuais. Entretanto, observam-se também, algumas vezes, processos de compensação ou substituição. Diferentemente da máquina, o organismo vivo se auto-regenera, ou, pelo menos, tenta fazê-lo.

2.Posto isto, é necessário acrescentar logo que o equipamento anatomofisiológico, os genes, as regiões cerebrais não produzem o comportamento. Não são eles que se comportam bem ou mal, mas sim o sujeito humano, psíquico e social. Não se devem confundir as bases orgânicas com as causas do comportamento. As bases são indispensáveis, mas o que orienta o comportamento é o conjunto de desejos e normas que definem o sujeito, conjunto esse que se construiu ao longo de uma história singular, por meio de inúmeras mediações psíquicas, sociais e culturais. Em outras palavras, não se podem postular “dons”, diferenças naturais ou a genética para explicar diferenças entre desempenhos intelectuais. Pouco se conhece sobre isso e, até onde sabemos hoje, é uma questão impossível de ser respondida. De fato, o que podemos observar nunca passa de diferenças em que é impossível separar o que diz respeito à “natura” e o que diz respeito à história singular e social do sujeito. Atribuir a supostos dons diferenças de comportamento ou de atuação que podem ser explicadas por diferenças entre as condições de vida e entre as histórias dos sujeitos é correr o risco de ocultar desigualdades sociais indubitáveis atrás de supostas diferenças naturais. Talvez o desenvolvimento das neurociências permita, um dia, a construção de modelos explicativos complexos, aqui possibilitem entender melhor os efeitos da base orgânica sobre a construção dos indivíduos e os efeitos das mediações socioculturais sobre os processos anatomopsicológicos. Mas estamos longe desse momento, se é que ele chegará um dia.

Entretanto, por mais inconsistente que seja a idéia de dom, ela está profundamente enraizada na ideologia profissional dos docentes. Sob esse ponto de vista, pouco mudou desde Gall e até Platão. De nada adianta criticar e culpar os docentes, é mais interessante tentar entender por que tanta gente inteligente acredita em postulados sem fundamento e usa conceitos do senso comum sem distanciamento crítico.
Em primeiro lugar, a noção de dom livra o docente da responsabilidade do fracasso: não é culpa sua se, “por natureza”, um aluno não é bem dotado. Não se trata de um comportamento cínico dos professores, mas de uma proteção psicoprofissional. Cada profissional precisa de um corpo de princípios e de noções que o proteja dos perigos psicológicos gerados por sua atividade. É o caso do docente, do médico e da enfermeira, do advogado, do policial etc. Trata-se sempre de noções que, ao mesmo tempo, protegem o profissional contra as conseqüências desagradáveis de sua atividade e repousam sobre a “experiência” profissional coletiva. Essa experiência “prova” e confirma repetitivamente a pertinência da noção e isto porque, na verdade, é uma experiência interpretada pelo profissional. O docente sempre encontra alunos que fracassam apesar de o professor ter “feito de tudo” para ajudá-lo — de tudo o que o professor sabe fazer, mas essa restrição não é sua, é nossa. Perante essa resistência, aquele “não sei o quê” impensável, o que Lacan chama de “real” (MRECH, 2005); resta apenas uma saída: a explicação pelo “dom”.
Sendo assim, o dom permite explicar... o inexplicável. Quando um docente se depara com fracassos ou também, aliás, com êxitos, inesperados, estranhos e incompreensíveis, resta uma ‘explicação”: esse aluno é dotado ou, ao contrário, é intelectualmente limitado. Não é apesar de ser obscura que a noção de dom faz sucesso, mas sim porque é obscura: sem contornos conceituais precisos, ela possibilita justificar o que não se consegue pensar. É uma dessas noções cuja função prática consiste em fechar, pelo menos aparentemente, as questões que não se sabe resolver, sequer levantar de maneira clara.
Enquanto houver fracasso pedagógico inexplicável, enquanto alunos continuarem fracassando apesar dos esforços intensivos dos docentes, ressurgirá a explicação pelo dom, sejam quais forem os resultados das pesquisas. Entretanto, a idéia de dom constitui um empecilho no caminho para uma escola mais eficaz. Na realidade, é difícil educar quando não se acredita na educabilidade de cada ser humano e, desta maneira, a idéia de dom simboliza a renúncia a educar, a tentar de novo, apesar dos fracassos anteriores.
A REPRODUÇÃO SOCIAL PELA ESCOLA: OS APORTES DA SOCIOLOGIA DOS ANOS 1960 E 1970
Nas décadas de 1960 e 1970 foi construída, na França, uma teoria chamada de sociologia da reprodução que se espalhou pelo mundo inteiro, até mesmo no Brasil, e se tomou a explicação dominante do sucesso e do fracasso escolares. Na verdade, existem várias versões da sociologia da reprodução, bastante diferentes: as de Bourdieu, de Passeron, de Baudelot e Establet na França, a de Bowles e Gintis nos Estados Unidos e a de Willis na Inglaterra. Todavia, a idéia fundamental é a mesma: a escola contribui para a reprodução da desigualdade social e, sendo assim, o fracasso escolar é funcional na sociedade capitalista, burguesa etc. Em outras palavras, o fracasso pedagógico é um sucesso social da classe dominante.
Cabe evocar rapidamente as idéias centrais dessas teorias, uma vez que sustentam muitos discursos de docentes, de jornalistas, de políticos e até de alguns pesquisadores, em particular os que atuam na área da avaliação quantitativa.
A teoria mais elaborada foi proposta por Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, em particular no seu livro La Reproduction, e daí decorre a denominação dessa corrente sociológica2. Eles explicam que a escola transmite e avalia uma cultura que não é socialmente neutra. Assim, as crianças que receberam na sua família e na sua classe social uma educação voltada para aquela cultura que a escola privilegia têm mais chances de ser alunos bem­sucedidos na escola. Esta é a base de todas as teorias da reprodução. Mas Bourdieu e Passeron criaram ou utilizaram conceitos específicos que fazem com que a sua teoria seja mais requintada que as demais. Eles são os seguintes:
O conceito de autonomia relativa. A escola cumpre uma função social através do seu papel cultural: ela contribui para a reprodução das desigualdades, mas produz esse resultado por meios específicos (ensinar, transmitir saberes...). Por isso, ela desfruta de uma autonomia relativa: é uma instituição social com atividades e objetivos específicos. Essa autonomia é imprescindível para que a escola possa cumprir a sua função social. De fato, se a escola selecionasse de forma aberta e transparente os filhos da classe dominante e rejeitasse os filhos das classes desfavorecidas, aconteceria uma revolta. Mas a escola pretensamente aprova os alunos que sabem e reprova os que não sabem, o que parece justo. Porém, a sociologia mostra que os que sabem são os filhos dos dominantes e os que fracassam os filhos dos dominados. Portanto, a escola não apenas reproduz as desigualdades, mas também as legitima, transformando-as em diferenças de saber e de competência. Essa função de legitimação é essencial: outras estruturas sociais participam da reprodução das desigualdades, mas a escola é a instituição que dá legitimidade às diferenças. Pode-se dizer também que os jovens das classes desfavorecidas são vítimas de uma violência simbólica, isto é, de uma violência que não é produzida por agressão física, mas por meios simbólicos. Do ponto de vista de Bourdieu e Passeron, a escola é uma instituição violenta, que pratica a violência simbólica, encoberta, voltada contra os filhos das classes dominadas e em proveito dos herdeiros das classes dominantes.
Entretanto, resta entender por que e como a cultura escolar favorece esses herdeiros. Três conceitos são essenciais nesse assunto33: os de habitus, de capital cultural e de arbitrário cultural.
O habitus é um conjunto de disposições psíquicas construídas m um determinado meio social, refletindo as estruturas desse meio. Em outras palavras, nas crianças se constroem disposições psíquicas que condizem com as condições sociais em que vivem. A seguir, os indivíduos têm práticas e representações aparentemente livres, isto é, de acordo com o que lhes agrada. Porém, o que lhes agrada decorre das suas disposições psíquicas e estas acatam as normas sociais do seu meio. O conceito de habitus explica por que as pessoas obedecem a regras sem querer e sem saber. Explica, ao mesmo tempo, o determinismo social e a aparência de liberdade do sujeito. Cada um faz o que quer e, ao fazê-lo, contribui para a reprodução das estruturas e das desigualdades sociais. Na escola, cada um, quer seja docente, quer filho de ricos ou filho de pobres, faz o que gosta e não faz o que não gosta e, sendo assim, todos participam da reprodução das desigualdades sociais.
Para enfrentar a reprodução, Bourdieu e Passeron propõem também o conceito de capital cultural. A família transmite para as crianças um capital econômico (bens e serviços), um capital social (relações mantidas pela família) e um capital cultural (domínio da língua, conhecimentos cultos, relação com a cultura etc.). Esse capital possibilita às crianças oriundas dos meios mais favorecidos atenderem às exigências da escola, enquanto as crianças dos meios desfavorecidos não entendem essas exigências. De fato, a escola valoriza e avalia formas de cultura e de relação com a cultura que condizem com as das classes dominantes. É
o que Bourdieu e Passeron chamam de arbitrário cultural.
Essas idéias ainda constituem um corpo explicativo potente, embora hoje sejam criticadas. As obras de Christian Baudelot e Roger Establet e de Samuel Bowles e Herbert Gintis, por interessantes que sejam, não proporcionam tantos instrumentos conceituais como as de Bourdieu e Passeron. Elas decorrem de uma origem comum: as idéias de Louis Althusser sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Segundo Althusser, cada sociedade produz nos jovens, ao mesmo tempo, competências e maneiras de se comportarem que os levem a aceitar seu futuro lugar na divisão social do trabalho. Na sociedade moderna, incumbe, sobretudo à escola, a função de produzir a submissão ideológica (ALTHUSSER, 1974).
Baudelot e Establet explicam que a escola, longe de ser única, como se pretende, é dividida em duas redes estanques: uma rede primária-profissional, que prepara a mão-de-obra de execução, e uma rede secundária-superior, que forma para as funções de concepção e de comando. Ambas as redes inculcam nos jovens a mesma ideologia, mas sob formas diferentes, relacionadas ao seu destino social. O instinto de classe dos jovens proletários resiste a essa pressão ideológica de modo espontâneo e não organizado, por meio da bagunça, da violência e da recusa de estudar (BAUDELOT e ESTABLET, 1971).
Idéias parecidas, adaptadas à situação norte-americana, são encontradas na teoria da correspondência de Bowles e Gintis (1976). Segundo esses autores, a escola da sociedade capitalista inculca formas de disciplina e de obediência que dizem respeito aos vários níveis da divisão do trabalho. À futura mão-de-obra de execução, ensina o respeito absoluto às regras. Ao pessoal de nível intermediário, inculca, ao mesmo tempo, o sentido de hierarquia, de iniciativa e de responsabilidade. Aos futuros dirigentes, ensina a interiorização das normas e da ordem, de modo que tenham a ilusão de não obedecer senão à sua consciência ao exercerem funções de comando.
Por fim, sociólogos anglófonos desenvolveram teorias da resistência que podem ser consideradas como um prolongamento da sociologia da reprodução, mas também uma critica da sua abordagem demasiadamente objetivista (Giroux, Willis, Hargreaves, Ball)44. Em vez de considerarem o aluno de meio popular como uma vítima passiva da reprodução, essas teorias destacam a sua resistência e a sua participação involuntária no processo de reprodução. A teoria mais elaborada é a de Paul Willis. Com um método etnográfico, mostra que os rapazes da classe operária (os lads) valorizam a cultura viril da força física, da briga, da cerveja e desprezam as normas escolares e os buracos de ouvido (ear-holes), como denominam os que no Brasil designamos como CDF. A cultura da antiescola (anti­schoolculture), ao mesmo tempo que lhes possibilita resistir à ideologia dominante, levando­os ao fracasso, participa do processo de reprodução (WILLIS, 1977; trad. em 1991). Nas abordagens desse gênero a escola não é apenas um lugar onde os jovens do povo são vítimas da dominação, da violência simbólica, do arbitrário cultural, é também um local de lutas sociais.
Ao chamar a atenção sobre o fato de que os conteúdos e formas escolares não são neutros e que a escola não fica afastada dos processos de dominação social, as teorias da reprodução puseram fim a certa ingenuidade sociológica. Esse foi o seu grande mérito histórico. Hoje em dia, a existência da desigualdade social em frente e dentro da escola é um fato estabelecido. Além disso, foi também levantada, na esteira das teorias da reprodução, a questão da contribuição da escola para outras formas de desigualdade que não as formas sociais, em particular as desigualdades de sexo e de raça ou etnia.
Além disso, as sociologias da reprodução criaram e trabalharam conceitos que passaram a constar dos instrumentos de análise usados nas ciências sociais: violência simbólica, resistência, anti-school-culture etc. Outros, como habitus ou capital cultural, continuam a ter inegável valor heurístico, embora sejam objeto de debates e controvérsias.
O fato da desigualdade social na escola está estabelecido. Os processos financeiros e institucionais que geram a desigualdade são conhecidos: existência de duas redes de ensino, uma pública e outra particular (no Brasil, por exemplo), hierarquização e concorrência entre estabelecimentos escolares, inclusive no ensino público (no Japão, por exemplo), escolas públicas cuja população escolar reflete as condições sociais dos moradores do bairro (no Brasil, na França etc.), cursinhos pagos que complementam a escola regular e alteram a concorrência entre alunos (no Japão, na Coréia do Sul, no Brasil etc.). Quando determinados recursos beneficiam uma parte da juventude, entende-se, sem dificuldade, porque apenas uma parte segue estudando, ao passo que a outra pára de freqüentar a escola.
Entretanto, há um assunto que permanece bastante obscuro: por que, entre alunos que recebem o mesmo ensino, nos mesmos estabelecimentos, com os mesmos docentes, nas mesmas condições, diferem tanto nos níveis de sucesso? Este é o problema que o Brasil terá que enfrentar de agora em diante. Quando não conseguia escolarizar todas as suas crianças, a prioridade era encontrar recursos financeiros e humanos para matricular todos os jovens. Apesar de o objetivo não ter sido completamente atingido, já que ainda há crianças pouco escolarizadas, pode-se considerar que agora a meta é outra: levar os jovens brasileiros não apenas à escola, mas também ao saber, às referências humanas fundamentais, ao espírito crítico e, se é que se pode sonhar, ao prazer de aprender. Essa ambição sustenta esta pesquisa.

ALÉM DA QUESTÃO DA REPRODUÇÃO: MOBILIZAÇÃO, RELAÇÃO COM O SABER, EFICÁCIA DA ATIVIDADE
A desigualdade social diante e dentro da escola é um fato. A explicação pela noção de reprodução é uma teoria. O fato permanece inegável. A teoria é hoje criticada por ser insuficiente, e foram desenvolvidas novas abordagens que incidem no modo como é colocada e pesquisada a questão do sucesso e do fracasso escolar.
As abordagens qualitativas enraizadas no interacionismo simbólico ganharam espaço na sociologia da educação, em particular a etnografia da escola (WOODS, 1999; HAMMERSLEY, HARGREAVES, BALL e al.)55 e a etnometodologia (COULON, 1993). Foram pesquisadas as interações e a questão do sentido da escola.
Foi proposta também uma teoria da relação com o saber e com a escola (CHARLOT, BEILLEROT, CHEVALLARD e al.)6, que levanta as questões do sentido e da atividade, O tema da atividade é igualmente o foco das abordagens construtivistas e didáticas.
Observam-se convergências entre essas abordagens. Por exemplo, a noção da relação com o saber é cada vez mais usada pelos didáticos, em particular, na área da matemática e das ciências (MAURY e CAILLOT, 2003). Seria difícil (e inútil) apresentar aqui todas essas correntes. Portanto, nos limitaremos a alguns princípios que, a nosso ver, estão no âmago das pesquisas atuais acerca do sucesso ou do fracasso sco1ar.

1.Diante e dentro da escola há desigualdades de classe, de sexo, de cultura, de etnia ou raça.

2.Essa desigualdade origina-se em bases materiais, financeiras, institucionais. Portanto, o combate ao fracasso escolar requer uma atuação contra a desigualdade social, a miséria, a fome, etc. Uma teoria pedagógica que desconhecer esses aspectos do
problema corre o risco de cumprir uma função ideológica e mistificadora: dar a entender que o problema do fracasso seria resolvido se os alunos pobres e sua família se esforçassem.
Entretanto, essas bases não podem explicar tudo. Na realidade, a desigualdade escolar repousa sobre bases sociais objetivas, mas produz seus efeitos por intermédio de processos subjetivos. Não é por ser pobre que o aluno fracassa, é por não estudar o suficiente. Porém, isto não quer dizer que a pobreza pouco importa: se o aluno não estuda o suficiente, muitas vezes é porque é pobre e tem outras preocupações que não a escola. A cadeia completa é a seguinte: é pobre, luta para sobreviver, não estuda muito, fracassa. É um erro desconhecer a importância da pobreza, outro erro é desprezar a implicação do sujeito na produção do sucesso ou do fracasso escolar. Ignorá-la é, na maioria das vezes, substituir o trabalho paciente de transformação real das situações atuais por uma denúncia sociopolítica legítima, porém impotente. Além disso, é preciso deixar claro que sujeito e social não são duas palavras opostas, uma vez que cada um de nós é ao mesmo tempo ser humano, membro de uma sociedade e uma cultura (ou várias) e sujeito singular, original e insubstituível. Em outras palavras:
• a transformação escolar requer a transformação social;
• a transformação escolar contribui para a transformação social;
• uma mudança sociopolítica da noite para o dia não basta para resolver os problemas de aprendizagem da leitura — mas pode ser que ajude;
• todos aprenderem a ler não basta para mudar a sociedade — mas ajuda, com certeza.


O problema contemporâneo do sucesso e do fracasso escolar coloca-se nessas tensões entre o que é social e o que é mais especificamente escolar, o que remete às relações sociais estruturais e o que se refere à vida psíquica do sujeito. O aluno é, ao mesmo tempo, indissociavelmente, humano, social e psíquico (CHARLOT, 2000 e 2005).
Nessa perspectiva foram realizadas a coleta e a análise dos dados desta pesquisa.

3.O ser humano não é objeto e nunca poderá ser reduzido a esse estado, mesmo se ele próprio o quisesse. Portanto, não é pertinente considerar o aluno fracassado como vítima passiva das classes dominantes. Ele vive uma experiência que interpreta e, conforme o sentido conferido a essa situação de fracasso, age e reage de maneira diferente. Pode-se ir até mais longe na análise e perguntar em que medida, como e por que o próprio aluno participa da construção da sua situação de fracasso. É a perspectiva de Willis, como já foi mencionado. Podemos resgatar também a abordagem de Howard Becker, com a idéia de rotulação, de Irving Goffman, com o estudo do estigma e, de modo mais geral, a da sociologia interacionista nas suas várias formas. Segundo Becker, quem é rotulado acaba por adaptar o seu comportamento ao que se espera dele e, assim, por participar do processo de rotulação (BECKER, 1963). De acordo com Goffman, o estigma não deve ser entendido como uma característica física, psíquica ou social da pessoa estigmatizada, mas sim como uma relação entre esta ou aquela que a estigmatiza (GOFFMAN, 1975). Pode-se dizer, nessa perspectiva, que o sucesso ou o fracasso escolar é também uma relação social e o efeito de processos de rotulação. Ao prolongar essa abordagem se chega à idéia de que o sucesso ou o fracasso escolar não é uma coisa, um fato que acontece, mas uma situação construída ao longo da história pessoal, institucional, cultural e social do aluno e, ainda, de um conjunto de relações. Segundo Charlot, é preciso pesquisar as relações com o saber e, de modo mais geral, com o aprender, quer fora da escola quer dentro e, para tanto, é necessário investigar as relações do aluno com o mundo, com os outros, consigo mesmo, com a linguagem, com o tempo etc. Assim abordados, o sucesso e o fracasso escolares deixam de ser objetos sociomidiáticos e passam a ser objetos de pesquisa.
Esta pesquisa busca melhor compreender os sentidos do sucesso ou do fracasso escolar na mente dos atores, quer sejam alunos, quer sejam professores ou diretores, supervisores, pais etc. Portanto, presta atenção aos processos pelos quais os alunos constroem o seu mundo escolar, como diz a fenornenologia, definem as situações, segundo a expressão do interacionismo simbólico e, de forma mais particular, a de Goffman. Interessa-se também pelas configurações das relações que constituem a relação com o saber.
4.Que o ser humano não seja objeto traz outra conseqüência: nunca é suficiente conhecer sua posição social objetiva, embora seja útil, e sempre é preciso saber qual é sua posição social subjetiva (CHARLOT, 2000). Cada ser humano ocupa na sociedade uma posição que pode ser levantada e analisada de fora, com base em uma categorização objetiva. Por exemplo, o estatístico estabelece uma lista de categorias socioprofissionais e encaixa o aluno numa dessas categorias. Esse processo é legitimo, mas nem sempre é suficiente. De fato, quando se trata de um assunto em que importa a questão do sentido, como é o caso nesta pesquisa, leva também em consideração o sentido que o aluno confere, subjetivamente, à posição social objetiva que ocupa. Ser objetivamente filho de operário, de desempregado, de negro, de índio etc., é uma posição social que pode ser vivenciada de várias maneiras: com amargura, orgulho, vontade de demonstrar (aos demais) o seu valor etc. É essa posição subjetiva que incide na mobilização escolar da criança e, às vezes, da sua família, e não a posição atribuída na classificação estatística do IBGE.
5.A escola é uma instituição de formação, de cultura, de transmissão e apropriação de saber, e não apenas um lugar de reprodução social. Como mencionado anteriormente, não é por ser pobre que se reprova, mas por não ter adquirido os saberes e construído as competências atinentes a um determinado nível de escolarização. Portanto, a questão é compreender por que alunos, proporcionalmente mais numerosos nos meios populares, não conseguem atingir o nível esperado.
Pode acontecer que alunos não consigam aprender porque vivem em condições em que é quase impossível aprender: trabalham para sobreviver, sofrem péssimas condições de estudos etc. Sobra, entretanto, outro caso: quando o menino fracassa apesar de as condições familiares e escolares serem corretas. Por que, em um país como a França, onde a escola pública é boa, com material, turmas de 25 alunos, docentes formados e corretamente pagos, há alunos fracassados? Esse problema já não é apenas problema do Primeiro Mundo, está se tornando nosso também, no Brasil. Nesse caso, não são somente as condições de escolarização que devem ser investigadas, é igualmente, e antes de tudo, o confronto do jovem com o saber. Se
o aluno é reprovado é porque não sabe. Sendo assim, o problema da reprodução passa a ser: por que, na escola, os alunos dos meios populares encontram mais dificuldades para aprender?
Por muito tempo, a sociologia falou da escola, do fracasso e do sucesso, da reprovação, da seleção e da reprodução sem pesquisar mesmo esse confronto do jovem com o saber e propondo respostas amplas demais. Arbitrário cultural? Talvez, mas onde, exatamente? As crianças de meios populares deparam-se com mais dificuldades do que os seus colegas de classe média para aprender a ler. Conclui-se que é arbitrário cultural ensinar a ler a essas crianças? De nossa parte, claro que não iremos concluir isto. O habitus dessas crianças não condiz com as exigências escolares? Talvez, mas quais disposições psíquicas das crianças e quais exigências da escola? Ademais, esse habitus pode ser mudado ou não? Se não pode, a sociologia está nos propondo um novo fatalismo, com determinismo inexorável. Se pode, como sustenta Bourdieu, a questão passa a ser: como transformar o habitus escolar das crianças do meio social desfavorecido? E se for assunto de capital cultural, é preciso saber como transmiti-lo na escola aos jovens que não o herdaram da família. Seja qual for a porta de entrada para o problema, a porta de saída é a mesma: entender o que acontece quando uma pessoa se envolve em um ato de aprendizagem, em particular quando se trata da criança e da escola.
Vale a pena assinalar que, na França, os sociólogos prestaram maior atenção ao que chamaram de êxitos paradoxais. Não se surpreendem quando um aluno oriundo dos meios populares fracassa, corno se fosse coisa normal, esperada, lógica. Ao contrário, admiram-se quando uma criança pobre atinge um grande sucesso. Nesse caso paradoxal, não há discurso pronto para explicar o fenômeno, é necessário abrir mão dos preconceitos, refletir e pesquisar. Por sinal, é interessante também o caso dos fracassos paradoxais dos filhos de classe média, e até de classe média alta, fracassos esses que foram pouco pesquisados. Quando se analisam dados, quer sejam quantitativos ou qualitativos, o interesse pelas situações inesperadas e paradoxais leva a prestar atenção às margens e não apenas às maiores freqüências.
6.Aprender requer uma atividade intelectual. Pode-se ensinar, ajudar, acompanhar quem aprende, mas ninguém pode aprender no lugar do outro. Por sinal, talvez essa seja a maior fonte de sofrimento dos docentes: eles são cobrados pelos resultados do ato de ensino/aprendizagem, apesar de não poderem produzir diretamente esses resultados (CHARLOT, 2005).
O esquema seguinte apresenta as ligações básicas entre os elementos do ato de ensino/aprendizagem.

• A atividade intelectual do aluno é que produz o saber aprendido.
• A atividade do professor incide na atividade do aluno (mas não a determina).
• As condições materiais, financeiras, institucionais etc., incidem nas práticas do professor e do aluno (mas não as determinam).
• O saber incide nas atividades do aluno e do professor.

Seria possível completar o esquema introduzindo o grupo de alunos, as condições sociais, a história pessoal etc. Contudo, ao fazer isso, o esquema se tornaria complexo a ponto de não esclarecer mais nada. Portanto, nos limitamos ao essencial.
O esquema evidencia que:

• as atividades do aluno e do professor se constroem na encruzilhada entre, por um lado, exigências cognitivas e epistemológicas (que decorrem da natureza do saber a ser apropriado) e, por outro, condições materiais, financeiras e institucionais;
• a atividade do aluno é o ponto de articulação entre os demais elementos do ato de ensino/aprendizagem.


Portanto, a pesquisa deve prestar atenção particular à questão da atividade. Esta remete a dois assuntos ligados, mas diferentes: a questão da mobilização para e na atividade e a questão da eficácia.

7.O conceito de mobilização passou a ser importante nos debates contemporâneos sobre a escola e o sucesso escolar.
Em primeiro lugar, pesquisas mostraram que a mobilização da família é um elemento essencial nas histórias de êxito paradoxal (LAURENS). Quando os pais encontram os professores, valorizam a escola e o que ela ensina, as chances de o filho ser bem-sucedido são maiores. São maiores também quando os pais são militantes (pouco importa do quê), uma vez que os militantes valorizam o saber.
Em segundo lugar, as pesquisas sobre a relação com o saber mostraram a importância da mobilização do próprio aluno. Charlot e sua equipe tentaram entender por que certos jovens se mobilizam para uma atividade intelectual, enquanto outros permanecem indiferentes ao que a escola ensina. Falam de mobilização e não de motivação, por considerarem que se motiva alguém de fora, ao passo que se mobiliza a si mesmo a partir de dentro. O que importa é o motor interno da ação que leva a pessoa a adentrar a atividade intelectual. Beillerot e sua equipe pesquisaram a questão dos desejos, conscientes e inconscientes, que sustentam a relação com o saber. (BEILLEROT, 1996).
Só aprende quem entra em uma atividade intelectual, e só entra quem está animado por um desejo. Essa mobilização depende do sentido que o aluno confere à escola, ao saber, ao fato de aprender, quer na escola quer fora dela. Portanto, esta pesquisa atribui grande importância à questão do sentido e da mobilização, quer entre os alunos, obviamente, mas também entre os professores e na comunidade que cerca a escola.
8.Para aprender é preciso se mobilizar intelectualmente, mas também desenvolver uma atividade eficaz. Alexis Leontiev, colega e seguidor de Vygotsky, define a atividade como uma unidade entre três elementos: um motivo, um objetivo (ou um resultado antecipado) e uma ação (constituída por uma seqüência de operações). Em sua opinião, o sentido é a relação entre o motivo e o objetivo, e a eficácia é a relação entre a ação e o objetivo (LEONTIEV, 1984). Essa conceituação da atividade evidencia que, por necessária que seja a mobilização do aluno, ela não é suficiente. Estar com vontade de saber é um bom ponto de partida, mas não garante o sucesso na chegada.
A questão da eficácia da atividade de aprendizagem não está ausente desta pesquisa, mas permanece nas suas margens. A pesquisa focaliza a questão do sentido, da mobilização e não entra diretamente nos aspectos epistemológicos, metodológicos ou didáticos da atividade dos alunos e de seus professores. Esse ponto é muito importante, mas exigiria a construção de uma rede de pesquisa mais ampla, provida de maiores recursos e, sobretudo, com grande disponibilidade de tempo para novas investigações.

ESTADOS UNIDOS E FRANÇA: DUAS EXPERIÊNCIAS DE POLÍTICAS PARA MELHORAR O NÍVEL DE FORMAÇÃO DA POPULAÇÃO

Os países do chamado Primeiro Mundo começaram a se preocupar com a modernização dos seus sistemas educacionais a partir do fim da década d 1950 e ao longo da década d 1960. Estavam entrando no período de crescimento econômico acelerado que se seguiu à reconstrução da economia européia depois da Segunda Guerra Mundial. O desenvolvimento econômico fez com que se tornasse necessária uma mão-de-obra mais qualificada e, de modo geral, uma população com nível de formação mais alto. O lançamento ao espaço do primeiro Sputnik, pela URSS, em 4 de outubro de 1957, contribuiu também para chamar a atenção dos países ocidentais, em primeiro lugar dos Estados Unidos, sobre a importância da educação na sociedade moderna. Ao longo dos anos 1960 foram publicados muitos relatórios, foram propostas numerosas reformas e implantadas várias medidas.
Nos Estados Unidos da década de 1960, a questão mais polêmica foi a da democratização racial das escolas. Em 1966, James Coleman publicou seu famoso relatório Equality of Educational Opportunity (Igualdade de oportunidades educacionais), em que sustentava que a influência dos colegas no aproveitamento escolar era muito significativa. Assim, a segregação dos alunos de condição socioeconômica mais baixa era prejudicial. Consequentemente, era necessário integrar os jovens pobres das minorias étnicas nas mesmas escolas em que estudavam os brancos de classe média. Começou o debate a favor ou contra o h&isiig (deslocamento por ônibus de jovens negros para escolas situadas em outros bairros que não aqueles onde moravam).
Na Europa, a questão candente da década de 1960 foi a da escola secundária, ou seja, da abertura a todos os jovens das séries entre o final do ensino primário e o inicio do ensino médio (o que corresponde no Brasil atual aos últimos anos do ensino fundamental): comprehensive school/ inglesa, collêge francês e seus equivalentes em outros países, em particular na Itália e nos Países Baixos.
É óbvio que não é possível relatar aqui os debates, tentativas, reformas, etc. relacionadas de uma forma ou de outra com as políticas de reversão do fracasso escolar. Por outro lado, é importante aproveitar a experiência de países que se depararam com o problema antes do Brasil, especialmente em se tratando de um relatório da UNESCO, organização internacional voltada para educação, a cultura e a ciência. Diante disso, serão apresentados, a seguir, dois casos em que se articulam a política educacional e preocupações pedagógicas: o movimento de reforma do ensino da matemática e das ciências nos Estados Unidos, da década de 1960 à de 1990, e o dispositivo francês das Zones d’Prioritaries (Áreas Educacionais Prioritárias), implantado em 1982 e ainda vigente.

A REFORMA DO ENSINO DE MATEMÁTICA E DE CIÊNCIAS NOS ESTADOS UNIDOS
Começamos por indicar as principais etapas do movimento de reforma e, a seguir, apresentamos os seus norteadores sóciopolíticos e pedagógicos7.
O movimento de reforma
Em outubro de 1957, o Sputnik russo foi lançado ao espaço. Em 1958, a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) criou um Escritório do Pessoal Científico e Técnico com o intuito de melhorar a eficácia do ensino de matemática e de ciências. Em 1959, a OCDE organizou na França um seminário considerado como o ato de fundação da reforma da matemática moderna. Esta foi implantada na década de 1960. Propunha uma aprendizagem precoce das estruturas lógico-matemáticas abstratas. A reforma deparou-se com muitas dificuldades e o movimento a favor do ensino desse tipo de matemática refluiu na década de 1970.
No entanto, não se renunciou à idéia de uma reforma do ensino de matemática e de ciências, muito ao contrário. Em 1980, nos Estados Unidos da América, National Council of Teachers of Mathematics (NCTM) — Conselho Nacional dos Professores de Matemática — deu início a uma mobilização dos docentes, professores universitários, pesquisadores, acadêmicos e autoridades públicas, da qual decorreu, em 1989, o documento fundamental da reforma: Curriculum and Evaluation Standards for School Mathematics  (Parâmetros de Currículo e Avaliação para a Matemática na Escola).
A pressão por uma reforma cresceu na década de 1980, por causa da publicação, em 1983, de um relatório alarmante que iria se tornar famoso: A Nation at Risk: The Imperative For Educational Reform (Uma nação em perigo: a necessidade de uma reforma educacional). No mesmo ano de 1983, uma comissão publicou um relatório cujo título constituía em si um programa de ação: Edaca/IngAmeriransfor lhe 21s/ Cein’urg: A plan f ar/loa for improziing rnathernalics, science and /echnofogy criara/loa for ali American elemen/arj and secoadar s/uden/s se 1/mi their ac!iievemea/ is lhe hes/ ia lhe worid
I’ 1995— ou seja, Educando americanos para o século XXI: um plano de ação para melhorar a educação matemática, científica e tecnológica de todos os alunos norte-americanos do  ensino fundamental e médio, de modo a que seu sucesso seja o maior do mundo por volta de 199588.
Em 1985, a American Association for the Advancement of Science (AAAS) — Associação Norte-Americana para o Avanço da Ciência) — deu início a um projeto que levou, em 1989, a um livro de referência, Science for All Americans (Ciência para todos os Americanos). Para definir um currículo que possibilitasse atingir os objetivos enunciados no documento, foi constituída uma rede de trabalho. Seis equipes, cada uma com 25 pessoas (docentes e pessoal administrativo dos vários níveis de ensino e disciplinas), em cinco estados, e com o apoio de consultores que participaram do projeto da AAAS, trabalharam durante três anos. Com base nesse trabalho, um grupo transversal de docentes elaborou um questionário, dirigido a milhares de pessoas. Levando em conta cerca de 1.300 respostas, recebidas de 46 estados, o grupo transversal redigiu o relatório definitivo, publicado em 1993: BenchmarksfrrScienceLileracj (Referências para uma cultura de base científica). Além disso, a AA.AS produziu livros, CDRoms, etc., e oferece programas de formação para os docentes.
A reforma ainda faltavam os Standards (Parâmetros), que definiriam de forma precisa a organização do ensino. Já em 1990, a National Science Teachers Association (NSTA) — Associação Nacional dos Professores de Ciências, deu início a um projeto de reforma curricular e, em 1992, publicou um documento. Em 1991, a NSTA e outras organizações pediram ao National Research Council (CNR) — Conselho Nacional de Pesquisa —, da Academia Nacional das Ciências, que coordenasse a implementação de parâmetros para o ensino das ciências. Em 1994, um relatório preliminar foi enviado a 18.000 pessoas e a 250 grupos. Em 1995, foi publicado o relatório definitivo do CNR: Natioiia/Scjence Educaiiün Standards (Parâmetros Nacionais para a Educação Científica).
O estado federal acompanhou o processo por intermédio do EisenhoiverNa»’alPrqgram (Programa Nacional Eisenhower), que coleta e produz material pedagógico, assessora as reformas locais, distribui verbas para a formação inicial e continuada dos professores de matemática e ciências, etc. Apresentamos esse movimento de reforma com alguns detalhes porque ele revela um modelo interessante de elaboração e implementação de reforma educacional.
Nesse modelo, a reforma não é elaborada por um pequeno grupo de amigos do ministro, nem por um grupo partidário ou universitário. É, de fato, um movimento amplo, que liga várias associações e autarquias: associações de professores de matemática ou de ciências, Associação para o Progresso da Ciência, Academia de Ciências, Congresso e governo federal. A ninguém é permitido apoderar-se do assunto como sendo seu, afastando os demais. Além disso, um pré-projeto foi elaborado e amplamente divulgado. As reações foram levadas em conta para a redação do projeto definitivo. Nesse movimento, a opinião dos docentes contou muito. Eles aplicariam a reforma, o que lhes dava o direito de participarem, com um grande peso, do seu processo de elaboração. Da sua parte, os docentes assumiram plenamente o projeto, que não passou a ser um mero álibi para obter melhores salários e condições de trabalho.
Vale a pena salientar também que o processo durou aproximadamente dez anos, quer se tratasse do ensino da matemática ou das ciências. Pode-se considerar que demorou muito. Pode-se, ao contrário, ressaltar que o resultado foi amplamente aceito e que a reforma não foi alterada e anulada alguns anos mais tarde, ao passo que no Brasil a reforma da matemática moderna, concebida por um pequeno grupo de especialistas, teve um tempo de vida bastante curto.
Por fim, não foram elaborados programas oficiais para serem respeitados à risca. A reforma recomenda e sugere às escolas (isto é, neste caso, aos conselhos locais que dirigem as escolas
— boards of education) conteúdos, métodos e estratégias que foram elaborados por meio de consulta ampla e aberta.


Os norteadores sociopolíticos e pedagógicos da reforma
O documento de 1983 — Educatin Americaus for lhe 2lst Ceuturji — nào deixa dúvida a respeito do motivo essencial da reforma: trata-se de concorrência econômica e de poder internacional.
A iVacão que, de modo eip etacu lar e audaq, conduziu o mundo para a idade da tecnoleriia esta fracassando hoje em prover as suas prop rias crianças dos iustrsuuentos intelectuais necessários para o século XXI (..j. Nossas criancas poderiam passar a ser indivíduos atrasados em um mundo tecnoloico. Não devemos permitir que isso ocorra; a América não deve se tornar um dinossauro industrial9.
As citações desta seção foram extraídas da tese de doutorado de Veleida Anahi da Silva (2002) e traduzidas pelos responsáveis por esta pesquisa.
As mesmas idéias são encontradas no livro da AAAS, Science for All Americans, publicado em 1989: 
A primeira preocupação é o aparente declínio econômico ela América.
Os fracassos dos Estados Unidos no que tange à educação acabaram por ler considerados coletivamente como a principal fonte dos fracassos econômicos.
Essa preocupação econômica levou a objetivos de democratização do ensino da matemática, das ciências e da tecnologia. O documento de 1983, já mencionado, declarava que as bases que definem a alfabetização, cultura básica do século XXI, 
são necessárias a todos10 os estudantes — não apenas aos sábios de amanhã, não apenas aos que têm talento e fortuna, não apenas ao pequeno grupo para quem a excelência é uma tradição social e econômica. Todos os alunos precisam ter bases sólidas em matemática, ciências e tecnologia.
Em 1989, o livro da AAAS dizia a mesma coisa:
Quando se contemplam as realidades demográficas, as necessidades nacionais e os valores democráticos, aparece de maneira clara que a nação não pode mais seguir ignorando a educação cientfuica para todos os estudantes. Já não se deve aceitar que a raca, o idioma, o sexo ou a condicão económica sejam fatores que determinem quem recebe e quem não recebe uma boa educação em ciências, matemática e tecnologia.
E aqui fica claro o quadro econômico e sociopolítico da reforma: um país que pretende ser uma potência econômica deve proporcionar urna boa educação em ciências, matemática e tecnologia a todos os seus filhos, incluídos os pobres, os negros, as mulheres, os imigrantes, etc. Há mais de 20 anos que os Estados Unidos estão cientes disso.
Para que a educação possa atingir os que ainda não atingia, é preciso mudar os métodos pedagógicos. São iguais as conclusões dos grupos que elaboraram as reformas do ensino de matemática e do ensino de ciências.
Para levar a matemática a todos os jovens é preciso contemplar suas necessidades, orientação intelectual, estilo de aprendizagem. Deve-se ensinar uma matemática em relação com os problemas do mundo real (real-ivorld prohlemsj. Portanto, recomendam-se exploração, experimentação, grupos de discussão, inquiry.
Inquiry: esta palavra sempre repetida, que pode ser traduzida aproximadamente por investi ga&e, resume a reforma pedagógica em matemática e, ainda mais, em ciências. No relatório do NRC de 1995, lê-se:
A iuv6stlgaçào éiiqui;y,) sobre questbcs autênticas ,geraelasp6las e.>perléncias elos alunos é a estratégia central para ensinar a ciência. Os docentes focaliam a iveestigaccio, de fõrma predominante, sobre fenômenos reais, nas salas de aula, fora delas ou nos laboratórios, ló onde investigacões podem ser propostas aos alunos, ou sejó, lá onde é possível guiá-los para elaborarem investigaccies, nos limites da, suas capacidades (NRC, 1995, citado por Silva, 2002).
Inquiry é uma atividade em colaboração com outros alunos, em interação com o docente e com o meio ambiente. É também um conjunto de atividades: coletar, observar, anotar, desenhar, medir, contar, entrevistar etc. É ainda um método inspirado pelas abordagens científicas. Inquiry muda conteúdos e métodos da educação científica e, ainda, a relação com
o mundo ambiente, com os outros, consigo mesmo e, afinal, a relação ao mesmo tempo com a ciência, com o ensino, com a escola (SILVA, 2002).
Esta foi a reforma elaborada no país mais rico do mundo para resolver o problema do fracasso nas matérias por ele consideradas como as mais importantes. Entretanto, por mais bonita que ela seja, cabe assinalar que houve debates e que foi preciso matizar algumas afirmativas. Os próprios documentos que citamos incitam a certa prudência:
Os docentes devem enfrentar a tensào entre levar os estudantes a um conjunto de metas predeterminadas e lhes permitir atingirem as suas prorias metas é..). Ademais, os docentes devem conetruirper/nanentemente um equilíbrio entre os saberes e capacidades a serem adquiridos e as exigências elo elesemolvimente de uma apre ndigagem focada no aluno (NRC, 1995, citado por SILVA, 2002).
Aliás, uma análise fina dos textos evidencia que a palavra inquiry remete de fato a dois métodos. A investigação embasada no problema (Lsues-based inqui) prioriza a resolução de problemas: o aluno aprende o que ele precisa saber, no momento em que precisa. A investigação por e para a mudança conceitual (Inquiryfor conceptual change. ou conceptual change learíiing) é concebida em referência aos conteúdos e caminhos que definem uma cultura científica básica (sciel2ce /iteracj). Permanece aquela tensão que ritma a história da pedagogia, entre a lógica do saber já elaborado e a lógica do processo de aprendizagem.

A QUESTÃO DO FRACASSO ESCOLAR E AS ÁREAS EDUCACIONAIS PRIORITÁRIAS (ZONES D’ÉDUCATIQN PRIORITAIRES- ZEP) NA FRANÇA
A França deu início à modernização e abertura social do seu ensino em 1959. Começou por acolher todos os jovens nos quatro anos de escolaridade que se seguem ao ensino primário (que dura cinco anos). Para tanto, criou os colleges (colégios - 1962). Em um primeiro momento, foram organizados nos colégios três tipos de ensino — clássico, moderno e prático
— que diziam respeito, em principio, às capacidades dos alunos e também, de fato, à sua origem social. Foi durante essa época que os sociólogos franceses elaboraram a teoria da reprodução. Ao longo da década de 1960 e no início da década de 1970 muitas lutas foram empreendidas contra a desigualdade social dentro da escola, a ponto de o governo de direita, em 1975, ter unificado os três tipos de ensino em um colégio chamado de único.
A década de 1980 marcou um novo avanço, desta vez referente ao ensino médio. Enquanto, no início da década, cerca de um terço de cada geração concluía o ensino médio, em 1985 foi decidido levar 80% da geração até esse nível no ano 2000, e os outros 20% deviam receber uma formação profissionalizante pela via da aprendizagem prática nas lojas, usinas, oficinas, etc. A oferta dos lyce’es (liceus), encarregados do ensino médio, foi ampliada, acrescentando séries profissionais às séries gerais e tecnológicas já existentes. A meta de 80% era ambiciosa demais e não foi atingida. Todavia, hoje, na França, cerca de dois terços dos jovens de cada geração completam o ensino médio”. Os demais ora se formam pela aprendizagem profissionalizante fora da escola, ora abandonam o ensino médio antes do final, ora constam dos cerca de 10% dos jovens em situação de fracasso escolar grave. Vale a pena assinalar que, em todos os grandes países do chamado Primeiro Mundo, se encontra uma minoria de 8% a 15% de jovens aquém do nível de formação considerado como mínimo no país.
Para entender essa situação, é preciso distinguir o fracasso escolar relativo e o fracasso absoluto ou quase absoluto (CHARLOT, 1987). Quando um jovem não aprende a ler e não tem domínio das quatro operações da aritmética, faltam-lhe as próprias bases da cultura escolar e isto é um símbolo de fracasso. Ainda há, na França e no Brasil, esse tipo de jovem. Todavia, entre os alunos considerados fracassados na França, a grande maioria entrou no colégio e completou o que corresponderia aqui ao ensino fundamental; esses alunos sabem ler e fazer contas, embora tenham dificuldade de entender as sutilezas de um texto. Na França, eles são considerados fracassados, enquanto no Brasil, constam da maioria da população. Seu fracasso é relativo apenas ao nível de sucesso da maioria dos jovens, e é diferente do fracasso chamado por simetria de absoluto dos jovens que nem conseguem ler ou nada entendem do que lêem.
Os sociólogos da reprodução não prestaram atenção a essa diferença, ao passo que a escola, ao mesmo tempo, educa os jovens e contribui para a reprodução social. O exemplo da França evidencia a importância dessa distinção. Quando criou o colégio e, assim, abriu a todos o ensino secundário, o governo francês organizou três seções diferentes e, de fato, socialmente marcadas. Ao fazer isto, democratizou o sistema de ensino, mas manteve para os filhos das classes dominantes uma seção de excelência. Quando o colégio passou a ser único, permaneceu a seleção socioescolar graças ao ensino médio, em que, aos poucos, a
Nem todos conseguem o batca/aiaiat, exame e diploma nacional de final do ensino médio. que da direito automatico a uma vaga em uma universidade (não ha vestibular na França; quem obtém o hataJaijre’a1, que é um exame e não um concurso, pode entrar — e entra — na universidade). Todavia, mais de 800o desses jovens conseguem esse diploma seção matemática e física se tornou a seção da elite’2. Hoje, mais de dois terços de cada geração cursa o ensino médio, mas em seções que, de fato, são hierarquizadas. A sociedade capitalista moderna precisa de uma escola que hierarquize os jovens e, ao proceder desta maneira, cria o fracasso relativo. Ela não precisa de jovens que não saibam ler, que fiquem desempregados e que às vezes se tornam violentos, entram no tráfico, ou seja, de jovens que constituem mais uma fonte de despesa do que uma oportunidade de ganho.
Portanto, o fracasso escolar assim entendido não beneficia a sociedade capitalista moderna, nela incluída a sociedade neoliberal globalizada. E um investimento perdido e pressupõe despesas com políticas de assistência social, de segurança, de repressão. Isto se tornou muito claro na França atual. Os fenômenos de imigração (com uma maioria de imigrantes islâmicos oriundos de países africanos), de crise industrial e desemprego, de segregação espacial dos pobres, articulados uns com os outros, levaram a uma situação em que existem, na periferia de cidades grandes ou médias, bairros onde a maioria da população é constituída de filhos e netos de imigrantes, hoje franceses, pobres, desempregados. As escolas desses bairros acolhem até 80% de jovens oriundos dos fluxos imigratórios. A maioria desses jovens é calma, estudiosa, etc., mas há uma minoria agitada, revoltada, engajada no tráfico ou na militância islâmica fundamentalista. Essa minoria foi recentemente às ruas e evidenciou o quanto é profunda a fratura social nos bairr os da periferia.
Em uma situação desse gênero, a questão educacional é muito importante. A França tentou enfrentar o problema, que já tem quase 25 anos, por meio das Zunes dLducation Pdorilaires (ZEP) — Areas de Educação Prioritárias).

A POLÍTICA E A PEDAGOGIA DAS ZONES D’ÉDIJCÁTION PRIORITA IRES (ÁREAS DE EDUCAÇÃO PRIORITÁRIAS)
O conceito de Áreas de Educação Prioritárias nasceu na Inglaterra, em 1967, no relatório de Lady Plowden entregue ao governo trabalhista, que havia solicitado recomendações para enfrentar a crise
No liceu francês existem vias diferentes (geral, tecnica e proõssiunalizante) e, em cada uma delas, seções diferentes, conforme as disciplinas ou tecoicas dominantes ou as profissões de referência das escolas primárias inglesas. O relatório propôs, entre várias medidas, uma política de discriminação positiva (poíith’e dLícrirniatn), atribuindo mais verbas a escolas ou áreas socialmente prioritárias (Educacina/Priritj’Areas). O dispositivo foi implantado em 1968 e abandonado aos poucos depois de uma avaliação negativa, em 1972, e da chegada ao poder dos conservadores e de Margaret Thatcher. Na mesma época, a idéia foi adotada por um sindicato de docentes franceses, e daí passou para o Partido Socialista, em 1977. Em maio de 1981, o socialista François Mitterrand se elegeu presidente da República e, já em julho, o governo anunciou a criação das Zones d’éducaz’ionprortaires. Essas ZEP, como são comumente chamadas, foram organizadas em 1982 e a idéia se espalhou por vários países da Europa e mesmo além dela.
A idéia básica é a de discriminação positiva, tradução direta da expressão inglesa. O objetivo fundamental das ZEP, em todos os textos oficiais, é o combate ao fracasso escolar, em particular o fracasso das crianças das famílias desfavorecidas. Trata-se de atribuir mais recursos às escolas freqüentadas por essas crianças, que receberam menos da sociedade. É discriminação, mas positiva. Notem que se poderia equiparar essa idéia à de dívida social usada no Brasil. Todavia, logo se percebeu que esse suplemento de verba apenas permitia diminuir em dois ou três o número de alunos em cada turma, o que não mudava a situação de maneira sensível. Portanto, à idéia de discriminação positiva foi acrescentada a de projeto.
Concretamente, uma ZEP contempla, no caso mais freqüente, algumas escolas maternais e primárias (l a 5a séries) e um ou dois colégios (6 a ga séries). Só podem participar das ZEP estabelecimentos escolares públicos (que representam mais de 80% dos estabelecimentos franceses). A ZEP é designada como tal pelo Ministério da Educação Nacional, em uma articulação entre os escalões central e local do ministério. Os critérios utilizados são de ordem social e escolar, em particular: categoria socioprofissional dos pais, percentual de desempregados, número de intervenções da assistência social, percentagem de alunos estrangeiros, atrasados etc. Algumas vezes, ocorreram pressões políticas locais, mas são casos raros. As unidades dependem administrativamente do fiscalizador local das escolas (funcionário público), mas, na maioria dos casos, o personagem mais importante é o coordenador da ZEP. Trata-se de um docente, cujo horário de trabalho é reduzido em 5O° (ou 100% nas maiores ZEP).
A ZEP elabora um projeto, que leva em conta o projeto de cada escola, de caráter coletivo. O papel do coordenador é fundamental para ultrapassar o isolamento de cada escola, fomentar a elaboração de um projeto coletivo e, a seguir, acompanhar a sua realização. Muitas vezes, o projeto focaliza ações ligadas à leitura (inclusive a organização de uma biblioteca), à cultura geral (visitas a museus, convites a escritores ou pintores locais), às relações com o bairro (jornal ou rádio da ZEP), a eventos interculturais (festivais, por exemplo). A administração incentiva muito, em particular por meio das verbas atribuídas, as parcerias entre as escolas, por um lado e, por outro, associações culturais e sociais, prefeitura, instituições culturais (teatro, museu...), etc. Em princípio, o projeto é elaborado para três anos e a ZEP é avaliada no final desse período. De fato, há pouca avaliação institucional das ZEP.
A principal dificuldade com que se depara o dispositivo ZEP é que ela se transforma em instituição permanente. É raríssimo que uma ZEP saia do dispositivo depois de três anos. A maioria das ZEP criadas em 1982 ainda existe e o número de ZEP aumentou muito: eram 362 em 1982, são 710 em 2005. Para enfrentar essa dificuldade, o ministério criou, em 1998, redes de educação prioritária, ou seja, dispositivos mais leves e flexíveis que as ZEP que possibilitam acolher escolas a serem ajudadas, mas sem participação plena na ZEP e, também, dar uma ajuda às escolas que estavam em ZEP quando esta não foi renovada. Entretanto, permanece a dificuldade básica. Ajudam-se escolas de um bairro para elas melhorarem o nível de sucesso dos alunos. Caso melhorem mesmo esse nível de sucesso, saem da lista das escolas com dificuldades e perdem a verba suplementar — com o risco de retornar às dificuldades. Caso as escolas não tenham melhorado nada, permanecem na lista das escolas com dificuldades, e se pode colocar a questão de saber por que uma escola que não soube usar a verba suplementar para resolver os seus problemas iria receber nova verba.
Além disso, os franceses cometeram o mesmo erro dos ingleses: atribuiram aos docentes de ZEP um prêmio insuficiente para atrair os mais experientes e que complica a questão da eliminação do dispositivo. Ensinam nas ZEP mais docentes novos do que em outras regiões. Na realidade, o trabalho nessas escolas é mais difícil, o prêmio não compensa e uma parte dos docentes que aí trabalha não tem outra opção. Se eles investirem muito, a ponto de melhorar a situação, o salário baixa porque a ZEP acaba e, com ela, o prêmio ZEP!
Outra dificuldade fundamental é de ordem pedagógica. Aconselha- se a ZEP a fazer projetos relacionados com a vida cotidiana dos alunos, a se ligar ao bairro (os franceses não falam em comunidade), a se abrir etc. A pedagogia oficial das ZEP é prima da pedagogia valorizada pela reforma do ensino das ciências nos Estados Unidos. Mas, paralelamente, os docentes devem cumprir as obrigações dos programas oficiais e são avaliados em relação a eles. Dessa forma, encontram-se nas ZEP, nas suas escolas e classes, por um lado, uma pedagogia cotidiana que hesita entre a tradição e o salve-se quem puder e, por outro, projetos interessantes que devoram o tempo necessário para cumprir o programa. As ZEP não resolveram o problema que fica também no centro da reforma do ensino da matemática e das ciências nos Estados Unidos: a dupla injunção contraditória (o ckubk bind da teoria da comunicação) de levar os alunos a um saber constituído, socializado, predeterminado e de acompanhar as suas experiências, descobertas, investigações.
Talvez seja por isso que a avaliação das ZEP não leve a conclusões otimistas. É preciso ter cuidado com esse tipo de avaliação nacional de um dispositivo por natureza local. Existem unidades cuja existência não ultrapassa o documento oficial: o responsável redige o projeto, as escolas compartilham o dinheiro e, na verdade, nada acontece. Há outras ZEP que atingem resultados bastante positivos, inclusive no que tange às aprendizagens. Entretanto, a avaliação nacional permite ter uma idéia dos pontos fortes e das fraquezas do dispositivo. Ora, todas as avaliações realizadas, desde 1982, chegam às três mesmas conclusões:
1.o dispositivo ZEP é eficaz em diminuir a tensão, os conflitos, a violência nas escolas e melhorar a vida cotidiana de cada um;
2.o dispositivo não mostra eficácia nenhuma no que diz respeito às aprendizagens e à questão do sucesso e do fracasso escolar: sob esse ponto de vista, não diminui a discrepância entre as escolas das ZEP e as demais;
3.no entanto, essa discrepância não cresceu, ao passo que as condições sociais de vida nesses bairros pioraram. Pode-se considerar que a existência das ZEP impediu que o fracasso escolar passasse a ser ainda maior.
Hoje, os franceses consideram que as ZEP constituem um dispositivo positivo, mas que não resolvem o problema do fracasso escolar.

O BRASIL: DESAFIOS DA FORMAÇÃO DA POPULAÇÃO
Os ventos do pós-guerra que sacudiram os Estados Unidos e a França, no bojo dos quais se colocaram novos desafios para a educação nacional daqueles países, também se fizeram presentes no Brasil. Na verdade, esse movimento em direção a uma escola que enfrentasse as exigências do mundo contemporâneo parecia explodir no século XX, quando o Brasil iniciava de forma mais contundente a passagem de uma economia predominantemente rural para a urbana, industrializada.
A despeito de tudo o que se tentou realizar anteriormente, só na aproximação da metade do século XX o país iria construir um sistema educacional para atendimento às grandes massas: na estimativa de (SAVIANI, 2004, p. 50-5 1), entre 1933 e 1998, enquanto a população global do país quadruplicou, a matrícula geral aumentou 20 vezes, passando de 2.238.773 para
44.708.589 alunos’3.
A partir da década de 1960, intensas experimentações educacionais aconteceram também no interior do campo educativo, pressionando pela realização de reformas que culminaram em novas leis federais (1961, 1971 e 1996). Mas o país terminou o século com uma gama de problemas educacionais a serem enfrentados, além dos que ainda haviam sido herdados do século XIX — por exemplo: taxas relativamente altas de analfabetismo da população a requererem ações específicas — quanto os que chegavam com o novo século se avizinhando
— como, por exemplo, a problemática da inclusão digital. Assim, era preciso universalizar o ensino primário (o que fez, por exemplo, a França no início do século XX) e o ensino fundamental (a França, nos anos 1960 e 1970), generalizar o ensino médio (França — anos 1980 e 1990, ainda não estando concluído esse esforço) e expandir o ensino superior. Mas, ao contrário da França, que distribuiu tais ações educativas ao longo do tempo, no Brasil está sendo preciso fazer tudo isto concomitantemente, desde a alfabetização de adultos à criação de um sofisticado sistema de pós-graduação nacional.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em vigência, seus diversos aparatos jurídicos de regulamentação e complementaridade e o corpo de diretrizes e referências — como os Parâmetros Curriculares Nacionais — podem ser considerados equivalentes, no plano da necessidade de ações, ao que outros países, tais como Estados Unidos e França, também sentiram’4. Mesmo assim, dadas as imensas diferenças entre aqueles países e o Brasil, é mais complicado pinçar um programa específico que tenha, aqui, uma natureza semelhante ao que foram as ZEP na França ou a reforma do ensino da matemática e das ciências nos Estados Unidos, na busca do enfrentamento do que se configurava, para aqueles países, em uma situação de fracasso escolar’5.
A própria noçáo de fracasso escolar no Brasil parece ser bastante difusa; náo há ainda, no plano da açáo, uma agenda na qual se possa indicar o que vem conseguindo reunir os diferentes segmentos sociais ao redor da priorizaçáo da educação nacional e da busca do sucesso escolar. Do mesmo modo, no plano da construção de conhecimento sobre a temática,
o impacto dos estudos parece se restringir ao uso que deles se faz no mundo acadêmico.
Muitos desses trabalhos, diga-se, são bastante significativos — como é o caso do estudo seminal que foi desenvolvido por Patto, em um livro que ajudou a formar, desde então, várias gerações de educadores brasileiros (PATTO, 1999). Por outro lado, parte da produção ainda é rudimentar, como deixa transparecer um estudo desenvolvido por (ANGELUCCI e/ai. 2004), que abordam o estado da arte da pesquisa sobre o fracasso escolar no período de 1991 a 2002 na Universidade de São Paulo — USP.
Angelucci e outros identificaram quatro concepções de fracasso escolar como fontes norteadoras das pesquisas analisadas. A primeira entendia o fracasso escolar como um problema psíquico em qu havia uma certa culpabilização das crianças e de seus pais. De acordo com aqueles autores, tais pesquisas partiam do princípio de que o fracasso escolar se deve a da ccpacidade intelecinal dos alunos, decorrentes de problemas emocionais. A segunda concepção enfocava o fracasso escolar numa perspectiva técnica, ou melhor, na inadequação das técnicas de ensino. Assim, atribuía-se o fracasso do aluno à falta de domínio da técnica correta por parte do professor. Havia, portanto, uma transferência da culpa do aluno para o professor. O enfoque mudava quase que radicalmente na terceira concepção, ao abordar o fracasso escolar como uma questão institucional. Aqui o entendimento era que o fracasso era produzido, na medida em que considerava a escola como instituição inserida em uma sociedade de classes regida pelos interesses do capital, sendo a própria política pública, a serviço daqueles interesses, um dos determinantes desse fracasso. A quarta e última concepção, ainda que calcada na mesma lógica anterior, isto é, na sociedade de classes, deslocava o foco das atenções para o interior da instituição escolar, mais especificamente, para nas relações de poder estabelecidas no interior da escola — e aqui se partia do princípio de que a escola, ao estruturar-se na cultura dominante, estaria praticando um ato de violência, pois passaria a não reconhecer, ou a desvalorizar, a cultura popular.
Numa visão longitudinal, pode-se afirmar que as elevadas taxas de reprovação e de evasão constituem objeto de pesquisas e de políticas públicas há longo tempo. Mudam, porém, as suas percepções e explicações. Nos anos 1960, eram freqüentes as análises que realçavam a pobreza dos alunos (e em muitos casos dos professores) e a insuficiência de recursos, métodos e técnicas da escola para promover o seu sucesso, aplicando-se com freqüência a teoria dos sistemas, Os insumos, basicamente, explicavam os resultados. Deslocando o foco para a “caixa preta”, foram importadas concepções sobre a privação cultural dos alunos, que deveria ser suprida a partir da pré-escola. A esta concepção de ausência de cultura do aluno ou de sua deficiência, contrapuseram-se críticas antropológicas de grande peso que contestaram a cultura da pobreza e as suas políticas compensatórias. Poppovic, no Brasil, foi uma das principais autoras a refutarem essa perspectiva, propondo o conceito de marginalização cultural (POPPOVIC, 1972). A criança socialmente desprivilegiada possui uma cultura rica, voltada para os desafios do ambiente em que vive, capaz de assustar uma criança de condição social mais alta. Entretanto, a sua cultura é desvalorizada e marginalizada pela sociedade e pela escola, que, assim, impõe requisitos.
A esta visão antropológica e psicológica correspondeu, no campo da sociologia, a teoria da reprodução, já mencionada. Uma das obras-chave foi a de Cunha, que confrontou o discurso liberal da igualdade de oportunidades com as condições concretas da educação brasileira, concluindo que o acesso e a qualidade estão desigualmente distribuídos (CUNHA, 1975). Mais ainda, a escolarização, ao avaliar o aproveitamento, se organiza para premiar as aptidões desenvolvidas pelas classes não-trabalhadoras. As chamadas razões de ordem intelectiva que impedem o progresso escolar são, na verdade, geradas por distinções sociais prévias que não refletem o mérito individual. Assim, a escola contribui para reproduzir as linhas de classe.
A essa posição, quase fatalista, se contrapôs outra, ainda nos anos 1970, que enfatizou os fatores intra-escolares do fracasso. As condições internas da escola podem ser menos selecionadoras, por isso se destacou o sentido político da prática do professor, que se realiza por meio da sua competência técnica. O sentido político da escola é dado pela transmissão de conhecimentos úteis também aos dominados. Cria-se, deste modo, uma contradição: promover a escolaridade interessa à classe dominante, mas esta mesma escola pode transmitir conhecimentos relevantes aos dominados (MELLO, 1982). Estudando o fracasso escolar, a pesquisa verificou que o perfil de bom aluno traçado pelos professores se fundamenta em padrões dificilmente alcançáveis pela criança pobre. Em geral, as explicações do fracasso não questionam a ação da escola, ao contrário, culpam o aluno pelo fracasso. Revela-se, assim, a recuperação do pensamento liberal, que considera as pessoas e a sua posição social em termos de dons ou peculiaridades tidas como autônomas em vista de condições objetivas da vida material. Se a escola é promotora da igualdade de oportunidades, a criança fracassa por falta de esforço individual. Deste modo, absolve-se a escola e condena-se a vítima.
As críticas às teorias da reprodução passaram a ver a escola como uma arena onde se exerce a resistência dos alunos e das classes populares e onde gerações, culturas e valores diferentes se opõem. Assim, o fracasso é mais complexo que o alegado. A reprodução não é uma forma de barro, em que a escola se encontra a serviço das classes dominantes, mantendo a sociedade de classes.
Por outro lado, há trabalhos que registram o que os próprios afetados diretamente pelo fenômeno do sucesso/fracasso escolar — os alunos — pensam sobre a temática. Um estudo transcultural envolvendo estudantes do Brasil, da Argentina e do México, desenvolvido por Ferreira e/ai. com o objetivo de identificar a atribuição de causalidade ao sucesso e ao fracasso escolar, verificou não haver diferenças quanto à explicação de seus próprios desempenhos. Os resultados do estudo evidenciaram que
a causa básica a que alunos mexicanos, a)genziu1os e brasileiros se referenciam, ao explicarem seu próprio desempenho acadêmico e o de outros a/tinos, sejam eles bem ou malsucedidos, estudem em escolas públicas ou particulares e pertençam ao seu próprio país ou a outro país é o eijcff co, seguido, a certa cia, da capacidade, eipecialmenle quando se hata de explicar sucesso escolar (FERREIRA, et al., 2002).
Ferreira assinala, no entanto, que a maioria das pesquisas brasileiras que envolvem crianças do ensino fundamental aponta para o fato de  que os alunos tendem a atribuir seu sucesso a fatores internos, com destaque para o esforço (FERREIRA, 2002). Por outro lado, o fracasso tende a ser atribuído a causas internas e externas, isto é, à falta de esforço e à dificuldade da tarefa, respectivamente. Os resultados indicariam, portanto, que os alunos tendem a se responsabilizar tanto por seus sucessos quanto por seus fracassos.
Tal fato pode ser corroborado pelos resultados de uma pesquisa realizada por Ireland & Carvalho com alunos da 4a série de cinco escolas públicas, em que se constatou que mais de 90% desses alunos atribuíram a si mesmos a responsabilidade pelo fato de algum dia virem a sofrer uma reprovação (IRELAND & CARVALHO, 2005). Nesse sentido, Tratenberg, em seu polêmico artigo A escola organi7acdo complexa, ao comentar o formato da instituição escolar, assinala que
urna escola jhndada na rnemori7acdo do conhecimento, num sistema de eXames que mede a eficácia dapreparacão ao mesmo, nadaprovando quanto àforrnacão durável do indivíduo, desenvolve urna pedagogia paranóica, estranha ao concreto, ao seu fim. Quando falha, inteeprefa cite evento corno reiponsahilidade do educando. (TRATENBERG, 1976).
De certa forma, o que se observa nos resultados da maioria das pesquisas é que as atribuições do sucesso e/ou do fracasso escolar raramente são concebidas como resultado da conjunção — ou ausência dela — de quatro fatores: o esforço do aluno, o compromisso do professor, a estrutura da escola e o envolvimento dos pais.
Os próprios instrumentos de verificação do sucesso/fracasso escolar ainda são de certa forma incipientes. Nesse contexto, pode-se até mesmo atribuir um certo sentido à expressão fracasso escolar conforme o que é medido pelo SAEB, isto é: fracassa aquele que não atinge um determinado escore nesse exame. O que, obviamente, projeta, no mesmo movimento, a atribuição de um certo nexo à expressão sucesso escolar, pelo que é igualmente medido pelo SAEB, ou seja: é exitoso aquele que atinge ou ultrapassa esse mesmo escore. Aquele que fracassa, ou o seu reverso — aquele que é exitoso — pode ser o aluno que prestou o exame, ou a escola onde se estuda, ou a rede escolar, ou a Unidade da Federação, a região, o país — isto depende do nível de agregação dos dados obtidos pelo SAFE.
É interessante notar que estudos existentes sobre o fracasso escolar no Brasil raramente utilizam uma definição como a referida acima. O que é mais comum são as formas de se circunscrever o fenômeno, falando-se, por exemplo, de taxas de analfabetismo, das precariedades físicas e materiais das escolas públicas, da (des) qualificação e dos baixos salários dos professores, de taxas de (des)escolarização das crianças e adolescentes na faixa da obrigatoriedade escolar, de reprovação e de evasão. Os conceitos vão, então, se compondo, com novos indicadores sendo agregados. Por exemplo: à medida que a busca de uma taxa de escolarização universal vai deixando de ocupar um lugar proeminente na agenda, fala-se, então, de fluxo idade/série — este fortemente mencionado na segunda metade dos anos 1990. Mais recentemente, inclui-se também o absenteísmo — de alunos e de professores — um tema ainda relativamente pouco pesquisado. E, à medida que se caminha para a institucionalização de exames externos à escola — como são os casos do SAEB, do ENEM, da participação do Brasil no Pisa, etc. — o conceito de proficiência passa a ser incluído na discussão sobre sucesso e fracasso escolar e, quem sabe, possa vir a refletir uma certa síntese dos fenômenos anteriormente mencionados (reprovação, evasão, absenteísmo, etc.).
É nessa direção que esta pesquisa também caminha: a de que, mesmo com a possibilidade de se criticar os exames de proficiência hoje aplicados nas escolas brasileiras, esse conceito — o de proficiência — é uma ferramenta que pode ter grande potencial tanto para o mundo da investigação científica quanto para o da articulação dessas pesquisas com a formulação de políticas públicas no âmbito da temática do sucesso/fracasso escolar. De resto, encontra-se exatamente aí, nesse ponto — o do cmzamento entre necessidade de pesquisa e possibilidade de articulação de seus resultados com a formulação de políticas públicas — uma justificação da parceria que ora a UNESCO e o INEP realizam sob a forma do presente trabalho.
Uma das hipóteses, nesta pesquisa, que sustenta essa adoção do conceito de proficiência tal como formulado pelo SAEB/INEP é a de que, na proficiência, ou melhor, em seus resultados, está consubstanciado o que geralmente se entende, de forma flexível, e muitas vezes ambígua, por sucesso fracasso escolar fenômenos ora aparentemente desconectados, ora muito facilmente conectados, quando essa aparência de facilidade é enganadora. Em outras palavras, quanto mais penetrados pelo senso comum — como é o caso do conceito de sucesso/fracasso escolar — mais esses conceitos precisam ser buscados na complexidade que o senso comum tende a esconder. Para além do fracasso escolar — tema que já figurou como título inspirado de um livro sobre a temática — é um mote que orienta a busca dos possíveis significados que esses conceitos comportam.
Uma das dimensões de originalidade desta pesquisa em relação a muitas outras que versam sobre o mesmo tema reside precisamente na assunção da necessidade de mais investigações sobre os resultados do SAEB. Na verdade, o SAFE identifica fracasso/sucesso escolar por intermédio de uma avaliação de competências cujo resultado pode ter um tratamento estatístico, quantitativo, do tipo taafüs por cento dos iiknios X são c&paes de levando-se em conta, obviamente, a possível legitimidade tanto da competência esperada quanto da forma de medi- la. Esta pesquisa, por sua vez, tem seu fundamento na dimensão qualitativa que os resultados do SAEB podem conter. Em outras palavras, busca-se identificar processos que subjazem àqueles resultados.
Questões como essas não podem ser abordadas sem que saibamos o que está acontecendo concretamente nas escolas, nas salas de aula e na mente dos alunos e docentes. Esta pesquisa busca contribuir para esse conhecimento. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário