Processos de escolarização nos meios populares
As contradições da obrigatoriedade escolar
Nadir Zago -Professora
do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina.
As Ciências
Sociais e da Educação produziram, nas últimas décadas, uma ampla literatura
sobre as desigualdades escolares, demonstrando as grandes correlações
estatísticas entre a origem social dos alunos e seu sucesso ou fracasso escolar
(Forquin, 1995; Petitat, 1994; Patto, 1991). No Brasil, a constatação de que é
nos meios populares onde estão concentrados os mais elevados índices de
analfabetismo, reprovação, evasão entre outros problemas escolares, deu origem
a inúmeras pesquisas voltadas para a compreensão do fracasso escolar, nesses
meios, especialmente no ensino fundamental1. No que diz respeito aos alunos da
escola pública, não faltaram estudos a respeito de suas características
sociais, culturais e cognitivas e sobre as relações entre as condições de
pobreza e os resultados escolares. Normalmente os estudos voltados para a
realidade educacional das populações socialmente desfavorecidas colocam em
evidência o número significativo de crianças que anualmente deixam a escola;
todavia, continua a existir uma ausência de informações a respeito do destino
posterior dos chamados “evadidos”. Uma das questões que permeou os estudos que
realizamos entre os anos de 1991 e 1998, com apoio do CNPq, esteve voltada para
os processos de escolarização em famílias de baixo poder aquisitivo. Com esse
objetivo acompanhamos, em intervalos de tempo e durante o período acima
indicado, a situação escolar dos filhos de 16 famílias, com residência na
periferia urbana de Florianópolis.
Adotar como
opção metodológica o acompanhamento da situação escolar, num período
considerável de tempo, nos permitiu observar o caráter dinâmico da formação dos
percursos, tal como sua lógica não-linear, feita de ingressos, interrupções e
retornos à escola. Esses acontecimentos, evidentemente com certas variações,
fazem parte de realidades recorrentes nas camadas sociais em questão e, desse
modo, permitem questionar a noção genérica de “evasão escolar”. A relativização
dessa noção fica evidente quando tentamos compreender, tal como foi o objetivo
deste trabalho, com base em quais processos a população em idade escolar deixa
precocemente a escola, mas também a ela retoma e, em vários casos, nela
permanece para além do ensino obrigatório.
As relações entre as questões macroestruturais
e o fracasso escolar já estiveram na pauta das análises produzidas sobretudo
nos anos 70 e 80. Sem desconsiderar essa problemática e igualmente as relações
entre realidades extra-escolares e práticas intra-esco-lares, buscamos
compreender, nas relações microssociais, a formação dos percursos escolares a
partir das condições objetivas de escolarização, das práticas e dos
significados definidos pelos sujeitos implicados: pais e filhos. Não é
propósito desenvolver uma leitura sociológica que dê conta das causas do
fracasso ou do sucesso escolar, mas sim, mediante uma preocupação voltada para
o entendimento dos processos, tentar mostrar como se configura a história
escolar de crianças e jovens, ao longo de alguns anos; as mudanças processadas,
principais entraves e perspectivas.
Este estudo, voltado para a compreensão
microssocial dos percursos escolares, está apoiado em algumas questões de
análise aqui brevemente evocadas. Uma delas será a de apontar a existência de
uma relativa variação na formação desses percursos entre os filhos das famílias
estudadas, observação que não deve causar nenhuma estranheza ao pesquisador
familiarizado com o tema. Compreender a formação do itinerário escolar como
processo pressupõe o abandono de concepções universalistas que tomam as camadas
populares como um conjunto indiferenciado e nos obriga a pensar em famílias e
alunos datados, contextualizados, considerando a realidade a partir “de dentro”
dos meios sociais estudados, no sentido atribuído por f^colaci-da-Costajl987).1
Há hoje um certo consenso, entre os
estudiosos da família, sobre as variações encontradas tanto nas formas de
composição do grupo como nas estratégias educativas, entre outras práticas
familiares. Partindo desta consideração, entendemos que o estudo sobre a
realidade escolar nos meios populares, e este foi o propósito da pesquisa, deve
levar em consideração outras dimensões da vida do aluno além da estritamente
escolar, entre elas a participação deste no trabalho e a rede de relações
sociais da qual faz parte. Neste sentido, nos apoiamos na compreensão dos
destinos escolares, sejam eles de fracasso ou de sucesso, produzidos de forma
dialética, complexa, no quadro de uma configuração de fatores em
interdependência (Lahire, 1997), o que significa adotar uma posição contrária à
lógica de fatores tomados numa relação de causa e efeito. Este procedimento
permite observar, além das variáveis clássicas (como renda, ocupação e
escolaridade dos pais), outros elementos mediadores do curso escolar: as
trajetórias sociais, sabendo que essas produzem diferenças nas experiências de
vida e visão de mundo2; os significados e as práticas de escolarização, entre
outros fatores centrais e periféricos às questões escolares. O estudo de B. Lahire (1997) fomece exemplos significativos
para a compreensão desta abordagem. O autor mostra que as variáveis tomadas
isoladamente - a escolaridade dos avós, o fato de ter pais militantes, a
presença ou ausência de leitura em casa, a existência de um projeto familiar,
de uma intencionalidade ou estratégias de superinvestimento escolar - não agem
de forma mecânica, mas correspondem a um entre outros possíveis sociais. Com
esta observação retomamos a idéia, já assinalada, de uma configuração de
fatores, definida por suas relações de interdependência, lembrando que esta não
tem caráter normativo. Para completar esta observação, citamos Velho (1997):
Por mais que seja
possível explicar sociologicamente as variáveis que se articulam e atuam sobre
biografias específicas, há sempre algo irredutível, não devido necessariamente
a uma essência individual mas sim a uma combinação única de fatores
psicológicos, sociais, históricos, impossível de ser repetida ipsis litteris
(p. 28).
A família, por intermédio de suas ações
materiais e simbólicas, tem um papel importante na vida escolar dos filhos, e
este não pode ser desconsiderado. Trata-se de uma influência que resulta de
ações muitas vezes sutis, nem sempre conscientes e intencionalmente dirigidas.
A citação abaixo corrobora esta idéia:
(...) a criança
constitui seus esquemas comportamentais, cognitivos e de avaliação através das
formas que assumem as relações de interdependência com as pessoas que a cercam
com mais freqüência e por mais tempo, ou seja, os membros da família. (...) Suas
ações são reações que “se apóiam” relacionalmente nas ações dos adultos que,
sem sabê-lo, desenham, traçam espaços de comportamentos e de representações
possíveis para ela (Lahire, 1997: 17).
No entanto, com base em trabalhos de
pesquisa, observamos que os comportamentos escolares adotados pelos alunos não
se reduzem às influências do ambiente doméstico. Acompanhando seus
desdobramentos, fica evidente a necessidade de considerar o papel do aluno como
parte ativa do seu próprio percurso e das relações que ele estabelece com
outras instâncias de socialização, seja no bairro, no ambiente de trabalho,
entre outras formas de interações sociais. Nesse sentido, as experiências
extra-escolares e a própria faixa etária em que ele se encontra são dimensões que
não podem ser negligenciadas. De acordo com uma sociologia centrada unicamente
nas questões das desigualdades, cujos princípios embasaram considerável número
de trabalhos, o aluno é reduzido a um conjunto de variáveis, como sua origem
social e resultados escolares, não dando conta da atividade real que esses
atores sociais desenvolvem, dentro e fora dos estabelecimentos de ensino
(Queiroz, 1995: 81).
Neste trabalho que apresentamos voltado
para os percursos escolares, concedemos um lugar importante às falas e à
atuação dos filhos das famílias estudadas. Consideramos,,^3gra a apresentação e
análise dos resultados, dados que tivemos a oportunidade de atualizar em duas
ocasiões a partir de um estudo iniciado em 1991, ou seja, em pesquisas
realizadas em 1993/94 e, posteriormente, em 1997/98. Nesses momentos, tivemos a
oportunidade de acompanhar a escolaridade dos filhos de 16 famílias. Na
primeira etapa, um dos critérios de seleção das famílias consistiu na presença
de filhos em idade escolar e, na continuidade, o interesse foi acompanhar a
formação de seus percursos escolares, independentemente dos resultados de
fracasso ou de sucesso escolares.
Procuramos também diversificá-las quanto às
suas condições materiais, estimadas a partir do tipo de residência. Dessas 16
famílias, sete residiam na favela e as demais, mediante financiamento, tiveram
acesso à casa própria de tipo popular. A renda familiar é de modo geral baixa.
Conforme dados de 1998, sete tinham uma renda mensal entre 2 e 3 salários
mínimos, três entre 4 e 5, e apenas duas atingiam 6 salários mínimos. Em quatro
famílias, em função de trabalhos ocasionais e desemprego, a renda não foi
estimada. Com poucas exceções, a situação socioeconômica do grupo estudado
manteve-se praticamente inalterada ao longo dos anos. Os pais exerciam
ocupações não qualificadas (diversos tipos de biscates) ou semiqualíficadas
(pintor, pedreiro, mecânico, zelador), na maioria dos casos sem contrato de
trabalho. Quanto às mães, seis eram donas-de-casa e dez trabalhavam fora, na
sua maioria como empregadas domésticas ou faxineiras. Do número total de
famílias, 12 eram de tipo nuclear, destas, cinco de uma segunda união, enquanto
quatro eram formadas pela mãe e filhos. Do total de 16, três tinham dois
filhos, cinco tinham três e oito de quatro a seis filhos. O capital cultural familiar,
considerado segundo a escolaridade, era igualmente reduzido: do total de pais,
apenas um obteve certificado do ensino fundamental e dois do ensino médio;
quanto aos demais, dois eram analfabetos, cinco tinham entre 2 e 4 anos de
estudo e três de 5 a 7 anos3. A situação de analfabetismo ou semi-analfabetísmo
é maior entre as mães, ou seja, quatro entre as 16, seis tinham entre 1 e 4
anos de estudo, cinco entre 5 e 7 anos e apenas uma completou o ensino
fundamental.
As questões
norteadoras do estudo definem uma pesquisa qualitativa, centrada na produção do
discurso dos sujeitos pesquisados e na obtenção de dados em profundidade. Neste
sentido, a entrevista constituiu o principal instrumento de coleta de dados.
Sua função difere do questionário tanto na forma de conduzir a obtenção dos
dados quanto na natureza destes. Como observam Blanchet & Gotman (1992:
40), “o questionário provoca uma resposta, a entrevista faz produzir um
discurso”. Um questionário para o levantamento de dados socioeconômicos e
demográficos da população em questão e a observação de campo, efetuada no local
de moradia dos entrevistados, serviram de instrumentos complementares à
pesquisa. As entrevistas, feitas com os pais das 16 famílias e parte de seus
filhos, privilegiaram dados sobre as trajetórias das famílias, suas condições
socioeconômicas, situações escolares dos filhos4, os significados e as práticas
familiares de escolarização. Nos encontros que se sucederam com a mesma
população, esses dados iam sendo atualizados, o material, gravado e transcrito
na sua totalidade. Registramos a situação escolar da totalidade dos filhos, ou
seja, 56, e 30 destes (53%) foram também entrevistados, na última fase da
coleta de dados.
Para apreender elementos que permitam dar
visibilidade às “mediações complexas” (Queiroz, 1995) constitutivas dos
percursos escolares, conforme já observamos, consideramos as condições
materiais de escolarização e a relação com a escola a partir dos significados e
das práticas adotadas. A metodologia adotada na análise dos dados teve como
procedimento inicial a impregnação do conteúdo das entrevistas, pelo
pesquisador, possibilitada pelas leituras e releituras do material. Como bem
observou Michelat (1981: 204), “as leituras repetidas vão progressivamente
suscitar interpretações pelo relacionamento de elementos de diversos
tipos". Adotamos esse procedimento até encontrar, dentro das questões
gerais mencionadas, categorias e subcategorias de análise. De posse destas, a
sistematização dos dados obedeceu a um duplo procedimento: 1) uma análise
horizontal, pela qual procuramos encontrar pontos que aproximam as famílias
estudadas; 2) uma análise vertical, para aprofundar casos singulares. Este
procedimento é sistematizado por Michelat (1981: 205): “a atenção particular
dedicada à singularidade de cada entrevista é concomitante a um relacionamento
das diversas entrevistas entre si. Isso conduz a alternar as leituras verticais
das entrevistas (guardando a lógica própria a cada uma) e as leituras
horizontais, para estabelecer a relação com as outras entrevistas”.
A análise dos dados recaiu sobre um
material cumulativo, tendo permitido, nos momentos assinalados, a atualização
da situação escolar dos filhos como também das alterações sofridas no contexto
familiar {demográficas, escolares, ocupacionais, entre outras). Embora a
pesquisa tivesse inicialmente seu objetivo voltado para o ensino fundamental,
considerando o período que o estudo abrangeu, tivemos a oportunidade de
verificar qual o destino escolar e social dos filhos de mais de 14 anos.
DA OBRIGATORIEDADE OFICIAL À ESCOLARIDADE REAL
NOS MEIOS POPULARES
1.Dados
gerais sobre os percursos escolares
Com o desenvolvimento de abordagens
microssociaís nas Ciências Sociais e da Educação, sobretudo a partir dos anos
80, o tema da presença da família na escolarização dos filhos vem se
constituindo num capítulo importante da Sociologia da Educação5. Estudos sobre
as relações entre a escola e a família têm permitido, entre outras questões,
dar visibilidade às práticas de escolarização e ao valor social da educação
institucionalizada em diferentes segmentos sociais. Para compreender a
intensificação dos investimentos educativos dos pais em favor da escolaridade
dos filhos, é oportuno retomar alguns antecedentes históricos. Conforme observou Philippe Ariès (1981), a relação das
famílias com a escola alterou-se significativamente se compararmos o momento em
que a reprodução social não dependia de títulos escolares (sociedade
tradicional), com outro, característico da sociedade moderna, quando o capital
dominante é notadamente escolar. No Brasil, as transformações ocorridas
com a industrialização da economia e a aceleração da urbanização - com impulso
verificado em meados deste século - foram acompanhadas do aumento de ocupações
não manuais e da maior demanda da população pela educação formal e elevação do
seu nível escolar (Rodrigues, 1995: 60). Em 1950 uma escolaridade de nível
primário garantia o acesso a grande parte dos empregos de prestígio; mas,
gradativamente, com a elevação do nível de escolaridade da população e
conseqüente aumento das exigências escolares, o ensino médio “passou a ser
decisivo para alguém disputar uma vaga na maioria das ocupações do mercado de trabalho”
(Rodrigues, 1995: 61). Esse fenômeno é particularmente compreensível nos tempos
atuais, quando a inserção no mercado de trabalho é dificultada pela crise de
desemprego e aumento da demanda pela qualificação da força de trabalho para
enfrentar mudanças impostas pelo capital econômico e o sistema produtivo. Essa
tendência se acentua nos anos 90, marca-damente críticos para os jovens do
ponto de vista profissional (Pochmann, 1998).
Como mostram
estudos empíricos realizados em diferentes estratos sociais, a forte demanda da
população pela escolaridade representa uma necessidade de responder a essas
mudanças6. No caso específico de nossa pesquisa, o reconhecimento da educação
escolar como requisito básico para responder às exigências do mercado de trabalho
e, sobretudo, como possibilidade de romper com as condições de pobreza
familiar, é variável colocada pelos pais de forma recorrente, independentemente
das diferenças internas do grupo estudado. Uma análise do significado que eles
atribuem à escolarização de seus filhos revela que a valorização da instrução
se alicerça ao menos sobre dois pilares: o que corresponde a uma lógica prática
ou instrumental da escola (domínio dos saberes fundamentais e integração ao
mercado de trabalho) e outro, voltado para a escola como espaço de socialização
e proteção dos filhos do contato com a rua, do mundo da droga, das más
companhias, indicando a inseparabilidade entre instrução e socialização 7.
Contrariando esse interesse dos pais, tal
como registrado na primeira fase da pesquisa (1991/92) e renovado nas que se
sucederam, o nível de instrução obtido depois de vários anos (1997/98) é
limitado para um grande número dos filhos pertencentes às famílias estudadas.
As mães usam expressões que revelam bem esse estado da vida escolar: uma delas,
cujos filhos estão em grande atraso escolar, fala de uma escolarização “a
reboque”, e outra, para indicar a difícil ultrapassagem da 5a para as demais
séries do ensino fundamental, diz que na 5a eles “começam a patinar”. Estes termos
são bastante reveladores do que é a vida escolar para parte importante de
nossos entrevistados: a escola está “a reboque” da vida social e não representa
necessariamente o centro da vida da população. Problemas históricos no sistema
educacional brasileiro, como os altos índices de reprovação e interrupção
escolar, são igualmente comuns no grupo estudado. Os números são bons
indicadores para exemplificar esta observação. Conforme dados obtidos na última
fase da pesquisa, do número total de 56 membros, representado pelos filhos das
16 famílias estudadas, a maior parte concluiu as quatro séries iniciais, mas a
grande maioria que havia deixado a escola não obteve certificado escolar. A
escolaridade atingida pelos 28 ou 50% que não freqüentavam escola, todos com
mais de 14 anos, era a seguinte: dois cursaram até a 2i série do ensino
fundamental, cinco completaram a 4- série, oito a 5a, três a 6a e cinco a 7a
série. Desse mesmo grupo de 28, apenas cinco obtiveram certificado escolar,
sendo dois do ensino fundamental e três de nível médio. Dos outros 28, ou 50%
que freqüentavam escola, aproximadamente a metade estava em situação de
defa-sagem entre a idade cronológica e a série escolar8.
Para compreender a construção dos percursos
escolares numa perspectiva de processo, toma-se necessário ir além dos
indicadores acima e de outros como aprovação/ reprovação e interrupção dos
estudos, tomados isoladamente. Nos meios populares, as crianças, no mais
freqüente das vezes, não têm o seu dia organizado em tomo das atividades
escolares, com acompanhamento regular nos deveres de casa e outras atividades
extraclasse para reforçar e tomar mais rentável o currículo do aluno, conforme
estratégias comuns aos estratos médios da população (Nogueira, 1995). Nas
camadas populares, embora a maioria ingresse na escola conforme os ditames
previstos, isto é, aos seis ou sete anos de idade, geralmente a continuidade do
percurso transcorre de forma oposta ao “ideal tipo”, entendendo-se aqui a
adequação idade-série e permanência na escola até os 14 anos. Parte da
população estudada havia também freqüentado a pré-escola, mas parece que a
semelhança com a escolaridade correspondente aos padrões “normais” termina com
estas identificações.
Quando passamos a analisar as histórias
escolares dos filhos, observamos que vários deles detinham um nível de
escolaridade incompatível com o tempo que permaneceram vinculados ao sistema de
ensino. Uma análise dessa discrepância indica uma caraCterística freqüente nos
percursos, a saber, o seu desenrolar fortemente acidentado, í seja pelas
reprovações - em muitos casos de ocorrências múltiplas -, seja pelas inter-;
rupções temporárias da escola. Do total de 16 famílias, em mais da metade,
todos ou parte de seus filhos reúnem esses fenômenos de fragmentação do curso
escolar, reproduzindo, em muitos casos, situações muito semelhantes às dos
próprios pais, tanto em relação à escolaridade quanto às condições de trabalho.
Procuramos saber, para além dos dados objetivos, qual o significado que a
escola assume na vida dos jovens e como vivem a pouca escolaridade obtida. O
estudo dessas, entre outras questões, indica que a relação com a escola se
define pela heterogeneidade mais do que pela unidade de práticas e
significados. Nas páginas que seguem, tentaremos mostrar essas variações e
outros elementos integrantes dos processos escolares, lembrando que a ênfase
dada neste trabalho recai sobre o caráter irregular ou acidentado desses
percursos. Os dados que apóiam esta análise possibilitam levantar dimensões tanto
materiais quanto simbólicas, constitutivas da experiência escolar.
2.A
interrupção escolar no ensino fundamental: o descompasso entre o tempo passado
na escola e o resultado obtido
Augusto9,17
anos, teve êxito escolar até a 4a série e um desempenho com profundas mudanças
após este nível. Foi reprovado duas vezes na 5a, transferiu-se para o ensino
noturno e permaneceu até meados da 6a série, quando interrompeu os estudos.
Depois de legalizar a situação militar, espera encontrar um emprego fixo, pois
embora há muitos anos se reconheça como trabalhador, as ocupações que exerceu
foram sempre em caráter precário, realizadas de forma intermitente. Quanto a
seu planos, observou: “é o dia-a-dia.
[...] Eu gostaria de voltá a estudá” mas, acrescentou, “se tivesse serviço pra
trabalhá, daí eu preferia mais trabalhá do que estudá”.
Os registros do nosso último encontro com
Augusto não nos autorizam a dizer que ele encerre sua vida escolar na 6a série.
Há uma legião de ex-alunos que recomeçam seus estudos mesmo após vários anos de
interrupção, indicando que a escolaridade não obedece ao tempo “normal” de
entrada e permanência até a finalização de um ciclo escolar, mas se define no
tempo “do possível”10. A retomada
dos estudos, embora com tempo de permanência na instituição bastante variável,
significa que a vida escolar não foi encerrada, que há uma ou mais razões para
voltar a ser aluno. As histórias escolares que acompanhamos evidenciam a
interrupção dos estudos como parte de um processo de eliminação que acontece de
forma contínua e ao longo de toda vida escolar. Ao investigar os percursos
escolares não podemos ignorar as contradições entre o prolongamento da obrigatoriedade
escolar e a realidade concreta vivida por parte significativa da população que,
quando inserida na escola, tem uma trajetória em constantes descompassos com as
normas da instituição de ensino, produzindo o que Bourdieu & Champagne
(1998: 221) denominam de “excluídos potenciais”.
Apesar de reconhecermos o caráter
não-determinista das relações entre as condições socioeconômicas das famílias e
os resultados escolares dos filhos, não podemos ignorar que a situação escolar
nas populações de mais baixa renda está associada a um quadro social de
natureza bastante complexa. Há evidentemente variações no grupo estudado, mas
as condições materiais das famílias são, no seu conjunto, bastante modestas e
em vários casos encontram-se em situação de grande vulnerabilidade material e
social. A instabilidade faz parte do cotidiano desse grupo e se apresenta,
entre outros domínios, no trabalho irregular, tanto dos pais quanto dos filhos,
o que acarreta renda instável e dificuldades na satisfação das necessidades
básicas. Como não poderia deixar de ser, a instabilidade e a precariedade nas
condições de vida têm um peso importante sobre o percurso e as formas de
investimento escolar.
A mobilização familiar é voltada, em
primeiro lugar, para a sobrevivência, e é graças ao rendimento coletivo do
grupo, decorrente do trabalho de seus integrantes, que este tenta assegurar
suas necessidades básicas. A participação dos filhos no trabalho, para um
número significativo deles, teve lugar ainda na infância. Essa inserção
acontece geralmente nos serviços domésticos, para as meninas, tomando conta da
casa quando a mãe trabalha fora, ou em ocupações como babás ou empregadas
domésticas. Para os meninos, as atividades são bem mais variadas, na maioria
das vezes ligadas aos serviços de ajudante de pedreiro, pintor, limpeza de
terrenos, comércio ambulante, etc.
Quando nos reportamos ao trabalho infantil, é
preciso considerar que não se trata de uma situação generalizada, que atinge
indiscriminadamente as crianças das camadas socialmente desfavorecidas. Há
diferenças quanto à delimitação da idade de ingresso no trabalho, sendo que nas
situações de maiores dificuldades financeiras - tais como as associadas ao
desemprego, morte ou separação dos pais, além de outros acontecimentos
familiares que fragilizam as condições socioeconômicas da família a introdução
no trabalho se dá geralmente em idade mais precoce. Em vários casos, em razão
de uma maior estabilidade na renda, mas também das práticas educativas adotadas
pelos pais, é bem visível a ação destes a fim de preservar os filhos do
trabalho durante o ensino fundamental11. Essa variação no modo de ocupação do
tempo da criança praticamente inexiste a partir dos 14 anos, quando os filhos
já trabalham ou tentam inserir-se no mercado de trabalho. Nesse momento da
vida, ter uma ocupação remunerada corresponde a um desejo da família e do
próprio filho, que quer ter sua independência financeira12. Na ausência da
ocupação pretendida, a maioria começa com o que surge como possibilidade, seja
na condição de trabalho regulamentado e carteira assinada, seja nas inúmeras
formas de biscates encontradas, conciliando ou não essa atividade com a escola.
Toda escolarização posterior ao ensino obrigatório é considerada de
responsabilidade dos próprios filhos.
Pressionados pelas exigências do mercado de
trabalho, os jovens que não freqüentaram a escola na idade prevista tentam ou
fazem projetos para retomar os estudos, geralmente através do ensino regular
noturno ou de fórmulas mais rápidas que podem ser viabilizadas pelos cursos
supletivos13. Nas camadas populares, é sempre dentro destas modalidades que o
futuro escolar é projetado, na perspectiva de uma conciliação entre estudo e
trabalho14. Porém, retornar à escola pode dar apenas prosseguimento a uma
escolaridade acidentada, conforme se pode verificar por meio de vários exemplos
nos quais essas tentativas foram também acompanhadas de novas interrupções15.
Esses percursos acidentados (sejam decorrentes de reprovações ou de
interrupções) aumentam a distância entre a idade cronológica e a idade escolar,
e quanto maior a diferença, mais improvável se torna a conclusão de um ciclo
completo de ensino16. Estes dados se aproximam da realidade brasileira, que
historicamente vem reproduzindo altos índices de repetência, sobretudo nas
primeiras séries17.
Os depoimentos obtidos através de entrevistas
mostram, de um lado, a difícil relação entre o mundo do trabalho e o da escola
e, de outro, as contradições entre o valor social da escola e a escolarização
na sua condição real. Não raro, os filhos perdem a ocasião de ser estudante
“normal”, passando essa fase, é a de trabalhador ou trabalhador-estudante a
condição mais freqüente. “Já passou da hora”, observa Lucas, 21 anos, que tenta
obter um certificado escolar por meio do curso supletivo. Ele, como muitos outros jovens, procuram
recuperar o atraso escolar, mas já são trabalhadores em tempo integral, em
ocupações fisicamente estressantes. Da parte de muitos, ocorrem tentativas de
retorno à escola, mas em muitos casos a relação entre o mundo do trabalho e o
da escola se mostra de difícil conciliação. Aqueles que trabalham regularmente
(12 dos 30 entrevistados) reclamam do cansaço, do reduzido tempo para os
estudos, das freqüentes ausências às aulas, das dificuldades em certas
disciplinas e, em vários casos, da não-disposição psicológica para estudar.
Entrar, sair, retornar, sair, retornar novamente são acontecimentos que se
sucedem, pois, para muitos deles, ainda persiste a crença do estudo como uma
neces-. sidade indispensável, como ilustra Lucas: “porque é na escola que se
pode formá e algum dia ser alguém na vida”.
Com freqüência, a pouca escolarização os
deixa sem opções, obrigando-os a aceitar os baixos salários e a permanência em
ocupações que muitas vezes rejeitam, às quais se submetem por falta de melhor
alternativa. O desemprego, a rotatividade e a diversidade de ocupações
exercidas são situações conhecidas da maioria dos entrevistados. Muitos deles
não tiveram senão serviços temporários, em forma de “biscates”. Além do
desemprego que atinge os jovens, a baixa escolarização e qualificação
profissional e, num determinado momento, a própria faixa de idade associada ao
serviço militar, são outras barreiras que dificultam o acesso ao mercado formal
de trabalho .
Sem formação adequada para as exigências do
mercado de trabalho (não raro o ensino médio e novas qualificações como a
informática), não resta outra alternativa senão “pegar o que aparece",
para parafrasear uma expressão comum no grupo entrevistado. Quando tentam
inserir-se na vida ativa, o fazem em ocupações bastante variadas como as de
office-boy, servente de pedreiro, auxiliar de mecânico, balconista, babá,
empregada doméstica, entre outras. As tentativas de mudança de ofício são
acompanhadas de longa espera e incerteza, conforme observa Lucas, que está
tentando deixar o cargo de zelador de um condomínio para se tomar cobrador de
ônibus. Quando da última entrevista, fazia sete meses que havia preenchido uma
ficha em uma empresa do ramo, tempo que lhe permitiu proceder a um balanço da
situação e de suas chances: “a gente vai lá, eles ficam enrolando... hoje em
dia a gente tem que segurá o que tem. E pouco mas serve!”
Aparentemente poderíamos pensar que não há
relação entre o trabalho e a interrupção escolar quando, desempregado, o jovem
está também fora da escola. Desemprego não significa um estado de inatividade,
uma vez que, nessa situação, a grande maioria procura inserir-se nos setores
informais de atividades. A cada entrevista podia-se perceber a falta de
recursos financeiros e a decepção daqueles que se viam privados de participar
de certas formas de lazer, do acesso a bens de consumo que criam marca e
identidade entre os jovens. Poder desfrutar de bens de consumo como roupas,
calçados entre outros que, fortalecidos pela mídia, gozam de prestígio nessa
faixa etária, faz parte do imaginário de todas as camadas sociais e não
constitui prerrogativa das classes sociais mais favorecidas.
Situações em que a ausência de um
certificado mínimo de escolaridade impõe limites à inserção ou à reconversão
profissional chamam a atenção para a necessidade do diploma, e é especialmente
nesse momento que o estudo ganha real significado instrumental. Ou, como
observou Jauss (apud Duschatzky, 1999:81), “a escola adquire sentido para o
sujeito quando a experiência escolar entra no horizonte de suas expectativas de
vida”. Assim, a interrupção dos estudos é revista em outro momento, quando
então tentam reingressar ou fazer projetos de retomar à escola, muitas vezes
após vários anos de interrupção.
Para exemplificar, tomemos o caso de Luana,
18 anos, que considera humilhante seu trabalho de empregada doméstica exercido
desde a idade de 13 anos. Todas as vezes que tentou mudar de profissão,
esbarrou na ausência de credenciais escolares. Sua trajetória escolar não
seguiu o padrão convencional previsto pelo sistema de ensino. Até a 5S série
não havia interrompido os estudos, mas acumulava quatro reprovações: uma na 3a
série e três na 53 série. Esta última transcorreu com dificuldades escolares
(principalmente em matemática), freqüência irregular às aulas e interrupção
temporária aos 12 anos, quando trabalhava na função de babá. Sua última
tentativa de retomar os estudos foi no curso supletivo noturno, mas, face às
tentativas mal-sucedidas, interrompeu sem concluir o ensino fundamental: “eu
chegava cansada à noite e não dava tempo pra mim estudá. [...] Eu reprovei
porque não consegui estudar, tava muito forte pra mim”. Com 13 anos parou de estudar e foi, como suas duas irmãs,
trabalhar como empregada doméstica, ocupação que ainda exercia quando a
reencontramos em 1997. À época percebia o equivalente a dois salários mínimos,
quantia que dividia com a mãe para ajudar nas despesas da casa. Apesar do
desânimo frente às reprovações e do longo tempo sem estudar, a escola ocupava
um lugar importante no seu universo simbólico e planos futuros. Seu desejo era
acumular uma poupança para investir num curso de computação, fazer o curso
médio, incluindo também, no seu horizonte, uma formação de nível superior,
conforme revelou na última entrevista, realizada em 1997. Retomar os estudos
representa para ela o desejo de se reconhecer como estudante e poder se
identificar com os colegas da mesma faixa etária. Esse fato não reflete apenas
sua situação particular, mas a de significativa parcela da população, como mostra
Duschatzky num estudo com jovens argentinos, para os quais “a escola é vivida
como a oportunidade de construir outro modo de ser jovem” (1999: 85). Nas
palavras de Luana, “o estudo é uma coisa bonita de se falá. Por exemplo, se
alguém chega e pergunta: tu estuda? tás em que série? ah, eu tô fazendo tal, tô
quase chegando naquele curso. Eu acho muito legal. (...) Eu me arrependo um
monte de té desistido”. Para ela, fazer parte do universo estudantil se traduz
num fator de reconhecimento social, um reconhecimento que, como também observou
Duschatzky (1999: 81), tem um duplo significado: o de “distinção no interior da
própria comunidade”, noção que inclui o grupo de jovens que constitui parâmetro
de referência e identificação, e “de articulação com a sociedade global” que,
no caso de Luana, corresponde ao desejo de poder exercer uma ocupação mais
valorizada na estrutura social. Como ela, outras entrevistadas recusam-se a
aceitar a realidade social que empurra as mulheres residentes no bairro para os
serviços domésticos, como uma espécie de tradição e fatalidade.
Na adolescência, quando eu
fiz 14 anos, eu fui conhecendo mais sobre a vida, fui achando mais interessante
o estudo. 1...] Eu via as pessoas mais jovens, rapazes, moças, indo pra escola,
vi as minhas amigas, têm umas que terminaram, têm umas que tão fazendo
vestibular. Eu sempre quis fazê vestibular. [.. .1 Eu acho humilhante trabalhá
pros outros. É horrível. (...) Como a gente é pobre, a gente tem que vivê nessa
vida!
O quadro descritivo
de Aníbal, a seguir, revela algumas similaridades com o percurso escolar de
Luana. Filho de catadores de papel, mãe analfabeta e pai com 7a série, foi
também um trabalhador precoce, tendo acumulado muitas experiências fora da
escola, situadas nas fronteiras com a atividade adulta. Dentre as muitas
ocupações que exerceu, foi vendedor ambulante, carregador de compras em
supermercado e, como sua mãe e irmãos, catador de papel. No plano escolar,
detém um nível desproporcional ao tempo que passou na instituição de ensino.
Entre a 1- e a 2â séries teve várias reprovações, freqüência irregular às
aulas, culminando com a interrupção na 2- série, em situação de
se-mi-analfabetismo: “Eu ia na escola, não passava, às vezes desistia. Eu acho
que estudei uns 5, 6 anos, não passei, daí desisti”. Quando criança, a escola
não era sua ocupação principal. Orgulha-se de ter ajudado a família e não
esconde sua preferência pelo trabalho, que lhe permitia ter seu próprio
dinheiro, em relação à escola. No último encontro, estava com 17 anos e
trabalhava em um estacionamento como guardador de carros, função que ocupava
desde os 14 anos. Tinha uma renda de um salário mínimo e meio, e havia retomado
os estudos no curso supletivo (3a série). Esse retorno à escola está apoiado no
interesse em mudar de profissão e em não se sentir desqualificado perante os
quefa-zem parte do mundo dos letrados. Segundo suas palavras: “tem muita gente
que é esperta, só porque tem um pouquinho de estudo querem passá por cima dos
outros. E por isso que a pessoa tem que sabê lê e escreve bem [...] e é bom pra
subi na vida, senão ganha pouco, ganha mixaria”. Seu projeto é cursar o ensino
fundamental, talvez o ensino médio, mudar de emprego, segundo seu desejo, para
o setor de mecânica de automóveis.
Apesar dessa valorização pró-escola, o
discurso que evidencia o valor inegável da educação escolar nos meios populares
não pode ser sempre tomado como sinônimo de um projeto de longevidade escolar.
Esta observação não é contraditória com a valorização atribuída aos estudos,
uma vez que há uma percepção muito clara dos limites impostos pelas condições
materiais objetivas. O desejo manifestado pelos filhos
entrevistados é de superação das condições familiares mediante inserção em uma
atividade profissional mais valorizada do que a de seus pais. Não se trata de
projetos ambiciosos19, abstratos e distantes das condições materiais. Do
mesmo modo, quando os pais procuram transmitir sua crença num futuro melhor por
meio da escolarização, têm igualmente presente que as condições materialmente
limitadas, sem perspectivas concretas de mudança, limitam projetos futuros.
Como observa Lahire (1997: 24), “o distanciamento das formas organizadas de
trabalho e a insegurança econômica são situações pouco favoráveis ao desenvolvimento
de uma atitude racional em relação ao tempo”. E acrescenta: “para que uma moral
da perseverança e do esforço possam constituir-se, desenvolver-se e ser
transmitidas, é preciso certamente condições econômicas de existência
específicas”. O conjunto dos indicadores objetivos de Luana, de Aníbal e de
outros alunos e ex-alunos permite observar e avaliar as condições que os
mantiveram em situação desfavorável em relação à escola, assim como para
enfrentar as exigências escolares, como a freqüência regular às aulas, a
solicitação de reforço nas tarefas de casa, o material nem sempre possível de
ser comprado, o estudo associado ao trabalho como necessidade, para citar
alguns exemplos.
Nos últimos dois casos citados, como em
muitos outros, a relação que estes jovens mantêm com a escola está associada à
obtenção de um certificado para ampliar suas chances no mercado de trabalho, o
que não exclui a presença de outros significados simbólicos igualmente
importantes. Os percursos acidentados criam um distanciamento temporal com a
escola, mas, em vários casos, a mobilização dos jovens para mudar sua posição
na sociedade inclui a obtenção de um certificado escolar. Após vários anos sem
estudar, procuram retomar os estudos ou mantê-los em seu horizonte futuro.
Com estas observações, não estamos querendo
concluir que os comportamentos sejam sempre coerentes e conscientemente
dirigidos visando à adaptação escolar. A aparente similaridade nas
características objetivas dos percursos daqueles que não freqüentavam escola
pode ocultar comportamentos diferenciados na relação que estabelecem com a
instituição de ensino. Nas camadas populares a relação com a escola é
heterogênea e com freqüência também contraditória, ou seja, apesar do discurso
marcadamente pró-escola, não a assimilam subjetivamente, como uma disposição
real para os estudos, adotando comportamentos que podem ser caracterizados de
contracultura escolar, como foi identificado no clássico estudo de Paul Willis
(1991) feito com filhos de operários, na Inglaterra. Enquanto para vários de
nossos entrevistados o retomo à escola é uma meta carregada de significado
positivo, para outros, o prolongamento da escolaridade não se constitui
necessariamente um projeto de vida. Para ilustrar essa última situação podemos
citar, entre outros casos estudados, Wendel e Andréa como exemplos típicos de
uma trajetória frágil com a escola, demonstrada através dos resultados
escolares (repetidas reprovações e interrupções temporárias) e de suas relações
subjetivas com a instituição. Em geral, isso fica mais
claro por volta dos 14 anos, independentemente do nível escolar atingido,
quando manifestam uma declarada opção pelo trabalho e investimento na formação
profissional, não escolar. Quando retomam os estu-^ dos, interrompem
novamente, com flagrantes comportamentos de resistência à freqüência escolar.
Mesmo reconhecendo os limites que representa a ausência de um certificado,
quando procuram inserir-se profissionalmente, podem interromper o ano escolar a
poucos meses de sua finalização. Não raro, isso acontece quando as avaliações
parciais sinalizam reprovação e passam a considerar aquele ano perdido, como
pode ser verificado no exemplo a seguir.
No último-encontro que tivemos com Wendel,
ele tinha 17 anos e havia concluído a 6a série. Sua história escolar foi
bastante irregular e com passagem em vários estabelecimentos: entrou na Ia
série quase no final do Ia bimestre, tendo aí sua primeira reprovação. Cursou,
no período diurno, até a 4a série, mas não de forma linear, pois ocorreram
reprovações e interrupções, uma delas resultando em um ano fora da escola.
Sobre esses acontecimentos disse: “sempre tirava notas baixas, desanimava, daí
eu queria gazeá aula, depois acabei desistindo”. A partir da 5a série, estudava
no período noturno e era auxiliar de mecânica de automóveis. Nessa situação
cursou a 5a e 6a séries, iniciando a 7a, que interrompeu um mês após iniciar o
curso, e não descartava a possibilidade de concluir a 8a série, nível que
considera suficiente porque “prá sujá a mão de graxa não precisa mais”. Seu
projeto é habilitar-se melhor no ramo que exerce e montar sua própria oficina
mecânica.
A situação acima descrita retrata o que
chamamos de uma frágil relação com a escola, fruto de vários acidentes no
percurso: reprovações, sentimento de discriminação pela professora, mudanças de
estabelecimentos de ensino e interrupções. Ao ingressar no mercado de trabalho,
freqüentar a escola requeria disponibilidade de tempo e mobilização, situações
dissonantes às suas preocupações então voltadas para o campo profissional.
Participar da vida ativa predispõe a outros interesses e ao investimento do
aluno em ocupações que podem competir com aquele voltado para a escola. Além
disso, a escola da qual o aluno obtém resultados não-satisfatórios pode ganhar
um lugar marginal frente a outras solicitações como o lazer e a conquista de
maior independência dos pais mediante a obtenção de sua própria renda. O
depoimento de Andréa é, nesse sentido, revelador:
[...} estudá eu nunca gostei.
Se eu disser pra você que eu gosto de estudá eu tô mentindo, mas eu sinto falta
dele agora, né. No serviço eu podia pegá uma profissão legal, mais leve, né.
Mas só isso aí. [...] Em geral, hoje em dia, a pessoa tem que ter estudo. Tá
cada vez pior, pior, pior. Só isso aí que tá pegando, mas se eu falá que eu
gosto de estudá, eu vou estar mentindo. Se dependesse só de mim, eu nunca tinha
entrado na aula.
Todo o discurso de Andréa sobre a escola
está ancorado nessa dupla face da realidade com a qual vem se confrontando: de
um lado uma reação antiescola, e de outro, o reconhecimento do certificado de
ensino como uma necessidade social. Ao referir-se ao fato de ser convidada para
ocupar um posto de balconista em uma loja, lamenta ter ape-nasa5ã série: “eles
me liberaram... dancei, perdi o serviço... eles pediam o 2a grau”. Nos seus
planos inclui retomar os estudos, no ensino supletivo noturno, e concluir o
ensino fundamental, mas não tem ilusão sobre as aquisições que possa ter. A
preocupação de Andréa não é com o saber escolar em si mesmo, mas a obtenção de
um certificado, que constitui uma exigência, entre outras, do mercado de
trabalho, cada vez mais seletivo.
Andréa, como é o caso de muitos outros entrevistados que carregam o peso de um
histórico de fracasso escolar e muitas incertezas sobre seu lugar social,
oscilam entre a aproximação e o recuo da instituição de ensino. Retomando
expressão de Bourdieu & Cham-pagne (1998: 221), essa instituição passa a
representar um verdadeiro “engodo”, ou ainda, uma “espécie de terra prometida,
semelhante ao horizonte, que recua na medida em que se avança em sua direção”.
Longe de sentirem-se vítimas, a posição
freqüentemente assumida por aqueles que não obtiveram um certificado escolar é
a de transferir para si mesmos a responsabilidade do fracasso escolar. Muito
embora não poupem críticas à escola pública, ao avaliar sua própria situação,
consideram-se os principais responsáveis pelo baixo nível escolar, e quanto aos
resultados obtidos, os atribuem principalmente às características individuais
como incompetência e desinteresse. A análise dos pais, quando se referem à
situação específica dos filhos, não foge a isso. Talvez
por isso estes não vivam as reprovações como um drama, pois, afinal, se sentem
responsáveis pelo seu fracasso. Andréa foi reprovada na 23 e 48 séries, segundo
ela, porque:
[...] queria conversá muito com
os amiguinhos. [...1 Na 5a eu ia rodá do mesmo jeito porque eu matava mais aula
do que ia ... Não posso culpá ninguém porque fui eu mesma que fiz isso pra mim.
Me arrependo, mas fui eu. Eu não era nenhuma criança, sabia o que estava
fazendo. Faltava! Se num ano eu fosse meio ano, era muito, e a mãe achava que
eu tava na aula...
Ou ainda, conforme outro entrevistado, também
com grande atraso escolar: “a gente gazeava, fazia bagunça, levava suspensão e
a mãe nem ficava sabendo. A gente fingia que ia pra escola e não ia [risos]
(Élton, 17 anos).
As transgressões às normas escolares, entre
outras formas que encontram para justificar a interrupção dos estudos, revelam
uma relação ambivalente com a escola, como mostram Andréa, Wendel e Élton,
acima citados, entre vários outros casos estudados. A relação com o universo
escolar não é destituída de ambigüidades: de um lado não ignoram o peso social
do certificado escolar, de outro, e não raro, adotam práticas antagônicas às
normas escolares. A situação escolar de Élton, que reúne diversos traços
característicos desta observação, serve de ilustração: aos 12 anos, com uma escolaridade
de 4â série e duas reprovações, interrompeu os estudos e não atribuía grande
importância à freqüência escolar. Em 1998 havia retornado à escola e
freqüentava a 5a série. Sobre esses acontecimentos, faz a seguinte avaliação:
Eu não gostava [da escola].
Quando o meu pai era vivo, eu gazeei 3 meses de aula, 3 meses e meio eu gazeei.
Chegava pela porta do colégio e saia pela outra. Era começo da adolescência e a
gente não tem muita cabeça, depois que bota a cabeça no lugar vai ver que eu
fiz errado. Pegava e ia pra uma lanchonete jogar fliperama, vi-deo-game. Eu
chegava do jornal [vendedor ambulante de jornal], tinha um dinheiri-nho,
chegava lá e gastava tudo, já tava viciado, não queria saber mais de estudá.
Os comportamentos de resistência aos
estudos, tal como podemos inferir a partir dos relatos, expressam uma certa
negação do mundo da escola, materializada na prática de gazear aula para
encontrar os amigos ou distrair-se com jogos eletrônicos, entre outras
fartamente narradas tanto pelas mães quanto pelos seus filhos. Uma análise
voltada para esses comportamentos contrários à educação institucionalizada, tão
freqüente nos meios populares20, não pode recair em explicações de tipo
individualizante, resultado de uma simples escolha ou tendência particular. Não
podemos deixar de considerar que onde tais comportamentos foram verificados há
freqüentemente uma história de fracasso escolar, e não é precipitado afirmar
que o aluno que passa anos na escola vivendo sucessivas derrotas certamente não
fica impune. A interiorização do fracasso, além de ou-! tros efeitos
relacionados à auto-estima, certamente não favorecem uma relação positiva com a
escola. Como observa Esteban (1992),
[...Ja ação escolar tem
importante papel na construção/reconstrução desse auto-conceito. A criança que
possui expectativas negativas em relação a si mesma não acredita em suas
diversas possibilidades. Portanto, o seu resultado escolar pode ; negar ou confirmar suas expectativas em
relação a si mesma, contribuindo para o reforço ou para a superação dessa
realidade (p. 75).
Como já foi assinalado, as avaliações de
alunos e ex-alunos sobre seus insucessos escolares são, tanto no discurso dos
pais quanto no dos filhos, freqüentemente apoiadas nesses comportamentos
contrários às normas escolares, mais do que nas condições materiais da família
e nas práticas da escola. Os comportamentos que sinalizam rupturas com o mundo
escolar recebem, da parte da família, uma explicação resumida: “falta de interesse”.
Assim julgado, o comportamento do filho que se recusa em permanecer na escola
não ocorre sem conflito familiar. Em geral, os pais esperam ver através de seus
descendentes a superação de sua condição social, e a desescolarização precoce
representa a frustração desse desejo. A discrepância, de um lado, entre a moral
doméstica -que sobretudo as mães tentam transmitir por meio de conselhos - e,
de outro lado, o comportamento de resistência à escolarização, revelam que a
transmissão de valores e condutas familiares em relação aos estudos não é
necessariamente apreendida pelos filhos com igual significado. Essa constatação
reforça a idéia, defendida também por outros autores (Lahire, 1997; Viana,
1998), de que a mobilização familiar não é condição suficiente para garantir
uma permanência duradoura na escola, como tivemos a oportunidade de observar em
vários casos analisados. Faz sentido então a observação de Lahire(1997: 26)
quando diz que “se a ordem moral e material em casa pode ter uma importância na
escolaridade dos filhos, é porque é, indissociavelmente, uma ordem cognitiva”.
Mas não podemos ignorar também que a adesão do filho ao que os pais procuram
transmitir em favor dos estudos depende também dos “veredictos da escola e,
portanto, passa pelo sucesso escolar” (Bourdieu, 1998: 233).
Nossa constatação é de que o retorno ou a
intenção de voltar à escola não representa para o conjunto dos sujeitos
estudados, conforme já assinalamos, um projeto propriamente dito. Para vários
deles, essa retomada dos estudos indica muito mais a própria ausência de
perspectivas de trabalho do que uma decisão que situa os estudos como parte de
um plano raciona! e conscientemente dirigido. O esforço despendido em
permanecer na escola é uma resposta à necessidade de aumentar as chances já
reduzidas de acesso ao mercado de trabalho, e não a uma idealização da escola
no sentido_mais global. Assim, ao estudar os percursos escolares, não podemos
ignorar o comportamento dós filhos e o sentido que eles atribuem à escola e ao
saber escolar. O estudo realizado por Charlot (1996: 49) sobre a relação de
jovens de meios populares com o saber escolar apóiam esta observação. E função
da escola permitir ao aluno se apropriar dos saberes, mas, como observa o
autor, “a criança só pode se formar, adquirir esses saberes, obter sucesso, se
estudar. E ela só estudará se a escola e o fato de aprender fizerem sentido
para ela. A questão do sentido deve portanto preceder a da competência [...) e
permanecer presente durante a aquisição das competências”.
A distância do mundo da escola se
manifesta, nas histórias estudadas, por meio de múltiplos elementos:
dificuldades materiais, freqüentes insucessos escolares, concomitância entre
estudo e trabalho, interesses que fazem parte do mundo infanto-juvenil, mas,
também, pela descrença frente à situação da escola pública e a falta de
sentido, de que fala Charlot. Por isso, mesmo que nesse trabalho o foco de
análise não esteja voltado para a relação entre a formação dos percursos
escolares e as práticas da instituição onde o saber é transmitido, não podemos
deixar de lembrar que:
!...] uma análise do sucesso e do
fracasso não pode considerar como insignificante nem o fato de que a
instituição tem como função específica transmitir saber aos jovens, que ela se
pensa como tal e se organiza para esse efeito, nem o fato de que a história
escolar dos jovens se desenvolve em estabelecimentos escolares e através de
práticas pedagógicas cujas políticas e lógicas devem ser interrogadas (Charlot,
1996.- 49).
3.Passando a barreira do ensino fundamental: um
percurso nada natural
Reunimos, nesta última parte, os percursos
escolares que ultrapassaram o ensino fundamental e confirmam o desejo dos pais,
de obtenção de um certificado escolar. Nosso objetivo não será o de buscar
explicações para esses casos mais bem-sucedidos na escola, como outros o
fizeram (Laurens, 1992; Lahire, 1997: Viana, 1998; Portes21), mas chamar a
atenção para outros aspectos da heterogeneidade no desempenho escolar que
demonstram maior adaptação e persistência de parte da população para elevar seu
capital escolar. Assim, a realidade que tentamos descrever, em páginas
anteriores, sobre o fenômeno truncado de escolarização é apenas uma parte da
dinâmica que reúne as condições materiais e também as ações dos sujeitos
sociais. As carreiras escolares interrompidas precocemente, embora
representativas no grupo estudado, não atingem a população de forma
indiferenciada. Em situações em que as condições econômicas são altamente
desfavoráveis à escolarização, pode-se identificar um relativo êxito no ensino
fundamental e médio, materializado durante todo o ciclo ou a partir de um
determinado momento do percurso escolar. Como exemplo desta segunda situação,
citamos o caso de Júlia, 20 anos, ex-empregada doméstica, membro de uma família
de seis filhos; destes, cinco com mais de 14 anos. Desses irmãos, três cursaram
até a 4a série, um freqüentava a 5a série e somente ela concluiu o ensino
fundamental. Júlia teve, durante os primeiros anos, uma escolaridade
problemática: foi reprovada na 3a e 5â séries e, na 5a série, desistiu na
metade do ano letivo. Após esses acontecimentos, retomou os estudos e conseguiu
romper com a tradição de fracasso escolar na família, tendo seguido o curso
escolar sem reprovação até o momento do nosso último encontro, quando
freqüentava a 2a série do ensino médio. A avaliação de Júlia sobre a freqüência
escolar tem por parâmetro de comparação a irmã, empregada doméstica e nível de
instrução de 4'3 série, situação que serve para alimentar seu propósito de, por
meio dos estudos, aumentar suas possibilidades de trabalho: “eu não desisto
porque eu quero me formá, eu quero tê uma profissão, uma coisa que vai tê
valorizá mais tarde”. Num plano mais imediato, e como outras moças e rapazes
que querem se inserir no mercado de trabalho, quer fazer curso de computação,
mas não descarta a possibilidade de freqüentar a universidade.
O exemplo citado indica que não há regras
gerais para definir a condição escolar do conjunto da população estudada ou dos
chamados grupos populares. No interior de uma mesma família há variações nos
percursos escolares e nas práticas adotadas, como o do exemplo acima, entre
outros.
Diante deste quadro, é importante reafirmar
o peso das condições socioeconômicas sobre a definição do futuro escolar e
social; porém, conforme já observamos, esta relação não se dá de forma mecânica
ou determinista. As difíceis condições de sobrevivência face à baixa renda,
trabalho instável, moradia na favela, não são evidentemente elementos
favoráveis à freqüência escolar e à construção de um percurso escolar regular,
mas estes dados tomados isoladamente não fornecem evidências suficientes para
explicar as situações escolares de sucesso ou fracasso escolares. Entre os jovens
que concluíram o ensino fundamental ou que têm, nesse nível de ensino, uma
relação de assiduidade escolar, há também moradores de favela. Assim, a
realidade social nos mostra que em condições socioeconômicas similares pode-se
identificar percursos diferenciados, como foi assinalado acima. A mobilização
familiar voltada para as atividades escolares dos filhos, as práticas de
socialização e transmissão de valores, o apoio sistemático de um professor, a
demanda escolar relacionada à atividade profissional, o tipo de trajetória
social e escolar, entre outras situações, podem tornar-se fatores escolarmente
rentáveis na definição de percursos singulares com características nitidamente
distintas das de colegas da mesma idade e origem social. Daí a pertinência do conceito
já referido de configuração de fatores, compreendido não como uma somatória de
elementos tomados isoladamente, mas definido nas suas relações de
interdependência.
Dos 56 casos dos quais acompanhamos a
situação escolar no período de 1991 a 1998, treze, ou 23%, concluíram o ensino
fundamental, e destes, três obtiveram um certificado de nível médio, enquanto
oito o cursavam. Dos onze que ultrapassaram o ensino fundamentai, dez o fizeram
no período noturno, e de modo gera! conseguiram essa façanha com grande
investimento. Ilustrando com alguns exemplos, podemos citar Márcio, que pelo
seu bom desempenho escolar foi favorecido com uma bolsa de trabalho que lhe
permitia estudar; situação semelhante é a de Maurício que, graças aos
resultados obtidos no ensino fundamental, obteve uma bolsa para cursar o ensino
médio em escola privada; já Magda, parou um ano de estudar para juntar uma
poupança e poder pagar o ensino noturno em uma escola particular, e ainda
Gabriela, que é reconhecida pelos colegas como a aluna CDF22. Diante desse
quadro, faz-se mister não ignorar as oportunidades que agiram favoravelmente e
as ações dos alunos como produtoras de configurações diferenciadas. Uma
característica mais próxima aos vários casos incluídos nesta categoria diz respeito
aos resultados escolares favoráveis nas séries iniciais, o que nos permite
inferir que “a forma como o saber e o não-saber são vividos no cotidiano
escolar é relevante para a compreensão dos mecanismos que possibilitam a
construção do sucesso de alguns e o fracasso da maioria” (Esteban, 1992: 77).
Conforme já observamos, freqüentemente o
investimento escolar reúne outros significados além do estritamente voltado
para a adoção de estratégias utilitaristas, a fim de tornar o diploma mais
rentável23, que se referem à subjetividade e à identidade social. Em vários
casos com melhor desempenho na escola, pode-se observar uma relação com o
universo escolar fundado em certas proximidades, e não unicamente nos
desencontros entre os jovens dos meios populares com a escola. Nessa direção,
encontramos o testemunho de Magda sobre o prazer que encontra na leitura ou,
ainda, o caso de Júlia, entre outros que reconhecem no estudo uma forma de
garantir um reconhecimento social. Expressões que revelam a crença nos benefícios
que o estudo pode oferecer, como “deixar a gente com mais confiança, ter mais
conhecimento, não ter uma vida dura como os pais", são carregadas de valor
simbólico e reveladoras do lugar ocupado pela escola não apenas de emprego de
um tempo reconhecido como necessário para a aquisição de um certificado e
saberes fundamentais, mas também como um lugar que inclui diferentes desejos, e
subjetividades.
Para superar a condição de exclusão
econômica e social em que se encontram, certos jovens passam a investir
fortemente na atividade profissional e escolar, sobretudo quando vêem
possibilidades de promoção no próprio local de trabalho. Para Ana, 22 anos,
retomar os estudos representou a busca de uma outra identidade: a de sair da
condição de empregada doméstica e o desejo de reconhecimento e crescimento
pessoal. O caso dessa jovem moradora de favela é um, entre outros, cuja
escolaridade se desenvolveu dentro de um quadro social e familiar complexo,
tendo, entre os fatores desencadea-dores, uma situação ocupacional instável do
chefe da família, problemas de moradia e recorrente mobilidade geográfica no
curso do ano letivo. Como muitos de seus colegas, nos primeiros anos escolares,
Ana interrompeu os estudos e nas estatísticas certamente figurou como um caso
de abandono escolar. Acontecimentos em sua vida escolar como uma reprovação na
Ia série e a ocorrência de interrupção dos estudos até a idade de 10 anos não
correspondem ao que se costuma designar, por meio de uma categoria genérica, de
fracasso escolar. Ana fez a 2a série com grande atraso escolar. Tinha à época
11 anos, mas todo curso escolar posterior ocorreu sem reprovação. Aos 16 anos
interrompeu os estudos pela segunda vez, em razão de uma gravidez. Recomeçou
tempos depois, no ensino noturno, concluindo a 8a série aos 18 anos. Iniciou
sua trajetória profissional como empregada doméstita, mais tarde foi
balconista, e quando a entrevistamos pela última vez, era operadora de caixa de
uma grande empresa comercial, onde tinha um cargo de responsabilidade e pelo
qual percebia aproximadamente quatro salários mínimos mensais. Seu desejo é
investir na profissão, e nesse sentido se esforça para obter um certificado de
ensino médio - à época cursava a Ia série -, descartando de seus horizontes uma
formação universitária, pois considera que “exige muito tempo e não vai dar pra
trabalhar e estudar^Neste caso particular, obter um certificado de ensino médio
constitui um projeto consciente, determinado, articulado com a carreira
profissional e na empresa onde trabalha: “eu ainda pretendo subir mais...
quanto mais responsabilidade você tem, mais vai ganhar”. Faz parte de seus
planos futuros dar continuidade a sua formação, através de cursos de inglês e
computação e melhorar suas condições de vida. Isso pode ser traduzido pelo
desejo de mudar de bairro, ter uma casa independente da família e dar estudo e
vida digna para seu filho, sob sua responsabilidade única. Sua determinação
está ancorada numa compreensão meritocrática do sucesso profissional mediante o
esforço pessoal, e é só através dele que vê possibilidades de reverter sua
situação social: “uma pessoa só se dá bem na vida quando ela estuda, quando ela
trabalha, quando ela corre atrás daquilo que ela quer”. Seu caso traz à tona
vários elementos que podem ter exercido um papel favorável em sua trajetória
escolar e profissional, sendo alguns desses possíveis sociais, o tipo de
trajetória social, com residência duradoura em uma grande cidade e junto a uma
família (não consangüínea) que, segundo vários exemplos por ela citados,
concedia grande valor à instrução escolar; a influência de relações de amizade
que facilitaram mudança para um local de trabalho mais favorável e, ainda,
pequenas conquistas de ascensão dentro da empresa em que trabalhava.
E oportuno retomar as considerações de
Rodrigues (1995), quando considera que o trabalhador/estudante dos cursos
noturnos vivência quotidianamente a divisão social do trabalho e, como
trabalhador, adquire um conhecimento muito além do necessário para a execução
das tarefas que lhe são confiadas. Para citar alguns exemplos desse
aprendizado, o autor cita o respeito à hierarquia e a aquisição de estratégias
de conservação do emprego, tais como podemos observar no caso de Ana,
ilustrativo da realidade desse estudante noturno,
[…] cuja experiência adquirida
nas relações de trabalho não lhe deixa dúvidas sobre o valor da credencial
escolar para aumentar o seu pequeno poder de barganha junto a um estreito e
cada vez mais segmentado mercado de trabalho, diminuindo, com isso, os efeitos
da exploração à qual é freqüentemente submetido (p. 68).
Assim, parece ficar claro, conforme nossa
argumentação anterior, que além da socialização exercida pela família de
origem, outras experiências são capazes de mobilizar os sujeitos em tomo de um
projeto, apesar das condições materiais desfavoráveis de suas famílias. Os
desejos que apóiam esse projeto não surgem do acaso nem são dados isolados das
relações históricas e sociais dos sujeitos singulares, mas são construídos no curso
da vida “a partir de sua primeira infância sob o efeito da coexistência com os
outros, e fixam-se progressivamente na forma que o curso de sua vida
determinar, no correr dos anos, ou, às vezes, também de maneira brusca, após
uma experiência particularmente marcante” (Lahire, 1997: 18).
Reafirmamos, assim, a idéia defendida nesse
trabalho, de que é nas relações dinâmicas, por meio de múltiplas inter-relações
e nas experiências sócio-históricas de sujeitos concretos que se tece a trama
da complexa relação com a escola. Acreditamos, como Viana (1998), que nos meios
sociais caracterizados mais pela imprevisibilidade do que por uma definição
racional de um projeto escolar, as oportunidades e a diversidade de
experiências socializadoras podem constituir elementos propulsores de uma maior
sobrevida escolar. A escolaridade mais prolongada, mas que contou com grande
esforço centrado em atitudes racionais visando à superação da condição familiar
e ao crescimento profissional, pode ser identificada, mesmo que muitas vezes de
forma ambígua e contraditória. Os êxitos escolares relativos são indicadores
pertinentes dessa noção de imprevisibilidade e se revertem em base importante,
embora insuficiente. Observa ainda a autora que as noções de imprevisibilidade
e de aleatoriedade não são contraditórias à noção de autodeterminação e
horizonte temporal distendido.
O caso de Ana, de Gustavo, entre outros
casos estudados, mostram o trabalho e a escolaridade sendo assumidos como parte
de um projeto. Eles têm claros objetivos de ascensão social que orientam suas
práticas. Não são projetos destituídos de bases objetivas, mas definidos dentro
do horizonte possível e, por isso mesmo, vão sendo construídos gradualmente ou
“por etapas”, conforme definiu Gustavo, 17 anos, cursando a Ia série do ensino
médio: “eu faço de acordo com o meu alcance, eu sonho com aquilo que eu tenho
possibilidades... No momento agora tô pensando em subi de cargo, completar o 2°
grau, depois eu vejo o que fazer”. Este conjunto de interesses vai se configurando
dentro de um quadro de imprevisibilidades, mas também de mobilização e de
pequenas oportunidades e conquistas que vão se apre traditoriamente, o trabalho
pode servir de sentando no curso de suas vidas. Assim,
con-elemento mobilizador da carreira escolar. O que fica evidente ao se dirigir
o olhar sobre a relação entre o trabalho e a escola, é a existência de outros
elementos como a natureza da atividade, as condições do trabalho exercido, o
resultado das experiências escolares e os benefícios que podem tirar da
escolarização, além de outros significados que a educação institucionalizada
possa representar. Concordamos ainda com Rodrigues (1995) quando afirma que
[...] o fato de estar ou não
trabalhando interfere decisivamente no rendimento escolar do aluno, mas ele não
está condenado a um baixo rendimento escolar pelo fato de estar trabalhando.
Aliás, a combinação do trabalho com o ensino não é impossível, nem mesmo
indesejável; é o caráter classista da escola que joga um papel decisivo na
definição do sucesso ou do fracasso nos estudos (p. 66).
Os percursos
escolares analisados e que ultrapassam a barreira do ensino fundamental
evidenciam uma estatística pouco representativa nos meios sociais estudados.
Trate-Se de percursos que transcorreram dentro de condições pouco favoráveis à
escolaridade. Ademais, como demonstramos, para permanecer na escola são feitos
grandes sacrifícios, pois ser estudante não é um ofício que possa ser exercido
sem ônus, tais como a escassez de recursos financeiros para adquirir livros -
fato que limita os alunos a fotocopiarem o que é estritamente necessário
freqüência ao ensino noturno e a convivência com as condições desfavoráveis do
ensino público. São freqüentes as reclamações sobre a organização da escola, as
disciplinas com falta de professor, assim como as ausências e constantes
substituições do corpo docente. Para finalizar um curso de nível médio é
preciso muitas vezes ainda abrir mão de um plano inicial, fazer concessões,
como no caso de Márcio, que deixou a escola técnica por outro curso
profissionalizante de menor prestígio e menos exigente, mas que permitia uma
conciliação com suas atividades profissionais.
O caso de Márcio é representativo: quando
não é possível investir no ensino que se acredita ser de melhor qualidade e
mais rentável profissionalmente, opta-se pelo que é viável. A opção é por um
curso que condiz com as atividades do aluno trabalhador e representa menor
risco de fracasso escolar. As mudanças de estabelecimento de ensino, na rede
pública, não são raras, e suas razões são variadas. Em alguns casos, a
transferência parece ser motivada pela estratégia de tornar mais rentável o
certificado escolar (escola reconhecida por sua reputação favorável e tipo de
curso oferecido), pela tentativa de reverter a situação de fracasso escolar,
mas a razão mais freqüente é favorecer a associação com o trabalho, pela maior
proximidade geográfica do emprego com a escola ou pela oferta do ensino
noturno. Considerando essas estratégias como parte de um projeto, vale lembrar
algumas características que, segundo Velho, o definem: “o projeto, sendo
consciente, envolve algum tipo de cálculo e planejamento, não do tipo homo
oecono-micus, mas alguma noção, culturalmente situada, de riscos e perdas, quer
em termos estritamente individuais, quer em termos grupais” (1997: 29).
O aumento do período de inatividade
dedicado à formação escolar (no ensino médio e superior) e que serve de
“passaporte” para a vida profissional não faz parte da história de vida de nenhum
dos 30 jovens entrevistados. Os que atingiram a escolaridade pós-obrigatória o
fizeram paralelamente ao trabalho, e não pela ampliação do tempo de
inatividade. Para estes, a fase de transição da inatividade para o ingresso na
vida ativa é curta, diferente da tendência verificada nas camadas
economicamente favorecidas, que estendem o período de vida escolar como um meio
para enfrentar a crise do mundo do trabalho (Pochmann, 1998: 26). Esses dados
vêm apoiar a necessidade de relativizar a noção genérica do que é ser criança,
adolescente ou jovem na sociedade brasileira. Como observou Madeira (1986),
[...] a categoria jovem acha-se
tão segmentada como a sociedade brasileira como um todo, [...] cada uma das
situações específicas vividas pelo jovem delimita a onipotência, as aspirações,
os limites que os códigos sociais escritos e não-escritos determinam, o nível
de conflito, a maior ou menor responsabilidade (p. 18).
Não
poderíamos concluir este trabalho sem constatar, como também já fizeram outros
autores (Gouveia, 1978; Neto, 1996), a grande distância entre as intenções que
em-basam as políticas de democratização do ensino e a realidade escolar da
população socialmente desfavorecida. A escola brasileira continua a apresentar
elevados índices de evasão e repetência24, fenômenos estes que não são as
causas dos problemas escolares, mas a expressão de um sistema de ensino
elitista e excludente.
Os
avanços proporcionados pela extensão da escolaridade (lei 5692/71), pela
ampliação de vagas e pela representação das camadas populares na escola
produziram uma democratização quantitativa do ensino, mas esta não foi
acompanhada de um avanço qualitativo, que produzisse mais igualdade escolar. Como observa Queiroz (1995: 15), a população
socialmente mais desfavorecida tem de fato cada vez mais acesso à escola e,
nesse sentido, as diferenças entre as classes sociais se reduzem porque essa
população se beneficia com a extensão da obrigatoriedade escolar, mas não se
beneficia em condições de igualdade. A presença crescente dessa camada social
em diferentes níveis do sistema escolar não oculta as reais diferenças sociais
entre os alunos, como lembram Bourdieu & Champagne (1998):
Os alunos ou estudantes
provenientes das famílias mais desprovidas culturalmente têm todas as chances
de obter, ao fim de uma longa escolaridade, muitas vezes paga com pesados
sacrifícios, um diploma desvalorizado; e, se fracassam, o que segue sendo seu
destino mais provável, são votados a uma exclusão, sem dúvida, mais
estigmatizante e mais total do que era no passado... (p. 221).
Para retomar algumas diferenças relativas
aos benefícios escolares e sociais testemunhadas pelos nossos informantes, vale
lembrar a desigual distribuição do tempo investido no estudo, associada à dupla
jornada como estudante e trabalhador; os limites na escolha de estabelecimento
de ensino e curso oferecido, seja voltada para o ensino médio de nível técnico
(lembramos o exemplo acima citado do aluno Márcio), seja direcionada à formação
geral de preparação para o vestibular, sem desconsiderar outros tipos de
investimentos educativos que as camadas mais favorecidas têm fora da escola e
que fazem a diferença na disputa pelo acesso aos cursos de nível universitário
e na rentabilização das carreiras. Por todas as injunções do jogo escolar, os
jovens originários de meios populares que conseguem permanecer por mais tempo
na instituição, isto é, além do obrigatório, são constantemente submetidos a
práticas de eliminação de diferentes graus e em todos os níveis de ensino,
constituindo-se, na justa expressão de Bourdieu & Champagne, nos “excluídos
do interior” (1998) do sistema escolar.
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Longevidade escolar em famílias de camadas
populares Algumas condições de possibilidade*
Maria José
Braga Viana** * Uma versão
ligeiramente abreviada deste artigo foi apresentada na 22a Reunião Anual da
ANPEd, Caxambu, em setembro de 1999.
**
Professora da FUNREI {Fundação de Ensino Superior de São João Del-Rei).
[...] a nossa família, lá na realidade nossa,
na região ali, é tida como um pouco fora da realidade; sabe... porque... poucos
dos que moram lá saíram pra estudar... E é assim, a gente nem sabe exatamente
por que saiu [...la gente poderia muito ter ficado lá. (Angela, uma de nossas
entrevistadas).
Este
capítulo descreve alguns dos principais resultados da investigação realizada no
contexto da minha tese de doutorado1. A longevidade escolar em famílias de
camadas populares, entendida como a permanência no sistema escolar até o ensino
superior, constituiu o tema central desta investigação. Buscou-se compreender
algumas condições que possibilitaram uma escolarização prolongada a indivíduos,
cuja probabilidade estatística de chegar à universidade sabe-se ser reduzida.
A construção do objeto de pesquisa deu-se
na confluência dessa indagação mais geral com o trabalho de autores (Zéroulou,
1988; Terrail, 1990; Laurens, 1992; Portes, 1993; Lahire, 1994, 1995; Rochex,
1995) que abordam, mediante pesquisas empíricas importantes e de maneira
inovadora, a mesma problemática2.
Nortearam a pesquisa as seguintes questões
mais específicas: Em que consiste e como se expressa a presença familiar nesses
itinerários escolares atípicos? Em que a configuração familiar desses
indivíduos se diferencia de características mais gerais das camadas populares?
Quais os sentidos que uma escolarização prolongada assume para esses pais e
filhos? Esses processos de mobilidade cultural e social são mediatizados por
quais tipos de relações intergeracionais e intersubjetiuas? Noutros termos,
quais os custos subjetivos dessa mobilidade? Existem, além do grupo de
pertencimento, entendido enquanto o núcleo familiar no sentido estrito, outros
grupos de referência que se constituíram em modelos impulsionadores dessas
trajetórias escolares? Como esses sujeitos concebem e se posicionam em relação
ao futuro e como se utilizam do tempo na construção de sua escolarização?
Foram sete os sujeitos pesquisados (5
mulheres e 2 homens), que, no momento da pesquisa, eram estudantes de graduação
ou de pós-graduação3. Definimos como indicador de longevidade escolar a chegada
ao 3- grau; no entanto, dois alunos de pós-graduação, um lato sensu e outro
stricto sensu, por representarem o perfil de sujeito que buscávamos, foram
incorporados ao processo. A escolha dos entrevistados deu-se através de dois
tipos de procedimento. O primeiro, por indicação de colegas de trabalho e de
professores e colegas do Curso de Doutorado; uma lista de quarenta alunos bolsistas
de trabalho da FUNREI, selecionados para o ano de 1996, constituiu a segunda
fonte.
Recrutamos os entrevistados entre famílias
com baixo nível de escolaridade, com dificuldades econômicas, ainda que em
níveis diferenciados, e cujos pais exerciam no momento da pesquisa, ou
exerceram no passado, ocupações predominantemente manuais.
Entrevistas abertas e semidiretivas com os
sujeitos, em sua universidade de origem, e com suas famílias, em sua
residência, constituíram a fonte básica de dados. Essas entrevistas
centraram-se nas histórias escolares dos sujeitos, mas a investigação de dados
das trajetórias escolares teve um caráter apenas instrumental, na medida em que
buscávamos, através dessas trajetórias, olhar para os pontos que nos interessavam
e que se encontravam condensados em cinco parâmetros ou traços estruturantes da
análise, descritos à frente, neste artigo. Informações sobre os avós foram
também buscadas, não diretamente, mas através dos depoimentos dos filhos e
netos. Acreditamos, como Laurens (1992), que algumas práticas e significados
escolares só se tomam compreensíveis quando colocados no contexto da genealogia
familiar.
1.OS DOIS GRANDES EIXOS DO MODELO DE
INTELIGIBILIDADE DOS DADOS EMPÍRICOS
1.1.Os parâmetros ou traços estruturantes da
análise
Pensar sociologicamente um material
empírico como o que coletamos, portador de uma forte dimensão biográfica,
colocou-nos, por uma dupla razão, uma exigência metodológica: a de estabelecer
parâmetros para a análise.
Por um lado, o pesquisador que trabalha com
a narrativa biográfica corre o risco de considerar que tudo é pertinente e
relevante para a análise, podendo, desse modo, per-der-se numa infinidade
pulverizada de informações que essa narrativa permite. Por essa via, ele pode
“escorregar" para o campo da literatura e cair, segundo Passeron (1995),
numa “utopia biográfica” e, nesse caso, perder de vista o problema teórico da
pesquisa. Esse autor argumenta que “a narrativa biográfica apresenta uma ordem
falante demais que parece dispensar qualquer trabalho dè reconstrução" (p.
213). Nesse sentido, num leque amplo de dados e leituras possíveis, os
parâmetros selecionados permitiram um recorte, um direcionamento do olhar para
pontos específicos.
Por outro lado, mesmo trabalhando com um
pequeno número de biografias - como é o caso desta investigação esses traços ou
parâmetros estabelecem um denominador comum para a interpretação dos dados,
evitando outro risco para o pesquisador: o de trabalhar o caso fechado nele
mesmo, “monograficamente”, idiossincraticamente, e, assim, construir uma
pulverização de objetos de estudo, sem comunicação entre si.
Em tempo, poderíamos citar ainda uma
terceira necessidade que justificou o estabelecimento de princípios norteadores
da análise, isto é, a delimitação de alguns pontos sobre os quais se focalizou
a atenção no interior do conjunto do material empírico levantado: a
complexidade do fenômeno estudado, seu caráter pluridimensional.
Quanto à origem dos parâmetros que
adotamos, eles nasceram na confluência de duas fontes: as contribuições dos
autores visitados e as primeiras leituras dos dados empíricos provenientes de
nossa investigação. A primeira fonte foi a própria literatura visitada e, nesse
sentido, esses parâmetros representaram uma transição da teoria para a
construção do nosso objeto de estudo; ou seja, são o resultado da utilização
(seletiva, direcionada e pontual) dessa teoria na elaboração dos princípios de
análise. A segunda fonte são dados empíricos diretamente provenientes de nossa
investigação. É que uma primeira leitura das entrevistas nos revelou elementos
pertinentes e fecundos para a compreensão do problema colocado, os quais foram
incorporados como hipóteses de trabalho. Os referidos parâmetros incluem,
portanto, elementos oriundos de histórias familiares e escolares, circunscritas
a condições específicas de vida na realidade brasileira. São eles4:
1)Os significados que a escola, em geral, e o
acesso ao ensino superior, em particular, assumem para os filhos-alunos -
sujeitos investigados - e para os seus pais: as diferentes formas de relações
intersubjetivas e intergeracionais que uma escolarização prolongada implica
para as camadas populares.
2)As disposições e condutas em relação ao
tempo que são favorecedoras de longevidade escolar (perspectiva dominante de
“conquista”, extensão do horizonte temporal de futuro, moral da perseverança):
a reconstrução de um movimento em relação ao futuro, de modos particulares de
relação com o tempo por parte dos entrevistados e suas famílias.
3)Os processos familiares de
mobilização escolar: os tipos de presença familiar no processo de construção
dessas escolarídades atípicas.
4)Outros grupos de referência para o
filho-aluno na família ampliada e/ou exteriores a ela: modelos que se constituem
também como oportunidades.
5)Modelos socializadores familiares
ou tipos de presença educativa das famílias que são favorecedores de
longevidade escolar. Supunha-se, já no ponto de partida da pesquisa, que os
sujeitos das camadas populares que conseguem chegar ao ensino superior contam
com algum tipo de sustentação que vem de sua socialização familiar.
1.2.Uma perspectiva de análise centrada na
interdependência dos traços estruturantes
Inspirei-me,
no que diz respeito a essa questão, no modelo proposto por Bernard La-hire
(1995). Buscando, então, elucidar o fenômeno de escolaridades longas nas
camadas populares à luz do método proposto por esse autor, precisaríamos
deslocar o olhar sociológico da linguagem das variáveis para a descrição de processos
e, nesse sentido, adotar um modelo de inteligibilidade do social que nos
permitisse aproximar do microssocial sob a forma do estudo de casos singulares.
“Singulares" não com o sentido de casos excepcionais, mas de “combinações
sempre específicas de traços gerais pertinentes”, sínteses inéditas, à imagem
da linguagem musical, onde se assiste a “uma série de variações sobre temas
mais ou menos comuns” (Lahire, 1997). Isso implicaria na necessidade de
“desconstruir as realidades que os indicadores objetivos nos propõem, a
heterogeneizar o que havia sido, forçosamente, homogeneizado em uma outra
construção do objeto” (Lahire, 1997: 33); na necessidade da construção de
“contextos mais precisos”.
Para
operacionalizar essa abordagem, o autor em questão propõe um modo de pensamento
relacional, processual, que evite absolutizar fatores ou traços sociais
explicativos dos fenômenos sociais, mas que, ao contrário, os tome numa
perspectiva de interdependência. Essa perspectiva teórico-metodológica, que
Lahire situa no quadro de uma antropologia da interdependência, se inspira
sobretudo em Norbert Elias, particularmente no conceito de configuração
social5, conceito que se caracteriza por ser aberto e que, segundo este autor,
[...] aplica-se tanto a grupos relativamente
restritos quanto a sociedades formadas por milhares ou milhões de seres
interdependentes. [...] O conceito de configuração direciona nossa atenção para
as interdependências humanas (Elias, 1991: 158, 160)6.
Adotar a perspectiva da interdependência
para a interpretação do material empírico de nossa investigação significou, em
termos operacionais, reconstruirmos a tessitura dos traços pertinentes
adotados, acima citados, buscando-os na trajetória escolar dos sujeitos
entrevistados e em seus contextos familiares. As biografias escolares de André,
Júlia, Catarina, Helena, Ângela, Luís e Olga7 representaram o resultado dessa
leitura.
2.CARACTERÍSTICAS CENTRAIS DO PROCESSO DE
CONSTRUÇÃO DAS ESCOLARIDADES INVESTIGADAS
2.1.Ausência de projeto de escolarização de
longo prazo: a construção progressiva de práticas, sentidos e disposições
A pesquisa permitiu-nos constatar que não
havia, no ponto de partida, um projeto, conscientemente elaborado pelos
entrevistados ou suas famílias, de se chegar ao ensino superior. As práticas,
sentidos e disposições que, interdependentemente, tornaram possível a
construção dessas trajetórias escolares atípicas foram progressivamente
construídos. D’Ávila (1998) extrai conclusão semelhante de seu estudo sobre trajetórias
escolares de alunos oriundos de bairros de periferia da cidade de Vitória.
Sobre esse ponto, ele afirma que as estratégias desses alunos
[...Iseconstroem aos poucos, pelo cultivo
familiar de pendores familiares, inicialmente, e, a seguir, segundo as
possibilidades surgidas em um novo espaço de relações, que transcende as
expectativas construídas no estrito círculo da família (1998: 31).
O processo de escolarização de nossos
interrogados não se mostrou portador de urna dimensão de intencionalidade, mas,
ao contrário, acusou a marca de uma significativa imprevisibilidade em função
da importância que assumiram, por um lado, as oportunidades advindas de
universos exteriores ao familiar e, por outro, os êxitos escolares parciais, sobretudo
os que se deram na escola primária.
A
noção de oportunidade nos pareceu, então, centralmente articulada a essa
dimensão de imprevisibilidade presente nas biografias escolares investigadas.
Em primeiro lugar, porque implicou uma certa aleatoriedade8 e, em segundo,
porque apareceu vinculada à possibilidade de apreensão de outras referências de
mundo e, nesse sentido, de uma diversidade de experiências socializadoras,
distintas das advindas do universo familiar.
A dimensão de aleatoriedade esteve presente
nas seguintes situações de nossa pesquisa, entre outras: a chance de Olga
realizar (integralmente) sua trajetória escolar num estabelecimento de ensino
como o Instituto de Educação de Minas Gerais; a de Helena que, através de um
tio que era porteiro de escola, teve acesso a determinados estabelecimentos da
Rede Municipal de Belo Horizonte9; a de Júlia, de ter sido “escolhida” para ser
monitora da escola rural onde estudara, sendo, assim, “forçada”, aos 20 anos, a
concluir a 4- série primária; a chance de Catarina ir para São Paulo com uma
família conhecida e lá se alfabetizar. Essas chances/oportunidades, incertas no
ponto de partida, tornaram-se auspiciosas no processo por terem sido altamente
otimizadas, rentabilizadas. Nesse sentido, assumiram uma significativa
centralidade nos destinos escolares em questão.
[ | Os êxitos escolares parciais10, por sua
vez, sobretudo aqueles relativos à escola primária, mostraram-se como uma
constante nos casos estudados. Nesse aspecto, nossa investigação confirma
conclusões dos estudos de Laurens (1992) e de Terrail (1990). Esse último autor
afirma que, dentre as 23 biografias escolares - de intelectuais filhos de
operários - que reconstruiu, não constatou em nenhum caso dificuldade ou
malogro na escola primária. Laurens (1992: 231), por sua vez, mostra, além
disso, que o êxito escolar inicial atraiu êxitos subseqüentes, como se os
sujeitos entrassem numa “lógica do sucesso”. Nesse sentido, o êxito escolar
inicial - mas também os intermediários - constituí-ram-se como circunstâncias
produtoras de sentidos, disposições e práticas que tenderam a reforçá-lo, e se
transformaram numa base importante, embora insuficiente por si só, para a
continuidade dos estudos.
Assim, Sr.
Vicente, pai de Angela, comenta que começou a acreditar na possibilidade de sua
filha ir mais longe nos estudos, assim como seus outros filhos que estudaram,
quando percebeu que eles “estavam desenvolvendo”. Eu via o desenvolvimento
deles lá no começo”, afirma. Da mesma forma, a mãe de Olga, D. Madalena, em
relação à possibilidade da realização de curso superior por suas filhas,
considerava: (no início de sua es-
colarização)
“eu achava que eta impossível! [...] eu não sonhava muito alto não... 'eu
achava que não tinha chance”.
Contrapondo-se a comportamentos familiares
de tipo estratégico, característicos da escolarização dos grupos sociais mais
favorecidos (Nogueira, 1998), a imagem de uma embarcação navegando “ao léu”
parece-nos extremamente adequada para ilustrar as dimensões de imprevisibilidade
e aleatoriedade que detectamos nas biografias estudadas.
No entanto, em nosso estudo, essa
imprevisibilidade não se mostrou contraditória com a noção de autodeterminação
nem com um horizonte temporal distendido. Ao contrário do que se pode concluir
à primeira vista, essas trajetórias supõem um querer e uma autodeterminação
imbatíveis, sobretudo dos filhos, condição sine qua non de produção de
sobrevida escolar em meios populares. O que se contraporia a essa
característica seria uma planificação dos estudos a longo prazo. Assim, as
etapas intermediárias do processo assumem uma importância decisiva enquanto
momentos de produção e de realização dessa autodeterminação.
As trajetórias escolares de Júlia, Catarina
e André, por exemplo, mais irregulares, apontaram veementemente essa atitude de
autodeterminação. Cada etapa intermediária de sua escolarização não só exigiu
uma firmeza heróica, como a continuidade dos estudos ficara à mercê de
circunstâncias que, muitas vezes, fugia ao seu controle. Um momento em
particular da história de Catarina, história que fora marcada por um difícil
começo e uma luta sem tréguas, mostra o peso assumido pelas “pequenas” vitórias
parciais das etapas intermediárias de escolarização e como estas foram
altamente rentabilizadas. Aos 17 anos, cursando a 4S série primária, tinha ela
que, laboriosamente, conciliar estudo e trabalho numa gráfica, depois de ter
sido também doméstica. O patrão exigia, por exemplo, que ela fizesse hora extra
- condição de permanência no trabalho. Assim sendo, muitas vezes ela ficava
impossibilitada de freqüentar as aulas, tendo sido, ao final do ano,
oficialmente reprovada em matemática. Sua professora de então, provavelmente a
figura mais significativa de sua história escolar, segundo ela mesma declara,
decidiu conferir-lhe, assim mesmo, o certificado de conclusão dessa série. De
posse do certificado, Catarina percebeu que podia dar um passo além: “e eu, com
esse atrevimento todo meu, pensei assim... eu tenho um diploma de 4â série...
eu vou para a 5S série com esse diploma!”
Assim, as biografias escolares desses três
universitários, em particular - Júlia, Catarina e André -, testemunharam a
necessidade de fazer o possível, considerando essa expressão com um duplo
sentido. Por um lado, “aceitar” que avançar nos estudos só seria possível se
fosse num tempo próprio, “por etapas” não previstas a longo prazo. Por outro
lado, havia que se fazer tudo o que fosse possível, ou seja, esgotar as
possibilidades de luta.
Um outro aspecto a ser ressaltado a esse
respeito é o de que a autodeterminação, característica de nossos entrevistados,
fora construída no processo mesmo de escolarização. Nesse sentido, ela não tem
existência a priori, nem se funda num essencialismo intrínseco aos sujeitos11.
Finalmente, se o processo de construção
dessas escolaridades se deu sob a ótica da imprevisibilidade, somos instigados
a situá-lo também num contexto de uulnerabilida-de, à imagem de uma “situação
de navegação em embarcação frágil”, viagem que pode chegar a bom termo, mas
sempre sob o risco de naufrágio (Lahire, 1996)12.
2.2- As formas específicas da presença das
famílias de camadas populares na escolarização dos filhos ,
Preliminarmente
faz-se necessário tecer algumas considerações acerca da noção de “mobilização
escolar familiar”. Portadora do sentido de luta e engajamento direcionados para
um determinado fim, a noção de mobilização, recentemente introduzida nos
estudos sociológicos da relação família-escola (Laurens, 1992; Lahire, 1995;
Zéroulou, 1988), foi inicialmente importada das Ciências Políticas para
explicar os casos estatisticamente improváveis de sucesso escolar em meios
populares. Paulatinamente, essa noção foi estendida para identificar e
descrever atitudes e intervenções práticas das famílias, voltadas sistemática e
intencionalmente para o rendimento escolar dos filhos - comportamentos e
condutas familiares que os estudos no campo da Sociologia da Educação raostram
'ser mais característicos das camadas médias.
Nogueira (1995), analisando as relações das
camadas médias com a escola, dá a conhecer resultados de pesquisas recentes
sobre o tema. Reportando-se a esses estudos, a autora lista uma série de
práticas de investimento escolar de famílias provenientes dessas camadas, tais
como: acompanhamento minucioso da escolaridade dos filhos, escolha ativa do
estabelecimento de ensino, contactos freqüentes com os professores, ajuda
regular nos deveres de casa, reforço e maximização das aprendizagens escolares,
assiduidade às reuniões convocadas pela escola dos filhos, utilização do tempo
extra-escolar com atividades favorecedoras de sucesso escolar, entre outras.
Nossa pesquisa mostrou, no entanto, que é
possível acontecer longevidade escolar nas camadas populares, mesmo na ausência
de práticas familiares, tais como as descritas acima. Não se identificaram, em
nosso estudo, investimentos específicos e intencionais na carreira escolar dos
filhos, que nos permitissem reconhecê-los como um traço explicativo dessas
situações de longevidade escolar.
Apoiamos a
defesa dessa constatação em alguns dados de nossa investigação, sucintamente
descritos a seguir. O primeiro exemplo é o do Sr. Hélio, pai de Catarina, um
homem de idade avançada e saúde fragilizada, que, para garantir ensino gratuito
aos filhos, submeteu-se, por anos a fio, a trabalho extra, muitas vezes
noturno, no colégio onde atuava como faxineiro e prestador de serviços gerais.
A segunda ilustração é extraída da história escolar de Olga. Sua mãe, D.
Madalena, figura central dessa trajetória escolar bem-sucedida, envolvera-se de
uma maneira sistemática e laboriosa em seu processo de escolarização,
investimento aqui entendido, sobretudo, como um fundamental suporte moral e
afetivo. A própria D. Madalena, viúva muito cedo e
faxineira desde quando ainda solteira até a aposentadoria, no Instituto de
Educação de Minas Gerais, afirma: “eu nunca me ausentei da vida dela[s], nem um
segundo”. Ao lado dessa presença de todos os instantes, de um trabalho
sistemático de persuasão acerca do valor do estudo, destacamos também a
estratégia do fechamento familiar, no contexto da configuração socializado-ra
mais ampla dessa família. Olga era sistematicamente proibida, por exemplo, de
brincar na rua com outras meninas de sua idade (assim como suas duas irmãs, que
também alcançaram o nível de mestrado pela UFMG, uma em Educação e a outra em
Letras). Da biografia escolar de Luís destacamos a contribuição decisiva de
seus três irmãos mais velhos, que, assumindo financeiramente a casa por ocasião
do falecimento de seu pai, permitiram que ele participasse menos no orçamento
doméstico e, dessa forma, pudesse estudar.
Concordamos, então, com Laacher (1990: 35)
que a pergunta fundamental a ser formulada em relação à participação das
famílias de camadas populares na longevidade escolar de seus filhos é a
seguinte: “[...] em que consiste e como se traduz a presença da família no
sucesso escolar dos filhos?”
Assim, a esse respeito, nossa conclusão
contraria alguns resultados de pesquisas que abordaram igualmente o tema do
sucesso escolar de sujeitos originários das camadas populares, nas quais se
comprova que as práticas educativas familiares de superinvestimento escolar se
constituem como fatores indispensáveis ao sucesso escolar nessas camadas
(Laurens, 1992; Zéroulou, 1988). Por outro lado, esse trabalho veio confirmar a
tese de Lahire (1995) de que as práticas de superescolarização não se
constituiriam numa característica inexorável das famílias populares que têm
filhos em situação de sucesso escolar. Esse autor defende a idéia de que o
superinvestimento escolar familiar, por si só, não produz o sucesso escolar dos
filhos, argumentando, inclusive, que determinados investimentos familiares
podem provocar até mesmo efeitos negativos. Nesse sentido, reportamo-nos também
a Accardo (1993), que analisa a biografia escolar de um jornalista de origem
popular, Sé-bastien, marcada negativamente por equivocados investimentos
paternos.
Esse estudo sinaliza, assim, no sentido da
necessidade de deslocamento de foco para formas peculiares de envolvimento das
famílias populares na escolarização dos filhos, fací-litadoras de sobrevida
escolar nesses meios. Nesse sentido, existiria um tipo particular de presença
familiarna escolarização dos filhos, presença que, na falta de expressão
melhor, qualificaríamos como “periférica ao estritamente escolar". Noutros
termos, os dados da pesquisa apontaram, com força, pistas que nos permitem
defender a especif icidade das formas de relação das camadas populares com a
escola. Portanto, sendo essas relações diferenciadas daquelas descritas pelos
estudos centrados nas relações de famílias de camadas médias com a escola,
defendemos também que não seria pertinente nomear as formas específicas de
envolvimento das famílias populares na escolarização dos filhos como
“mobilização escolar familiar”. Noutros termos, tal como tem sido a tendência
de definir “mobilização escolar familiar”, os dados da pesquisa revelaram uma
patente ausência de comportamentos familiares que podem ser subsumidos por essa
noção.
E preciso, assim o entendemos, que novos
estudos acerca dessa temática venham ampliar a compreensão das particularidades
das relações das camadas populares com a escola, sobretudo no caso brasileiro.
2.3. Família e escola: a difícil conciliação entre
dois mundos
Uma outra constatação que emergiu do estudo
foi a de que a longevidade escolar nas camadas populares, potencialmente
produtora de descontinuidades culturais e subjetivas entre as gerações
envolvidas, não trabalha no sentido de inscrever afetivamente o sujeito no seio
da família. Ou seja, não se vive impunemente o
distanciamento das origens, seja pela sua resultante, a de se transformar em
“trânsfuga”13, seja pela experiência, muitas vezes dolorosa, do processo.
Bourdieu (1993), Nicolaci-da-Costa (1995,
1987), Rochex (1995) e Terrail (1990) também trabalham com a hipótese acima
colocada. O que estaria basicamente em jogo, segundo Nicolaci-da-Costa, é a
“inserção simultânea em dois grupos sociais” e tudo o que isso implica em
termos de “descontinuidade entre sistemas simbólicos diferentes”. Lahire (1998)
se utiliza dessa mesma idéia através da noção de “multipertencimento social”,
fenômeno que, sobretudo no mundo contemporânceo, produziria um “homem plural”.
Para esse autor, a situação específica de exposição simultânea a contextos
socia-lizadores de famílias populares e do mundo letrado da escola pode gerar
contradições culturais e encontra-se entre as “múltiplas ocasiões de
desajustamento e de crise” (p. 56).
Sem ignorar os conflitos intergeracionais
que esse tipo de escolarização pode acarretar também para os pais,
deter-nos-emos nas dificuldades vividas pelos filhos-alunos. Essas se
processaram em dois campos: aquelas vividas no contexto da experiência escolar
e as vividas no bojo das relações familiares.
1) Quanto
às dificuldades vividas na escola, foram identificadas duas formas de
existência. Para descrevê-las, tomamos emprestada a imagem de peixe fora e
dentro d’água, que Olga utiliza para expressar o sentimento, através da qual
ela definiu sua inserção no universo escolar.
As biografias de Olga, Angela e Helena
evidenciaram essa marca, a da ambigüidade. A escola, para estas entrevistadas,
representou um espaço onde foi possível, ao mesmo tempo, estar à vontade, como
o peixe n 'água (constituindo-se, assim, como um espaço possíveFcJè
afirmaçaoTsSJd nò"]5lãno de um rendimento escolar satisfatório, seja no
plano de inserção em atividades sociais), e se sentir estrangeira, desadaptada,
marginal, como o peixe fora d’água. Para Helena, a dupla vivência em questão
localiza-se sobretudo no momento de entrada para a universidade. Ao longo de
sua biografia escolar, ela sempre fora uma aluna com bons resultados escolares,
o que a deixava à vontade na escola como um peixe n ’água. No entanto, ao
entrar para a universidade, ela experimentou intensos confrontos de natureza
social, nunca vividos antes com tanta intensidade. Sua linguagem e maneiras de
se portar constituíam-se, da forma mais viva, em marcas de sua posição de
classe e, portanto, em motivos de solidão na escola.
Nos casos de Catarina, Júlia, Luís e André,
prevaleceu a desadaptação, vivenciada sobretudo nos níveis mais avançados de
escolaridade. Esse fenômeno foi identificado de forma mais nítida na biografia
de Catarina, constituindo-se numa constante de seu processo de escolarização.
Suas dificuldades deram-se sobretudo no âmbito da aprendiza gem, o que lhe
custou vivências da mais completa exterioridade ao universo escolar. Para
Júlia, Luís e André, as vivências de exclusão aconteceram na universidade. Luís
e André, apesar das especificidades que os diferenciam entre si, acusaram
grandes dificuldades de se adaptarem ao trabalho universitário: o modo de
pensar, comunicar, ensinar e avaliar prevalecente no ensino superior lhes era
“estranho”. A questão da linguagem, particularmente para Luís, mostrou-se um
indicador de possíveis rupturas com a cultura de origem. Júlia, falando de um
momento já avançado de sua trajetória na Universidade, expressa de maneira
enfática sua desadaptação ao mundo acadêmico. Sua relação com colegas
universitários fora marcada pelo sentimento de humilhação e hostilidade no
plano do simbólico, de tomada de consciência de enormes diferenças sociais
entre esse universo e suas origens: “um mundo muito diferente; [...] um
contraste violento; [...] um período de muito problema”, afirma.
2) Para
abordar os problemas vivenciados pelos entrevistados na esfera das relações
familiares, tomo como referência teórica básica a noção de “tríplice autorização”,
formulada por Rochex (1995) e produzida no contexto da temática dos sentidos
atribuídos à escolarização dos filhos pela família e dos processos
intersubjetivos e intergeracionais de continuidades, rupturas e ambivalências
daí derivados. Trata-se de um tipo de relação in-tergeracional, cuja lógica
fundamental orientadora é a da emancipação da herança familiar, não a de sua
reprodução. O primeiro elemento desse fenômeno - o da “tríplice autorização -
está no fato de que o aluno-filho se autoriza a “deixar” a família, a se
distanciar cultural e socialmente dos pais. Em segundo lugar, os pais autorizam
o filho a se emancipar. Finalmente, um reconhecimento recíproco, entre pais e
filhos, de que “a história do outro é legítima, sem ser a sua”.
Do ponto de vista dos custos subjetivos,
as situações familiares mais difíceis foram as vividas por Júlia e André. Essas
escolaridades parecem ter acontecido sem a “autorização” dos pais. As
ambivalências de Sr. Tonico, pai de Júlia, e de Sr. Otávio, pai de André, em
relação à instituição escolar em geral e, em particular, à escolarização dos
próprios filhos, fizeram com que a luta desses últimos por uma emancipação
através da escola se tomasse uma realização extremamente dolorosa e solitária.
Júlia forneceu fortes indícios desse fato, consubstanciados fundamentalmente em
sua reiterada queixa de que seu pai, em relação aos seus estudos, a puxaua para
trás. André, ao contrário, dei-JLxou patente sua queixa de solidão.
Em relação
ao tema dos distanciamentos família-escola nos meios populares e guardadas as
especificidades de cada relato, reportamo-nos à autobiografia de Albert Camus
(1994). Romancista de origem argelina e popular, que alcançou renome
internacional, Camus vivera intensa e dolorosamente, em sua trajetória de
escolarização, um processo de “cisão, uma divisão entre mundos distintos, tão
distantes como a noite e o dia” (Uria, 1995:60).
3. CONSIDERAÇÕES
FINAIS
3.1. A
descoberta de algumas pertinências
Uma
conclusão de caráter mais geral a que chegamos em nosso trabalho é a de que
tanto a perspectiva de análise adotada quanto os parâmetros orientadores da
coleta e interpretação dos dados, descritos acima, eixos do modelo de
inteligibilidade do materia! empírico, permitiram a emergência de importantes elementos
explicativos da problemática colocada pela pesquisa.
Assim, destacamos, por um lado, a
pertinência da noção de configuração social para o estudo de casos de
longevidade escolar em meios populares. Entendemos que uma das maiores
vantagens desse modo de abordagem é a de dar visibilidade a dimensões
significativas do processo de construção das situações de longevidade escolar,
tais como as relações finas que se estabelecem entre os protagonistas das
histórias, pouco visíveis em outras formas de construção científica. Por outro
lado, mostraram-se também pertinentes os parâmetros ou traços estruturantes da
análise adotados, uma vez que estes possibilitaram a identificação de
características centrais das escolaridades investigadas.
Ressaltaremos, no espaço das notas
conclusivas do presente capítulo, apenas os dois pontos conclusivos ligados às
pontencialidades específicas apontadas pela perspectiva de análise adotada, no
que diz respeito ao uso da noção de configuração social.
3.1.1. A
alternância de traços que se sobressaíram
A perspectiva de interdependência de traços
explicativos evidenciou uma grande heterogeneidade das configurações familiares
e de situações de longevidade escolar. Confron-tando-as, verificou-se que esses
traços se entrecruzaram diferentemente na tessitura de cada uma delas, acusando
significativa alternância de ênfases; ou seja, cada caso acusou maior
visibilidade de determinados traços, dentre os adotados como referenciais de
análise.
Assim, a história de Helena fora marcada
pelo bom aproveitamento da oportunidade de freqüentar estabelecimentos de
ensino de qualidade, pelo êxito escolar regular, pela inserção de seu processo
de escolarização num contexto de relações familiares bastante homogêneas.
André, por sua vez, imerso num quadro familiar onde se produziram significados
extremamente ambivalentes em relação à escola - centrados sobretudo na figura
paterna escolarizando-se, buscou evitar a reprodução de suas origens,
especialmente a condição de trabalhador manual do pai. Na história desse jovem
foi também marcante sua inserção num grupo de amigos de classe média. Luís e
Catarina têm sua biografia escolar caracterizada pelo fato de terem contado com
suportes familiares decisivos, sobretudo do ponto de vista de uma autorização
simbólica para se emanciparem de suas origens. Os dados da trajetória escolar
de Olga, por sua vez, revelam, a esse respeito, a presença forte e sistemática
de sua mãe e a excepcionalidade das situações de escolaridade de seus avós e
tios matemos, marcadas, sobretudo, por uma grande afinidade com a cultura
legítima. Ou seja, alguns elementos da biografia da mãe de Olga apontam traços
distintivos em relação ao seu meio social de pertencimento. Finalmente, um dos
traços que mais se sobressaiu no processo de escolarização de Júlia e Ângela e
que as impulsionara, segundo nosso entendimento, fora o significado construído
em torno do desejo de emancipação de suas origens rurais, de “sair” cultural e
socialmente “da roça".
3.1.2. Para
além de um estudo de trajetórias
Com o
objetivo de reconstituir o cenário do passado escolar dos entrevistados,
utili-zou-se nesse trabalho, secundariamente e como “pano de fundo”, uma
abordagem em termos de trajetórias escolares. Desse ponto de vista, mesmo
considerando o número reduzido de pesquisados, algumas semelhanças entre os
casos vieram à tona, tais como: desempenho escolar relativamente bom e regular
nas séries iniciais de escolarização, seguidas de períodos marcadamente
acidentados e o vestibular se apresentando como o grande obstáculo para o
prosseguimento dos estudos. Emergem ainda, como coincidências, a utilização
freqüente do curso pré-vestibular, a dificuldade de conciliação entre trabalho
e estudo, a freqüência à escola pública. Essas semelhanças corroboram algumas
tendências mais gerais das trajetórias escolares em meio popular, no Brasil, e
permitem afirmar que estas, de um ponto de vista formal e exterior, são
significativamente determinadas pela origem social.
No entanto, se nos restringirmos à descrição
formal das trajetórias, dimensões fundamentais das biografias - facilitadoras
ou dificultadoras da sobrevivência no sistema escolar -, e que ao mesmo tempo
as diferenciam, podem ficar invisíveis e excluídas da análise. Processos
uiuidos pelos sujeitos interrogados nos diferentes momentos de sua trajetória,
diferenças finas mas significativas só se deram a ver em nosso estudo porque
estivemos atentos à rede de interdependências dos parâmetros pertinentes
adotados.
Nesse sentido, parece-nos necessário
avançar para além da constatação, por exemplo, de que o momento de conciliação
entre tempo de trabalho e tempo de estudo, muitas vezes precoce, se constitui
numa dificuldade nevrálgica na trajetória escolar da maioria dos jovens das
camadas populares. Outras dimensões articuladas a esse momento, menos visíveis
e construídas numa tessitura de interdependências específicas, diferenciam as
trajetórias, dão um sentido particular a esse momento e determinam, em grande
medida, seus desdobramentos.
Luís, por exemplo, inserido num contexto
familiar de extrema dificuldade material, só pôde prosseguir os estudos porque
seus irmãos mais velhos permitiram que ele trabalhasse “apenas” para manter
seus estudos. Essa situação propiciou-lhe, desde o ensino médio, manter-se com
“bicos”, ou que pudesse “esperar” por um trabalho que lhe proporcionasse
condições mais favoráveis aos estudos, como o de estagiário na Caixa Econômica
Federal. No entanto, nosso estudo apreendeu, ainda, outros elementos do
contexto da história de escolarização desse jovem, no interior do qual,
destacando-se a participação decisiva do pai, se produziu uma sensibilidade em
relação à importância da escola, fundamental para que os irmãos de Luís, sem
ressentimentos, pudessem1'liberá-lo” do trabalho para estudar.
3.2. A família, o filho-aluno, a escola:
esferas diferenciadas e interdependentes do objeto de estudo
Três esferas diferenciadas e
interdependentes de pesquisa configuraram o objeto de estudo em questão: a
família, o filho-aluno, a escola. Quanto à família, admitíamos, já no ponto de
partida da pesquisa (e as biografias escolares investigadas corroboraram de
maneira enfática esta “hipótese”), que as famílias populares participam da
construção do sucesso escolar dos filhos de modo diferenciado, nem sempre
facilmente visível e voltado explícita e objetivamente para tal fim.
Identificar algumas formas desta presença foi uma das ambições dessa
investigação. Por outro lado, concluímos que o sujeito - filho-aluno -
desempenha
um papel específico e ativo na construção do seu sucesso escolar. Ele manifesta
uma autodeterminação e dá mostras de um investimento pessoal na sua
escolarização. Embora essa autodeterminação e esse investimento sejam
produzidos no contexto da família, são seus. Finalmente, embora não ignorando
que questões especificamente ligadas à escola e seu funcionamento estejam
embutidas nas configurações de sucesso escolar que investigamos - tais como
propostas curriculares, procedimentos metodológicos, critérios de avaliação,
relação professor-aluno -, investigar diretamente as formas da presença dessas
dimensões nas biografias de nossos entrevistados não constituiu objetivo desse
trabalho. Assim, a escola, entendida como fator dinâmico do processo de
construção dessas situações de sobrevida escolar, aparece em nossa pesquisa, de
forma indireta, como figura importante de bastidores.
3.3. A abordagem do tema da longevidade escolar
em meios populares: uma trajetória de pesquisa marcada pela incursão no novo
No Brasil, a transformação do tema do
sucesso escolar em famílias de camadas populares em objeto de estudo é ainda
embrionária. Mesmo no exterior, onde essa problemática vem sendo objeto de todo
um investimento de pesquisa por parte de sociólogos da Educação, a produção de
conhecimento ainda é recente e incipiente. Daí resulta que esta investigação
tenha se dado num contexto teórico-metodológico marcado pela dimensão do novo
e, nesse sentido, portador tanto de possibilidades quanto de riscos.
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O trabalho
escolar das famílias populares
Ecio Antônio Portes*Professor do Departamento
das Ciências da Educação. Fundação de Ensino Superior de São João Del-Reí
(FUNREI).
O objetivo deste texto é se ocupar com o
trabalho escolar efetuado pelas famílias pertencentes aos meios populares que
conseguem colocar filhos na universidade pública, através do vestibular, em
carreiras altamente seletivas e supervalorizadas socialmente, como: Medicina,
Fisioterapia, Direito, Comunicação Social, Engenharia Elétrica e Ciência da
Computação. Essas são as carreiras de mais difícil acesso através do vestibular
na Universidade Federal de Minas Gerais entre os anos de 1990 a 1996. Existe,
no interior desses cursos, uma sub-representação de estudantes provenientes dos
meios sociais desfavorecidos. Por sua vez, o curso de Odontologia figura como
um dos mais seletivos, sendo que nenhum estudante pertencente aos meios
populares conseguiu aprovação nele em 1996, razão pela qual esse curso não
figura em nossa pesquisa.
Entendemos aqui por trabalho escolar todas
aquelas ações - ocasionais ou precariamente organizadas - empreendidas pela
família no sentido de assegurar a entrada e a permanência do filho no interior
do sistema escolar, de modo a influenciar a trajetória escolar do mesmo,
possibilitando a ele alcançar os níveis mais altos de escolaridade, como, por
exemplo, ter acesso ao curso superior. Essas ações não nos parecem
completamente autônomas. As vezes elas se sustentam e adquirem clareza mediante
a interferência de outros sujeitos e mesmo instituições que detêm um
conhecimento mais completo das possibilidades escolares e materiais do sujeito
pertencente aos meios populares.
As pesquisas mais recentes que tratam da
relação escola/família e privilegiam como objeto de estudo as camadas populares
(D’Ávila, 1998; De Queiroz, 1995; Dubet & Martuccelli, 1996; Lahire,
1994,1997; Laurens, 1992; Portes, 1998; Viana, 1998; entre outras) indicam que
o trabalho escolar é algo complexo, que não vem obedecendo a modelos, difícil
de ser compreendido e que não se pode generalizá-lo. Esse trabalho se dá em um
tempo próprio, muitas vezes estabelecido pelas condições materiais de
existência e da constituição histórica das famílias das camadas populares,
quase sempre marcado pelo desconhecimento da estrutura e do funcionamento dos
sistemas escolares por parte dessas famílias, além da evidente ausência de um
capital escolar.
Para nos ocuparmos com a questão, que diz
respeito ao trabalho escolar das famílias, efetuamos uma primeira leitura de
uma parcela específica de dados mais amplos provenientes de uma pesquisa que
foi feita com um grupo de seis universitários que tiveram acesso à UFMG nos
cursos anteriormente mencionados. A escolha desses estudantes obedeceu a dois
critérios básicos: serem filhos de famílias pertencentes aos meios populares e
terem conseguido aprovação no vestibular naquelas carreiras mais seletivas da
UFMG.
Esse grupo de entrevistados - três rapazes
e três moças - tinham na época a idade média de 19 anos. De forma geral, são
provenientes de famílias pequenas (três filhos) e fre-
qüentaram o
primeiro e o segundo graus em escolas públicas1. Eles são filhos de motorista
de caminhão (três), auxiliar de topografia, carpinteiro e raspador de tacos.
Apenas duas mães se apresentaram com atividade remunerada regular no momento da
pesquisa. Ambas são viúvas e exercem a função de costureira. Quanto ao capital
escolar desses pais, uma mãe concluiu a 8a série e outra foi além: terminou o
22 grau. Os outros (pais e mães) possuem uma escolaridade que não ultrapassa a
4- série primária. Quando se observa o nível de escolaridade dos ancestrais,
deparamos com apenas um avô que cultivava o hábito da leitura e redigia um
dicionário da língua portuguesa, cujos manuscritos se encontram, ainda, de
posse dos familiares. Essas famílias têm casa própria, não vivenciando,
portanto, aquela preocupação constante e desestabilizadora para os meios
populares 2.
Para concluir esta caracterização, é
importante ainda citar um dado mais geral que nos possibilita compreender, de
forma ampla, a trajetória escolar desses jovens: eles se aproximam daquele tipo
de aluno, denominado por Pierre Bourdieu (1998: 46) de su-perselecionado, pois
compensaram “a desvantagem inicial que devem à atmosfera cultural de seu meio”.
Eles tiveram uma trajetória escolar brilhante, marcada por sucessos e
conquistas em todo o seu percurso. Foram, até o final do 2a grau, os melhores
alunos das turmas escolares pelas quais passaram. Porém, esses estudantes
representam uma improbabilidade estatística: pouquíssimos alunos provenientes
das camadas populares têm acesso a esses cursos através do vestibular. O
sucesso nos níveis que antecedem a entrada no curso superior não assegura a
eles saírem diplomados da UFMG. Tanto é verdade que a preocupação de muitas
famílias dos meios populares, ao constatarem a aprovação de seus filhos e
filhas na Universidade Federal, era de outra ordem, expressan-do-se da seguinte
forma: “Meu filho chegou lá. E agora?" É que essas famílias, mesmo não
possuindo um amplo domínio do significado da entrada do filho em uma
universidade pública de qualidade, sabem, sem vivenciar essa circunstância, o
custo objetivo e subjetivo de ele ter ultrapassado essa barreira. E as ações
desses estudantes, em seus diferentes campos de atuação, serão marcadas muito
de perto pelas necessidades materiais.
Retomando nossa preocupação inicial, que
outras ações - embora não meramente escolares/pedagógicas, mas com reflexos
sobre o escolar, sobre o pedagógico - teriam esses pais empreendido no sentido
de fazer atuarem circunstâncias favoráveis aos filhos e das quais estes
pudessem tirar proveito escolar?
Essa questão, pensada a partir dos dados
empíricos e daquela literatura anteriormente mencionada, pode nos ajudar a
compreender que as ações de determinadas famílias pertencentes às camadas
populares, com relação à escola, são diversas e se recobrem de significados
próprios que podem ser ocultados, dependendo do olhar que se dirige a elas. Por exemplo, acreditamos que há uma armadilha na forma de se
analisar o possível trabalho escolar de famílias populares através de
regularidades típicas observadas em frações das classes médias - que
configurariam investimento escolar -, como a série apontada por Nogueira
(1998): acompanhamento estrito da escolaridade - tanto na escola como fora dela
estratégias de escolha do estabelecimento; relações freqüen-j tes com os
professores; ajuda regular nos deveres de casa; reforço e maximização das /
aprendizagens escolares; assiduidade às reuniões convocadas pela escola;
utilização do / tempo extra-escolar com atividades favorecedoras de sucesso
escolar; controle do tempo de exposição à televisão, etc.
No nosso
caso, retiramos os elementos que nos propiciam pensar, aquelas questões anteriormente
colocadas, das representações produzidas pelos estudantes universitários nas
entrevistas efetuadas, o que permite ainda reconstituir não só as trajetórias
sociais e escolares desses sujeitos, mas também suas vivências universitárias.
O acompanhamento
efetuado com esses universitários não previa ouvir os pais. Entretanto, as
condições reais de entrevista propiciaram que se ouvissem duas mães e um pai.
Trabalhávamos com a hipótese de se efetuar a entrevista onde e quando o
entrevistado sugerisse. Assim, em duas visitas às casas dos jovens tivemos a
oportunidade de ouvir seus pais, registrar suas manifestações diante das
perguntas dirigidas a seus filhos. É nesse sentido que se afirma não serem os
pais objeto direto de nossa investigação, e sim seus filhos. Nesse caso, as
intervenções dos pais revelaram um material importante para as nossas análises
sobre o trabalho escolar das famílias, mesmo que tais análises sejam centradas
nos depoimentos dos jovens.
Portanto, quando se atenta para a questão
família/escola, o que se buscou com essa primeira análise dos dados foi, a
partir da identificação de unidades significativas que aparecem nos discursos,
constrúir um “conjunto de circunstâncias atuantes”, comple-xas, que podem
variar de família para família, mas que guardam relações entre si. Essas circunstâncias atuantes caracterizam-se por um
planejamento precário, por um horizonte temporal bastante curto, diante da
frágil situação material da família que se desestabili-za freqüentemente frente
às exigências escolares. Essas circunstâncias se combinam entre si e só fazem
sentido se inseridas “na rede de seus entrelaçamentos concretos” (Lahire, 1997:
72), sendo que não parecem possuir efeito importante de forma isolada. Elas
atuam no decorrer da trajetória, diante das necessidades e questionamentos
cotidianos a serem enfrentados pela família.
Exigências intrínsecas e periféricas ao
acadêmico e exigências características de cada curso exercem aí uma forte
influência. Aquelas dizem respeito a transporte, compra de livros, xerox,
material escolar, roupa, calçado, aluguel, alimentação e lazer, etc., enquanto
que as últimas se configuram por necessidades como: por exemplo, para quem faz
Comunicação Social, coloca-se a exigência de se assinar revistas e jornais
diversos; para quem faz Ciência da Computação exige-se ter em casa um
computador; para quem faz Direito, desde muito cedo, exige-se usar paletó,
gravata, sapatos (e não tênis), etc. Tudo isso irá propiciar uma instabilidade
econômica familiar capaz de refletir-se de forma preocupante naquilo que ao
longo da trajetória escolar (e social) mais parecia alicerçar esse estudante:
sua segurança nas questões atinentes ao escolar.
Entretanto, as iimitações de ordem econômica
das famílias não nos impedem de observar todo um trabalho escolar empreendido,
visto naquilo que convencionamos chamar conjunto de circunstâncias atuantes.
Algumas dessas famílias vivem um certo desespero econômico que certamente afeta
suas relações internas de convivência no lar. São famílias que vivenciam uma
realidade material que não conseguem prever (nem controlar). Apenas conseguem
ir fazendo adaptações possíveis para que o filho não jogue por terra o esforço
empreendido, como bem ilustram os pais de Maurício, estudante de Engenharia
Elétrica. Diz D. Teresinha:
Não sei como esse menino dá
conta... Ele nunca me deu trabalho na escola }ao contrário, os outros dois
filhos não seguiram em frente). Sempre foi bom aiuno, querido por todas as
professoras... Mas agora está demais! Para tudo precisa de dinheiro. Para o
senhor ver, já costurei, antigamente. Hoje, não dá. Tinha umas três, quatro
freguesas. Hoje gasto meio dia de trabalho em uma peça e a pessoa quer pagar um
real. Tá doido! Faço algumas coisas para mim e camisas para o Jair. Não posso
ajudar! Tem mês que o Jair não consegue mandar um centavo para o Maurício. Ele
[o pai] fica num estado de nervo que você num imagina... Não sei como esse
menino dá conta... E preciso muito esforço...
Noutro momento, distante da esposa e dos
filhos, o Sr. Jair se questiona: “Como é que eu ia continuar no hospital,
ganhando um salário mínimo e iria manter essa família? Olha, tem dia que dá um
desespero, rapaz... Olha só, pra você vê....” Levanta as barras rotas das calças
e mostra os joelhos esfolados e calejados pelo ato de trabalhar ajoelhado na
raspagem de tacos e aplicação de sínteco, como se necessitasse demonstrar o
esforço que ele faz para manter a casa, como ele diz.
Assim, o trabalho escolar das famílias aparece
e ganha sentido através das ações que configuram o conjunto de circunstâncias
atuantes capaz de auxiliar na possível compreensão das preocupações levantadas
no corpo deste texto. Essas ações guardam similaridades entre si e
operacionalizá-las diz respeito a um modus operandi de cada família.
O nosso esforço de construção de
circunstâncias atuantes é trazer uma contribuição para se entender o trabalho
efetuado pelas famílias populares que, por extensão, pode assegurar o possível
sucesso escolar de estudantes egressos de famílias populares. Para o caso
brasileiro, uma discussão atual e esclarecedora sobre a longevidade escolar nos
meios populares pode ser encontrada no trabalho de Viana (1998). No nosso caso,
procuramos examinar aquelas circunstâncias que a pesquisa, até o momento,
permitiu elucidar e que revelam parte do esforço das famílias para garantir uma
situação escolar improuáuel e precariamente planejada. Não é sem razão que o
sucesso no vestibular para as famílias de nossos investigados é visto (vivido)
como um golpe de sorte, uma ajuda de Deus, um milagre, mesmo que os resultados
escolares construídos anteriormente indicassem uma passagem sem muitos
atropelos. Além, claro, da descrença que está sempre presente ao se conferir o
nome na lista dos aprovados no vestibular: Será que é meu nome mesmo?
A seguir,
abordaremos aquelas circunstâncias que dizem respeito à presença da ordem moral
doméstica, à atenção para com o trabalho escolar do filho, ao esforço para
compreender e apoiar o filho, à presença do outro na vida do estudante e a
eterna aproximação dos professores, à busca da ajuda material e à existência e
importância de um duradouro grupo de apoio construído no interior do
estabelecimento escolar. Circunstâncias atuantes que legitimam e dão visibilidade
ao trabalho escolar empreendido pelas famílias populares.
- A
PRESENÇA DA ORDEM MORAL DOMÉSTICA
Então cê...
eu acho assim, se todos os pais tiver força de vontade pra educar os filhos
ele, eles consegue, mas é muito difícil! E é isso que acontece. Muitas pessoas
fala assim, igual muitas, vamo tirar daquela... daquela... é... Leonardo
Pare-ja , né? Foi um menino que a mãe dele alegô que ele tinha condições
financeiras, depois perdeu pai, perdeu tudo e ele virou uma... [o latido do
cachorro interrompe] num é isso que faz virar marginal. Então, situação
financeira num faz ninguém virar marginal. Vai é a educação que um pai e uma
mãe pode dar. Que se o pai ou a mãe leva uma vida difícil, mas explica pro
filho, que a gente tem que ser um pobre, mas honesto e aprender respeitar as
pessoas, ele aprende a enfrentar a situação sem roubar. Então, é o que todo
mundo devia de fazer, é ensinar pros filho a levar a vida e güentar a vida que
tem, com honestidade e com mais humanidade, né? E isso que é mais importante na
vida das pessoas. Não é só porque a pessoa perdeu tudo que vai virar um
marginal, não! Porque se fosse o caso de ter um marginal, na minha família todo
mundo era marginal, porque a gente nunca, desde a minha família, assim, quando
eu era criança, o meu pai não levou uma vida muito fácil também. A minha
família toda enfrentou, assim, meus irmãos são muito respeitador, eles leva a
vida com dificuldade mas vida com honestidade. Eu acho que a família por ser
pobre, ele deve ser um pobre honesto, honrado e exigir respeito, pra que ele
seja um cidadão reconhecido. (Mãe de Márcio,'estudante de Direito.)
O esforço
contínuo para incuicação de uma ordem moral doméstica no filho, desde tenra
idade, suficientemente forte para balizar os procedimentos sociais, como
disposição, está presente em todas as entrevistas. Parece funcionar como um
lastro para o conjunto de ações a serem empreendidas pelas famílias e pelos
filhos. Trata-se de um esforço contínuo que não tem como alvo específico o sucesso
escolar e, sim, uma educação mais abrangente, uma educação para a uida.
O conjunto
de entrevistas efetuadas com esses sujeitos revela com bastante clareza que não
só seus procedimentos sociais, mas também os escolares, possuem a marca
distintiva dessa formação adquirida de forma lenta e processual no interior da
família. Não é sem razão que Lahire (1997: 25) afirma que
[...] fora dessa ação socializadora, que se
concentra no aspecto moral das condutas infantis, o universo doméstico, através
da ordem material, afetiva e moral que reina ali a todo instante, pode
desempenhar um papel importante na atitude da criança na escola.
Os sujeitos investigados são estudantes que
aprenderam desde muito cedo o valor e a importância da escola, possuem um
comportamento escolar elogiável e uma grande disposição não apenas para as
tarefas escolares cotidianas, como ainda para as tarefas domésticas e as ajudas
no lar. Eles são os “bons filhos, aqueles que nunca dão trabalho”, nos dizeres
dos pais. Trata-se aqui de uma referência ao desempenho escolar do filho, com
relação a outros irmãos que “não foram adiante e não deram para a escola”. Mas
não parece ser uma desvalorização social destes em função do desempenho escolar
daqueles. Essa disposição parece ser uma herança proveniente de gerações
anteriores que, diante de circunstâncias favorecedoras, como oferta escolar de
qualidade mínima, pôde se realizar. Entretanto, o fato de terem internalizado
uma imagem de pais sérios, trabalhadores e honestos parece contribuir para a
fixação dessa ordem moral doméstica.
- A
ATENÇÃO PARA COM O TRABALHO ESCOLAR DO FILHO
Isso [ajudar nas tarefas escolares] ela [sua
mãe] nunca fez não. Ela, até hoje eu reclamo com ela, que ela sempre me deixou
muito... é... eu sempre fui muito independente nas minhas tarefas, eu... Ela...
Eu não esperava pra ela me ajudar, eu fazia antes de ela querer me ajudar.
[...] Mas se eu tivesse... perguntar como que tinha sido assim, eu num lembro
disso, mas se eu chegava pra ela pra falar alguma coisa da escola, ela me ouvia
atentamente. Se eu chegava pra perguntar alguma coisa, se ela não sabia ela
procurava saber. Então sempre tava tentando fazer alguma coisa. Por exemplo,
não era uniforme novo, né? Mas o uniforme tinha. Eu tinha como ir pra escola,
um caderno... Até mesmo quando não tinha alguma coisa, a minha tia me dava,
ajudava e tal. Então... [...] Há! Todo mundo queria que eu fosse pra lá
[Colégio Tiradentes, da Polícia Militar de Minas Gerais, Unidade de Bom
Despacho], né? Porque minha mãe, inclusive, sabia que eu era uma aluna muito
boa, que eu tinha capacidade, então... Ela incentivou, ela estudou comigo, o
que ela podia, que ela sabia, ela me ensinou, me ajudou [até a 4a série do P
grau] e... porque no colégio, no outro colégio que tinha, nos outros colégios
era... era... eram considerados piores, né? Então todo mundo queria que eu
fosse. Minha tia, essa que eu te falei que eu tenho muito vínculo, todo mundo
queria que eu fosse pro Colégio Tiradentes, né? Estudei. E eu também queria ir
pro Colégio Tiradentes, mesmo pra dar um... um feedback pros meus pais, né? Pra
minha família, e pra mim mesma, né? Ai fui. entrei no colégio na 5'- série, e
sempre fui uma aluna muito boa, até... quando eu saí de lá. (Alice, estudante
de Fisioterapia.)
No depoimento acima identifica-se uma
(atenção para com o trabalho escolar do filho, seguida de acompanhamento e
vigilância, mesmo quando a mãe está impossibilitada de interferir no processo
pedagógico propriamente dito, depois do ensino primário, em função dos poucos
conhecimentos escolares acumulados.j
Nota-se
todo um cuidado, um rol de preocupações, pequenas intervenções das mães
(principalmente), naquilo que se refere ao trabalho escolar ou indiretamente a
ele ligado. Nos nossos casos^o que parece ser rentável é a presença possível, a
disponibilidade em escutar, ouvir e dar atenção ao filho, permitir que ele dê
conta de suas tarefas e necessidades escolares, indagar-lhe de seu dia escolar]
Essas ações são perceptíveis na busca do estabelecimento escolar e na escolha
da escola (sempre pública) quando viável, na luta pela matrícula, nos possíveis contatos
com outras mães, nas aproximações (mesmo esporádicas) com os professores, nas
reuniões escolares (quando convidadas), na manutenção física da criança e dos
equipamentos necessários à freqüência da escola, na atenção para as companhias
dos filhos, no ato de levar à escola (e buscar), na vigilância da rua, etc.
Essas situações revelam todo um cuidado dessas mães para com a escolaridade dos
filhos, mesmo que elas não pensem nisso como um projeto, mesmo que não se trate
de uma ação racional visando a um fim futuro, distante (por exemplo, a chegada
à universidade). Para elas, trata-se de uma obrigação cotidiana que tem que ser
feita, necessária para a formação do filho, para seguir em frente4.
- UM ESFORÇO PARA COMPREENDER E APOIAR O
FILHO
Márcio:
- Aqui... eu fico preocupado com o negócio, ah, tem que pagar isso, tem que
pagar aquilo... Inclusive, dois meses aí eu tô com... tô com o orçamento tudo comprometido... tava pagando prestação lá,
ainda bem que termina a semana que vem, agora, termina...
Dona
Jandira: - Ele queria trabalhar, ele queria ter dinheiro,
Entrevistador:
- Ah, teve essa crise, também?
Dona
Jandira: - Teve. Essa mesma situação. Ele tá enfrentando agora, que quer mais
dinheiro. Então, ele teve esse período que ele não tinha dinheiro nenhum e ele
queria ter dinheiro. Então ele queria trabalhar. Não achava que era só ficar
por de estudo, não. [...] Ah... eu
falava: - Cê num tem condições pra trabalhar agora. Cê vai pegar um serventede
pedreiro, aí, cê vai carregar saco de cimento? É isso que eles vão dar pra
você! [...] É! Eu falava pra ele: - Cê vai enfrentar isso, estuda primeiro,
depois vê um emprego melhor pra você. Que não adianta cê correr agora pra
trabalhar. Cê vai pegar um serviço aí de fazer entrega nos caminhão aí, fazer entrega de compra aí, cê vai pegar
caixa pesada, cê vai pegar saco de cimento, troço pesado, cê num vai agüentar.
Aí cê vai desanimar. Então prepara seu estudo primeiro, pra você pegar um
serviço mais leve. Foi indo... foi indo... que ele entendeu e aceitou,
né?...Mas foi difícil!
Márcio:
- [Hoje] num ligo mesmo... posso estar com o maior problema do mundo lá... se
eu tiver que estudar lá, vou estudar e... me abstraio do resto, de problemas
externos...
Entrevistador:
- Tem conseguido fazer isso?
Márcio:
- Mais ou menos tenho... [sorrindo] é difícil... é difícil, mas dá pra fazer
sim [pigarreia]. Eu tô dando um valor muito grande, agora, pro curso, sabe?
Dona
Jandira-.- Eu fico querendo acalmar ele... mas eu num fico calma... [sorrisos].
Aparece, no conjunto das entrevistas, um
trabalho de persuasão afetiva (que se toma efetivo), no sentido de se continuar
a escolaridade, diante de complexos momentos vi-venciados no decorrer da
trajetória escolar e universitária. Trabalho executado pelas famílias no
interior do lar, para que o filho não se renda diante da escola em função de
situações pessoais difíceis de serem vividas, e necessidades materiais de
difícil controle. Essas situações não marcam hora e dia para acontecerem. Por
exemplo, a ausência do pai (morte ou abandono do lar) - situação vivida por
três entrevistados - coloca a família em situação de instabilidade, diante da
falta de recursos materiais ou pensões significativas, o que jogará
inevitavelmente a mãe ou o filho mais velho no mercado de trabalho. A vida tem
que continuar o seu curso.
Aqui, aparece todo um esforço da mãe para
que o filho não se ocupe com o trabalho remunerado antes de terminar o 2"
grau (horizonte que se vai vislumbrando para algumas dessas famílias). Para
essas mães, a entrada no mundo do trabalho parece significar um desvio de rota
quase irrecuperável, danoso, no futuro, quanto à esperança de se conseguir algo
mais leue como ocupação. Essa resistência da mãe irá chocar-se com as
necessidades materiais da família e do próprio jovem, que, criado sob a ética
do trabalho e exposto a toda uma mídia que incentiva o consumo, se vê na
obrigação moral de produzir a sua própria existência, adquirir uma autonomia
mínima. Esse conflito perpassa boa parte da trajetória e parece não ter fim, o
que produz um enorme desgaste nas relações intrafamiliares.
Mas a família funciona, também, como
refúgio necessário para o jovem no decorrer de sua trajetória escolar e
universitária. E na família que ele irá buscar energia, sustentação para
enfrentar situações difíceis de serem vivenciadas. Diante da perda do marido,
Dona Jandira relata os efeitos sobre a escolaridade de Márcio, quando ele
estava na 5a série. Ele ficou uma semana sem ir à escola. Não tinha disposição,
ânimo para explicar mais aos colegas por que, como, onde, etc., o pai havia
falecido. Todos os dias Márcio respondia às mesmas perguntas, até que decidiu
não mais ir à escola. Dona Jandira resume suas intervenções:
Dona Jandira: - E! Eu falei: eu pedi,
porque eu não quero que você dá satisfação pra ninguém também não. E se os
outro perguntar também, você fala assim: - Ah, eu num sei de que que foi não,
eu num perguntei pra minha mãe. A resposta sua é essa, cê num tem de dá
satisfação pra ninguém. E foi assim que ele aceitou. Eu fui uma psicóloga na
vida dele. Porque se eu num tivesse feito isso, ele num ia aceitar ir na escola
mais não! E foi assim que ele aceitou. No outro dia ele foi e continuou.
Se após a morte do pai ou da mãe determinado
aluno abandona a escola, seja em função da necessidade de entrar no mercado de
trabalho para recompor a renda familiar ou mesmo em função de circunstâncias
emocionais, essa não é uma ação relevante para a instituição escolar e mesmo
por aqueles que o cercam. E esse abandono, que se inicia de forma frágil, pode
levar a um abandono definitivo, servir de justificativa natural para não ir
mais à escola. E a presença, apoio, indignação, atuação e discernimento da mãe
(ou do pai), a intervenção propriamente dita, o que propicia ir-se contra os
efeitos de uma fatalidade, instaurando-se a possibilidade de continuidade dos
estudos e de crescimento subjetivo do filho.
No interior da universidade, nos primeiros
períodos, essas intervenções serão demandadas pelos filhos. Para utilizarmos
uma expressão do campo médico, é como se faltasse a esses jovens imunidade ao
entrar na universidade. Eles se apresentam muito frágeis. Principalmente aqueles
provenientes do interior.
Alice:
- Porque muitas vezes eu num queria, eu chorava na hora de voltar pra cá,
porque eu num queria, eu... Eu já num... eu já num gostava de Belo Horizonte e
no / segundo semestre eu odiei mais.
Vim pra cá, eu chorava na hora de vir pra cá...que eu num queria...
Entreuistador.
- Tinha algum motivo?
Alice:
- Ah! Sei lá! Eu achava assim, principalmente no segundo período, que isso aqui
pra mim num era vida. Como eu te falei, minha rotina de casa pra faculdade e da
faculdade pra casa e no... no mínimo. E num tinha dinheiro pra nada, doente e
minha mãe lá doente também, então... Ah! Sei lá! [...] É complicado. Então
muitas vezes, eu já... conversava com minha mãe: - Ah, mãe! Eu num quero voltar
lá. Ela ficava apertada, porque ela sabia que se eu cismasse que não ia voltar,
eu não ia j voltar. Ela falava: -
Alice, mas cê num pode... [...] Cê num pode fazer isso e tal, cê lutou tanto
pra chegar até aí![...] Cê lutou tanto e tal, cê num pode desistir. Mas pra mim
naquela época, num fazia a menor importância, eu acho que eu fiquei aqui ; mais de... insistência dela, num sei.
Talvez, talvez no fundo no fundo eu num ia ter coragem de deixar a faculdade,
mas a minha vontade no segundo período, era essa. Eu num... Chegou um ponto que
eu num... de eu num querer estudar, num tinha vontade. Tinha tudo pra estudar
às vezes, num tinha ninguém em casa, num tinha desculpa de ter barulho, de
ter... é... assim, de ter rádio ligado e tal, às vezes, num... num tinha
desculpa nenhuma pra eu num estudar e eu num queria estudar, num queria pegar
no livro, pra mim era um martírio! Eu ficava em Bom Despacho, se eu pudesse
ficar uma semana direto, eu ficava, se eu pudesse matar aula uma semana direto,
eu matava. 1...] Tomara que as férias cheguem, antes de... antes de í ■ entrar de férias! [risadaj Eu tava louca
pra entrar de férias, num agüentava mais Belo Horizonte. Belo Horizonte, pra mim, no segundo
período, foi uma tristeza, né? Eu odiava essa cidade! Não gostava mesmo, queria
minha mãe, conversa decriança pequena, “eu quero a minha mãe”, queria voltar
pra Bom Despacho, que ria... (Estudante de Fisioterapia.)
Viver esse processo de separação da família e
adaptar-se aos modos, tempos e espaços de uma grande cidade têm produzido
nesses estudantes uma incerteza intensa e adoecedora. Associa-se a esse
distanciamento o novo processo de adaptação às dificuldades materiais que
impedem esses estudantes de viver novos momentos, conhecer o espaço que
habitam, efetuar atuações que possam integrá-los ao estranho mundo e retirá-los
de um roteiro necessário mas adoecedor: casa-faculdade-casa.
Os relatos dão conta de um desejo, cada vez
maior, de voltar ao lar. Como se ele fosse um refugio seguro, capaz de
protegê-los de um estado mórbido diante da ausência e impossibilidade de
participar de um conjunto de novas experiências que se colocam, se oferecem e
não podem ser vividas.
A atuação afetiva da família age no sentido
de se superar essa fase para que o filho possa seguir adiante. Esse trabalho da
família é difícil de ser percebido, mas perpassa toda a trajetória escolar
desses estudantes. É efetuado na solidão do lar e pouco compartilhado com
terceiros. Quiçá, envolvem-se professores. Mas, apenas aqueles mais
compreensivos. Não se admite que o filho esteja doente ou preocupado e incerto
quanto ao projeto universitário (que pode ser também um projeto de vida) que se
iniciou. Aposta-se, aqui, na capacidade de o filho processar os conselhos, as
ajudas afetivas da família e na T ação do tempo: é tudo uma questão de tempo.
Aposta-se, também, na capacidade moral do filho de superar-se diante da
família, que vê nele um sujeito merecedor das preocu-jL pações e da
solidariedade a ele dispensadas.
- A
PRESENÇA DO OUTRO NA VIDA DO ESTUDANTE
Alice: - Eu
fiz o jardim nessa escola, né? O pré foi na Escola Estadual João Borges Filho,
que é estadual, e lá eu fiquei até a 3- série. Só que era escola de periferia
essa escola, e eu... Era a escola mais pertinho do bairro onde eu morava, então
eu fui pra lá. E lá eu fiquei até a 3a série, como eu já falei e só que
senti... A professora sentiu que eu tava na frente dos alunos de lá porque eu
fazia... o dever eu fazia tudo na aula, enquanto os alunos copiavam o dever.
Então tudo ela sentia assim, que eu num podia ficar lá porque eu ia ser
prejudicada no meu desenvolvimento. Aí ela conversou com minha mãe, pediu que
ela me mudasse de escola, que era uma escola mais longe, mas era a melhor
escola de Bom Despacho, escola pública, também, né? Escola Estadual Coronel
Praxedes, que era a escola do centro da cidade, né? Lá vai a Alice pra escola!
[risadal
Entrevistador: - Mas essa... essa professora
conhecia a sua mãe? Tinha alguma relação com sua mãe?
Alice:
- Não, não! Ela pediu, ela escreveu... Eu me lembro direitinho que ela escreveu
um bilhetinho e pediu pra mim entregar pra minha mãe, pra que minha mãe fosse
conversar com ela. Conhecia assim das reuniões que as professoras faziam e tal,
que minha mãe sempre ia.
Nas falas acima transcritas observa-se a
atenção, valorização e aceitação da ajuda de outros que conhecem a estrutura e
o funcionamento do sistema escolar ao indicarem caminhos alternativos
importantes, a partir do reconhecimento e valorização do destacado trabalho
escolar do filho.
Já dissemos,
anteriormente, que os nossos sujeitos configuram casos de estudantes
superselecionados. E aqui, a percepção de determinados professores, ainda nas
séries iniciais, de que a atuação do aluno supera aquela do conjunto de colegas
e que, apesar de pobre, ele tem um desempenho excepcional, parece ser
determinante na vida desses sujeitos. Esses professores, sensíveis à atuação
escolar de tais alunos, entram em contato com a família, articulam com colegas
e diretores a transferência para escolas melhores, freqüentadas basicamente pela
elite da cidade, principalmente quando se trata de cidades do interior. Vale a
pena observar, aqui, que Nogueira (1998) mostra como os professores parecem
constituir a categoria social onde se encontrariam os melhores pais
“estrategistas”, pois
(...) convictos do valor do capital
escolar, desenvolvem forte aspiração a “bens” escolares superiores; aspirações
seguidas de realizações concretas eficazes pois que, na condição de agentes da
instituição escolar, conhecem bem esse meio, conseguem comparar com
discernimento, rentabilizando assim as possibilidades de ação que ela oferece
aos usuários (p. 53).
De posse dessa indicação, a família, na
figura da mãe, efetua a transferência do filho, e esse, como previu o
professor, não decepcionará. Efetua-se, assim, uma mudança radical na vida da
criança, que irá conviver com um mundo social completamente diferente daquele
no qual vivia até então, enfrentando-o.
É o que nos conta Esdras, estudante de
Ciência da Computação, que, ao se transferir de sua pequena cidade para outra,
pólo da sua região, se matriculou em uma escola pública à noite, que era “mal
vista, mal freqüentada, que tinha alunos envolvidos com drogas, onde se
estourava bombas no banheiro”. Nesse caso, a pronta intervenção de uma prima,
pedagoga e sócia de uma escola, parece ter sido providencial. Após saber que o
primo recém-chegado do interior havia se matriculado naquela escola, convida-o
a ir estudar na escola da qual era sócia. Esdras pôde concluir o 22 grau de
forma mais apropriada e, em suas palavras, com mais qualidade.
Podemos perceber que essa atitude do
professor, ou do outro, esporádica mas determinante, aceita e operacionalizada
pela família, irá modificar as possibilidades escolares do aluno. Ele irá
desenvolver-se escolarmente cada vez mais, reafirmando prognósticos anteriores
e merecendo, nesse novo meio, elogios dos novos professores e aceitação por
parte dos novos colegas. Dá-se, assim, mais um passo para se atingirem outros
níveis de escolaridade, antes não ventilados.
Observa-se, ainda, uma eterna aproximação
dos professores, que contribui na construção da autonomia propriamente dita, a
partir de uma aproximação/relação dos jovens com aqueles que reconhecem e
incentivam a dedicação, o esforço e o desempenho escolar diferenciado do
pesquisado frente a outros colegas de sala.
Rosa: - A minha professora de
Português era assim... ela me... me achava a melhor aluna da turma [risada]. E
tudo ela deixava eu fazer. Porque num é legal, né, e tudo que ela chamava era
eu, aquela coisa toda. Eu era boa em Matemática, também. A professora de
Matemática... eu sempre tive essa facilidade, de ter facili... de ter
desenvoltura em diversas áreas, porque geralmente quem é bom em Matemática, não
é bom em Português, né? E eu num tinha esse problema não. Eu... eu cresci com a
auto-estima elevada. Eu cresci acreditando que eu era inteligente [sorrindo
alto], (Estudante de Medicina.)
Essa
circunstância, aparentemente muito próxima daquela que acabamos de discutir nos
parágrafos anteriores, difere-se por ser uma ação constante que se observa ao
longo da trajetória escolar e que irá se aprofundar no interior da
universidade. Não tem nada de ocasional. E contínua, persistente e presente na
vida desses estudantes. Observamos nas entrevistas que a busca de uma
proximidade, de ser reconhecido no interior da escola pelo conjunto de
professores, é incentivada pela família, que apóia essa proximidade como se
fosse uma delegação de cuidados que ela não pode mais ter para com o filho. Em
determinadas situações, os próprios sujeitos ensaiam substituir os pais na
figura de alguns professores mais atenciosos e dedicados às questões
existenciais vividas por es-
ses jovens.
Entretanto, um elemento que assegura e dá consistência a esse jogoe a
competência escolar, vista aqui através dos resultados obtidos, do
comportamento, que não pode ser marginal, da aceitação das determinações
institucionais, enfim, por todo um conformismo estratégico.
5.A BUSCA DA AJUDA MATERIAL
Alice:
- ...E conversei com minha avó, conversei com minha tia, conversei com todo
mundo, né, da família pra ver se me ajudava a me manter aqui, a me sustentar,
se me dava algum dinheiro e tal. Minha mãe, sempre trabalhando pra fora também,
me ajudou a me sustentar. Eu vim, e com dificuldade, passei dificuldade,
bastante dificuldade! [...] Meu pai fez uma dívida que ele pagou até quando eu
tava no2- período [risada] de faculdade, pra me sustentar, pra me manter lá. E
fiz, estu...No final do ano eu já tava anêmica, já num comia mais nada, de
tanto estudar. Inclusive as apostilas eu ganhei do colégio pra estudar.
Como no
depoimento acima, as manifestações das necessidades materiais aparecem de forma
abundante no conjunto das entrevistas, em quase todas as situações abordadas, como
se fossem um lugar comum no discurso desses jovens e familiares. Assim, as
manifestações simbólicas que contribuem para a construção e estruturação de uma
trajetória improvável - e, conseqüentemente, para a construção da identidade
dos sujeitos - parecem, no nosso caso. vir sufocadas pelas necessidades
materiais primárias, básicas, que assaltam essas famílias cotidianamente. É o
esforço, às vezes desesperado, para ajudar materialmente o filho estudante
diante da sua impossibilidade de desenvolver qualquer trabalho remunerado (ou
mesmo bicos), em função do tempo necessário despendido com os estudos.
Colocar e manter um filho nos cursos de
Medicina, Fisioterapia. Direito, Comunicação Sociai, Engenharia Elétrica e
Ciências da Computação, mesmo numa universidade pública como a UFMG, são atos
que retiram a tranqüilidade da família, pois. nos nossos casos, trata-se de um
ensino público relatiuizado. Isso se confirma pelas exigências intrínsecas e
periféricas ao acadêmico, as quais marcam esse ensino. Como bem iiustra o
estudante de Ciências da Computação:
Esdras: - Então, iogo, logo que a gente
chegou, a primeira coisa foi ir na FUMP. Vê como é que tava a situação, porque
o bandejão era 1.50 [Real]. Era um custo assim que... já dava. sei iá. dava
noventa reais por mês de ai... de... de... aiimenia-ção. Aí. já era muito
pesado, num tinha dinheiro mesmo Aí a gente foi iá. eu fui iá, fiz a
entrevista. levei meus... meus... meus... documentos e tal Fiz a entrevista com
a M. Ai. julgaram iá que tem... é... num sei como é a avaliação deles lá e.
liberaram isso pra mim. Eu pedi a... a carência de alimentação e a... e... a
bolsa de manutenção. poroue era meio compiexo ficar iá, poraue num tinha
dinheiro pra... pra... sobreviver. Ficava an... porque o meu pai era
aposentado, né? t num tinha condições de me ajudar muito. Minha mãe também,
minha mãe era costureira. Entãc, num tinha como me amimar dinheiro. No começo
antes da bolsa sair. minha tia é que mc ajudava. Normalmente ela me dava um
dinheirinho lá todo mês...
Nos nossos
casos, é claro que a família (e o próprio estudante) tem sua tarefa um tanto
facilitada pela presença da Fundação Universitária Mendes Pimentel, que cuida
de amenizar essa etapa da passagem, oferecendo/distribuindo um leque de benefícios
materiais (bolsa de alimentação, empréstimo de material, financiamento de
livros, bolsa de manutenção, dispensa de taxas escolares, etc.) e simbólicos
(assistência pedagógica, psicológica, psiquiátrica, social, entre outras).
Benefícios que vêm se revelando fundamentais para o estudante pesquisado se
manter na UFMG, desde a data de sua fundação, o que á diferencia de suas
congêneres, quanto à presença e permanência desse tipo de estudante em seus
diferentes cursos.
Mesmo contando com essa importante ajuda,
observa-se uma submissão e humilhação ao pedir de forma recorrente, ou aceitar
ajuda material de terceiros (geralmente, parentes um pouco melhores de situação
econômica ou amigos íntimos ou mesmo agiotas). Ajuda frágil, inconstante, mas
que assegura condições materiais e psicológicas básicas para a continuidade dos
estudos acadêmicos do filho.
Trata-se de uma situação complicada, porque
aquele que ajuda sabe de antemão que está fazendo uma doação a fundo perdido ou
um investimento, como bem ilustra Esdras, falando das ajudas recebidas de uma
prima distante:
Aí, ela me ofereceu pra fazer cursinho e
tal, perguntou se eu queria em Belo Horizonte, ela ia pagar, ia pagar pra mim
e... ela sempre viu, tipo assim, viu que é... é... [eu] era uma pessoa que
compensava investir, que ia dá futuro, digamos assim.
Essas famílias não têm muito como pagar a
ajuda recebida, pois o salário percebido pelos provedores é todo utilizado na
manutenção da casa e do filho universitário. Observa-se, também, uma certa
solidariedade material de alguns parentes para com esses estudantes, que
efetuam algumas doações diante da manifestação dos pais de que o filho se
encontra necessitado. Porém, os filhos pouco se empenham em pedir ajuda aos
parentes ou amigos da família. É como se eles cuidassem de manter um certo
distanciamento dessas questões que os preservassem em futuras negociações de
posições no interior da família extensa. Pedir ajuda é uma tarefa da família!
6.A EXISTÊNCIA E IMPORTÂNCIA DE UM DURADOURO
GRUPO DE APOIO CONSTRUÍDO NO INTERIOR DO ESTABELECIMENTO ESCOLAR
Alice: - Minha avó, tinha me dado o
dinheiro de aniversário, que eu tava guardando. Aí eu peguei o dinheiro...[...]
paguei a inscrição da prova, da prova... da... da... prova do... do... de
seleção né? Daqui do Pitágoras. Que principalmente eu queria vir... por mim e
porque todas as minhas amigas, das minhas intimidades, das minhas relações
tavam vindo pra cá também, tipo assim. [...] Fazer o terceiro ano. Num vou
ficar aqui, né? Quê que eu vou ficar fazendo aqui? Eu pensava, eu pensava mais
no meu futuro, porque lá eu num ia ter futuro, lá num tem faculdade, num tem
nada. Peguei esse dinheiro, paguei a inscrição da prova de seleção aqui do
Pitágoras. Estudei pra caramba, vim e fiz a prova, e passei. Aí passei na
prova, né? E agora? Como que eu venho pra cá, né? Não tem jeito. [...] Aí vim,
fiz a prova da Timbiras, passei e queria vir de todo jeito, né? [...] Eu vim
morar com uma colega minha lá na Bias Fortes, perto da Praça Raul Soares. Então
ela morava lá com um irmão dela, e mais dois colegas de sala meus, que era a V.
e o B. Então morava-a C. com o irmão, que era da minha sala, a V. também era da
minha sala e o B. que tam-bén» era da minha sala, e o C. que era irmão dela,
fazia faculdade já, fazia Engenharia Elétrica, na Federal. Todo mundo de Bom
Despacho.
O grupo de
apoio, como aparece na fala de Alice, é outra circunstância importante para
assegurar a continuidade dos estudos e se associa àquela anteriormente discutida
no item três, pois poder-se-ia dizer que se trata de uma conseqüência de ações
desenvolvidas ao mudar-se o filho de estabelecimento escolar. Quando essa ação
se efetiva, a criança é transferida para um mundo diferente daquele em que ela
vivia e estudava até então. Espaço dominado por filhos de uma classe média
privilegiada econômica e escolarmen-te, que vão ditando os gostos e os modos de
agir no interior da escola e à sua volta. Nesses casos, a família procura
facilitar, dentro de suas posses econômicas e culturais, a inserção, mesmo
parcial, do filho nesse novo mundo. E uma disposição que facilitará a vida do
aluno pobre nesse novo espaço é a facilidade para aprender, ser bom aluno, ser
inteligente. Essa disposição conta ainda com o apoio e o incentivo dos
professores no decorrer da trajetória.
Porém, quando o jovem proveniente das camadas
populares passa a pertencer ao novo grupo constituído por jovens de uma classe
média, ele será influenciado pelas aspirações escolares do grupo e buscará
desenvolver estratégias que possam garantir a continuidade dos estudos. Esse
novo grupo manter-se-á coeso até por volta da conclusão da 8série. Observa-se,
pelos depoimentos, que essa coesão é mantida pela crença dos jovens de que as
escolas que freqüentam oferecem um ensino de qualidade até esse nível de
ensino. A partir daí, esse grupo irá se fracionar ou mesmo se reagrupar em um
outro centro urbano que ofereça melhores oportunidades de escolarização, que
facilite e garanta a continuidade do projeto traçado por seus pais: atingir o
ensino superior, se possível, nas universidades públicas. Observa-se, ainda,
aqui uma forte influência do marketing de grandes “sistemas” particulares de
ensino (no caso de Belo Horizonte) que prometem que seus alunos passarão por cima
das barreiras colocadas pelo vestibular e se colocam como a via mais fácil para
se efetuar essa travessia.
Observa-se nesse movimento de mudança de
estabelecimento que o estudante pobre, embora carente daquele projeto racional
de escolaridade de seus colegas, é fortemente influenciado no sentido de uma
ampliação dos seus desejos de seguirem frente, não estacionar na cidade de
origem, ou seja, amplia-se a sua visão de mundo, mesmo com uma certa
consciência dos conflitos intrafamiliares que as atitudes daí decorrentes
acarretariam. Os pais nunca podem sustentar os filhos nessa empreitada, mas se
sacrificam (veja item 5) para que o filho saia e obtenha sucesso, visto aqui
como seguir passo a passo, de acordo com as possibilidades. Mas, com certeza,
esse novo projeto não se efetivará para o pesquisado sem altos custos afetivos
(veja item 3).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após
discutirmos esse conjunto de circunstâncias atuantes, retomando as reflexões
que originaram este texto, nossos dados indicam um enorme esforço das famílias
pobres, que, desprovidas de capitai escolar e material, contribuem efetivamente
no processo de construção de uma trajetória escolar empreendida pelos filhos
com relativo sucesso, pois eles chegaram à universidade.
Mesmo naqueles casos em que a autonomia e o
empenho individual do sujeito parecem encobrir ou negar o trabalho escolar da
família, ele está presente. Noutros termos, parece-nos imprescindível para a
compreensão do processo de construção de uma trajetória escolar que configure
uma improbabilidade estatística, não somente desvelar mas ainda admitir o
trabalho escolar da família, como acima o definimos.
Do contrário, correremos o risco de
ignorarmos práticas originais empreendidas por essas famílias. Práticas
nascidas diante das possibilidades - imprevistas - de continuidade dos filhos
no interior do sistema escolar. Isso instala uma insegurança, e não uma
imobilidade, pois trata-se de um conjunto de novas atribuições cobradas dessas
famílias nas suas relações com o sistema escolar.
As famílias populares não podem se espelhar
nas ações escolares mais conhecidas e identificadas das famílias de diferentes
frações das classes médias. Empreender essas ações demandaria capital cultural
e mesmo uma disposição econômica de que as famílias populares não dispõem.
Essas famílias lidam em um espaço ainda pouco compreendido por nós, onde a
privação, a instabilidade, a insegurança e a angústia impulsionam e orientam as
ações.
Não
é sem razão que Carolina Maria de Jesus (1993) comumente inicia os seus relatos
matinais fazendo referência à escola. Ela própria não pôde estudar muito.
Desejava ser professora, sonho da mãe, mas fez apenas a 2- série primária no
interior de Minas Gerais. Segundo ela, tudo deve à sua professora, que incutiu
nela o gosto pela leitura e pela escrita:
- Seria
uma deslealdade de minha parte não revelar que o meu amor pela literatura
foi-me incutido por minha professora, dona Lanita Salvina, que aconselhava-me
para eu ler e escrever tudo que surgisse na minha frente. E consultasse o di
cionário quando ignorasse a origem de uma palavra. Que as pessoas instruídas
vivem com mais facilidade (p. 170).
Carolina, pelas contingências da vida,
tornou-se uma catadora de papel e moradora em condições subumanas de uma favela
em São Paulo, onde suportou todos os tipos de privações. Entretanto, observa-se
nos seus relatos cotidianos um desenvolvido gosto pela leitura, pela escrita,
pela música e um discernimento sobre as questões sociais mais gerais.
Cotidianamente discutia essas questões com seus três filhos:
Ele [o filho João] passa o
dia lendo. Ele conversa comigo e eu vou revelando as coisas inconvinientes que
existe no mundo. Já que o meu filho já sabe como é o mundo, a linguagem
infantil entre nós acabou-se. [...10 meu filho, com 11 anos já quer mulher.
Expliquei-lhe que ele precisa tirar o diploma de grupo. E estudar depois, que o
curso primário é muito pouco (Jesus, 1993: 82) .
Sabemos
que sua filha caçula, Vera, concluiu o curso superior de Letras e se tôrnou
professora na cidade de São Paulo.
As
referências de Carolina sobre a escola são sempre tensas, marcadas pelo desejo
de os filhos serem diferentes de mim, mas também marcadas pelas imposições da
miséria material:
O José Carlos não quer ir na escola porque
está fazendo frio e ele não tem sapato. Mas hoje é dia de exame, ele foi. Eu
fiquei com medo, porque o frio está congelando. Mas o que hei de fazer? (Jesus,
1993: 59).
Entretanto,
Carolina sabia que o conhecimento escolar poderia fazer a diferença,
futuramente. Para ela, a escola propicia superações. Permite ultrapassar a
linha de pobreza na qual se encontrava. Possibilitaria a ela livrar-se de uma
condição humana indescritível, insuportável, limitadora de sua aventura:
Encontrei com a dona Nenê, a
diretora da Escola Municipal, professora do meu filho João José. Disse-lhe que
ando muito nervosa e que tem hora que eu penso em suicidar. Ela disse-me para
eu acalmar. Eu disse-lhe que tem dia que eu não tenho nada para os meus filhos
comer (Jesus, 1993: 92).
Os resultados desse conjunto de práticas
podem propiciar, também, claro, alegrias, esperanças e a consecução de sonhos
antes nunca sonhados. É o que nos diz dona Jandira, entre um sorriso e outro,
expondo sua alegria por ter um filho na Faculdade de Direito da UFMG:
Eu até hoje eu falo com
eles. Eu falo não é só com eles. Eu falo até com minhas amigas, quando a gente
tá conversando, elas falam: - Ah, Jandira, quem viu você enfrentar a vida que
você enfrentou e hoje seu fiiho tá na faculdade, né? É muito difícil, né! Mas
eu falei assim: - Pois é, é muito difícil, né9 Mas, acontece o seguinte, eu
falo com eles, se eles quiser ser diferente do que eu fui eles têm que estudar.
Porque eu fui assim porque eu não tive tempo pra estudar.
Nessa mesma linha também se expressa
Esdras, alegre e emocionado, quando nos relata as manifestações de sua família,
diante de seu desempenho no curso de Ciências da Computação:
Bem, minha mãe é... é... é... fica
toda orgulhosa de eu poder tá fazendo um curso como esse, que ela... que eia
sabe que é um curso difícil de se... de se entrar, né? E é uma coisa
promissora, né? E meu irmão, também, né? Fica lá sonhando de repente [euj fazer
uma pós-graduação no exterior, não sei o que lá e tal.
Mas, de qualquer forma, para esses pais que
não puderam ter uma relação de maior prazer e proximidade com a escola e,
conseqüentemente, não puderam se preparar melhor para a vida, como dizem, ter
um filho em um desses cursos é uma vitória. Sua família é uma família diferente
no seu meio, agora, mesmo que não dominem todo o significado
dessa
aventura6. Por exemplo, Dona Teresinha, mãe de Maurício, entre uma conversa e
outra, pergunta: “Para que serve mesmo Engenharia Elétrica?” Porém, resta,
ainda, a eles a certeza de que isso não se deu “de graça: foi preciso muito
esforço e sacrifício”.
Lahire (1997: 334) considera, ao final de
sua obra, que um fato pode ser estabelecido: “o tema da omissão parental é um
mito”. Segundo esse autor,
[...] esse mito é produzido pelos
professores, que, ignorando as lógicas das configurações familiares, deduzem, a
partir dos comportamentos e dos desempenhos escolares dos alunos, que os pais
não se incomodam com os filhos, deixando-os fazer as coisas sem intervir.
Podemos afirmar que, em todos os casos
vistos por nós, o trabalho escolar da família, revelado no conjunto de
entrevistas, foi imprescindível para o estudante ter trilhado a trajetória
escolar (e social) que trilhou e o é, ainda, para se manter na posição ocupada
no interior da universidade. Nesses cursos, a competição velada entre os
sujeitos, seja por melhores notas ou por melhores posições nas hierarquias que
vão se estabelecendo e, conseqüentemente, pelos melhores postos de trabalho a
serem oferecidos, é acirradíssima. O estudante não pode perder tempo com
atividades que não dizem respeito ao acadêmico ou que com ele não se
relacionam. Fazer bicos, trabalhar meio período... isso está fora de cogitação.
Admitem-se uma monitoria, uma iniciação científica, a participação remunerada
em projetos de pesquisa, etc. Aqui, não nos parece ser possível prescindir de
todo esse trabalho escolar da família subsumido na figura da mãe, como bem
ilustra Rosa: “E. E assim, quem batia, quem educava era minha mãe que tava ali
no dia-a-dia, né?” Plagiando François Héran (1994: 2) aqui, as mães perseveram.
A figura do pai é uma sombra tênue.
Acreditamos que as reflexões contidas neste
capítulo possam contribuir, no caso brasileiro, para o entendimento da complexa
relação famílias populares/escola. Relação muito pouco pesquisada entre nós e
ainda desconhecida.
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[Doutoramento em Educação)
Ultrapassando o pai Herança cultural restrita e
competência escolar
Ana Almeida - Professora da Faculdade de Educação da UN1CAMP.
Et, capítulo
discute as condições de possibilidade da utilização da educação secundária como
estratégia de inserção nas camadas intelectualizadas por famílias de grupos
médios possuidoras de credenciais escolares relativamente baixas.
Concebida como uma análise das
desigualdades de performance dos alunos frente às exigências do sistema de
ensino, esta discussão refere-se a um problema central da Sociologia da
Educação e tem sido objeto de muitos estudos. No entanto, esses estudos têm se
concentrado em estabelecer uma correlação positiva entre credenciais escolares
dos pais e resultados escolares dos filhos, e poucos trabalhos têm se detido
sobre o problema de como esse efeito se produz.
A meu ver, isso tem provocado uma relativa
fragilidade das análises que procuram entender as situações em que a correlação
entre os resultados escolares dos pais não correspondem aos resultados
escolares dos filhos. Ao mesmo tempo, isso tem incentivado uma utilização
bastante mecanicista da noção de capital cultural. Nos casos em que isso
acontece, a noção é empregada de maneira substantivista, esvaziada da sua
função de conceito operatório\
Assim, a discussão das condições de
possibilidade da utilização da educação secundária como estratégia de inserção
social por grupos possuidores de credenciais escolares relativamente baixas é
guiada, neste capítulo, por uma tentativa de problematizar esses usos da noção
de capital cultural, oferecendo um esquema analítico capaz de aproveitar melhor
as potencialidades dessa noção.
A discussão apóia-se sobre um estudo
desenvolvido num colégio privado da cidade de São Paulo que tem se destacado,
nos últimos anos, pela capacidade de preparar eficazmente jovens oriundos
desses grupos para as carreiras mais seletivas da Universidade de São Paulo
(USP). Esse colégio caracteriza-se por exigir dos seus alunos pesados
investimentos em tempo e energia nos estudos, e o objetivo da pesquisa foi
identificar os elementos responsáveis pela adesão dos alunos a esse programa2.
No esquema analítico proposto aqui, o exame
dos recursos (materiais e simbólicos) possuídos de fato pelas famílias no
momento em que se realizou o estudo é associado à análise da história do grupo
social no qual essas famílias estão inseridas. Verificand®-se, especialmente,
se as famílias fazem parte de frações em ascensão ou em decadência dentro do
grupo, é possível interrogar o grau e,m que as trajetórias escolares desses
alunos, especialmente os seus investimentos em tempo e em energia nos estudos,
são tributárias das disposições com relação ao futuro expresso por eles e/ou
por suas famílias 3.
1.Como pode ser visto, entre outros, em Katsilis &
Rubinson (1990).
2. O trabalho de campo foi realizado durante o ano de 1996 na cidade de
São Paulo como parte de uma pesquisa financia-^“Ida pela FAPESP. que abrangia
ainda dois outros colégios. Além de um questionário apiicado ao conjunto dos
alunos da j segunda série do segundo grau (n=252), foram realizadas longas
entrevistas com quatro aiunos. com dois ex-alunos, com J os quatro
coordenadores (individualmente e em grupo), com três professores - dois de
português e um de química, e outro da disciplina considerada como o ponto de
estrangulamento do secundário, em função da alta proporção de reprovações. Além
disso, desenvolveu-se uma observação de caráter etnográfico. Através das
informações construídas por esses procedimentos foram examinadas (1) as
características sociais das famílias dos alunos: (2) as práticas escolares e
culturais dos alunos; (3) a ação pedagógica exercida pelo colégio em questão e
(4) as exigências específicas colocadas pelo formato atual do vestibular da USP
para esse tipo de familia. - O caráter restrito da herança cultural recebida
pelos aiunos desse colégio manifesta-se de duas maneiras. Por um lado, tem-se
uma alta proporção de pais e mães sem diploma de ensino superior (numa taxa de
40% e 60% respectivamente). Além disso, como pode ser aferido nas entrevistas,
uma parte importante dos pais diplomados concluíram seus cursos superiores
depois de casados, em faculdades privadas pouco prestigiosas da cidade. Por
outro lado, a também alta proporção de avós sem diplomas (92.7% dos avós
paternos e 95.7% dos ^ avós matemos) indica, por sua vez. a novidade da
educação universitária para essas famílias. A proporção de avós que não
concluíram o ginásio está em tomo de 53,7% para os paternos e 53,1% para os
matemos.
1.AS NOVAS CLASSES MÉDIAS
A história familiar mais comum no Colégio
Cristo Rei4 já foi contada em termos estatísticos por alguns estudiosos da
estrutura social brasileira, principalmente por aqueles que se dedicaram a
estudar a mobilidade social na segunda metade do século XX5. Esses estudos
mostram a presença de uma forte rigidez durante todo o período. As
possibilidades de mobilidade social foram significativas apenas nos momentos em
que houve uma ampliação importante do número de postos no mercado de trabalho.
Mesmo nesse caso, as situações de mobilidade restringiram-se a mudanças de
posição no interior dos estratos médios da estrutura social, ocorrendo um alto
fechamento da elite em relação aos demais estratos (particularmente em relação
aos manuais). Tal fechamento se caracterizaria pela alta capacidade dos grupos
privilegiados em garantir a transmissão das suas posições àqueles que ali já
estão incluídos pelo nascimento6.
Essa fórmula descreve os processos de
urbanização e industrialização ocorridos no Brasil a partir da década de
cinqüenta, que estiveram na origem do importante crescimento das ocupações
administrativas e de direção, assim como de ocupações ligadas ao comércio de
valores, às instituições de crédito e seguro, descritas, no jargão das análises
demográficas, como “ocupações não manuais qualificadas” (Bacha e Klein, 1986)
'.
Tanto as pesquisas de mobilidade que partem
das grandes bases de dados quanto estudos de caráter mais qualitativo que
tomaram esses grupos para análise apresentam evidências de que as famílias dos
pequenos proprietários urbanos foram aquelas que contribuíram com maior peso
para a constituição dessa nova camada média, oferecendo uma nova geração com as
disposições adequadas para responder às exigências colocadas
para a
ocupação desses postos, isto é, para construir as disposições ascéticas
necessárias a uma longa escolarização bem-sucedida8.
A fundação
do Colégio Cristo Rei, em 1984, é um dos efeitos desse processo. Na história
contada pelo padre-diretor, a sua criação inseria-se num projeto para
“implantar um colégio de alta qualidade na zona leste de São Paulo”.
O
estabelecimento encontra-se num dos bairros mais antigos dessa região, o
Tatua-pé, numa área onde os imóveis residenciais misturam-se a estabelecimentos
comerciais e a velhos galpões de antigas indústrias. Trata-se de um prédio novo
(inaugurado em 1986). Um pequeno jardim cercado por grades é todo o espaço
verde de que dispõe a escola. As quadras esportivas ficam no subsolo e têm as
paredes revestidas de azulejos. Isso multiplica o ruído causado pelos gritos
dos jovens e crianças que jogam. Um barulho ensurdecedor é o resultado. A tinta
amarela que cobre as paredes internas dos longos corredores dão a esse colégio
uma aparência bastante asséptica. Os alunos acusam o prédio de parecer um
shopping center. A semelhança vem principalmente do exterior (uma caixa de
concreto), do piso de pedra polida e das jardineiras internas.
A associação do colégio com um shopping,
intuição dos alunos, é, porém, mais do que arquitetônica. A criação do Cristo
Rei segue de perto a criação do primeiro shopping center importante, próximo o
suficiente para ser considerado da região - o Shopping Norte. Isso não é
forçosamente uma coincidência. A existência tanto de um quanto do outro parece
estar vinculada a um movimento mais amplo que orientou uma certa mudança de
imagem da zona leste, ou, pelo menos, de uma parte dela, à qual estão
associadas algumas transformações na organização do espaço urbano.
Trata-se de um processo do qual são
protagonistas determinadas frações das classes médias, tradicionais moradoras
da região. São elas as principais fornecedoras de alunos para esse colégio, mas
também de clientes para o comércio diferenciado que se instalou nos shoppings.
Um estudo do habitat das famílias dos alunos
do Cristo Rei, principalmente se for tomado para análise um longo espaço de
tempo, permite captar esse processo, na medida em que os sinais inscritos nas
casas, edifícios e na organização do espaço podem ser vistos como instrumentos
de afirmação pública da posição social de seus habitantes (Augé, 1989).
2.A INVENÇÃO DA ZONA LESTE
A cidade de São Paulo passou por uma fase de
excepcional crescimento na última década do século XIX. A população de 64.934
habitantes em 1890 chegou a 239.820
em 1900,
números que representaram um aumento de 13,9% ao ano9. Os novos habitantes eram
sobretudo imigrantes europeus, encorajados pelo governo brasileiro, interessado
em encontrar trabalhadores substitutos para os escravos libertados. Já em 1893,
55% dos habitantes de São Paulo haviam nascido no estrangeiro.
A população estava concentrada sobretudo no
centro da cidade. Havia uma certa mistura social nessa área, mas a zona leste
foi rapidamente definida como área industrial e como lugar de habitação dos
imigrantes estrangeiros que trabalhavam nas indústrias -sobretudo têxteis e
alimentícias - dos bairros da região. Os bairros do Brás e da Moóca foram os
primeiros a serem ocupados. Em seguida, os bairros do Belém e do Tatuapé também
começaram a receber os imigrantes.
Esse processo foi estimulado pela
instalação de um importante centro de recepção dos imigrantes num desses
bairros. A Hospedaria dos Imigrantes, nome dado ao centro, recebia os
estrangeiros chegados ao porto de Santos - a principal porta de entrada dessa
população no Brasil durante o período. Fornecendo moradia e oferecendo ajuda
para a regularização dos documentos e para a procura de trabalho, a Hospedaria
dos Imigrantes funcionava sobretudo como um depósito de mão-de-obra, onde os
imigrantes esperavam, em condições difíceis, ser escolhidos pelos empregadores,
que passavam regularmente para selecioná-los.
O Rio Tamanduateí, o Córrego Anhangabaú e a
Estrada de ferro Santos-Jundiaí constituem-se, nesse momento, nos marcos da
fragmentação da cidade, que passa a se organizar de fato em dois blocos
distintos: a zona leste, lugar de moradia da população operária, de indústrias
e comércio; a zona oeste onde se localizava o centro tradicional da cidade e a
partir de onde se deu uma expansão de bairros habitados por grandes donos de
terra e industriais10.
Alguns estudos mostram que essa divisão
esteve na origem da constituição de um novo espaço de convivência social,
política e cultural relativamente independente do centro tradicional da cidade
e localizado no Brás. Paoli (1991: 34) identifica ali, assim como na Moóca, o
desenvolvimento de uma uida social mais intensa e estratificada coletiua-mente
do que nos outros bairros da região. Esse espaço parece ter sido instrumental
para a ocorrência das greves operárias do início do século na cidade (Alencar,
1981).
No final dos anos 50, quando a existência de
uma indústria de base passa a fornecer as condições para a instalação de
indústrias pesadas, São Paulo afirma-se como o centro industrial do país. E um
período de decadência das indústrias têxteis e alimentícias alocadas. em parte
significativa, nos bairros da zona leste. Essas não desaparecem completamente,
mas perdem importância e vão sendo substituídas na região por um comércio local
e pequeno artesanato.
Ao longo dos cinqüenta anos seguintes, São
Paulo vai se tomar a maior e mais rica cidade do país.
Nos anos sessenta, com uma imigração
estrangeira que se reduzira progressivamente a partir das primeiras décadas do
século, a cidade continua ainda a receber novos moradores. Os imigrantes do
período são os moradores das zonas rurais do nordeste do país, fugindo das
condições de vida miseráveis da região agravadas pela seca. Esses migrantes
ocupam sobretudo a periferia de São Paulo, provocando a expansão territorial da
cidade. Certas partes mais periféricas da zona leste são significativamente
afetadas por esse processo.
O povoamento
da zona leste da cidade segue uma antiga linha de trem que começou a ser
progressivamente substituída pelo metrô a partir dos anos 70. Hoje, quanto mais
se avança na direção leste, mais os bairros são pobres. A extremidade final da
região é muito pobre. Alguns bairros das zonas sul e oeste, em contraste,
afirmaram-se como lugar de moradia das camadas sociais privilegiadas a partir
dos anos setenta, em seguida a uma onda de investimentos imobiliários. A
instalação do campus da USP na zona oeste no final dos anos cinqüenta
contribuiu provavelmente para definir a uocação dessa zona como lugar de
moradia desses grupos privilegiados.
Na simbologia da cidade, os bairros da zona
leste já estavam, nesse momento, associados a uma imagem peculiar, algumas
vezes objeto de zombaria, definida em função de um sotaque, vagamente italiano,
e uma maneira de vestir considerada provinciana. Alguns bairros da zona sul e
oeste, sobretudo o Bairro dos Jardins, representam, em oposição, uma imagem de
sofisticação associada, especialmente, à concentração do comércio de luxo, dos
museus, cinemas, etc.11
Durante os anos setenta, em seguida ao
milagre econômico brasileiro, ocorre um êxodo particular da população dos
bairros da zona leste. Os que deixam a região são principalmente os jovens
beneficiados pelo crescimento econômico dos anos sessenta e setenta e por uma
maior escolarização, que os admite nas novas posições abertas no setor de
serviços. A ascensão social desses grupos acaba por impulsioná-los em direção
aos bairros mais ricos das regiões sul e oeste.
Esse modelo de ocupação urbana, no qual os
grupos sociais mais privilegiados migram para o sul e oeste da cidade, veio a
se modificar apenas a partir do final dos anos setenta e início dos oitenta,
quando a crise econômica já havia afetado bastante o mercado de construções em
São Paulo. Nessa época, os investidores descobrem as frações médias que moram
nos bairros da zona leste e são também descobertos por elas. Uma engrenagem
para levar a esses grupos o consumo de artigos reservados até o momento apenas
aos moradores das zonas sul e oeste foi colocada em marcha. Ela consistiu na
construção de shoppings centers. clubes de espetáculos e, naturalmente,
edifícios de luxo. O "estilo zona leste” é inventado pela imprensa e pela
publicidade. espaço, como aponta Maurice Halbwachs (1950), é uma das condições
de permanência de um grupo social. A memória coletiva do grupo apóia-se sobre
os elementos aí presentes que lhe permitem atualizar o passado. A produção de
um enquadramento espacial mais apropriado para as classes médias da zona leste
nada mais é, assim, do que um dos elementos promotores da consolidação dos
“grupos médios emergentes” enquanto grupos novos, que trazem inscritas na sua
história as transformações por que passaram nas últimas décadas. Nesse processo
sublinha-se, ao mesmo tempo, a novidade da sua entrada nas posições dominantes
e o caráter relativamente dominado das posições que aí lhes são reservadas.
I
3. ENDEREÇO E VALOR DA PESSOA
Como mostra
Goffman (1963), um traço de identidade atribuído a uma pessoa ou a um grupo de
pessoas não se constitui num estigma, a não ser nas situações em que ele pode
atuar para diminuir ou desacreditar a pessoa. As referências ao endereço para
exprimir as propriedades sociais dos alunos e suas famílias, recorrentemente
notadas nas falas dos diretores, coordenadores, professores e alunos
entrevistados na pesquisa que deu origem a essa análise, constituem uma dessas
situações.
Nessas falas, os bairros da zona
leste não são jamais mencionados pelos seus nomes. Em se tratando ou não de
morador da região, as pessoas falam de zona leste. Na medida ' : que a zona
leste diz respeito a uma enorme região da cidade e abrange vários bairros, a j„
> maioria deles bastante pobres, essa prática de denominação dá lugar a uma
homogenei-.f ; zação por baixo. A
imagem da zona leste que resulta indica automaticamente uma posição social
inferior para os seus habitantes.
Diferentemente,
as referências a uma certa zona sul estão presentes exclusivamente no discurso
dos habitantes da zona leste. Aqueles que são apontados pelos moradores da zona
leste como habitantes da zona sul não se reconhecem como tais. No vocabulário dessas
pessoas, elas moram no Alto de Pinheiros e nos Jardins, entre outros. Essa estratégia
de nomeação lhes permite transcender a heterogeneidade social das zonas sul e oeste,
que também é grande, e identificar-se aos bairros que se tornaram os símbolos
da sofisticação em termos de endereço na cidade12.
O exame das práticas de nomeação colocadas a
serviço das estratégias de diferenciação social permite a análise de um vocabulário
propriamente paulistano para declarar as hierarquias sociais. Esse vocabulário
impregna as práticas de distinção operadas pelos alunos dos estabelecimentos
estudados, sobretudo no momento da constituição de suas redes de amigos e de um
mercado matrimonial13. E interfere também nas relações profissionais, segundo
indicam as entrevistas realizadas com ex-alunos moradores da região nas quais
aparecem testemunhos do difícil aprendizado do significado de Habitar na zona
leste para os jovens que disputam a entrada nos grupos sociais mais
intelectualizados.
Eu fui fazer um estágio na I— Tinha um cartaz
aqui... [no seu departamento, na faculdade] dizia que era uma firma de
automação. Você vê? É tudo o que a minha classe quer. Mas embaixo tinha o
endereço: Rua Juventus, número 28, Moó-ca. Aí todo mundo dizia, você é louco,
eu éque não vou trabalhar na Moóca. É porque esse pessoal mora na zona sul. [O
que é a zona sul aqui em São Paulo?] A zona sul é... o pessoal aqui [na
faculdade) mora nos Jardins, ou mora em Pinheiros, ou mora em Osasco, ou mora
no Butantã...[acho que eu preciso olhar no mapa...] A zona sul é a classe alta
e a zona leste a classe mais baixa. Então as pessoas olham... puta, meu, a zona
leste... precisa atravessar a cidade para chegar lá. E as pessoas não vão.
Quando eu liguei para a firma, o cartaz estava aqui há mais de um mês e eu fui
o primeiro a ligar. E o único. [...] Eu tive uma entrevista com a pessoa que é
meu chefe hoje [...] e ele achou que eu era superqualificado. Ele me contratou
na hora. No dia seguinte eu já estava trabalhando. (L., morador da zona leste,
estudante (sexo masculino) do Curso de Engenharia Mecatrônica da USP, ex-aluno
do Colégio Cristo Rei. Pai, economista e dono de loja de material de
construção; mãe, dona-de-casa. O escritório da firma fica a duzentos metros da
sua casa.)
E assim que se toma possível dizer que as
histórias familiares de mobilidade social ascendente e a subordinação relativa
das famílias na estrutura social da cidade são os elementos definidores da
posição em que se encontram os alunos do Colégio Cristo Rei. É apenas quando
confrontados com esses elementos que os fortes investimentos dos alunos nos
seus estudos adquirem toda a sua inteligibilidade.
4. O
ADESTRAMENTO DOS CORPOS E DOS ESPÍRITOS
Tudo se passa como se o sentido ascendente da
trajetória social das famílias, associado à sua posição dominada no espaço
social da cidade de São Paulo, fizesse com que os jovens desses grupos que
assumem a via escolar como a mais interessante para a sua inserção social sejam
aqueles que apresentam disposições especialmente favoráveis à submissão às
exigências desse colégio. Exigências cujo rigor eles são os primeiros a
valorizar.
Vim para cá pela fama do Cristo Rei... colégio
muito rígido, o melhor da zona leste e que colocava o pessoal na faculdade. Era
isso o que a gente escutava. Eu queria entrar numa boa faculdade. I...) Aqui
passei a estudar muito mais. As provas são mais difíceis, é preciso pensar
muito mais. (B., aluna da terceira série do Cristo Rei. Pai, médico
dermatologista, filho de chineses; mãe, farmacêutica/bioquímica. Aluna hoje do
curso de Engenharia Mecânica da Unicamp. Pais separados, B. foi criada pela
mãe.)
Fiz o
Coiégio São João até a 8- série. Aqui ainda não havia o primeiro grau. O meu
irmão mais velho veio para cá depois da oitava série. Era uma continuação
natural, lá não havia segundo grau. No ano em que eu ia começar o primeiro ano,
iniciaram o colegial lá. Mas eu confiava mais no ensino daqui. Não tinha muita
confiança no ensino de lá. Eu achava uma mamata. Aqui não. O l5 e 2° graus têm
que ser fortes, exigentes, para não se ter dificuldades depois com a faculdade.
(S., aluno da terceira série do Cristo Rei. Pai, assistente social, advogado,
corretor e construtor de imóveis, filho de mãe italiana; mãe, diploma de
advogada, mas atua como dona-de-casa, bisneta de italianos. Ambos nasceram no
interior e vieram para São Paulo quando tinham 20 anos para “ganhar a vida”.
Fizeram o curso superior juntos, depois de casados, quando os filhos eram
pequenos. Hoje S. é aluno do curso de Engenharia Civil na USP.)
Exercida sobre uma população motivada de
antemão, a ação pedagógica nesse colégio caracteriza-se como rígida mais pela
maneira como as diferentes atividades são organizadas do que propriamente pela
profundidade dos conteúdos trabalhados. Esses não escapam do programa básico
exigido pela Fuvest14.
O que faz a diferença é a proposta de
ministrar 4/5 de todo o programa do ensino médio nos dois primeiros anos,
dedicando o tempo que resta no último ano a uma revisão intensiva do que já foi
estudado. Existe apenas uma estratégia de avaliação desse conteúdo: as provas
mensais.
[O que faz o curso ser puxado?] Na minha
opinião, são as provas unificadas. Nós não damos provinhas, nós não damos nota
por trabalho. E uma única prova no mês, quer dizer, não uma única prova, são
duas provas todo bimestre por matéria, mas a nota que ele tirou tem que
refletir a realidade. Se foi mal, não tem provinha para aumentar a nota, muito
menos para baixar. Não damos nota para trabalhos e o aluno sabe disso. Então
ele tem que vir naquele dia para fazer aquela determina-: da prova e tirou,
tirou. (K., coordenador geral do ensino médio .)
As notas
finais são a média ponderada das notas alcançadas em cada bimestre,
atribuindo-se peso 2 às notas do primeiro semestre e peso 3 às notas do
segundo. As provas são iguais para todos os alunos de uma mesma série e são
objeto de uma encenação própria a transformá-las em momentos altamente temidos
pelos alunos.
G- Nossos alunos não fazem a prova na sala de
aula. Existe todo um sistema. Eies fazem as provas na quadra. [...] E coberto e
cabe, quantos alunos mais ou menos?
K.: - 500 alunos T.: - Quase 530, né?
G. : - Mas é um sistema assim, fantástico.
T.: - Onde cada um tem sua cadeira.
G.: - Eu fiquei impressionado quando eu
conheci pela primeira vez.
K.: - Eu... nós dividimos, é, nós dividimos
por setores onde, isso aí é sigiloso [risos], se bem que todos os alunos...
não, não, pode gravar. Todos os alunos sabem. Nós temos uma classificação onde
os melhores alunos fazem num determinado setor, na ordem, e os piores num
determinado setor. Então é uma filosofia do nosso diretor. Ele fala, bom, os
melhores não vão colar entre si e, se colar, um sabe tanto quanto o outro.
Entre os piores é a mesma coisa. Um olha para o outro e nem tentam colar porque
sabem que quem está lá é porque...
K.: - Mas dificilmente eles colam e nem damos
chance. Pode ser que tenha cola, já tivemos casos aí, mas assim, colar
acintosamente como fazem por aí, aqui não existe. Eles sabem que a prova é para
valer. É como se fosse um vestibular já, da Fuvest.
T.: - E. A idéia é essa.
R.: - Tem um horário estipulado, tem um
horário de término também estipulado, os que terminam não voltam...
K.: - Pode entregar antes... Então nós temos
todo um esquema que faz com que muitos alunos, principalmente do primeiro
colegial, fiquem temerosos, com medo e tal. Mas acredito que esse medo, essa
coisa toda... essa insegurança, no fundo, no fundo é falta de estudo. Estudo
diuturno, quer dizer, não adianta o aluno aqui querer estudar de véspera. Ele
vai mal nas provas. Acaba indo mal. Tem que [estudar] todos os dias para chegar
nessa época de prova e ele já estar preparado. Não adianta querer ficar sem
dormir como acontece...
(Equipe de coordenadores do Cristo Rei.)
Ao acelerar o ritmo dos estudos e impor um
sistema de avaliação que funciona em estreita analogia com o juízo final, o
colégio antecipa para as séries iniciais do curso médio o temor que os alunos
sentem com relação ao exame vestibular a que serão submetidos apenas no final
do terceiro ano.
O primeiro ano é considerado uma etapa
especialmente sensível para os alunos e também para os professores e
coordenadores. Isso é atribuído às diferenças entre a organização desse ensino
e daquele que os alunos acabam de deixar. Segundo os coordenadores, professores
e alunos entrevistados, o Cristo Rei passa subitamente a exigir uma dedicação
muito maior do que aquela exigida nos colégios de onde vêm a maioria dos
alunos16.
Esse período é vivido com bastante
ansiedade pelos alunos, que trabalham sob a ameaça constante e real de serem
reprovados. Normalmente, das oito turmas formadas por exatamente 42 alunos que
começam o primeiro ano, apenas quatro chegam ao terceiro17.
É nesse momento que os alunos devem
desenvolver as qualidades que supostamente os levarão a enfrentar com sucêsso o
restante do ensino médio e o vestibular. As exigências colocadas pela
instituição, sempre apresentadas em bloco, e tendo por referência a ameaça do fracasso
nos exames, são entendidas como necessárias em seu conjunto na construção dessa
competência escolar da qual os alunos se sentem despossuídos e que buscam a
todo custo. Reinterpretadas como condição de saluação, os alunos não têm como
negar-se a submeter-se a elas.
A isso corresponde um aumento do tempo e da
energia investidos nos estudos, como demonstra, por exemplo, o número
relativamente elevado de horas por semana que os alunos dizem dedicar aos
estudos fora do colégioI8.
As condições para que esse envolvimento dos
alunos possa ocorrer passa forçosamente por uma disponibilidade pessoal da
parte deles em acreditar na necessidade dessa modalidade de trabalho para o
sucesso nos exames. Por isso, o processo de seleção dos novos alunos, que acaba
por reunir o conjunto de alunos mais predisposto a sofrer a ação pedagógica
exercida pelo colégio, é objeto de uma cuidadosa preparação por parte da
direção e da coordenação, que chegam mesmo a declarar ser este um aspecto
fundamental do sucesso da ação pedagógica exercida por eles.
O controle da composição do conjunto dos
alunos do ensino médio dá-se essencialmente através do exame de admissão. Esse
exame constitui-se necessariamente num momento privilegiado para a
interiorização do sistema de valores do próprio colégio19. No Colégio Cristo
Rei, a concordância da parte do candidato em se submeter às exigências
disciplinares aí em vigor é o elemento de triagem, já que se acredita que a
adequação dos alunos a tais exigências é um requisito para a construção da
competência acadêmica. Uma série de procedimentos é empregada, então, para
identificar entre os candidatos aqueles jovens já predispostos a aceitar essa
exigência.
T.: - Nós temos alguns alunos, [...]
são as famílias que querem que eles estudem aqui.
R.: - Imposição.
T.: - Já houve anos em que a gente teve
alunos que não suportavam de jeito nenhum. Ele queria um outro tipo de escola,
oqueédireito dele. [,..]Então, quandoa gente percebe, a gente tenta ver o que é
melhor para esse aluno porque, como a gente já te disse, a gente tem salas
vazias e nós não vamos encher essas salas. [...]
T. -.-A gente está procurando aquele
jovem que realmente tenha um objetivo de lutar pelo melhor. A gente não está
tachando universidade a, b ou c, para ele entrar... Não. A gente quer formar um
aluno que aprenda a lutar pelo melhor, que tenha confiança. Porque esse
problema [...] de pré-requisito, a gente até tem alguns problemas em lidar com
isso porque a gente não está aqui para levantar pontos falhos em escolas que
eles já estudaram, né? A gente está aqui para resolver a situação que a gente
tem em mãos. Então, quando a gente faz esse questionariozinho, vamos chamar
assim, não é bem um questionário, não. É um papo que a gente abre. (Equipe de
coordenadores do Colégio Cristo Rei.)
5. FUROR
DISCIPLINAR
A preparação para o vestibular efetivada
pelo Cristo Rei é compreendida também como uma “preparação para a vida”, como
explicita o editorial do jornal do colégio, reproduzido abaixo.
A educação tem que visar uma
formação integral do homem, a qual reclama uma visão compreensiva e harmônica
de toda sua realidade. [...] (A aquisição do] conhecimento, o mais abrangente
possível, dessa realidade, é uma das tarefas principais da escola. [...] O
engenheiro, o advogado, o médico ou qualquer outro profissional, com o tempo,
esquece a maior parte dos conhecimentos adquiridos na escola. O que permanece é
o nível cultural, a postura perante a vida. Quando conversamos com alguém,
percebemos que tipo de escola freqüentou, a cultura adquirida, quais as áreas
mais carentes de sua personalidade. Por isso, não tem sentido discutir o que é
mais importante na escola: se preparar para a vida ou para o vestibular. A
escola que prepara para o vestibular está preparando para a vida, ao atingir a
área cognoscitiva da personalidade, a área da cultura, a postura perante a
vida. [...]
O vestibular
no Brasil tem por objetivo selecionar os candidatos melhor preparados para
ingressar na universidade. Essa preparação é uma garantia de um desempenho
melhor na carreira escolhida. Por outro lado, a concorrência e a competição
para conseguir a melhor faculdade para cursar a carreira escolhida é uma
amostra apenas da competição e concorrência do dia-a-dia na nossa sociedade.
Gostemos ou não, o princípio é este: ‘não adianta ser bom, você tem que estar
entre os melhores’. No mundo da economia, a própria globalização impõe a
concorrência e, se essa for leal, estimula uma sociedade mais justa. [...]
(Jornal do Cristo Rei, edição extra, 1997: 1.)
Mas, a vida para a qual o Cristo Rei procura
preparar seus alunos caracteriza-se, sobretudo, pela submissão ao status quo. O
trabalho pedagógico busca, assim, a adaptação dos alunos a uma sociedade cujos
princípios de organização e hierarquização são tomados como dados da realidade.
Trata-se de desenvolver nos alunos as disposições mais adequadas às posições de
gerência que serão chamados a ocupar. A ênfase do
trabalho pedagógico dirige-se, assim, para o desenvolvimento da obediência a
normas disciplinares rígidas e na imposição de hábitos de trabalho definidos
minuciosamente. Também faz sentido, nesse projeto, regular aspectos íntimos da
vida dos alunos como a maneira de se vestir, o uso de adereços e o comprimento
do cabelo para os rapazes e o uso de maquilagem para as moças. O trabalho
pedagógico é preenchido, assim, por um conteúdo propriamente civilizatório
(Elias, 1973), a partir da submissão às normas de comportamento dominantes.
Mas, o conteúdo civilizatório do trabalho
pedagógico desenvolvido no Cristo Rei abrange também o trato com os saberes
escolares. Com a missão declarada de preparar os seus alunos para os cursos
mais prestigiosos da USP, a montagem do currículo e a organização do tempo
adquirem contornos específicos no colégio. Entendendo “cursos mais prestigiosos
da USP” como “carreiras da Engenharia e da Medicina”, montou-se um currículo
que dá lugar de destaque às disciplinas das áreas exatas e biológicas, em
prejuízo das humanas. História e Geografia, por exemplo, só aparecem na segunda
série. Não há curso de Filosofia ou qualquer disciplina optativa dessa área. Os
cursos extras, entendidos como “reforço”, concernem apenas à área de línguas:
inglês e espanhol. Mais recentemente começou a ser implantado um curso de
informática nos mesmos moldes. A carga horária de português, por sua vez, foi
aumentando progressivamente ao longo dos últimos anos, acompanhando nitidamente
a valorização dessa disciplina nos vestibulares.
K.:-
A filosofia é que o aluno sendo bom em exatas também é bom em humanas. Então
História e Geografia, Deus me livre de dizer que não são importantes, [mas]
segundo a visão do nosso diretor, é uma matéria assim mais de leitura mesmo,
que j depende mais do aluno. Se ele tem mais vontade, então ele lê todos os
livros, essa ; coisa toda. Seria uma espécie de autodidata. Ao passo que em
Matemática, Química, Física, a presença do professor é imprescindível.
T.: - Pelo
menos a colocação que o [diretor] sempre dá é aquela de se trabalhar bastante
justamente essas matérias de exatas, porque eles vêm muito mal preparados.
Então trabalhar bastante em cima disso, preparar bem, o aluno no primeiro ano.
E a partir do segundo trabalhar o currículo normal, vamos dizer assim. Vamos
taxar o primeiro ano de um pouquinho diferente, a partir do segundo e terceiro
ano aí se trabalharia aquele volume. E ele acha também que essas matérias no
primeiro ano deixariam uma carga muito grande no... pra esse aluno que vem pra
cá, pra uma realidade muito diferente da que ele estava acostumado. (Equipe de
coordenadores do Cristo Rei.)
Imposta
sobre uma população de alunos relativamente despreparada academicamente, a
concentração dos esforços nas disciplinas das áreas exatas acaba por produzir
um trunfo valioso. A competência nessas áreas é, como se sabe, um ponto de
estrangulamento no sistema de ensino, visto como um todo. Associada a um estilo
de exame vestibular no qual o peso dos conteúdos é ainda bastante importante, ela
acaba por garantir aos alunos do Cristo Rei uma vantagem significativa em
relação aos seus colegas vindos de outras escolas. E isso o que impulsiona as
altas taxas de aprovação dos seus alunos no vestibular da Fuvest.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que leva um
jovem de quinze anos a submeter-se de boa vontade a condições de trabalho
escolar altamente rígidas e a controles minuciosos dos aspectos conside-
rados hoje
como os mais pessoais da sua existência? Essa é a pergunta que orientou este
capítulo.
A situação particular dos alunos do Cristo Rei
é tanto mais intrigante quando se sabe das mudanças profundas nos padrões de
imposição da autoridade que governam as relações entre pais e filhos,
professores e alunos e, de uma maneira mais geral, gerações mais velhas e mais
novas ocorridas nas últimas décadas. O que buscam esses alunos? O que pensam
estar adquirindo com a sua dedicação às exigências colocadas pela direção do
colégio onde estudam?
Esta pesquisa procurou responder a esta
pergunta sem se deter exclusivamente na discussão das representações dos
próprios alunos sobre os investimentos que realizam. Não se trata, é claro, de
duvidar quando eles dizem que se sujeitam a isso porque entendem ser esse o
caminho para conseguir a aprovação num dos vestibulares mais valorizados do
país e ampliar suas chances de ingresso numa carreira social e economicamente
recompensadora. Esse dado é, ao contrário, tomado aqui como um elemento central
do sistema de crenças que orienta as práticas desses jovens.
Mas a discussão das suas representações,
por si só, não permite investigar as condições de possibilidade da ocorrência
dessas crenças. A questão não é tanto entender por que fazem determinadas
coisas, mas por que estão em condições de fazê-las. Assim, por exemplo, não é
difícil imaginar que grande parte dos adolescentes que freqüentam as escolas
secundárias brasileiras dirá, se interrogada, que acredita ser necessária uma
grande dedicação aos estudos para serem aprovados num dos vestibulares
oferecidos por universidades prestigiosas. Isso não explica, porém, por que
apenas alguns dentre eles dispõem-se, de fato, a realizar os sacrifícios
necessários quando uma escolarização desse tipo lhe é acessível.
Ao mostrar o pertencimento desses jovens a
grupos sociais em ascensão, mas ocupando ainda posições dominadas na estrutura
social da cidade, esta pesquisa apresenta uma das chaves para se compreender as
condições que tornam possível a confiança que os adolescentes depositam no
veredicto e nas diretrizes apresentadas por seus professores. Confiança essa
que é o ponto de partida para o estabelecimento de uma relação de comunicação
pedagógica eficaz.
Mais especificamente, o estudo mostra a
pertinência de se abordar as disposições que os alunos apresentam para com a
escola como tributárias da história de toda uma família e da relação que o
aluno mantém com essa história. Ao final, é possível pensar que aí está a pista
para se compreender as condições que tomam possível a alguns, mas não a todos,
utilizar determinados recursos materiais e simbólicos como capital cultural.
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Famílias de camadas médias e escolarização
superior dos filhos O estudante-trabalhador
Geraldo
Romanelli - Professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto, da USP.
Felicidade,
passei no vestibular, mas a faculdade, ela é particu -lar, particular, ela é
particular.... (Martinho da Vila)1.
A demanda por educação no país está
relacionada a mudanças ocorridas em diferentes esferas da vida nacional, em
particular, àquelas que conduziram à ampliação do sistema de ensino e à
diversificação do sistema produtivo. Essa procura, no entanto, foi acompanhada
pela redução do número de vagas no mercado formal de trabalho e pelo aumento da
desigualdade social. Se o acesso à escola é concretizado por sujeitos
específicos, o interesse em freqüentá-la é, em larga medida, organizado e
planejado pela família, que visa proporcionar determinada escolaridade aos
filhos e que, inclusive, pode ser beneficiada, simbólica e/ou materialmente,
pelo êxito escolar da prole. Certamente, a influência da família na
escolarização dos filhos depende de vários fatores, mas deve-se levar em conta
que essa influência pode ser mais intensa em relação à freqüência ao ensino
fundamental, reduzindo-se quando se trata do ensino médio e tomando-se menos
atuante ainda quando se refere ao ingresso no curso superior.
De qualquer modo, a relação da família com a
escola é mediada por determinantes macroestruturais, fruto das pressões que o
processo de modernização do país impõe ao sistema educacional e ao mercado de
trabalho, e também por fatores de cunho microes-trutural, associados à
organização da unidade doméstica e ao significado por ela atribuído à
escolarização dos filhos.
Este trabalho procura examinar e discutir
algumas dessas questões, objetivando tornar a complexidade da relação família/escola
um pouco mais inteligível2 e contribuir para se entender o modo como, em
famílias das camadas médias, os filhos mobilizam-se para a obtenção de um
diploma de curso superior.
Para tanto,
é necessário considerar que o sistema produtivo passa a exigir, cada vez mais,
determinado grau de escolaridade, mesmo para o trabalhador que desempenha
atividades pouco qualificadas (Spindel, 1985). Essa pressão do mercado de
trabalho também está associada a características específicas do processo de
reprodução do capital, que acarreta alterações significativas nas formas de
produção, que, por sua vez, incorporam novos aparatos tecnológicos. Mas, ao
mesmo tempo que a exigência por maior grau de escolarização incentiva a procura
pela educação formal, as mudanças no mercado de trabalho reduzem o número de
empregos, tomando a competição ocupacional mais acirrada.
Nessas
circunstâncias, o acesso aos vários níveis do sistema educacional depende da
origem socioeconômica dos estudantes (Paul, 1989; Schwartzman, 1992), o que
coloca em pauta as condições econômicas e culturais das famílias.
2.Segundo Lévi-Strauss (1970), o conhecimento
científico não consiste na substituição da complexidade pela simplicidade, mas
na transformação de uma complexidade pouco inteligível em outra que é mais
compreensível.
Diversas pesquisas mostram que as famílias
das camadas médias têm um grande empenho para que os filhos obtenham um diploma
de curso superior (Almeida, Nogueira, Prado, nesta coletânea; Foracchi, 1965;
Nogueira, 1995, 1998; Romanelli, 1986, 1995). No entanto, as camadas médias não
constituem um universo social homogêneo, havendo segmentos diversos em seu
interior, seja em função de condições socioe-conômicas, seja devido ao capital
cultural de que dispõem. Por isso, os integrantes de cada segmento dessas
camadas desenvolvem práticas específicas, objetivando o sucesso escolar dos
filhos.
Daí ser
necessário analisar a questão a partir de uma perspectiva macroestrutural,
iniciando-se por uma apresentação, ainda que sintética, das transformações
ocorridas no sistema de ensino superior, para proceder-se à avaliação do modo
como pais e filhos de um segmento dessas camadas, que constitui o objeto deste
trabalho, representam a escolarização superior.
1. O
SISTEMA DE ENSINO SUPERIOR E O MERCADO DE TRABALHO
O crescimento econômico dos anos 50 e 60
produz a ampliação dos estratos médios urbanos. Inicialmente, a demanda por
educação das famílias desses setores volta-se para a expansão do ensino médio
da rede pública. Embora a satisfação dessa procura tenha ficado restrita a
segmentos limitados da população, há um acréscimo expressivo no número de
alunos que concluem o ensino médio e que constituem clientela para o ensino
superior. Paralelamente a esse processo, o aumento de empresas privadas do
setor terciário e o desenvolvimento concomitante de organizações estatais gera
novo mercado de trabalho e amplia a quantidade de empregos, que exigem novas
formas de qualificação profissional.
Com a expansão acelerada das Instituições de
Ensino Superior (JES), iniciada nos anos 60, cresce o número de matrículas, que
passam de 107.509 em 1962 para 1.868.529 em 1996. O sistema de ensino superior
conta com 922 instituições, das quais 136 são universidades, 643 são
estabelecimentos isolados e 143 são federações e faculdades integradas (Dantas,
1998). Esse crescimento ocorre de modo desigual no país, pois, em 1996, a
região sudeste abrigava 62,4% de estabelecimentos, a sul 13,2%, a nordeste
10,5%, a centro-oeste 10,2% e a norte apenas 3,7%. A distribuição regional
desequilibrada é acompanhada por uma predominância de IES privadas em todas as
regiões do país, que correspondem a 77% do total de estabelecimentos de ensino
superior. Entre 1980 e 1996, ocorre um aumento das universidades estaduais, que
passam de nove para 27, e das particulares, que, de 20, saltam para 64 (Dantas,
1998: 63).
Os estabelecimentos de ensino superior
privado são presididos pelas leis de mercado e, em sua maioria, oferecem cursos
que não exigem investimentos de vulto para a implantação, e a qualidade da
formação dos alunos fica subordinada a critérios de rentabilidade financeira.
Também em sua maioria, o sistema empresarial de ensino oferece poucas
possibilidades para a realização de atividades de pesquisa, o que inviabiliza a
concretização do modelo de universidade previsto na legislação de 1968 e
reafirmado no artigo 207 da Constituição de 1988, que estabelece a
indissolubilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Desigualdade assemelhada à distribuição de
estabelecimentos por regiões do país e pelos setores público e privado
encontra-se na alocação dos alunos por IES. Nas instituições públicas, a
clientela é predominantemente originária da classe dominante e de segmentos das
camadas médias. Por isso, a universidade brasileira é considerada mesocráti-ca
(Braga, 1989), já que é constituída por alunos originários, sobretudo, de
diferentes segmentos das camadas médias. Essa predominância, no entanto, não é
recente. Em estudo pioneiro sobre estudantes da Universidade de São Paulo
(USP), realizado em 1963, Foracchi (1965) analisa a relação dos alunos com a
família e com o mercado de trabalho e mostra que as camadas superiores,
tradicionais freqüentadoras da universidade, são parcialmente substituídas
pelos estratos médios em ascensão.
Os dados obtidos indicam que, em 1963, 71%
dos universitários provinham dos estratos médios e que 76% deles são a primeira
geração a obter formação superior (Foracchi, 1965). Embora a pesquisa tenha
sido feita em uma única instituição pública de ensino superior em que o
ingresso era restrito a uma parcela reduzida da população, pois o número de
vagas na USP era, e é, limitado, os dados testemunham um processo de
transformação na clientela universitária.
E essa clientela proveniente das camadas
médias e da classe dominante que, segundo Foracchi, preenche 70% dos cursos
mais seletos que exigem melhor formação no ensino fundamental e médio para que
o aluno possa concorrer, com vantagens, ao vestibular das carreiras mais prestigiosas.
Da clientela que freqüenta as universidades
gratuitas e de maior reputação não fazem parte, a não ser como exceção,
estudantes de famílias da classe operária. No conjunto da população brasileira,
apenas 9% de jovens na faixa etária de 20 a 24 anos chegam à universidade. Esse
percentual é bastante baixo, quando comparado com a proporção de jovens da
mesma idade que cursam universidade não só nos países mais desenvolvidos, mas
também na América Latina, como ocorre na Argentina, no Chile e no Uruguai
(Dantas, 1998: 68).
Além disso, um dos fatos mais significativos
do redimensionamento das universidades é o aumento da participação feminina na
clientela dos cursos superiores. Esse aumento deve ser relacionado ao conjunto
de transformações ocorridas na sociedade brasileira, que abriram o mercado de
trabalho para as mulheres e também às mudanças que revestem as representações
sobre o sexo feminino.
O aumento das matrículas nos cursos
noturnos permite avaliar outra faceta importante das transformações no curso
superior, como a presença de um alunado mais velho, já incorporado ao mercado
de trabalho, para quem a qualificação profissional significa a oportunidade de
avanço na hierarquia das empresas onde trabalha, ou a possibilidade de vir a
procurar ocupação melhor de acordo com a nova habilitação. Sem dúvida,
atualmente a universidade abriga uma clientela socialmente diversificada, mas
essa mudança ocorre às custas da massificação do ensino, com uma maioria de
estudantes que precisa trabalhar para estudar e que são, trabalhadores
assalariados que eventualmente estudam (Braga, 1989: 6).
Na realidade, esses estudantes são vítimas
da estrutura dicotômica de funcionamento do sistema educacional, fundada em
dois circuitos. Num deles, o circuito virtuoso, o estudante freqüenta o ensino
fundamental e médio em escolas particulares e universidade pública; no circuito
vicioso, o aluno percorre trajetória inversa (Souza, 1990/1991: 27). Esses
percursos estão associados à situação social e financeira da família do
estudante e condicionam tanto o ingresso na universidade quanto o futuro
profissional do aluno.
O número de matrículas no sistema de ensino
superior continua a crescer em termos absolutos, mas a intensidade da expansão
registrada na década de 60 foi substituída por relativa estagnação na década de
80, com aumento de 16% de ingressantes, que, no período de 1990 a 1993, cai
para 3,5% (Dantas, 1998: 67).
Se há crise no sistema universitário, que
exige uma nova política educacional, nem por isso ele deixa de ser considerado
como um valioso investimento para os jovens. Para uma parcela cada vez mais
expressiva de estudantes, o que importa não é tanto a qualificação adquirida na
universidade, mas a posse de um título que capacite formalmente o sujeito a
concorrer no mercado de trabalho.
2. FAMÍLIAS
DE CAMADAS MÉDIAS E A ESCOLARIZAÇÃO DOS FILHOS
Para se apreender como famílias das camadas
médias pensam a escolarização dos filhos, é necessário examinar a relação
família/escola.
De modo geral, a família é unidade de
reprodução social (Durham, 1983; Bourdieu, 1996; Singly, 1993) e, como tal, tem
um papel determinante na manutenção da ordem social, na reprodução, não apenas
biológica, mas social, isto é, na reprodução da estrutura do espaço social e
das relações sociais (Bourdieu, 1996: 131).
A reprodução social configura-se como
processo de transmissão da herança familiar para os filhos, mediante difusão de
diversos tipos de capital - simbólico, econômico, cultural, social, escolar -,
processo por meio do qual se estabelecem vínculos entre gerações. Nesse
sentido,
[...] a família permanece um dos
lugares de acumulação, de conservação e de reprodução de diferentes tipos de
capital (Bourdieu, 1996: 177).
Dentre os tipos de capital, o simbólico tem
no nome de família seu elemento básico (Bourdieu, 1996), e pode-se associá-lo
ao processo de nominação e de identificação pública da família. Desse modo,
todos os possuidores do mesmo nome de família são incluídos em uma unidade
coletiva, que se espraia além do âmbito da família, incorporando o conjunto de
parentes portadores do mesmo sobrenome. Outros tipos de capital são: o
econômico, constituído pelo patrimônio da família; o social, formado pela rede
de relações estáveis com pessoas de prestígio; o cultural, incorporado mediante
inculcação e assimilação de disposições duráveis; e o escolar,
institucionalizado em formas de saberes escolares e objetivado nos títulos
outorgados pela escola (Bourdieu, 1998A, 1998B).
O capital econômico não é o patrimônio mais
importante transmitido pela família; atualmente, o capital escolar e o
dominante (Singly, 1993), o que explica o investimento das famílias na
escolarização dos filhos. Certamente o valor atribuído a esse tipo de capital reporta-se
ao fato de que ele qualifica o trabalhador para o mercado de trabalho. Cabe
observar que, no presente, o capital escolar está sujeito à obsolescência
precoce, em função das mudanças nos postos de trabalho, e precisa ser
constantemente renovado, o que cria novos nichos para o sistema de ensino -
sobretudo para o particular - oferecer mercadorias educacionais para reciclagem
profissional.
A reprodução
social da família não envolve apenas a transmissão de diferentes tipos de
capital, mas inclui ainda auxílio material que os pais dão aos filhos para
ajudá-los, de forma direta ou indireta, e que hoje se prolonga com o aumento da
escolaridade (Sega-len, 1999). Tal auxílio inclui apoio material e financeiro e
troca de bens e serviços (Sega-len & Zonabend, 1999).
O fato de se considerar a família como
unidade de reprodução social não significa tomá-la como instituição encarregada
da mera reposição de estruturas estruturadas, mas enquanto grupo de convivência
que pratica estratégias específicas que se referem a estruturas estruturantes
(Bourdieu, 1996), que não repõem apenas o instituído. O caráter estruturante da
família emerge na tomada de decisões, quando ela se abre para inovações
necessárias, a fim de enfrentar novas dificuldades. Aqui, é necessário incluir
o conceito de estratégia, que não é ação inconsciente, tampouco fruto de
cálculo racional e consciente, mas envolve invenção permanente, indispensável
para se adaptar a situações indefinidamente variáveis, jamais perfeitamente
idênticas (Bourdieu, 1987: 79).
Dentre as estratégias de reprodução
encontram-se as escolares, que se referem ao investimento feito pelos pais para
encaminhar os filhos para escolas e cursos adequados à manutenção e ampliação
da posição social da família (Singly, 1993). Mas, como adverte Singly (1993),
as estratégias não têm o condão de produzir efeitos imediatos e, sobretudo,
positivos. Nesse sentido, é importante avaliar as condições de transmissão do
capital cultural e escolar da unidade doméstica, já que esta nem sempre
consegue construir os dispositivos familiares que possibilitariam
“transmitir" alguns de seus conhecimentos ou algumas de suas disposições
escolarmente rentáveis, de maneira regular, contínua, sistemática. É por essa
razão que, com capital cultural equivalente, dois contextos familiares podem
produzir situações escolares muito diferentes... (Lahire, 1997: 338).
Lahire mostra ainda que a explicação do
sucesso ou do fracasso escolares não deve ser imputada a um fator isolado ou
mesmo a determinada forma de investimento familiar, tomada como modelo. Antes,
explicações possíveis são encontradas no modo como, no seio de uma configuração
social específica, os indivíduos vivem em relação de interdependência e
adquirem diversos tipos de capitais. O conceito de configuração social, central
na reflexão de Lahire (1997: 39-40), consiste no conjunto dos elos que
constituem uma “parte” (mais ou menos grande) de realidade social concebida
como uma rede de relações de interdependência humana.
No
entanto, se a família age como sujeito coletivo (Bourdieu, 1996), não se pode
desconsiderar que, enquanto grupo, a unidade doméstica é constituída por
pessoas que são, igualmente, sujeitos individuais. Nessa condição, estes podem
voltar-se inúrrferas vezes contra as determinações de cunho coletivo,
escolhidas pelos pais. Assim, em determinadas circunstâncias, as forças de
fusão, que convergem para ordenar o que é considerado de interesse coletivo,
superam as de fissão, que são geradas e postas em ação por sujeitos individualizados
(Bourdieu, 1996). Desse modo, é possível postular que as forças de fusão
configuram-se como fundamento do familismo, que suplanta os interesses
particulares de indivíduos. Inversamente, as forças de fissão são extremamente
atuantes e poderosas, já que remetem à luta pela autonomia de sujeitos
individuais que se contrapõem | à família como sujeito coletivo. Quando essas
forças predominam, temos a emergência | do individualismo no interior da
família.
De modo
geral, familismo e individualismo não se excluem, mas convivem de modo tenso e
conflitante na cena doméstica. Assim, pode-se argumentar que a ação dos pais
não é soberana e encontra seu limite na reação dos filhos ’ às tentativas de
controle e imposição dos genitores.
A problemática da reprodução social e da
transmissão cultural coloca em pauta não apenas a família, mas a instituição
escolar, outra agência fundamental nesse processo. Porém, é necessário
estabelecer a especificidade de cada uma dessas instituições. Como afirma Bourdieu
(1996), o capital simbólico e o social só podem se reproduzir pela família. Já
a escola é difusora do capital escolar, que contém saber genérico e também
específico, e que, em princípio, capacita seu portador para o mercado de
trabalho. Cabe aqui uma observação: embora a escola não seja transmissora de
capital social, ela constitui local importante para os alunos construírem uma
rede de relações que pode ser extremam ente importante na vida profissional,
complementando o capital social da família (Romanelli, 1995).
Entre as duas instituições, há ainda outra
distinção, referida ao modo como se dá a transmissão de informações. Na
família, a difusão de diferentes formas de capital ocorre no interior de um
conjunto de formas de sociabilidade eminentemente personalizadas e impregnadas
de afetos, tenham eles uma dimensão positiva ou negativa, ou, o que é mais
comum, uma combinação ambígua desses aspectos. De fato, os filhos têm um valor
afetivo para com os pais (Salem, 1980), que, certamente, é variável em função
da ordem de nascimento, do gênero, das particularidades e idiossincrasias dos
envolvidos, da posição no ciclo do grupo doméstico, que se refere à idade, à
experiência adquirida, à maturidade, à escolaridade.
Desse modo, como Bourdieu (1996) esclarece,
a economia doméstica é regida pela lógica do amor, já que a troca entre
gerações é transfigurada pela piedade filial, pelo amor, assim como por
empréstimos monetários que os país concedem aos filhos, sem esperar
retribuição. Essa dimensão da afetividade e de sua importância na transmissão e
incorporação do capital cultural e escolar também está presente nas análises de
Rochex (1995), de Lahire (1997), de Segalen & Zonabend (1999).
O estudo de Lahire (1997) trata das
possibilidades de sucesso escolar de crianças pertencentes a famílias dos meios
populares de Lyon. Embora as relações socioafetivas não assumam papel relevante
na pesquisa, ainda assim Lahire aponta, mesmo que tangencialmente e em
situações específicas, a importância desses vínculos entres pais e filhos para
o bom desempenho escolar destes:
O apoio moral, afetivo, simbólico
se mostra tanto mais importante quanto sejam pequenos os investimentos
familiares (por exemplo, o caso dos pais analfabetos). Ele possibilita à criança
sentir-se investida de uma importância exatamente por aqueles de quem ela está
em via de separar-se (Lahire, 1997: 172).
Já Segalen & Zonabend (1999) colocam a
importância da troca entre parentes, o que cria uma sociabilidade familiar,
caracterizada pelo encontro entre os componentes da família, favorecendo a
ajuda que os mais velhos dão às gerações mais novas.
De todo modo, a afetividade transparece na
relação dialética entre objetividade e subjetividade, apontada por Rochex
(1995), a partir da análise das trajetórias escolares de adolescentes da
periferia de Paris. Esse autor traz uma contribuição que articula fatores
sociais e subjetivos, expressa no que denominou tríplice autorização. Esse
fenômeno assenta-se na negociação entre pais e filhos em torno de hábitos
culturais distintos e conflitantes, incluindo-se a maneira como cada um deles
avalia a escola. Esse fato manifesta-se quando os filhos autorizam-se, “sem
grandes dificuldades subjetivas” (Rochex, 1995: 260), a ser diferentes dos pais,
aceitando-os como eles são, embora não reproduzam suas histórias de vida. Os
pais, por sua vez, de modo simbólico, igualmente autorizam os filhos a
concretizarem suas escolhas. Esses últimos, em retomo, reconhecem a
legitimidade da história dos genitores e de suas práticas.
Essa negociação coloca pais e filhos diante
da alteridade, que pode resultar de experiências como a imigração, como é o
caso de adolescentes estudados por Rochex, ou de mudança no capital cultural de
duas gerações. A solução para os impasses gerados pela alteridade encontra-se
na aceitação mútua e respeitosa dos anseios do outro:
E o reconhecimento, de cada um
- pais e filhos de que a história do outro é legitima, sem que seja a sua, que
toma possível este fenômeno de tríplice autorização e permite que, por meio dos
filhos, a história da família prossiga sem se repetir, e que isto ocorra sem
práticas nem conflitos graves e insuperáveis (Rochex, 1995: 261).
Tal modalidade de negociação intergeracional -
que nem sempre ocorre de modo harmonioso - constitui uma poderosa força
subjetiva de mobilização escolar, já que significa autorização parental e do
filho pata que esse último possa ir além das conquistas escolares dos pais e
escolher um modo de vida próprio, sem desqualificar o dos genitores, conjugando
mudança e permanência.
A partir da tríplice autorização, jovens podem
deixara família (Rochex, 1995: 260) sem renegá-la e sem que o êxito na escola
seja apreendido como oposição à história dos pais. Mais importante ainda é o
fato de que o processo de emancipação dos jovens depende da apropriação da
história e dos projetos familiais, que constituem marcos importantes para
construção de sua identidade. Esse processo de conquista de autonomia e de
emancipação, em vez de desencadear a ruptura com a família de origem, permite
efetuar a reprodução social em outros moldes,- incorporando alternativas
inovadoras para organizar projetos de escolaridade e de mobilidade social.
Nessas circunstâncias, é como grupo efetivo
de convivência, permeado por relações afetivas, que se pode examinar como, em
segmentos específicos das camadas médias caracterizados pela posse de reduzido
capital econômico, cultural e escolar, pais e filhos mobilizam determinadas
estratégias para que estes se tomem estudantes universitários. Tomando-se como
referência os trabalhos de Foracchi (1965) e de Spósito (1989), os estudantes,
universitários ou não, são divididos em três categorias em função de sua inserção
no sistema escolar, que pode ocorrer paralelamente a sua incorporação no
mercado , de trabalho. Assim, o estudante totalmente mantido pela família, sem
participação no j mercado de trabalho, podendo dedicar-se exclusivamente ao
estudo, é classificado como es tudanteem tempo integral. Quando o estudante
trabalha, mas continua a ser parcialmente mantido pelos pais, mesmo que o
auxílio familiar limite-se a fornecer moradia e alimentação, é denominado
estudante-trabalhador. Finalmente, quando a família não tem recursos
financeiros para arcar com a manutenção, total ou parcial do filho, ele é
classificado como trabalhadorestudante.
Para o
universitário incluído nas duas últimas categorias, o curso superior representa
um investimento de vulto, pela necessidade de conciliar trabalho e estudo, pelo
pouco tempo livre que reduz as oportunidades de lazer e de repouso, além do
que, em muitos casos, deve arcar com o pagamento do curso.
Não
obstante, esse investimento é considerado compensador, pois qualifica a força de
trabalho, possibilitando ao portador competir por empregos melhor remunerados,
j- ] Ainda mais, para muitos jovens - e também para adultos já
profissionalmente integrados em determinadas empresas - o diploma de curso
superior é necessário para ascenderem na organização em que trabalham, mesmo
quando o capital escolar não tem relação direta com as tarefas que devem
desempenhar.
Ora, é justamente o aumento do sistema de
ensino superior privado, que, ampliando o número de vagas sobretudo nos cursos
noturnos, cria oportunidade para uma clientela proveniente de famílias de
segmentos das camadas médias com parcos recursos em termos de capital
econômico, cultural e escolar, ingressar no terceiro grau.
3. O
ESTUDANTE-TRABALHADOR E SUA FAMÍLIA
Para se proceder à reflexão sobre a
relação família/escola, apresentam-se dados resultantes de pesquisa realizada
com estudantes de uma instituição particular de ensino superior de Ribeirão
Preto no estado de São Paulo. A cidade, com cerca de 480 mil habitantes, tem
cinco estabelecimentos privados de ensino superior e seis unidades no campus de
uma instituição pública - a Universidade de São Paulo (USP) - para atender à
população local e inúmeros estudantes provenientes de outros municípios do
estado e, em menor grau, do país. Dessa clientela, deve-se considerar um grupo
que fixa residência na cidade e outro que se desloca diariamente para
freqüentar os cursos noturnos das escolas privadas e os três oferecidos pela
Faculdade de Economia e Administração da USP. Este último grupo desloca-se de
suas cidades para Ribeirão Preto, às vezes percorrendo distâncias superiores a
80 quilômetros, em transporte próprio ou coletivo, em veículos especialmente
fretados para isso3. A ampla movimentação de estudantes em direção a Ribeirão
Preto, pólo aglutinador de serviços nas áreas de educação, saúde e comércio da
região nordeste do estado de São Paulo, deve ser confrontada com o fluxo
inverso de
universitários
que deixam a cidade à noite em busca de cursos em escolas privadas ou públicas
de outras cidades da região.
A amostra selecionada para a pesquisa é
constituída de dez estudantes-trabalhado-res solteiros4, do curso noturno de um
estabelecimento particular de ensino superior indicado pelo nome fictício de
Faculdades Alvorada, sendo cinco de cada sexo, entre 18 e 25 anos, distribuídos
pelos seguintes cursos: quatro de Ciências Biológicas (dois do sexo feminino e
dois do sexo masculino), três de Letras (dois do sexo feminino e um do sexo
masculino) e três de Matemática (um do sexo feminino e dois do sexo masculino).
Sete desses universitários moram em Ribeirão Preto e três residem em Brodósqui,
Batatais e Morro Agudo, cidades que distam, no mínimo, 30 e, no máximo, 80
quilômetros da localidade onde estudam.
Examinando-se os dados referentes à idade
dos genitores dos estudantes, nota-se que os pais encontram-se na faixa etária
entre 42 e 59 anos, enquanto as mães têm entre 42 e 61 anos. Dos pais, um tem
curso superior, outro concluiu o ensino médio e oito freqüentaram o ensino
fundamental sem concluí-lo. Entre as mães, duas completaram o ensino médio e
oito freqüentaram, mas não terminaram, o ensino fundamental. Os indicadores
referentes ao grau de escolaridade de pais e mães mostram que ele é bastante
similar, revelando a posse de um capital escolar relativamente homogêneo.
Todos os pais exercem atividades não-manuais
no setor terciário, havendo um gerente de loja, um administrador comercial,
três proprietários de pequenos empreendimentos -um lava-rápido, uma fábrica de
móveis e uma loja - quatro escriturários do setor privado e um policial militar
que também é proprietário de duas grandes lojas. Das mães, oito são
do-nas-de-casa, uma é professora do ensino fundamental e outra é costureira.
Em oito famílias, o pai é o único provedor
da renda familiar, já que as esposas não têm rendimentos, e nenhum dos filhos,
embora tenham rendimento, contribui para o orçamento doméstico. Em quatro
famílias, o rendimento dos pais atinge cinco salários mínimos, em outras quatro
situa-se entre cinco e dez, em uma está entre 10 e 15, havendo uma única - a do
policial que também é proprietário5 - que ultrapassa 15 salários mínimos. Tendo
como referência a escolaridade e o rendimento dos pais, essas famílias podem
ser classificadas como portadoras de reduzido capital escolar e econômico, com
exceção de F-A.
Todos os estudantes começaram a trabalhar
bastante cedo, entre 13 e 19 anos, em atividades do terciário, como serviços
gerais de escritório (cinco), balconista (um), vendedor (um), professora do
ensino fundamental (duas), professor e proprietário de escola de inglês (um).
As características sociais desses
estudantes e de suas famílias são bastante assemelhadas às dos alunos de uma
faculdade particular de São Paulo, estudada por Spósito (1989). Essa autora
mostra que a escola superior noturna é freqüentada por alunos que são
assalariados do terciário, trabalhando principalmente como auxiliar de
escritório, bancário, professor, vendedor, balconista e em outras atividades
similares do setor priva-
do ou do setor
público. A clientela e formada por unis maioria dc Gstudíintcs na faixa etá-ria
de 18 a 25 anos - 71,28% da amostra predominantemente solteiros e o grau de
escolaridade da maioria dos pais é o antigo primeiro grau incompleto (Spósito,
1989).
Os relatos dos universitários das
Faculdades Alvorada indicam que o início precoce no mercado de trabalho não
resulta de pressão parental explícita para contribuírem para as despesas
domésticas. Porém, os pais incentivam os filhos a se tomarem trabalhadores, o
que ocorre após a conclusão do ensino fundamental, quando eles têm cerca de 14
ou 15 anos, alegando que isso contribui para a maturidade. É como se os pais
deixassem implícito que, a partir desse momento, não são mais responsáveis pela
satisfação de todas as necessidades dos filhos, continuando a assegurar-lhes
moradia, alimentação e, às vezes, indumentária, mas não provendo os demais
gastos, sobretudo aqueles com lazer. Os filhos, por sua vez, incorporam essa
orientação paterna. As falas abaixo expressam essa postura parental e filial:
Eles [pais] incentivaram,
porque, segundo meu pai e minha mãe, eles pensam o seguinte: que se você tem
vontade de trabalhar, vai trabalhar, entendeu? Porque se você, segundo eles,
desanima a pessoa de trabalhar, de repente ela vai querer sempre ficar na
boa-vida. Então, quer trabalhar, vai trabalhar, vai ver como é o negócio.
(Marcos, segundo ano do curso de Matemática, começou a trabalhar com 14 anos.)
Comecei a trabalhar com 15
anos. Opção própria, uma independência econômica, né, não teve nenhum aspecto
de imposição familiar ou pra ajudar no orçamento de casa. Eu trabalhei por
opção mesmo. (Edgar, segundo ano do curso de Ciências Biológicas.)
Essa estratégia para o ingresso dos filhos no
mercado de trabalho e as autorizações que a acompanham fazem parte do capital
cultural de famílias de um segmento das camadas médias, para as quais a divisão
etária do trabalho funda-se em princípios que, justamente por estarem
implícitos, não são enunciados de modo claro. A estratégia de pais e mães para
encaminharem os filhos para o trabalho assume um caráter de naturalidade, de
tal modo que os próprios filhos incorporam o que já está previsto como se fosse
fruto de sua decisão. Dessa forma, o anseio de autonomia dos filhos, que
implica valorização de aspirações individuais, pode conviver com o familismo
parental.
Como os dados das entrevistas revelam, a
entrada no mercado de trabalho - que, em geral, coincide com o ingresso no
ensino médio - não é considerada incompatível, nem pelos filhos, nem pelos
pais, com a continuidade dos estudos. Pelo contrário, os genitores estimulam os
filhos a darem prosseguimento à escolarização.
Se os filhos não colaboram com as despesas
domésticas, o fato de proverem parte de suas necessidades reduz os gastos
parentais com eles e permite que recursos financeiros domésticos sejam
investidos na aquisição de outros bens que podem melhorar o padrão de vida
familiar. Além do mais, a orientação parental para que os filhos iniciem a
atividade produtiva não significa que os pais não contribuam financeiramente
para as despesas, sobretudo, quando se trata de gastos diretos ou indiretos com
a educação.
Nessas circunstâncias, a estratégia dos pais
expressa-se na autorização - situada no plano subjetivo - concedida aos filhos
para que eles mudem de posição na família, deixando de ser apenas consumidores,
passando a provedores de parte de suas necessidades e, simultaneamente,
continuando a freqüentar a escola. Ao papel de estudante improdutivo, os filhos
acrescentam o de trabalhador produtivo, duplicando seu papel não apenas no
espaço privado da família, mas igualmente na esfera pública e convertem-se em
estudantes-trabalhadores. Os filhos endossam a autorização parental e se
autorizam a ser estudantes-trabalhadores, já que eles próprios desejam
independência financeira em relação aos pais e autonomia para tomar decisões
concernentes à realização das aspirações. A essa dupla autorização que abre
caminho para o novo, deve-se acrescentar que os filhos também autorizam os pais
a preservarem seu modo de vida, mantendo, desse modo, a relação dialética entre
mudança e permanência. Estratégia paterna e prática dos filhos assentam-se na
tríplice autorização (Rochex, 1995) que, nesse caso, tem como pressuposto
implícito a compatibilidade entre trabalho e estudo.
E fundamental considerar que se trata de um
momento de transição extremamente significativo para pais e filhos, verdadeiro
ritual de iniciação, já que esses últimos começam a viver o processo de
construção de independência financeira e de autonomia face à unidade doméstica.
Nessa etapa do processo de reprodução social da família, os filhos adquirem não
apenas um novo papel, mas uma nova identidade pessoal, a de trabalhador, que
vem juntar-se a outras, redefinindo sua identidade social (Goffman, 1978). Essa
fase de transição constitui a primeira etapa do processo vivido pelos filhos,
quando eles começam a deixara família (Rochex, 1995), sem que isso implique o
abandono da família de origem.
Mas, acima de tudo, o ingresso no mercado de
trabalho assegura independência financeira - na verdade, sempre relativa, já
que os filhos continuam a ser parcialmente mantidos pelos pais -, permitindo a
eles ampliarem a possibilidade de negociar as decisões parentais. E assim que o
trabalho assume uma dimensão positiva para esses universitários:
Ah [motivo para começar a
trabalhar), pra ficar mais independente. Apesar... tanto financeiramente quanto
em outras partes... não ter que dar tanta satisfação. Tem né, porque você tá
morando junto, sempre tem que dar, né? Mas não tanto. (Fabiana, segundo ano do
curso de Ciências Biológicas.)
A fala de Fabiana é bastante sugestiva, pois
revela que a independência financeira, por ser relativa, não acarreta, como
contrapartida imediata, autonomia completa em relação ao controle familiar, mas
reduz as modalidades de interferência dos pais, aumentando o espaço de
liberdade individual.
O primeiro
emprego é conseguido pela mobilização de contatos pessoais, isto é,
utilizando-se o capital social da família, prática bastante co»num na sociedade
brasileira, ainda regida por relações personalistas (DaMatta, 1985).
Os salários recebidos pelos estudantes são
reduzidos: três recebem até três salários mínimos, três até três e meio, um
ganha quatro, dois alcançam quatro e meio e o último, professor de inglês e
proprietário de uma escola de ensino médio profissionalizante, consegue
rendimentos que atingem dez salários mínimos.
Despesas pessoais, incluindo-se pagamento de
mensalidade escolar, transporte? lazer, roupas, eventuais refeições fora de
casa, consomem a maior parte dos rendimentos dos universitários.
Considerando-se o salário recebido pela maioria deles e que o valor da
mensalidade dos diferentes cursos situa-se em torno de dois salários míninos,
torna-se claro que seus ganhos cobrem despesas básicas. Essa situação é mais
grave para três universitários que viajam diariamente de três cidades,
Brodósqui, Batatais e Morro Agudo, o que amplia gastos com transporte e
alimentação e reduz o tempo de repouso e estudo.
Não obstante o salário reduzido, os
universitários declaram estar, em parte, satisfeitos com o trabalho, quando o
avaliam como fonte de recursos que lhes assegura relativa independência
financeira. Outro fator que contribui para essa representação dos estudantes
resulta da apreciação do emprego atual, considerado como ocupação provisória
que poderá ser substituída por outra, quando concluírem o curso superior.
4. O
INGRESSO NA UNIVERSIDADE
A escolha do curso resulta do interesse do
estudante por determinada área de conhecimento e da profissão a ela associada,
da avaliação das profissões e do mercado de trabalho, das condições financeiras
para arcar com custos diretos e indiretos da escolarização, das informações de
que dispõe sobre as instituições de ensino, das orientações, explícitas ou
indiretas, recebidas da família e das possibilidades de contar, mesmo
eventualmente, com o suporte material dos pais. Depende, portanto, de uma
configuração de fatores (Lahire, 1997), multiplamente articulados, que incluem
ainda o capital cultural e escolar dos alunos. Esse último é considerado, por
eles próprios, insuficiente para concorrerem aos vestibulares das universidades
públicas e de maior prestígio. A carência desse capital advém, pelo menos em
parte, do fato de esses estudantes terem percorrido o circuito uicioso (Souza,
1990/1991), trajetória pouco propícia para prepará-los para a competição nos
exames vestibulares de estabelecimentos públicos, cujas exigências são,
reconhecidamente, muito maiores do que as que imperam em escolas privadas6. A
única exceção é uma estudante aprovada no vestibular para o curso de Letras da
USP, em São Paulo7, mas que não pôde matricular-se devido aos problemas
financeiros da família. Posteriormente, prestou exame vestibular e foi aprovada
para o mesmo curso nas Faculdades Alvorada.
E a partir
da apreciação bastante objetiva dessas desvantagens pessoais e financeiras, que
limitam as aspirações de ingresso no ensino superior, afastando a pretensão de
concorrer a uma vaga nas universidades públicas, que esses estudantes
encaminham-se para as instituições privadas, acerca das quais têm informações
bastante precisas, inclusive sobre o valor da anuidade. Assim, a opção do
estudante é inseparável da avaliação do custo financeiro, e as Faculdades
Alvorada são escolhidas, basicamente, em função de sua anuidade ser mais baixa
do que a praticada pelas demais instituições da cidade. Outros motivos
agregam-se a este, como o fato de a escola ser próxima da residência, a falta
de opção ou
ainda porque a faculdade é mais humana, como está expresso nas falas de alguns
universitários:
Porque era mais acessível pra
mim, né? Preço também, porque era mais moderado em relação a outras escolas de
Ribeirão Preto... Aqui, já é uma escola um pouco mais humana. (Edgar, segundo
ano do curso de Ciências Biológicas.)
Pelo preço. É, a primeira coisa
foi pelo preço, sim. (Carlos, segundo ano do curso de Matemática.)
Falta de opção... Minha vontade era
fazer Tradução e Interpretação. Mas escolhi as [Faculdades] Alvorada porque era
a mais barata. (Fernando, terceiro ano do curso de Letras.)
Fora os motivos alegados acima, nenhum
universitário menciona a qualidade dos cursos oferecidos, valorizando, em
primeiro
lugar, os
aspectos informais da instituição.
Na verdade, se há escolha, essa parece ser
feita levando-se em conta o custo da anuidade cobrada pela instituição. Só
então o candidato ao vestibular escolhe um curso em função de sua vocação
(Schwartzman, 1992) - ou que mais se aproxime dela - isto é, que possibilite
aliar o conhecimento adquirido na faculdade ao exercício da profissão desejada.
A escolha, portanto, é feita no interior das grandes áreas de conhecimento das
ciências exatas, biomédicas e das humanas e sociais. Dos dez universitários,
quatro declaram ter ingressado no curso escolhido; quatro argumentam que não
tiveram oportunidade de exercer sua opção e dois matricularam-se em um curso
assemelhado ao que desejavam fazer. Alguns relatos permitem vislumbrar os
motivos da escolha por determinado curso:
Porque eu gosto de exatas, eu sou
apaixonado por exatas. Agora eu escolhi licenciatura, entendeu, porque eu
poderia ter saído por $í fazer bacharelado, porque eu pretendo dar aula.
(Marcos, segundo ano do curso de Matemática.)
É o mais próximo do que eu gosto
de fazer. Queria fazer Engenharia. E hoje eu dou mais valor, sabe? Quando eu
entrei, eu não entrei assim, ah, vou fazer esse curso. Mas a partir do momento
que você começa a fazer e íai se interessando.... (Carlos, segundo ano do curso
de Matemática.)
A satisfação com o curso pode ainda ser
aferida pela aspiração que os universitários têm em relação ao futuro, pois
quatro declaram que, após a conclusão, farão outro curso de graduação, a fim de
satisfazer sua vocação. Todos os universitários - mesmo os que almejam fazer
outro curso - declaram ter a expectativa de que a formação acadêmica os
habilite a exercer o magistério de ensino médio. De fato, os cursos escolhidos
qualificam preferencialmente para o magistério, embora existam outras
possibilidades de profissionalização, como lembram os próprios universitários.
Pode-se
ainda confrontar a escolha do curso com o trabalho que realizam. Apenas três
estudantes - duas professoras de ensino fundamental e um estudante proprietário
de uma escola - declaram estar satisfeitos com o trabalho; os demais expressam
insatisfação com as atividades desempenhadas no emprego. Quando inquiridos
sobre a possível vinculação entre trabalho e curso, somente as duas professoras
respondem afirmativa-
mente,
declarando haver conexão entre ambos. Mesmo o aluno que é proprietário de
escola relata que sua atividade não tem relação com o curso.
A essa insatisfação com o trabalho no presente
corresponde a expectativa de realização profissional e de melhoria financeira
no futuro, após a conclusão do curso, quando os alunos estiverem formalmente
habilitados a exercer o magistério.
Quanto à avaliação do curso, há uma oscilação
entre aqueles que estão satisfeitos e os que têm postura crítica. Os primeiros
apontam como indicadores positivos as facilidades oferecidas pela instituição,
que sempre atende suas reivindicações:
Acho que existem cursos mais
fracos, né, acho que o das Alvorada, eu acho que é um bom curso, um curso que
prepara, que puxa pro lado humano, né, que a imagem que se tem do matemático,
que eu tive quando era aluno, assim de ginásio e de colégio, a imagem que eu
tinha do professor de matemática era de uma pessoa fria... Pô, não é nada
disso, né, professor é frio, porque ele quer ou porque a faculdade que o forma,
que o faz assim, né? Então, eu acho que as Alvorada não te torna frio, eu acho
que esse clima de calor, sabe, de calor que ela te dá. (Marcos, segundo ano do
curso de Matemática.)
As críticas reportam-se à qualidade do
ensino, à deficiência da biblioteca, à carência de equipamentos nos
laboratórios, à ausência de vida acadêmica:
Eu acho que eu não posso esperar
muito de um curso noturno, porque a gente trabalha e um curso noturno, o máximo
que ele pode oferecer é um mínimo de aulas. Mas, eu, lógico que gostaria que
tivesse mais, assim, atividades extracurriculares, mais debates, seminários,
mais palestras, mais assim... uma vida acadêmica. Mas a gente sabe que isso não
é possível pelo fato de ser um curso noturno, por 90% dos alunos trabalharem o
dia todo e muitos deles serem de fora e no fim de semana quererem descansar.
Então, não dá pra você exigir de uma pessoa que trabalha o dia todo e estuda à
noite e mora fora, ficar aqui no sábado também pra ter uma atividade
extracurricular. (Mariana, terceiro ano do curso de Letras.)
Tem muitas falhas, bastante falhas,
mas o curso... há professores bons, excelentes professores, tentam fazer do
curso um bom curso, algumas vezes tem falha. Falta de organização, mal
aparelhamento da faculdade. Eu acho que há certas coisas que a faculdade
deveria oferecer como um laboratório de línguas, isso não tem, biblioteca, não
tem uma biblioteca boa. Então, eu acho que se você quer montar um bom curso
você tem que dar condições pro aluno prosseguir nesse curso. (Fernando,
terceiro ano do curso de Letras.)
Por sua vez, a apreciação da instituição é
semelhante à do curso. Embora estribada em uma aparente apreciação das relações
de poder existentes em seu interior, o que se nota é a valorização das
facilidades que ela oferece aos alunos:
A faculdade, ela é uma faculdade muito
democrática. Você tem liberdade de falar o que você pensa, você tem liberdade
de expor seus problemas, ela [a faculdade] sempre nos ouve e na medida do
possível a gente, eu vejo que eles tentam fazer sempre aquilo que é necessidade
para os alunos, né? Não digo quanto à mensalidade, porque, quanto à
mensalidade, você já toca num problema mais delicado, mas, no problema do
conteúdo programático da faculdade, eles estão sempre prontos pra atender às
solicitações dos alunos. (Joaquim, segundo ano do curso de Ciências
Biológicas.)
Assim, as
características percebidas como positivas remetem ao aspecto informal dos
cursos e da instituição, enquanto as críticas são endereçadas à qualidade de ensino,
que é percebido como insatisfatório.
Outro dado apontado como positivo é a
relação com os professores, considerados como amigos, próximos, sempre
disponíveis a resolver dúvidas e problemas das matérias específicas:
Os professores são assim
superliberais, deixam você brincar na aula, que tem uma oportunidade de chegar
com o professor e bater um papo com ele. (Edgar, segundo ano do curso de
Ciências Biológicas.)
O curso de Matemática das Alvorada é
mais humano... Tem um ponto assim que faculdade nenhuma de Ribeirão tem, é o
contato próximo, nós temos amizade com os professores, né? Por exemplo, se não
tem aula e a gente for prum barzinho e chamar o professor, o professor vai,
entendeu? Então, não é aquela coisa, no [outro estabelecimento da cidade] é
mais frio, né? Aqui é mais humano, sabe, te dá a impressão de que você ainda tá
no colégio, por exemplo, a minha classe é superu-nida. (Marcos, segundo ano do
curso de Matemática.)
E interessante comparar essa postura com a
dos alunos da USP, que julgam os professores a partir de sua qualificação e
competência científicas* deixando em segundo plano os atributos pessoais. O
elemento mediador para os alunos se aproximarem dos professores é o interesse
pelas pesquisas que esses desenvolvem e nas quais os alunos se engajam,
inclusive com bolsas de iniciação científica (Romanelli, 1995). Certamente, a
proximidade com docentes também é valorizada, mas a transição para o plano das
relações personalizadas e informais ocorre pela mediação da atividade
científica.
De uma perspectiva contrastiva, toma-se
como referência o modo como os estudantes apreciam a universidade pública. A
maior parte dos estudantes da USP - e, pode-se supor, das demais instituições
públicas - ingressa na universidade com uma representação bastante clara de sua
importância na pesquisa e na produção de conhecimento. Essa percepção integra o
conjunto de representações sobre as universidades públicas -mesmo
considerando-se a campanha desencadeada contra elas por alguns setores da
sociedade brasileira - e ancora-se no significado positivo da importância do
conhecimento para o desenvolvimento da sociedade e também para a ascensão
pessoal de indivíduos específicos (Romanelli, 1995). Dito de outro modo, essa
representação funda-se em uma concepção de universidade como produtora e
transmissora de conhecimento científico, fundamento e pressuposto do progresso
individual e social. Já os alunos das Faculdades Alvorada têm uma representação
sobre ela, antes mesmo de seu ingresso, como instituição transmissora, e não
produtora de conhecimento, que é fruto da pesquisa. Tampouco, os serviços de
extensão à comunidade são percebidos como uma das funções constitutivas das
instituições universitárias. De fato, como as Faculdades Alvorada são um
estabelecimento isolado, a própria concepção de universidade não faz parte da
percepção desses alunos.
De qualquer modo, quando comparam a escola
que têm condições de freqüeriiar com as instituições públicas, às quais não têm
acesso, esses universitários percebem a exclusão a que estão sujeitos no
sistema de ensino e, conseqüentemente, no mercado de trabalho. É nessa situação
que assoma com clareza uma exclusão que não é apenas escolar, mas que também
faz parte da história da família de origem e que eles procuram não reproduzir,
lutando para conseguir o diploma de ensino superior:
Porque, por
mais que pessoa tenha uma boa situação financeira, ela tá se privando de alguma
coisa pra fazer a faculdade, entendeu? Ela poderia tá fazendo outra coisa com
esse dinheiro, poderia se ela não quisesse, não estar gastando com a faculdade.
Então, eu acho assim, é, independente da situação financeira da pessoa, é um
sacrifício estudar. (Adriana, quarto ano do curso de Ciências Biológicas.)
Aí há uma
inversão. Eu freqüento uma faculdade particular, sou de classe média baixa. Eu
deveria estar freqüentando uma escola estadual. Só que quem tá freqüentando lá
é a classe alta, é a elite. (Fabiana, segundo ano do curso de Ciências
Biológicas.)
No segundo
depoimento, Fabiana esclarece seu autopertencimento de classe ao mesmo tempo
que explicita o sentimento de exclusão.
Todavia, o
recurso para tentar superar a desigualdade socialmente construída encontra-se
no plano das iniciativas individuais, como o relato abaixo deixa entrever:
Olha, eu acho que qualquer curso prepara o
aluno a partir do momento que ele se prepara, porque quem faz seu curso é você
mesmo, tá? A escola apenas te orienta da melhor maneira possível e é você que
vai fazer seu curso, você que vai fazer sua formação. (Roberta, terceiro ano do
curso de Letras.)
A fala acima
é esclarecedora do modo como os estudantes concebem a ação da universidade.
Considerada como instituição que orienta da melhor maneira possível, a função da
universidade fica limitada à transmissão de saber, cabendo ao estudante, no
plano individual, concretizar essa orientação. Na percepção dos estudantes,
cabe ao indivíduo, exercendo a competência por ele adquirida, atuar como
elemento nivelador de desigualdades socialmente construídas, superando-as
mediante seu empenho. Nesse caso, a ideologia de ascensão pelo esforço
individual, ou mais propriamente, pelo trabalho, encontra eco e é plenamente
incorporada por esses universitários.
Apesar das críticas, os estudantes avaliam de
modo positivo o ingresso na universidade, e todos apontam a riqueza de
experiências, a diversidade de relações, a ampliação no modo de avaliar a
realidade, que são fruto da aquisição de formas de saber. E o que pode ser
constatado no depoimento de um aluno:
Eu me sinto mais enriquecido na parte de
cultura. Relacionamento também com as pessoas mudou, né, você se relaciona
muito melhor. Vamos supor... eu tive um ano de Psicologia, Didática também.
Isso ajudou bastante, porque hoje, no meu próprio emprego, eu uso isso.
(Carlos, segundo ano do curso de Matemática.)
Embora
apontem falhas no curso e no funcionamento da faculdade, ainda assim os
universitários acreditam que o conhecimento aí adquirido é importante para
consegui-
rem outro
tipo de trabalho, com melhor remuneração, como se depreende do relato de uma
aluna:
Eu até gosto
de dar aula, me sinto bem e porque dando aula, financeiramente eu vou ganhar
bem melhor. Apesar de professor ganhar pouco, é bem melhor do que eu ganho trabalhando
na loja, no escritório, em qualquer lugar, entendeu? (Fabiana, segundo ano do
curso de Ciências Biológicas.)
Essa avaliação decorre da comparação com a
situação atual. Contudo, esses alunos reconhecem que, se a posse de um diploma
de ensino superior é importante para conseguirem outro tipo de ocupação, é
ainda insuficiente para promover a tão desejada mobilidade social, como algumas
falas revelam:
Porque depois que eu terminar a faculdade, eu
pretendo procurar e exercer uma profissão dentro dessa área e procurar, nem que
tenha que trabalhar durante o dia e durante a noite pra melhorar minha situação
financeira. (Joaquim, terceiro ano do curso de Ciências Biológicas.)
Eu pretendo
pegar algumas aulas à noite, não muitas e não necessariamente todos os dias...
qualquer tipo de aula, mais pra ter um contato com o pessoal que está se
formando. (Mariana, terceiro ano do curso de Letras.)
Um recurso
que os universitários pensam utilizar para aumentar os ganhos, no futuro, é
exercer o magistério, ampliando a jornada de trabalho, e não, simplesmente,
conseguir outro emprego com rendimento mais elevado do que atual.
A
necessidade de aumentar a qualificação profissional está presente em nove
universitários, dos quais sete manifestam interesse em ingressar em curso de
pós-graduação:
Eu pretendo
fazer pós-graduação, mestrado, seguir a minha carreira, né, e trabalhar assim
no campo profissional... Porque, deste jeito a gente dá uma primeiramente, uma,
mais conhecimento na área, e vai te dar possibilidade de uma ascensão, quanto
mais você subir na carreira, você vai ter melhor oportunidade de arrumar
emprego, oportunidade de ganhar mais. (Edgar, segundo ano do curso de Ciências
Biológicas.)
Essa
aspiração de melhorar a qualificação profissional, mediante a incorporação de
novos conhecimentos, possíveis de serem adquiridos em curso de pós-graduação,
resulta da percepção desses universitários de que o curso de graduação é
insuficiente para conseguirem empregos melhor remunerados. Embora fazendo parte
do horizonte desses estudantes, o acesso a um curso de pós-graduação permanece
como algo virtual, difícil de ser concretizado, mesmo porque o capital escolar
incorporado por eles nas Faculdades Alvorada é, ao que tudo indica,
insuficiente para ingressarem em um curso de pós-graduação stricto sensu.
Para esses
universitários, o ingresso no curso já é em si uma conquista e o exercício da
profissão - em geral, o magistério - é visto como bico ou complemento em duplo
sentido. Amplia rendimentos e permite o exercício simultâneo de outra ocupação
que, embora desvalorizada como é o caso do magistério, exige uma habilitação
escolar que possibilita certa ascensão social, mesmo que seja no plano
simbólico:
Um nível de
vida melhor, mais elevado em termos de prestígio social... uma posição social
mais elevada, de destaque. (Cristina, terceiro ano do curso de Matemática.)
O êxito
desses universitários pode ser aferido de outra perspectiva, comparando-se seu
grau de escolaridade atual - mesmo sem a conclusão do curso - com o de seus
irmãos, que freqüentaram o ensino fundamental e médio em escolas da rede
pública, já que nenhum deles, mesmo os mais velhos, chegou ao ensino superior.
Há uma única exceção referente aos irmãos de Mariana de F-A, pois dois deles
ingressaram no curso superior de uma instituição privada. Obviamente, alguns
dos universitários têm irmãos mais novos que poderão seguir a mesma trajetória
e até superá-la. Contudo, cabe considerar que esses estudantes, mesmo não tendo
obtido o diploma do curso superior, vivem, no interior da própria família, uma
ascensão simbólica, visível sobretudo para os pais, o que pode estimulá-los a
continuar a auxiliar os filhos a concluírem o curso superior.
5.A INFLUÊNCIA DA FAMÍLIA NA ESCOLARIZAÇÃO DOS
FILHOS
Os
universitários são unânimes em declarar que seus pais não influenciaram a
escolha do curso superior e que não interferem em sua vida escolar.
Aparentemente, a família não se imiscui nesse território, uma vez que, à
primeira vista, a escolha do curso e da faculdade resulta de decisão dos
filhos. Contudo, um exame mais acurado das entrevistas mostra que, se pais e
mães mantêm certa distância das decisões e das práticas dos filhos, isso
decorre do modo como se relacionam com eles e da carência de capital cultural e
escolar dos genitores, que não os deixam à vontade para opinar sobre situações
que não conhecem, como relata um estudante:
Bom, como
ela [mãe] teve pouco grau de instrução, ela vai muito pela minha opinião né, se
eu comento coisa boa em casa a respeito da faculdade, ela acha que realmente é
boa e concorda comigo, né. (Joaquim, terceiro ano do curso de Ciências
Biológicas.)
Na
realidade, a intervenção da família ocorre de modo indireto, pois os filhos,
enquanto trabalhadores, gozam de relativa independência financeira e autonomia,
o que reduz as possibilidades de ingerência direta e pressão por parte dos
pais. Antes, a intervenção deve ser entendida como uma modalidade de
autorização para que os filhos amadureçam e tor-nem-se independentes, e a
distância que os pais mantêm em relação a eles não significa desinteresse ou
desamor. Nesse sentido, os pais assumem posições diversas, oscilando entre
situações em que tentam exercer certo controle sobre os filhos, enquanto, em
outros momentos, procuram participar da vida deles - e não só na parte escolar
-, sem imposição e mantendo certa reserva. Dito de outro modo, aqui entram em
confronto as forças de fissão e fusão (Bourdieu, 1996), opondo familismo e
individualismo.
Uma forma de
interferência direta está associada ao gênero dos filhos, havendo maior
controle sobre as aspirações de escolarização das filhas. Mesmo quando dispõem
de recursos financeiros para mantê-las em outra cidade, freqüentando o curso
por elas escolhido, os pais exercem sua autoridade para impedi-las, como ocorre
com uma delas, que relata o seguinte-.
Eu passei em
Psicologia em Uberaba e meu pai não quis me sustentar em outra cidade...
Existe, além disso, o problema de eu deixar a casa. Seria como se eu tivesse
renegando, pra eles, que têm formação cristã e paternalista de... seria o
mandar nos filhos até eles casarem, né. Tem aquela rigidez em cima do que a
gente tá fazendo. (Mariana, terceiro ano do curso de Letras.)
Nesse caso,
em que o pai não autoriza a filha a concretizar sua escolha, o familismo predomina
sobre o princípio do individualismo e a pressão parental impõe-se
integralmente.
Outra
modalidade de tentativa de influenciar, de modo indireto, a escolha da prole,
mas que não se concretiza, ocorre quando os pais têm aspirações bastante elevadas
em relação ao futuro profissional dos filhos e almejam que estes façam certos
cursos, o que demonstra que as expectativas parentais são menos realistas do
que as dos filhos:
Meu pai
queria muito que eu fizesse Pediatria, na área de Medicina, mas é uma coisa que
eu não daria nunca, tá, porque é muito diferente da área que eu atuo. (Roberta,
terceiro ano do curso de Letras.)
Os filhos
optam por cursos mais próximos à realidade que os cerca. Deixam, inclusive, de
lado, cursos preferidos, ingressando naqueles que são acessíveis. E o caso de
um deles, que ingressa em Matemática em vez de Engenharia; de outro que se
contenta com Ciências Biológicas, deixando Medicina; e de uma terceira que
cursa Ciências Biológicas em lugar de Direito.
Mas, a
influência mais intensa da família na vida esco!ai>>dos filhos aparece
com nitidez na ajuda financeira.
Algumas
vezes eu pago (a mensalidade], algumas vezes a minha mãe paga a dos meus
irmãos, aí ela faz a uia crucis e paga a minha também. (Mariana, terceiro ano
do curso de Letras.)
Recebo,
sempre que necessário, depende da necessidade, não muito porque eles [os
irmãos] chiam. (Roberta, terceiro ano do curso de Letras.)
Mesmo quando
o filho tem rendimento elevado, como ocorre com o universitário que recebe dez
salários mínimos, metade do valor da mensalidade é paga pelos pais.
O auxílio
recebido dos genitores nem sempre é constante, pois muitos não têm condições
para arcar com essas despesas com regularidade. Além disso, muitas vezes, o
auxílio financeiro é indireto, pois não se destina a cobrir despesas com a
escola, mas a outros gastos dos filhos.
Há ainda outra forma de ajudar os filhos,
quando os pais manifestam disposição de realizar gastos maiores, mesmo tendo
rendimentos reduzidos, como é o caso de Edgar:
Meu pai
queria que eu fizesse Medicina, né. Até falou que se fosse, fazia o cur-sinho
melhor, parava de trabalhar e só dedicava ao cursinho, pra ser um bom e chegar
preparado pro vestibular, ele pagaria, né?
De qualquer modo, os filhos não se lembram
de mencionar que vivem na casa~dos pais e recebem, gratuitamente, moradia,
alimentação e benefícios indiretos, como cuidados com a indumentária. Sem essa
importante ajuda não monetária, certamente não teriam condições de arcar com o
pagamento do curso que freqüentam. Ao mesmo tempo, esse auxílio tem um valor
não apenas material, mas está impregnado de afeto, mesmo quando isso não é
expresso de modo claro.
Coloca-se,
dessa forma, a dimensão da vida afetiva doméstica. Nessas famílias, a
sociabilidade familiar (Segalen & Zonabend, 1999) parece ser relativamente
restrita, com pouco espaço para conversas, sobretudo com o pai, que é
considerado distante e com quem o contato e o diálogo são difíceis.
O meu pai...
a gente não conversa muito. Eu acho que ele é muito machista, entendeu? E a
gente não concorda na maioria dos aspectos, na maioria das opiniões, na maioria
dos nadas. Então, a gente vive brigando muito. Então, eu procuro no máximo
evitar conversar com ele, porque eu só fico no geral. (Mariana, terceiro ano do
curso de Letras.)
Em
contrapartida, a mãe é considerada mais próxima e mais presente no cotidiano
dos estudantes:
Porque,
desde criança ela sempre me, vamos dizer assim, me bajulou mais que meu pai,
né. Então, a gente tem uma, não vamos dizer assim que a gente goste mais dela,
entendeu, a gente gosta igual. Mas é uma coisa assim, é uma confiança a mais
que a gente tem nela, entendeu? Porque o meu pai já é uma pessoa mais rígida,
mais severa, né, ela já é uma pessoa mais liberal, né. (Edgar, segundo ano do
curso de Ciências Biológicas.)
Ah... ela [a
mãe] me dá mais liberdade pra falar, sabe? Ha pode dar o contra no que eu falo,
mas ela vai me dar mais liberdade pra falar. Meu pai, já não, ele é uma pessoa
fechada, não é assim... A minha mãe é mais aberta, ela também se abre muito com
a gente, entendeu? (Carlos, segundo ano do curso de Matemática.)
A mãe não é
apenas a principal doadora de afeto; é também a interlocutora disposta a ouvir
os filhos e a dialogar com eles. No entanto, a relação mãe/filhos tem ainda
outra dimensão, referida ao incentivo à escolarização deles (Schwartzman, 1992)
e à transmissão de capital cultural (Singly, 1993). Considerando-se a
observação de Lahire (1997) acerca das condições de transmissão do capital
cultural, o fato de os filhos conversarem mais com a mãe cria a oportunidade
para a difusão de conhecimentos e experiências que fazem parte de seu capital
cultural, mesmo que seja reduzido. Mais ainda, a influência materna não se dá
pela imposição, pois os filhos esclarecem que, contrariamente ao pai, a
genitora comunica-se de modo mais afetuoso e não os obriga a acatarem suas
opiniões. Desse modo, o capital cultural transmitido pela mãe constitui
elemento significativo no processo de reprodução social da família que tem, na
escolarização superior dos filhos, um recurso importante para promover relativa
mobilidade social deles e, indiretamente, da própria unidade doméstica.
Contudo, a maior presença da mãe nesse tipo de relação não exclui a importância
do pai no processo. De fato, o pai sente afeto pelos filhos, embora muitas
vezes o expresse de modo canhestro. É o que ocorre quando procu-
ra orientar
os filhos, evitando que eles cometam o que considera errado e acaba impondo sua
decisão. Prova desse afeto paterno são os relatos dos filhos acerca da
preocupação e do interesse do pai em sua vida escolar, mesmo quando essas
manifestações são relativamente distantes e, aparentemente, pouco envoltas por
afeto. Um exemplo dessa postura, que pode ser aproximada do que Zéroulou (1988)
denominou de ética do sacrifício, está presente no depoimento de Edgar, acima
transcrito, e pode mostrar que um dos modos de expressão afetiva do pai é
através da doação financeira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A promoção social dos filhos, em termos de escolaridade,
pode ser avaliada conside-rando-se que todos concluirão o curso em que estão
matriculados. Ao que tudo indica, essa suposição tem grande probabilidade de se
efetivar. Comparando-se o grau de escolaridade que os universitários devem
atingir com o dos pais e também com o dos irmãos, eles certamente alcançarão
certa ascensão no plano simbólico, indo além de pais e irmãos, exceto no caso
já citado de F-A.
No entanto, o ingresso desses estudantes no
curso superior não resulta da democratização do ensino. Pelo contrário, ele só
é possível graças à imensa expansão de estabelecimentos particulares, que não
só acarreta ampliação do número de vagas, como aumenta a oferta de vagas no
curso noturno. Além do mais, a competição entre as escolas para arrebanhar
novos alunos pode baratear o custo das anuidades.
O avanço no grau de escolaridade deve ser
contrastado com a avaliação que os universitários fazem do valor que a
escolarização prolongada pode agregar a sua força de trabalho, comparada com o
ua/ordispendido com anuidades e outras despesas, diretas e indiretas, para
mantê-los na faculdade. Os universitários percebem, de modo bastante objetivo,
que a qualificação profissional é insuficiente para alavancar a desejada
melhoria financeira. O capital escolar adquirido em uma instituição de pouco
prestígio e em cursos que preparam para o exercício de uma profissão também
bastante desqualificada, apenas habilita o portador do diploma aí obtido a
trabalhar mais, ampliando a jornada de trabalho, e não a ganhar mais.
Certamente, a oportunidade de conjugar, no futuro, o trabalho atual com o
exercício simultâneo do magistério amplia as oportunidades de se obter outro
emprego, pois a qualificação escolar que irão obter duplica os atributos da
força de trabalho que se toma mais competitiva na disputa por emprego. Todavia,
cabe considerar que os universitários ingressam nesses cursos que oferecem
poucas oportunidades de trabalho bem remunerado devido a limitações da própria
história familiar.
Se as possibilidades de mobilidade financeira
são drasticamente limitadas, esses universitários também reconhecem que, sem
esse investimento, oneroso para eles e para as famílias, as possibilidades de
alguma melhoria profissional e financeira seriam menores ainda.
Outra questão que emerge do material
coletado é o fato de os universitários declararem que os pais não influíram na
escolha do curso e da faculdade. De fato, todos assumem as escolhas como se
fossem exclusivamente pessoais, nada devendo à família. Sus-peita-se que essa
postura procure demonstrar autonomia, e é como se esses estudantes, em sua
interioridade, dependessem apenas da própria autorização, não precisando da
autorização
parental. Assim, a influência da família na escolarização desses universitários
- e, muito provavelmente, não só desses - não deve obscurecer que ela se dá no
confronto constante com aspirações e anseios dos filhos. A família, portanto,
não é a instância todo-poderosa que consegue impor-se como sujeito coletivo,
mantendo o princípio do familismo sempre atuante, pois enfrenta as forças de
fissão, que traduzem a presença do individualismo em seu interior, o que cria
um equilíbrio constantemente reposto através das ações concretas dos
integrantes da unidade doméstica.
Mas, se os pais não interferem na escolha do
curso, eles incentivam e estimulam, mesmo que seja de fnodo indireto, o
ingresso dos filhos no curso superior. Desse modo, os dados deixam muito claro
a importância da família no processo de escolarização superior desses universitários,
mediante apoio material, pecuniário ou não, bem como através do amparo afetivo
que os pais dispensam aos filhos para conquistarem o tão almejado diploma do
curso superior.
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A
construção da excelência escolar
Um estudo de trajetórias feito com estudantes
universitários provenientes das camadas médias intelectualizadas
Maria Alice
Nogueira** Professora da Faculdade de
Educação da UFMG.
Pela simples
razão de que tudo depende de determinação, de -termine, rapaz, onde vai ser seu
curso de pós-graduação... (Gilberto Gil).
O material a
ser explorado neste trabalho consiste num corpus formado por relatos de
trajetória escolar colhidos - através de entrevista semidiretiva - de um grupo
de estudantes universitários pertencentes a famílias das camadas médias
intelectualizadas, obtido no quadro de uma pesquisa realizada em 1994-95, em
Belo Horizonte e financiada pelo CNPq1. Trata-se de um grupo de 37 estudantes
da Universidade Federal de Minas Gerais, 21 mulheres e 16 homens, selecionados
segundo dois critérios:
1) estar cursando ou ser recém-formado num dos
37 cursos de graduação oferecidos pela UFMG, à época. Tomou-se um estudante
para cada curso, com o fim de evitar um possível viés resultante da
concentração dos sujeitos investigados nos cursos mais prestigiosos ou,
hipótese bem mais remota, nos mais desvalorizados;
2) ser filho de pai e mãe professores do
ensino superior/pesquisadores, com a mais alta titulação possível.
Este último critério situa-se no centro do
objeto de estudo, a saber: as formas de atuação do capital cultural familiar
sobre a vida escolar dos filhos2. O pressuposto era o de que a busca de
situações em que esse fator se visse potencializado ao seu grau máximo (pai £
mãe), favoreceria a obtenção e a,visibilidade dos efeitos, sobre a escolaridade
dos jovens, do estado de acumulação dessa espécie de capital - sobretudo em sua
forma escolar. As elites escolares constituiriam, nesse sentido, excelente
terreno de observação, posto que compõem a elite escolar no duplo sentido do
termo: porque são pais altamente diplomados e porque ocupam as posições
dominantes do sistema de ensino.
Tratava-se, de um modo geral, de conhecer os
itinerários escolares percorridos por esses jovens até o momento da entrevista,
e as estratégias postas em prática pelas famílias e por eles próprios no decorrer
dessas escolaridades.
Não é meu propósito discorrer aqui sobre a
noção de “estratégia”. Mas cabe lembrar que, atualmente, um debate agita o meio
sociológico a esse respeito. No centro da discussão, encontra-se a questão da
natureza consciente (explícita) ou inconsciente (implícita) das condutas
educativas dos atores, mas também o sentido que esses últimos atribuem a elas
(Singly, 1993A; Plaisance, 1988; Queiroz, 1995). Neste trabalho, utilizo a
noção de estratégia no sentido proposto por Bourdieu, a saber; não como o
produto inevitável de um cálculo custo-benefício mas, tampouco, como um mero
resultado do acaso. Se certas ações podem ser fruto de decisões explícitas e
racionais, outras decorrem do processo de interiorização das regras do jogo social
e revelam a intuição prática (o “sens du jeu”) que marca o bom jogador, o
estrategista. Além do fato de que essas não constituem, necessariamente,
possibilidades excludentes 3.
No texto que se segue, buscar-se-á fazer uma
síntese dos principais resultados da pesquisa. Optei - em razão do espaço
disponível - por oferecer ao leitor uma reflexão que prioriza as práticas dos
atores, dando menor ênfase à dimensão dos valores que subjazem a essas
condutas, ainda que reconheça que o ideal seria a observação desses dois
aspectos reunidos.
1.O FLUXO DAS TRAJETÓRIAS
Com relação
ao fluxo, os itinerários escolares encontrados, caracterizam-se, de um modo
geral, por sua fluência, linearidade, continuidade. Trata-se de um percurso que
se faz sem rupturas e que parece desembocar na universidade como que
“naturalmente”. Se se toma os fatores repetência e interrupção dos estudos como
indicadores do fluxo de uma trajetória, vê-se que - para esse grupo - o
itinerário escolar se desenrola sem rupturas e de modo absolutamente fluente,
em nítido contraste com os trajetos de tipo errático freqüentemente observados
nos meios populares4.
A maior
evidência empírica desse fato está na idade de entrada na universidade, a qual
resume, em si mesma, a fluência de um percurso. 40% dos jovens pesquisados
chegaram à universidade antes da idade regular, ou seja, aos 17 ou aos 18 anos
incompletos. Se a eles se adicionarem os 35% que nela chegaram em idade regular
(18 anos completos, no caso brasileiro), teremos que 75% do universo pesquisado
não apresentam, em seu passado escolar, qualquer tipo de atraso5.
Em síntese, para caracterizar, em poucas
palavras, o tipo de trajeto que essas escola-ridades configuram, recorro à
expressiva metáfora utilizada por Berthelot (1993) em sua pesquisa sobre a
orientação escolar e profissional na França, para definir o itinerário escolar
pós-secundário de uma pequena parcela de seus pesquisados, o qual se
notabilizaria por apresentar “a precisão e a rapidez de uma flecha”.
2.AS REDES DE ENSINO E OS ESTABELECIMENTOS
FREQÜENTADOS
Tem-se tornado habitual, entre os
pesquisadores, a afirmação de que, no Brasil, nas últimas décadas, dois tipos
de trajetória escolar vêm se estruturando: de um lado, freqüência a escolas
privadas de ensino fundamental e médio e, depois, ensino superior público para
os favorecidos - o chamado “circuito virtuoso”; e, inversamente, freqüência a
escolas públicas de ensino fundamental e médio e, depois, faculdades
particulares (em geral de baixa qualidade) para os mais dasafortunados - o
chamado “circuito vicioso” (Souza, 1990/1991).
Ainda que uma aproximação ao circuito de
tipo “virtuoso” possa ser esboçada a partir das trajetórias recolhidas, não se
pode, no entanto, encerrá-las numa estrutura de tipo dicotômico, segundo a qual
esperar-se-ia encontrar, dada a origem social desse grupo de jovens e o momento
histórico em que viveram seu período de escolarização, um passado escolar de
nível fundamental e médio totalmente desenrolado na rede particular de ensino.
Como veremos, os favorecidos podem - em certas condições - se utilizar da
escola pública.
Dado que, por uma delibáração metodológica, o
ensino superior público federal constitui uma constante nessas 37 trajetórias,
focalizar-se-á sua distribuição segundo a rede de ensino apenas no que concerne
à história escolar anterior à universidade. Os dados encontrados foram:
•15 casos (40%) de percurso do tipo “todo
privado” (ensino fundamental e médio);
•14 casos (38%) de percurso do tipo “misto”
(alternando público e privado);
•8 casos (22%) de percurso do tipo “todo
público” (ensino fundamental e médio)6.
Usuárias fiéis da rede particular, as
famílias incluídas no grupo “todo privado” - fração majoritária da população
pesquisada -, são as que apresentam menor número de filhos e, portanto, maior
capacidade financeira de arcar com as despesas de escolarização deles.
Nas situações de “percurso misto”, a passagem
de um setor a outro se dá em 86% dos casos, no sentido do público para o
privado. As transferências se concentram nos estágios iniciais da escolaridade,
revelando que, para esse grupo, o uso da escola pública decresce na medida em
que se avança na carreira escolar.
O percurso
“todo público” aparece entre as famílias mais numerosas, compostas por fratrias
com mais de 3 filhos, as quais se vêem atraídas por uma escolaridade
integralmente realizada na escola pública. Dentre os 8 casos de alunos estáveis
da rede pública, em apenas um caso houve transferência - no decorrer do
percurso - de uma escola estadual para uma escola federal. Em todos os outros 7
casos restantes, a escolaridade se de-
senrolou
inteiramente no circuito “CP/COL.TEC ”, isto é, em situação excepcional, á
saber, nas duas escolas de aplicação da UFMG: o Centro Pedagógico - CP - (ensino
fundamental) e o Colégio Técnico - COLTEC - (ensino médio), ambas localizadas
no campus universitário da Pampulha. Como se sabe, sua vinculação à esfera
federal, aliada às privilegiadas condições de ensino decorrentes de sua
incorporação a uma universidade, fazem deles estabelecimentos públicos de
excelência.
No que concerne aos estabelecimentos
freqüentados, as escolhas verificadas sofrem pequenas modulações segundo o grau
de ensino cursado:
2.1. A pré-escola
A totalidade dos pesquisados freqüentou a
pré-escola, tendo 75% dos jovens se beneficiado de, pelo menos, dois anos de
estudos pré-escolares. Isto explica o fato de que apenas 10% deles chegaram à
primeira série do ensino fundamental ainda não completamente alfabetizados. Tal
fato sugere que, para esse grupo social, mesmo sem imposição legal, a
pré-escola já se tornou um elemento obrigatório do percurso escolar.
Do rol das 26 escolas freqüentadas, apenas
três são instituições públicas, todas elas estaduais. Mas o mais importante
ponto comum entre as três é o fato de se tratar de antigos e tradicionais
estabelecimentos de ensino, criados nas primeiras décadas deste século e, no
caso de duas delas, localizadas em bairro nobre da cidade.
2.2 - O ensino fundamental
2.2.1. Ia
a 4~ séries
A totalidade dos pesquisados entrou na 1-
série do ensino fundamental em idade regular, ou seja, ao redor dos 7 anos. 90%
deles já chegaram à escola primária completamente alfabetizados.
Do rol de 19 escolas freqüentadas, 12
pertencem à rede privada de ensino, dentre as quais se destacam alguns dos mais
tradicionais e reconhecidos estabelecimentos confessionais privados de Belo
Horizonte, ao lado de instituições mais recentes e não confessionais cuja
reputação se baseia em sua suposta eficácia pedagógica. As 7 restantes são
instituições públicas de ensino. Dentre essas últimas, 6 são instituições
estaduais representadas, em geral, por estabelecimentos tradicionais (um deles
experimental, à época) e situados em bairros nobres da cidade. Uma única instituição
é ligada à rede federal: o Centro Pedagógico da UFMG. Entretanto, chama a
atenção a ampla utilização da escola de aplicação da UFMG - onde se concentra a
maior parte das escolhas desse último grupo (50%) -, cujo ensino é reputado põr
sua boa qualidade.
2.2.2. 5a
a 8i séries
Da lista de 16 escolas freqüentadas, 13
pertencem à rede privada de ensino, dentre as quais figuram alguns dos mais
tradicionais e renomados estabelecimentos de Belo Ho-
rizonte, ao lado de instituições mais
recentes e não confessionais. Apenas 3 são instituições públicas de ensino.
Dentre estas últimas, duas são estaduais e a terceira, federal (Centro
Pedagógico). Observe-se que a concentração neste último estabelecimento aumenta
ainda mais neste nível do ensino (87% das escolhas da rede pública), numa clara
demonstração da preferência dessas famílias pela escola de aplicação da UFMG.
Se tal fato se liga, por um lado, ao recrutamento desse colégio que destinava,
à época, parte de suas vagas aos docentes dessa universidade, por outro, ele
encontra-se intimamente associado às origens desse tipo de estabelecimento,
criado para fins de pesquisa e experimentação em ensino, e à sua administração
por uma instituição universitária federal, o que lhe confere amplas credenciais
no plano do recrutamento docente e do ensino oferecido, entre outros.
2.3. O
ensino médio
Do rol das 13 escolas freqüentadas, 12
pertencem à rede particular de ensino, dentre as quais figuram tradicionais e
renomados estabelecimentos escolares de Belo Horizonte, ao lado de instituições
mais recentes. Neste nível, há apenas um caso de instituição pública: o Colégio
Técnico da UFMG7, que divide com um colégio confessional, de longa tradição na
cidade, a preferência de boa parte das famílias investigadas.
Será preciso proceder-se fíituramente -
através de análise mais acurada - a uma avaliação da repercussão, sobre o
destino escolar, da freqüentação de um campus universitário desde os primeiros
anos da escolaridade básica. De um modo muito geral, é possível distinguir,
desde já, dois níveis de influência.
No plano mais subjetivo, o discurso dos
interrogados, escolarizados nas escolas de aplicação, deixa patente a
proximidade e o sentimento de familiaridade desenvolvido para com a instituição
superior. Expressões como: “a gente cresceu dentro da universidade”; “o campus
é uma verdadeira casa”; “a gente já se sentia universitário”, permeiam os
depoimentos. Além de proporcionar um interesse mais estreito e maior
conhecimento da vida interna da universidade:
Já
tem não sei quantos anos que eu tô aqui dentro. Eu acho que cê cria o maior
amor. [...] E cê já... conhecer tantos professores assim, cê acompanha, né? Cê
acompanha os reitores que vão passando, o que que tá acontecendo, os processos
de eleição que têm aqui dentro... os problemas que têm de greve, cê acom-C ar-
A -1 panha todas as greves... cê entra de greve também, eu já era até
acostumada.
Todo ano eu
tava de greve. (Regina8, estudante de Engenharia Química.)
Por outro
lado, e num plano mais concreto, manifestam-se também favorecirrrentos como o
domínio do espaço físico e do funcionamento local (bandejões, bibliotecas,
ônibus circulares internos, etc.). Sem falar no fato de que parte dos sujeitos
declararam se servir, enquanto atividades extra-escolares, dos cursos de
línguas estrangeiras oferecidos pelo centro de extensão da Faculdade de Letras,
bem como da prática de esportes oferecidos pelo setor de extensão da Faculdade
de Educação Física.
Para
concluir esse ponto relativo aos estabelecimentos freqüentados, observe-se que,
quando se passa da pré-escola ao ensino médio, diminui crescentemente o leque
dos estabelecimentos. Passa-se de um rol de 26 instituições no nível
pré-escolar a uma dispersão da escolha da ordem de 19 estabelecimentos da lâ a
4a séries, 16 da 5® a 8a séries e, finalmente, 13 no nível do ensino médio.
Também o número de estabelecimentos públicos freqüentados cai
consideravelmente, na medida em que se avança na escolaridade, passando de 7 no
nível da lâ a 4- séries, para 3 no nível da 5a a 8a séries e para apenas um no
nível do ensino médio.
Com relação
às razões da escolha dó estabelecimento, ressalta-se que - à exceção da
pré-escola - a opção pela “qualidade do ensino” constitui o principal critério
de escolha em todos os níveis da escolaridade, embora quase sempre associado
(mas secundariamente) a outros fatores, tais como: praticidade (distância do
domicílio, horários, preços), pedagogia praticada (inovações pedagógicas,
disciplina), tradição familiar (pais, tios, irmãos ex-alunos) ou
confessionalidade.
Deve-se
acrescentar a isso o fato de que, à medida que se avança na carreira escolar
(isto é, da escola elementar ao ensino médio), as razões de ordem prática têm
sua importância diminuída no ato de escolha9.
Todos esses
elementos estão certamente associados às preocupações familiares com a
aproximação do vestibular, uma vez que, para esse grupo, esse é o destino
escolar “naturalmente” esperado.
3.O MOMENTO DO VESTIBULAR
Mais do que
uma decisão, a ida para a universidade aparece, nessas trajetórias, com a força
de uma quase “evidência”. Na grande maioria das entrevistas, os interrogados
manifestam, explicitamente ou em filigrana, a certeza íntima de que a chegada à
universidade é inevitável e está inscrita em seu destino escolar. É
interessante observar que essa certeza interior se mantém constante em modelos
relativamente diferentes de socialização familiar. Os dois depoimentos abaixo
demonstram que modulações no habitus familiar não conseguem impedir essa
orientação:
Lá em casa, é muito da criação, meu pai sempre
achou que carreira que não fosse estudar, formar, arranjar um emprego e
trabalhar [...] não era muito bom. E!e sempre valorizou muito isso e isso ficou
muito em mim. A influência foi muito grande. E eu sabia. Eu sentia. Eu não
sabia separar se era uma coisa realmente minha ou se era uma coisa que ele foi
colocando na minha vida como uma certeza, de que eu tinha de fazer faculdade.
Então, eu não sei te dizer se para um garoto de 13,14 anos, ele falar que vai
fazer faculdade é uma coisa dele, é uma coisa íntima, ou se era influência da
família. Minha mãe havia feito, meu pai havia feito. Era uma carreira normal.
Eu não entendia muito bem alguma coisa fora disso. {Rafael, estudante de
Engenharia de Minas.)
Minha mãe
sempre falava que a gente era obrigada a terminar o primeiro grau, que o resto
seria opção da gente. Segundo grau e faculdade seria opção da gente. Só que eu
nunca vi como uma opção. Eu sempre tive certeza que eu ia fazer tudo. Eu nunca
pensei em parar. Os meus colegas não iam parar. Todo mundo ia continuar. Eu não
via sentido em parar. Parar para quê? Para trabalhar? Eu não tinha nenhuma
perspectiva de trabalho, eu não tinha nenhum interesse específico. Eu vi,
realmente, que eu ia terminar o colégio, fazer a faculdade. (Olívia, estudante
de Administração.)
Esse traço se manifesta mesmo nos casos em que
a trajetória não se pauta pelos padrões de excelência, tal como os define a
instituição escolar:
Eu nunca fui
um aluno exemplar, [...] se tirasse um 100 era bem-vindo, mas meij objetivo não
era tirar o 100. Meu objetivo era saber dar conta da escola, não viver só para
a escola. (...) Seria procurar a diversão junto com a escola. Nunca só
diversão, nunca só escola. Meus irmãos também chegam nessa linha também. A
escola é escola, tem que fazer, não tem que fazer obrigado, mas sempre: vamos
chegar no 2- grau, vamos chegar na universidade, mestrado e tal. Tanto é que
hoje todos estão no mestrado, doutorado. Daqui a pouco sou eu: mestrado, doutorado,
o Daniel. Então, assim, meu pai, todo mundo mais ou menos seguindo a linha do
meu pai, que fez mestrado, doutorado. A vida toda dele foi em tomo da
universidade, estudar, formar, passar no concurso e ser professor. (Fernando,
estudante de Educação Física.)
A
tese da “causalidade do provável”, formulada por Bourdieu, parece ser a melhor
explicação para esse fenômeno, na medida em que estabelece que a propensão ao
provável, que orienta as aspirações e as condutas dos sujeitos, resulta da
interiorização das condições objetivas de existência ou, mais precisamente, da
confluência entre um “agente predisposto e prevenido, e um mundo presumido,
isto é, pressentido e prejulgado, o único que lhe é dado conhecer” (Bourdieu,
1998: 111).
Mas a
despeito da escolarização superior aparecer como uma quase-evidência, o período
que cerca o ingresso na universidade é vivido de modo tenso e marca fortemente
as trajetórias escolares, em razão da consciência que têm os jovens da acirrada
seleção a que estarão submetidos, embora em graus variados segundo o maior ou
menor prestígio do curso escolhido. Visando elevar as chances de sucesso na
competição pelas vagas na universidade pública, algumas estratégias são
acionadas. Duas delas se sobressaem pela í 1 freqüência
com que são utilizadas ou por seu grau de eficácia. São elas: a estratégia do “treineiro”
e o “efeito cursinho”.
3.1. A estratégia do “treineiro”
Tal
estratégia consiste na prática de se expor ao exame vestibular antes mesmo da
conclusão do ensino médio, visando treinar-se e, assim, capacitar-se para
enfrentar esse exame no momento oportuno10.
Metade dos estudantes da amostra submeteu-se
uma ou duas vezes a essa prática an-tecipatória. Em dez casos, ela ocorreu ao
final do segundo ano colegial; em outros dez, no meio do terceiro ano. Em
apenas um caso ela se deu já ao final do primeiro ano.
Desse total
de 21 “treinos”, em 11 casos houve aprovação e em 6 reprovação, tendo 4
estudantes abandonado o teste antes de seu final.
As razões
declaradas pelos jovens para enfrentar o teste não são propriamente
surpreendentes e provavelmente seriam encontradas em outros meios sociais: dar
um balanço em seus conhecimentos, avaliar seu desempenho, conhecer os
procedimentos das provas:
Quando eu
estava terminando o segundo ano, eu falei: vou fazer vestibular para Educação
Física, porque tinha aquela prova específica, aquela prova didática. Eu vou
fazer um ano antes para eu ver que bicho é esse, [...] para eu não chegar na
hora H mesmo, para valer, para eu não chegar muito nervoso, para eu não chegar
meio sem saber o que fazer, como que era o tempo, se o tempo da prova era muito
comprido, um tempo muito curto. Para eu errar no segundo ano, aquela hora podia
errar. Depois, no terceiro ano, não podia errar, tinha que passar. (Fernando,
estudante de Educação Física.)
O que
dificilmente poderia ser captado fora da situação de pesquisa é toda uma gestão
calculada e informada, por parte de alguns desses estudantes, da melhor
rentabilidade a ser extraída desse empreendimento:
Aí, no
segundo ano [do colegial], como eu estava na dúvida em que eu ia fazer
vestibular, estava com uma forte tendência que era área biológica. Então, no
segundo ano, eu fiz vestibular para Farmácia. Só na UFMG, porque primeira etapa
[do vestibular] era igual e a segunda etapa, na prova de Farmácia, eu ia ter
Química e Biologia, das específicas. [...] E qualquer outro curso das Ciências
Biológicas estaria coberto porque a prova especifica era a mesma. [...] Farmácia
era um curso que não era muito conconido, que eu teria condição... eu teria
mais chance de passar para a segunda etapa. Então, falei: então pronto, vou
fazer prova de Química e Biologia, o que eu escolher, já vou ter uma
experiência. (Lucas, estudante de Medicina.)
Então, a
turma que ia fazer Exatas, a gente fez inscrição para a Física, porque o curso
de Física, a primeira etapa, o mínimo de pontos que pedem para você passar para
a segunda etapa era bem mais baixo do que a Engenharia. [...] Acho que o mínimo
era 70. Na Engenharia era por volta de 100. [...] Então, a gente pensou assim:
vamos fazer para a Física, porque a primeira etapa é igual para todos os
cursos, e a segunda etapa é igual para todas as engenharias. Igual assim, praticamente
igual porque não tem química, não. Acho. Praticamente igual. (Leonardo,
estudante de Engenharia Mecânica.)
Esse mesmo
estudante de Engenharia Mecânica também “treinou” o vestibular da PUC-MG na
área de Mecânica, quando estava no meio do terceiro ano colegial. Eis suas
impressões: -
Esse
vestibular dar Católica, eu não sei se valeu muita coisa para mim, não. [...]
Passei em quarto [lugar] lá. Só que o nível do meio do ano da Católica é mais
baixo. É porque quem faz mais vestibular no meio do ano da Católica é o pessoal
que fez no final do ano, fez na Federal, porque a Federal só tem no final do
ano. Fez na Federal, não passou, não passou na Católica no final do ano, então
vai fazer no meio do ano.
Na verdade,
o que aparece com força inesperada, nos depoimentos, é que os resultados
positivos do treino incidem menos no plano cognitivo ou do saber-fazer, e mais
no plano emocional. A tal ponto que me parece lícito afirmar que sua mais
poderosa atuação consiste em seus efeitos tranqüilizadores e reconfortantes. A
esse respeito, um depoimento resume vários outros:
[...] porque
eu queria ver como era uma prova. Eu achei bastante tranqüilizante, porque eu
não estava numa situação de prova, não estava sendo testado. Eu é que estava me
testando. Eu não tinha obrigação de passar. Então, eu ficava olhando o pessoal
do lado mordendo gola de camisa, nervoso e eu... tranqüilo. [...] Meu pai
também falava, minha mãe também falava. Inclusive eles ficaram bem tensos. Não,
Rafael fica tranqüilo, você não está precisando ser aprovado, não se preocupa,
vai lá. E estavam com medo de ser algum impacto para mim se eu não passasse. E
passei. [...] Mas isso me deu bastante tranqüilidade para estudar. E quando fiz
o vestibular valendo realmente, eu não estava sob tensão nenhuma. (Rafael,
estudante de Engenharia de Minas.)
Essas
condutas devem ser consideradas no quadro das características que marcam a
relação das famílias culturalmente favorecidas com o universo escolar. Dentre
essas características, os sociólogos têm observado um traço designado como
“antecipação à ação e aos ritmos escolares" (Devouassoux-Merakchi, 1975).
De diferentes maneiras, a família ou o próprio jovem se antecipam à ação
pedagógica escolar, no intuito seja de uma superpre-paração para os momentos
decisivos do percurso escolar, seja de prevenção a eventuais acidentes futuros
(atrasos, reprovações, etc.). Ao que parece, esse traço tende a se fortalecer e
a se estender ao longo das escolaridades, evidentemente com variações nas suas
formas de manifestação segundo as conjunturas escolares. Um indício dessa
tendência pode ser encontrado na história escolar de Gilberto, estudante de
Matemática que, decidido a mudar de estabelecimento ao final da 8a série do
ensino fundamental, antes de partir em viagem de estudos para a Holanda,
candidatou-se - apenas com o intuito de “treinar-se” (já que ficaria no
exterior por seis meses) - aos testes de seleção de dois colégios confessionais
de grande tradição na cidade, os quais, em razão de sua boa reputação,
desfrutam de uma demanda maior do que sua capacidade de atendimento, o que os
obriga a selecionar os candidatos provenientes de outros estabelecimentos.
Temos aqui, então, um caso de “treineiro” em testes de seleção para o ensino médio.
3.2. O
“efeito cursinho”
Ao estudar o
perfil dos candidatos ao vestibular da UNESP dos anos de 1985 e 1986, a
socióloga Dulce Whitaker (1989) criara a expressão “efeito cursinho” para
designar a maior probabilidade de sucesso (em maior ou menor grau, segundo o
ramo universitário escolhido), verificada entre os vestibulandos que prestavam
o exame um ou dois anos após a conclusão do ensino médio e que,
presumivelmente, haviam passado pelos cursos pré-vestibulares. Repetindo a
experiência dez anos depois, Whitaker & Fia-mengue (1999), focalizam agora
os perfis dos candidatos de 1995 e 1996 e confirmam o “efeito cursinho”, embora
peçam prudência no uso dessa expressão, Uma vez que detectaram o surgimento -
durante a década - de novos modos de preparo para o vestibular, tais como:
“oficinas de redação, cursos de Exatas com aulas individuais ou em pequenos
grupos, aulas de línguas, etc., que o jovem combina de acordo com as
possibilidades financeiras da família” (p. 65).
Os dados de
Whitaker & Fiamengue - reunindo vestibulandos originários de meios sociais
diferentes - são apenas parcialmente verificados quando se trabalha com uma
amostra de jovens provenientes de lares altamente diplomados. Do total dos 37
jovens, 19 passaram por um cursinho, mas 18 (49%) não o fizeram.
Mas o mais
importante é que foi justamente entre esses 18 últimos que a aprovação no
vestibular se deu em melhores condições: 10 deles obtiveram os primeiros
lugares na classificação final do exame (8 deles entre o primeiro e o quinto
lugares, geral ou em suas áreas). Quando indagados da razão da dispensa do
cursinho, muitos declararam que o mesmo se fazia desnecessário em função de seu
bom desempenho escolar anterior, numa forte demonstração de autoconfiança, para
a qual o próprio resultado positivo do “treino" pode contribuir:
A princípio
eu tinha até essa preocupação de talvez fazer cursinho. [...] Mas depois do
resultado da PUC, no meio do ano [treino], já foi descartada essa hipótese
mesmo de fazer [cursinho], de ter algum reforço. Realmente eu estava bem
confiante. Confiança mesmo que cortou essa opção de cursinho. (Carlos,
estudante de Ciências Contábeis.)
Não, nunca
fiz cursinho. Ah, tinha passado no segundo ano [colegial, como treineiral, não
era possível que no terceiro ano eu não passava. Muita coisa mais eu sabia.
(Mareia, estudante de Física.)
Uma outra razão - bastante distinta da
excelência escolar - aparece secundariamente para a dispensa do cursinho: a
baixa competitividade na luta pelas vagas nas carreiras de menor demanda:
Uma coisa é
que o vestibular da Filosofia deve ter influenciado [a decisão de não fazer
cursinho], porque 8 por vaga... As coisas vão e voltam. Porque, assim, eu não
vou passar, oito por vaga, eu passo. Outra, também, não tinha tempo. Porque eu
tinha aula de manhã e à tarde, e eu fazia inglês e francês. (Miguel, estudante
de Filosofia.)
Já quanto às
novas formas de preparação, detectadas por Whitaker & Fiamengue, o mesmo se
verificou na pesquisa aqui relatada. Em particular, o aparecimento, com muito
sucesso, em Belo Horizonte, de uma espécie de cursinho “à la carte”, onde o
aluno se concentra nas disciplinas em que se sente menos preparado, alocando
nelas o tempo que gastaria com aquelas nasrquais considera que atingiu bom
nível de rendimento. Ocupando o segundo lugar no rol dos pré-vestibulares
freqüentados pelos pesquisados, o cursinho Edna Roriz (o “cursinho da Edna”,
como é mais conhecido), criado em 1986, apresenta essas características11.
Eu fiz
[cursinho] no segundo semestre do terceiro ano [colegial]. Eu fiz na Edna, não
sei se você conhece. [...] E na casa dela, tinha só aula de Matemática, Física
e Química. [...] Isso é uma característica do curso dela. Para você fazer o
curso com ela, obrigatoriamente você faria essas três matérias, são as matérias
que ela própria dá. E se você quiser fazer Biologia, você faz; se você quiser
fazer Português... Aí, o resto é opcional. [...] Lá tinha muito problema de
matrícula, que são pouquíssimas vagas e tal. Então, o pessoal deixa o nome com
um ano de antecedência. (Olívia, estudante de Administração.)
Não sei se
você já ouviu falar no cursinho da Edna. Pois é, ela me deu aula só de Química.
Inclusive tinha um pessoal que praticamente morava na casa dela. Eu, não. Eu só
ia para a aula de Química, porque eu fiquei um pouco com medo de Química para a
segunda etapa. (Priscila, estudante de Fisioterapia.)
Para fechar
esse ponto, resta assinalar que a duração do cursinho variou entre um e 6
meses. Em apenas 3 casos, excedeu-se os 6 meses.
3.3. O
vestibular verdadeiro
Recém-saídos
do ensino médio, a grande maioria dos investigados presta apenas um vestibular.
Com efeito, 84% deles obtêm sucesso na primeira tentativa de ingresso na
universidade. Daí o fato de chegarem ao ensino superior aos 17 ou 18 anos, como
se viu acima.
Além disso,
sua boa classificação no exame também se evidencia. Do total do grupo de 37
jovens, 13 (35%) obtiveram os dez primeiros lugares na classificação geral ou
de suas áreas, passando esse total para 15 (41%) quando se vai até o 152 lugar.
No momento da escolha da instituição de ensino
superior, a opção pela UFMG aparece como uma decisão “óbvia”, termo empregado
por um dos entrevistados. Freqüentemente, em seu discurso, esses jovens
contrapõem a maior universidade instalada em Belo Horizonte às outras
instituições de ensino superior localizadas na cidade. A superioridade da
universidade federal aparece associada, em primeiro lugar, à qualidade da
formação oferecida, a qual, por sua vez, encontra-se ligada a um clima
favorável ao desenvolvimento de habitus acadêmicos e de uma cultura
universitária que seria digna desse nome. Em acréscimo a isso, mas apenas em
segundo lugar, intervém a vantagem de um ensino gratuito.
Eu fiz
vestibular na PUC, no Izabela [Instituto Metodista Izabela Hendrix] e na
Federal. O da PUC foi supertranqüilo porque eu já tinha passado no meio do ano
[treino], então eu fui muito confiante, sabe? E do Izabela, eu fui não querendo
passar, por causa que eu fiz mais por obrigação, né? [...] Mas a prova tava
muito fácil. Eu passei. Agora, o vestibular da Federal que, acho que eu tinha
muito aquela... aquela... nó, meus pais, professores da Federal, eu tenho que
passar. [...] Pra mim não valia outro vestibular. Talvez tenha sido uma cultura
que eu fui pegando, né? Aqui em casa sempre falaram muito assim: a única
universidade que presta é a Federal. O resto é só para ganhar título. Então
assim, ficou aquela coisa na minha cabeça, né? (Solange, estudante de
Comunicação Social.)
Mesmo nos
casos em que o ingresso na universidade pública não se deu na primeira
tentativa, a utilização - como segunda chance - de cursos superiores privados,
não elimina essa visão das coisas, nem extingue a decisão de perseverar na
busca do objetivo primeiro: a entrada na “Federal”. E o caso de Celina,
estudante de Ciências Sociais, que só conseguiu chegar à universidade pública
federal depois da passagem de um ano pelo ensino superior particular:
Eu detestava
a [nome da instituição de ensino privada], Eu era apaixonada pela Federal e
tinha ódio da [nome da instituição de ensino privada], Porque parece colégio. E
igualzinho colégio. Cê chega lá e tá todo mundo a mesma coisa. Aí tem uma
cantininha, cê vai pra cantina e volta pra sala de aula. Aquilo ali é um
esquema de co-legião, entendeu? Eu não me sentia... eu senti que eu não tava na
universidade.
E também o
caso de Alexandre, estudante de Engenharia Civil que, em sua primeira tentativa
de vestibular, obteve aprovação apenas em curso particular da Fundação Mineira
de Educação e Cultura. Ele relata:
Eu estudei
lá uns quatro meses, aí eu entrei num cursinho e vim fazer vestibular de novo.
[...] Eu desisti da FUMEC... primeiro que eu sempre quis estudar aqui na
Federal, eu sabia que pros meus pais era a maior felicidade, já que eles davam
aula aqui, e por ser a melhor faculdade de Belo Horizonte. Então sempre tive vontade
de estudar aqui. A FUMEC, eu tinha aula à noite, isso já não me agradava nada e
não estava muito legal lá, não estava achando bom o jeito que estava correndo o
curso, aí eu tranquei na FUMEC e vim fazer vestibular aqui.
Mas este
último depoimento aponta para outras dimensões - mais diretamente ligadas ao
âmbito da afetividade - que estão igualmente na origem do apego desses jovens à
Universidade Federal. De um lado, ainda que boa parte desses pais se proíbam de
impor e até mesmo de externar seus desejos ou seus pontos de vista, quando se
trata de decisões atinentes ao futuro profissional do filho12, este último não
só consegue captá-los, como se mostra sensível aos anseios paternos - ainda que
implícitos, na maior parte das vezes - e reage de forma a fortalecer sua
inserção nas relações afetivas familiares.
De outro,
esse apego »esponde também a necessidades de construção e de revelação de suas
identidades sentidas pelos jovens, as quais encontram na família contemporânea
os meios de sua realização. Apóio-me aqui nas teses recentemente desenvolvidas
por François de Singly (1996A), que vem deslocando o debate sobre as funções da
família, de seu eixo anterior, centrado na reprodução biológica e social, para
o papel - que lhe parece preponderante na família contemporânea - de espaço
privilegiado de reconhecimento e valorização das identidades pessoais latentes,
de revelação e desenvolvimento do “eu", tanto adulto quanto infantil. Para
ele, as relações pessoais e afetivas que se desenvolvem entre os membros da
família (“les autruis significatifs”) permitem que cada um descubra os recursos
profundos que configuram sua identidade íntima, responsável pelo sentimento de
“autenticidade”, produto do individualismo contemporâneo.
E que eu não
ia gostar de estudar na Católica. Acho que é porque meus irmãos estudam na
Federal, e de repente eu estudo na Católica?! Lá em casa sempre fui vista como
a que estuda menos. Eu ia ficar meio chateada de não ter passado [na UFMG).
[...] Mamãe até trabalha na Católica. Ela gosta demais da Católica. A Católica
é uma universidade boa, eu sei, mas é porque é aquele preconceito que eu mesmo
tenho, eu sei que se eu estivesse estudando na Católica eu ia estar fazendo um
bom curso... mas eu prefiro falar que estudo na Federal. (Andréa, estudante de
Direito.)
O mais
interessante é que nem mesmo nos poucos casos encontrados de trajetórias
acidentadas ou problemáticas, essa disposição - durável como qualquer outro
habitus - é capaz de se cilterar. O depoimento que se segue foi prestado por
Celso, estudante de Belas-artes, cuja vida escolar foi marcada por duas
reprovações no ensino fundamental, curso supletivo no nível do ensino médio e
algumas tentativas fracassadas de entrar na universidade:
Eu queria
entrar para a Federal. Primeiro porque, apesar da minha mãe não me proibir...
Por exemplo, se eu entrasse para a Católica ou alguma faculdade que fosse cara
e tudo, ela até pagava. [...] Ai, assim, se ficar muito caro, dá um tempo, você
tenta para passar para a UFMG depois. Mas só que eu não sei... eu sempre
estudei aqui na UFMG [Centro Pedagógico], eu tinha um certo carisma com a UFMG
também. Conhecia as escolas aqui, conhecia o campus todo. E se fosse estudar
pela Católica ia ser outra mudança na minha vida, uma escola longe, pegar ônibus...
Tiríham amigos meus mais velhos que estudavam na Federal, que falavam sobre o
curso. Então, é de graça, tinha o espaço. Esse tipo de coisa. Católica... eu
não conseguia me ver na Católica, não.
4.A VIDA ACADÊMICA
Tendo a
pesquisa sido realizada no momento em que a maior parte dos jovens ainda
cursava o ensino superior, torna-se impossível a observação da totalidade do
percurso universitário. No entanto, alguns dados foram detectados e merecem ser
destacados, no intuito de um maior desenvolvimento em investigações futuras.
A meu ver, o
aspecto mais importante, em razão de suas conseqüências acadêmicas, é a força
que adquirem, nessas trajetórias, as atividades extra-sala de aula, que ocorrem
paralelamente às aulas e atividades curriculares mínimas obrigatórias. Para
além do currículo básico previsto em cada uma das formações escolhidas, grande
parte desses jovens realiza atividades que estendem, reforçam, ampliam os
saberes e saber-fazer mínimos oferecidos nos cursos freqüentados.
E assim que
51% dentre eles detêm, ou detiveram em algum momento do curso, uma bolsa de
iniciação científica (IC). A isso devem ser agregados os diversos casos de
monitoria de graduação, participação em programas de extensão universitária e
estágios facultativos, elevando ainda mais esse percentual.
Alguns fatores devem ser considerados aqui.
De um lado, o alto grau de informação sobre o sistema universitário (e seu
funcionamento) de que dispõem esses jovens, dada a familiaridade que possuem
com o mundo acadêmico, decorrente do contacto cotidiano e doméstico com os
meandros desse universo:
Eu sempre
vivi no meio da universidade. Então assim, tenho uma facilidade... muita coisa
que eu entendo de universidade, meus colegas não entendem às vezes... Então
assim, muito porque... por convivência mesmo. Bom, minha mãe é professora
universitária. Meu tio, irmão dela também, a irmã dela também. Então assim,
domingo, na casa de minha avó, eu ouvia tudo da universidade. Ouvia mil casos,
os amigos deles são professores da universidade. (Mareia, estudante de Física.)
De outro
lado, o papel ativo desempenhado pelos pais revela-se fundamental na
concretização desses fins:
Desde
que eu entrei na faculdade, minha mãe e meu pai sempre falaram isso, que a
gente tem que correr atrás, porque na faculdade ninguém vai correr pela gente.
E que isso é nosso futuro profissional. Então, se a gente pudesse fazer
monito-^ ria, a gente fizesse. Se a gente pudesse trabalhar em projeto de
iniciação científica, trabalhasse. (Cecília, estudante de Terapia Ocupacional.)
Dentro de
casa eu sempre tive um apoio para poder desenvolver atividades
extracurriculares. (...) E quando isso interferia de certa forma, um pouco na
carreira acadêmica normal, meu pai nunca viu isso como problema. Ele sempre
apoiou atividades extracurriculares..., acho que ele julga isso muito
importante. E acho que de certa forma ele deve ter razão, acho que contribuiu
para eu continuar assim.
É... a
importância que eu dou para as atividades extracurriculares. Porque o currículo
padrão, todo mundo faz. (Lucas, estudante de Medicina.)
Ao
ser indagado sobre o que entendia mais precisamente por atividades
extracurriculares, ele respondeu: “Tudo que você não está fazendo só para a
universidade, para ter aula e passar de um ano para o outro”.
Característica freqüente em famílias
culturalmente privilegiadas, o desprezo pelo utilitarismo ou, mais
precisamente, por formas utilitárias de aprendizagem escolar - em oposição ao
saber como fim e valor em si mesmo -, não constitui objeto deste texto e será
tratado em outro trabalho, em fase de preparação. Convém, no entanto, assinalar
que as inúmeras manifestações desse fenômeno - tais como: a depreciação do
“decore-ba” (em oposição ao raciocínio), do trabalho meramente copiado do livro
ou da enciclo-| pédia (em oposição a uma apropriação pessoal do conhecimento),
do mundo do “cruzado” (i.e., da múltipla escolha, em oposição a questões
abertas), do “macete”, da “apostila", a crítica ao estudo meramente em
função da sanção exterior (da nota, da aprovação, do diploma) - acabam por se
constituir num treinamento para a excelência e a autonomia intelectual, para a
formação de um “espírito crítico”, valor intelectual contemporâneo cuja
rentabilidade no mercado escolar nem sempre é imediata ou facilmente visível.
Esta questão está exigindo, com urgência, estudos mais aprofundados - como o de
Almeida (1999) em razão de seu peso na construção das desigualdades escolares
e, ao mesmo tempo, de seu papel na camuflagem delas.
Mas não se
deve pensar que o papel desempenhado pelos pais, nessas famílias, se limita a
conselhos ou exortações verbais prodigados. Com efeito, ele se estende também
ao plano mais eficaz das ações concretas, que expressam investimentos intensos
e diretos na vida acadêmica do filho. Citemos alguns exemplos.
A mesma
estudante de Terapia Ocupacional, acima mencionada, cuja mãe ocupava, à época,
posto importante num dos principais órgãos nacionais de fomento científico,
declarou ter contado grandemente com sua ajuda na elaboração de um projeto de
pesquisa, mediante o qual candidatou-se e obteve bolsa de I.C. Mas o que parece
mais interessante, neste caso, é a mobilização da mãe, que chegou a vir a Belo
Horizonte13 conversar com a coordenadora do curso no sentido de incentivar o
departamento a incrementar suas atividades de pesquisa, solicitando maior
número de bolsas, convidando pesquisadores-visitantes, organizando eventos.
Numa fala
pontilhada de hesitações que exprimiam provavelmente o constrangimento do
entrevistado por revelar a mescla de papéis experimentada por seu pai (de pai e
professor-orientador, ao mesmo tempo)14, Francisco, estudante de Ciências Biológicas,
relatou:
Meu pai
ofereceu, como um professor normal da universidade, pra sé? meu orientador, eu
fiz o projeto, eu... é... nesse ponto ele me ajudou, é... talvez, eu às vezes
sentia até um pouco de constrangimento porque às vezes meu pai fazia, fazia
muita coisa, entende? Eu dava pra ele corrigir, ele mais do que corrigia os
projetos. [...] Ele sempre teve extremo cuidado pra não influenciar, não... na
posição dele como professor e como professor com grande influência. Ele sempre
teve extremo cuidado pra não ser injusto com outras pessoas da universidade.
É... mas na hora de fazer o projeto, por exemplo, eu fazia o projeto e ele, aí
ele punha muita coisa, ele corrigia demais, ele queria que o projeto ficasse
perfeito mesmo.
Diferentes
aspectos devem ser levantados na tentativa de compreender essas condutas
paternas, sem esquecer que estamos apenas no início do caminho desta
compreensão.
Um primeiro
aspecto, que aparece de modo explícito no discurso dos entrevistados, refere-se
à constante preocupação desses pais com as credenciais acadêmicas adquiridas
pelo filho ao longo do percurso universitário, pois, melhor do que ninguém,
conhecem a importância disso no desenrolar desse percurso, com repercussões
sobre a vida profissional futura. “Olha, preocupe-se com seu currículo, é uma
coisa importante para você”, foi o conselho dado pelo pai de Manuela, quando a
estudante acabava de ingressar no curso de Pedagogia.
Sociólogos
da família e sociólogos da educação vêm discutindo, nos últimos anos, a
necessidade com a qual se defrontam as famílias contemporâneas, de
instrumentalizar seus filhos para as diferentes situações de competição que
estes deverão enfrentar na vida, enfatizando, dentre elas, a competição pelo
capital escolar, cuja importância na determinação do destino ocupacional e da
posição social do indivíduo, é cada vez maior (Nogueira, 1998C).
Um segundo aspecto - de caráter menos
instrumental - merece ser levado em consideração na elucidação do fenômeno. Ele
diz respeito ao lugar ocupado pelo filho, nos dias de hoje, no universo afetivo
dos pais. Cada vez menos uma perspectiva de ganho futuro para eles, um recurso
contra suas inseguranças na velhice ou um meio de reprodução da descendência, a
criança deixa de representar um “capital” para se tornar um “bem de consumo
afetivo”, significando cada vez mais, para os pais, um objeto de afeto e de
preocupação, sua razão de viver, maneira de se realizar, fonte de prazer e de
orgulho (Kellerhals et ai, 1984). A meu ver, é Godard (1992) quem melhor
analisa os sentimentos de orgulho e de êxito pessoal demonstrados pelos pais
face ao sucesso ou bem-estar psicológico do filho, símbolo para eles do bem
fundado de suas próprias ações e concepções educativas, “como se esse êxito se
tomasse para os pais um critério fundamental de sua auto-estima”. E, ao
inverso, do mesmo modo, o fracasso do filho - escolar ou não - é vivido quase
que inteiramente como de responsabilidade dos pais e, com freqüência,
acompanhado de culpabilidade por parte desses últimos.
Bom, eu acho
que, para o meu pai, principalmente, porque meu pai, por ser da universidade,
sempre ter sido um cientista, de pesquisa e tal, ele gosta de me ver envolvido
nessas coisas, de, por exemplo, quando eu consegui a bolsa [de I.C.], ele
gostou. [...] Falou: vai fundo mesmo. Eu acho que ele acha legal, se sente mais
ou menos orgulhoso. Eu acho.
E mais à
frente:
Mas minha
mãe gosta também. Ela dá muita força. Tipo ela está falando: ah, já vou pagar o
mestrado para você fora, não sei o quê, arrumar um mestrado para você. (Danilo,
estudante de Geologia.)
Porém, esses
últimos aspectos afetam as famílias contemporâneas de um modo geral, embora em
graus diversos segundo o meio social. Onde situar, então, a especificidade do
grupo aqui estudado, com relação a essas questões? Por ora, só é possível
elaborar a hipótese de que essas famílias se beneficiariam de uma forma de
capital que não se reduz ao capital cultural, embora intrinsecamente ligado a
ele. Trata-se de um patrimônio que decorre de sua condição de produtores do
saber, de sua relação profissionalizada com ele (e com sua transmissão
metódica) e que pode ser investido lucrativamente na escolaridade dos filhos,
como demonstraram os exemplos acima. Essa forma de riqueza - que chamaríamos de
“capital profissional" - faz deles pais “profissionais” de estudantes
universitários, no mesmo sentido em que Establet (1987) falou de um “pai de
aluno profissional” para definir as mães, pertencentes aos estratos superiores,
encontradas em sua pesquisa.
Por parte
dos jovens - tal como “necessidade feita virtude”15 - o processo de aquisição
do habitus familiar expressa-se por meio da valorização dessas atividades e, na
maior parte dos casos, de sua adesão a elas, como se vê nas palavras do
estudante de Ciências Biológicas acima referido:
Logo que eu
entrei [para a universidade], eu já comecei... meu pai ficou tão animado, né,
de eu tá... e eu... porque assim, desde os meus quatro anos de idade, eu saio
com meu pai pro mato pra pegar libélula, porque ele tem como hobby a zoologia e
principalmente a entomologia, [...] daí vem o fato de eu ter sido tão bom em
biologia. E... então quando eu entrei na universidade, eu já comecei a pegar estágios
de uma vez. Quando eu passei, meu pai falou: “bem, já que ocê passou na
universidade agora você pode assumir estágios”. Mas não é estágios, é
participar de atividades biológicas, então eu saí numa expedição, antes de eu
entrar na universidade praticamente, eu saí numa expedição no sul da Bahia. E
uma equipe que tava saindo pra estudar uns mamíferos e meu pai, ele contratou
uma pessoa pra acompanhar essa expedição e pra pegar odonatos, libélulas, que
ele estuda, né? Coincidiu que quando eu passei no vestibular, essa pessoa não
pôde mais acompanhar a equipe e aí eu fui no lugar dessa pessoa. Então, eu
fiquei dois meses rodando a Bahia inteira, no litoral baiano né, acompanhando
essa equipe, olhando as partes de mamífero e pegando libélula pro meu pai. [...]
E o meu currículo já começou a ser feito aí.
É quase
desnecessário lembrar que a realização dessas atividades suplementares aumenta
enormemente as chances de direcionamento do estudante para os cursos de
pós-graduação stricto sensu, imediatamente após a conclusão dos estudos de
graduação:
Eu trabalhei
na iniciação científica com astrofísica com o orientador que eu gostei muito de
trabalhar com ele. A gente trabalhou num projeto que eu não tinha conseguido
acabar na I.C. Então assim, tinha idéia também de continuar aquilo, de
conseguir fechar aquilo. E... bom, eu tava com a faca e o queijo na mão. E
durante a graduação, eu fiz três disciplinas do mestrado. Então, essas
disciplinas, eu não podia aproveitá-las na graduação, mas, quando eu entrasse
pro mestrado, eram automaticamente creditadas. (Mareia, estudante de Física.)
Todos esses fatores condicionam, por certo, o
enriquecimento encontrado nos históricos acadêmicos desses universitários.
Entretanto, eles só encontram plena capacidade de atuação porque se dão em meio
a condições objetivas de existência que eximem os sujeitos do exercício do
trabalho remunerado, propiciando, por isso mesmo, estudos em turno diurno. 76%
dos estudantes da amostra não exerciam atividade remunerada durante o curso
superior e 95% deles realizavam seus estudos universitários no turno diurno16.
Ainda que
apenas 8 dos 37 cursos oferecidos pela UFMG funcionassem, à época da pesquisa,
no período noturno, não se deve acreditar que a maciça concentração verificada
no tumo diurno obedeça simplesmente a razões de oferta educacional. Como se
verá mais à frente, são as lógicas sociais subjacentes às estratégias de
escolarização desse grupo social que melhor dão conta do fenômeno. E
interessante observar ainda que os únicos dois casos encontrados de estudos
noturnos deram-se em cursos de baixo prestígio (Pedagogia e Ciências
Contábeis), segundo a definição dos sociólogos, isto é, cursos cuja clientela
apresenta, em maior grau, as características do desfavorecimento social17.
Não é
novidade para os pesquisadores que no quadro educacional brasileiro a clivagem
social mais importante a dividir as diferentes categorias sociais de alunos
face à distribuição dos bens escolares, é aquela referente ao turno freqüentado.
Dos estudos pioneiros, como os de Gouveia (1967,1968,1981), aos mais atuais,
como o de Whitaker & Fiamengue (1999), mantém-se a constatação de que a
variável turno é a que se apresenta mais fortemente correlacionada à origem
social e aquela que possui o mais forte poder preditivo, superior mesmo ao da
variável rede de ensino (pública/particular). Estudar à noite representa,
portanto, uma séria desvantagem na corrida pelos títulos escolares, efeito que
não escapa certamente aos pais pertencentes aos meios culturalmente
favorecidos, os quais se mostram dispostos a todo tipo de sacrifício para que o
destino escolar dos filhos não corra riscos.
Dentre as
situações que melhor deixam ver esse traço de conduta, talvez a mais notável
seja a oposição que fazem à conciliação de estudos e trabalho:
Eu tinha
idéia mesmo de ir trabalhar, né? E bem... um pouco combatida pelo meu pai e
pela minha mãe, né? Quer dizer, eles eram um pouco contra isso, né? Eu acho que
professor universitário tem muito disso de querer que o menino faz um nível
superior. [...] Pensando assim rapidamente, eu não conheço... não conheço ninguém
que saiu para trabalhar. Que era filho de professor e foi trabalhar. (Marcos,
estudante de Química.)
Já discuti, em artigo anterior (Nogueira,
1997), as teses bourdieusianas sobre a propensão a investir no mercado escolar
por parte dos grupos que devem sua posição social essencialmente à posse de
capital cultural. Tributários do reconhecimento e da consagração escolares,
desenvolvem disposições ascéticas face ao saber e investem pesados esforços em
sua aquisição via escola.
Meu pai
falou que enquanto eu estivesse estudando, ele gostaria que eu não trabalhasse.
[...] Ele falou que ele lutou até hoje é para eu estudar, então ele quer que
meu tempo integral seja para estudo. (Cecília, estudante de Terapia
Ocupacional.)
Mas por que,
no imaginário dessas famílias, trabalhar fora influiria negativamente sobre a
vida escolar? Quando indagados sobre isso, as respostas dos entrevistados
apontam quase sempre, como justificativa, o prejuízo para os estudos. Como a
estudante de Comunicação, Solange, que revelou: “Trabalhar, eles [os pais] não
aceitam muito, não. Até hoje. Forque acha que vai atrapalhar estudo”.
Esse receio
parece ir ainda mais longe, pois esses pais chegam até mesmo a evitar a
colaboração dos filhos nas tarefas domésticas, toda vez que isso representar, a
seus o-lhos, uma ameaça ao aproveitamento escolar. A esse respeito, observe-se
a semelhança entre os discursos de Cinthia, estudante de Psicologia, e Miguel,
estudante de Filosofia, respectivamente:
Se a gente
está estudando, está estudando. Se tem que fazer alguma coisa, eu estou
estudando, eu estou ali, eu sou dispensada de outras atividades. Por exemplo?
Ajudar, arrumar a cozinha. Se eu tenho uma prova amanhã, falo: não, vou
estudar, então estou liberada.
[...] quando
eu estou estudando, assim, digamos que eu esteja estudando, chega o mercado
para ser tirado do carro, eu vou tirar. Mas se eu ficar estudando, ninguém vai
pedir para eu parar de estudar. Se alguém tiver lendo, fica lendo. Tem outros
lugares, por exemplo, que as pessoas falam assim: pô, você não está fazendo
nada, você está lendo! Isso é uma coisa que lá em casa: não, está estudando,
está estudando.
Quanto aos 9
casos encontrados de exercício de atividade remunerada, um aspecto chama a
atenção: em 7 dentre eles, trata-se de trabalho em tempo parcial e, na maior
parte, com caráter eventual. Quanto à sua natureza, ele consiste em aulas
particulares (de disciplinas afins ao ramo universitário freqüentado ou de
língua estrangeira), ministradas em domicílio ou na residência do
universitário, ou, em aulas de língua estrangeira (inglês ou francês) ministradas
nos chamados “cursos livres” de idiomas. Em geral, esse segundo tipo de
atividade decorre dos períodos de estudo no exterior, como se verá no próximo
item.
E aqui uma
consideração se impõe. Muito provavelmente a razão pela qual tais práticas são
toleradas pelas famílias, reside nas condições de trabalho e, sobretudo, no
conteúdo das mesmas. Atividades de ordem intelectual e, mais precisamente
escolar, esses encargos docentes não representam nenhuma contradição com o
ofício de estudante mas, ao contrário, vão no sentido de seu prolongamento.
Mas seria
essa recusa à conciliação trabalho/estudo uma tendência irreversível, nesses
meios? É preciso ser cauteloso quanto a isso, pois dados mais recentes,
emanados do levantamento feito por Whitaker & Fiamengue (1999) com o
público estudantil da UNESP, sugerem que, nos últimos anos, sob pressão do
modelo neolibeicil, famílias das classes médias (no sentido econômico do
termo), mesmo aquelas mais providas em capital cultural, têm sido obrigadas a
levar seus filhos ao mercado de trabalho, como forma de enfrentamento da crise
econômica que as afeta mais diretamente.
5.OS ESTUDOS NO EXTERIOR
A análise
dos itinerários escolares percorridos pelos jovens pesquisados não ficaria
completa sem referência à marca do cosmopolitismo presente nessas trajetórias.
Com efeito, praticamente a metade da amostra (46%) passou por, pelo menos, uma
experiência de estudos no estrangeiro. Sobre o total de 37 casos investigados,
17 apresentavam experiências de escolarização no exterior, em momentos
diferentes de sua escolaridade. Dentre esses, 4 casos acusaram duas
experiências internacionais diferentes: em 2 casos no mesmo país (os Estados
Unidos) e, nos 2 restantes, em países diferentes (Bélgica e França, num deles;
Holanda e França, no outro).
A estratégia
de escolarização no exterior encontra suas formas de viabilização através de
diferentes mecanismos:
a)Mudança
temporária da família para país estrangeiro para fins de aperfeiçoamento
acadêmico dos pais (doutorado, pós-doutorado, estágio sabático, etc.). Neste
caso, a duração da escolarização no estrangeiro e o período escolar freqüentado
variam de um caso a outro; podendo, este último, incidir sobre desde as séries
elementares até o período universitário. E de se salientar que alguns desses
jovens usufruíram de mais de uma temporada de estudos no exterior, pelo fato de
nem sempre haver coincidência entre os estudos do pai e os da mãe, mesmo quando
estes vivem em regime matrimonial. E freqüente, no discurso dos pais que optam
pela saída do país, encontrarmos associados o propósito de aperfeiçoamento
acadêmico com a oportunidade de oferecer aos filhos essa experiência escolar.
Podendo até mesmo, em alguns casos, a segunda razão primar sobre a primeira.
b)Estadias
de mais curta duração (por volta de 6 meses), financiadas pelos pais e, via de
regra, no decorrer dos estudos universitários. Neste caso, mediante o mecanismo
de trancamento de matrícula na instituição de ensino brasileira, é o jovem que
se desloca sozinho para o exterior, seja para um estágio lingüístico, seja para
estágios no campo de seus estudos universitários. Como, por exemplo, o caso de
Irene, estudante de Arquitetura, que ao final do 52 período do curso ganha de
presente do pai uma viagem à Europa, onde permanece 6 meses e realiza um curso
de inglês, na Inglaterra, por um mês, e depois segue, na Itália, cursos de
italiano e de História da Arte e do Renascimento. Ou, então, o caso de
Francisco, estudante de Biologia, que ao final do 5S período trancou matrícula
e foi para a Europa, graças ao empenho da família, segundo suas palavras:
(...) meus
pais sempre quiseram levar a gente para o exterior. Eles achavam extremamente
importante todos os filhos terem uma dose de Europa ou Estados Unidos. E como a
situação financeira de meus pais começou a melhorar depois que meu pai
aposentou e pegou outro emprego, ele propôs à gente, deu como um presente uma
viagem ao exterior para cada filho. [...] Minha irmã arrumou um estágio num
hospital de Roterdã, e eu arrumei um curso de inglês em Londres, [...) e
consegui, com a ajuda de um inglês, professor da universidade, um estágio de um
mês no zoológico de Londres.
c)Participação
em programas internacionais de intercâmbio cultural, organizados por empresas
operadoras de intercâmbio. Também nesse caso, é o jovem sozinho que se desloca
para o exterior, passando lá um período que varia freqüentemente entre seis
meses e um ano, e que ocorre - na maior parte dos casos - durante os estudos de
nível médio. Pesquisas recentes mostram que o número de “intercambistas”
multiplica-se rapidamente, de ano a ano, no seio das camadas médias18, fazendo
com que a viagem de estudos ao exterior venha deixando de ser o apanágio de
famílias altamente equipadas em capital econômico, embora não se faça sem um
certo sacrifício por parte do grupo aqui estudado. Vem comprová-lo a história
de Catarina, estudante de Ciências Econômicas que, ao final da segunda série do
ensino médio, não pôde passar mais do que 6 meses nos Estados Unidos, em razão
dos recursos financeiros de que dispunha a família à época:
No Natal eu
ganhei... meu presente de Natal era uma caixinha desse tamanho [gesto], Na hora
que eu abri assim, era um bilhetinho escrito assim: vale uma viagem de
intercâmbio... eu nem acreditei! [...] Só que, por questões de preço mesmo, o
outro era muito mais caro, e a gente acabou optando por esse de seis meses
mesmo. Porque os meus pais na época não tinham condições de me mandar ficar um
ano, né?
Esses
dois últimos depoimentos constituem novas manifestações do caráter ascético das
práticas educativas desses pais, dispostos a renunciar a satisfações mais
terrenas (“mundanas”, nos termos de Bourdieu), em prol de oportunidades
culturais oferecidas aos filhos19.
Com relação
ao país de destinação, convém chamar a atenção para o fato de que a escolha das
famílias recai sobre os países desenvolvidos, ditos do “primeiro mundo”, e,
dentre esses, uma nítida preferência se manifesta por aqueles de língua
inglesa. Esse fenômeno está intimamente ligado a um outro traço marcante do
estilo educativo das famílias aqui enfocadas, relativo à enorme importância
atribuída, no plano das atividades extra-escolares, ao estudo das línguas
estrangeiras (em especial o inglês), desde muito cedo; para alguns antes mesmo
dos 7 anos. 90% dos pesquisados seguiram, em algum momento de sua escolaridade,
ou em todo seu decorrer, cursos livres ou aulas particulares de inglês, que
para esse grupo social adquire hoje o caráter de
um novo
saber mínimo obrigatório. Limito-me, entretanto, a chamar a atenção do leitor
para o papel que este fator desempenha na trajetória escolar do jovem (em
particular, no seu desempenho nas provas de língua estrangeira do vestibular) e
na própria elaboração do projeto de estudos no exterior.
A
experiência de uma temporada de estudos fora do país repercute na vida desses
jovens de várias maneiras. Retomo aqui - posto que tratei mais detalhadamente
do assunto em outro texto (Nogueira, 1998B) - apenas sua influência mais direta
sobre o itinerário escolar propriamente dito.
Como seria
de se esperar, o domínio de uma língua estrangeira importante beneficia o
aluno, na volta ao país, no acompanhamento dessa disciplina na escola
brasileira, de um modo geral. Mas é sobretudo no momento do vestibular que essa
vantagem cultural manifesta-se com maior visibilidade.
Mateus,
estudante de Engenharia Elétrica, morou na Inglaterra, dos 6 aos 8 anos de
idade, ocasião em que o pai realizava lá seu pós-doutorado, e a mãe, seu
doutorado. Ele declara:
Quando eu
passei na primeira etapa [do vestibular], eu já estava esperando passar...
Outra prova que eu sempre tiro o total é inglês, porque eu sou formado em
inglês. Quando eu cheguei da Inglaterra, eu sabia muito inglês, como eu era
muito novo, não tinha curso de inglês que me aceitasse, porque a turma que eu
entraria ia ser de gente muito velha, então eu tive que esperar até a sexta,
oitava série, sei lá... pra mim entrar num curso de inglês, mesmo assim numa
sala de gente muito mais velho.
Gilberto,
estudante de Matemática que, aos 14 anos, obteve o consentimento dos pais para
passar seis meses na Holanda, na casa dos tios, onde estudou num colégio
internacional [ISSE] para filhos de homens de negócios, ao ser indagado se havia
valido a pena, revela:
Valeu,
assim, pelo fato de eu ter aprendido inglês, isso sim, [...] quer dizer, todas
as aulas eram em inglês e eu tinha contacto com os colegas.
Mas é no
plano das definições que a carreira escolar - em seu desenrolar - vai impondo
ao jovem, que a influência dessa experiência parece ganhar toda sua
importância. Eis algumas ilustrações nesse sentido:
Foi na
França que eu decidi justamente que ia fazer Matemática. (...) Foi aí que eu
criei gosto mesmo por matemática. Eu não sei, mas tenho a impressão que o
sistema francês de ensino é quinhentas vezes melhor que o brasileiro. A gente
tem a impressão que matemática é uma coisa... aqui no Brasil, uma coisa assim,
sem sentido, [...] sem lógica, sem profundidade. [...] Aqui no Brasil, a
matemática escolar não faz pensar. Chega ao cúmulo das pessoas acharem que você
tem que decorar coisas para aprender matemática. [...) E foi lá que realmente
eu vi que não era isso, comecei a ver que era uma coisa muito mais ampla, muito
mais interessante. Bom, a primeira diferença é o bom nível, que eu estava
dizendo. A segunda diferença é a mentalidade. [Aqui] é só no segundo, terceiro
período, quando você faz o curso de Matemática, que começa a se ver isso, a
idéia da demonstração matemática, que é a base. A matemática lá, você já ensina
desde o começo com isso. Quer dizer, aqui no Brasil é: calcula isso. Lá é-,
mostra aqui. Simplificando, mas é assim.
Esse foi o
depoimento colhido do estudante de Matemática acima citado, porém dessa vez
relativo a sua segunda estadia no exterior. E que aos 17 anos, ele embarcou
para a França, onde o pai iria realizar seu pós-doutoramento, residindo lá por
14 meses, ocasião em que finalizou seus estudos de nível médio no Liceu
Montaigne, em Paris, tendo obtido, ao final, o “Baccalauréat C”.
Por sua vez,
Francisco, o estudante de Biologia também já mencionado, declarou a respeito do
estágio que realizou no zoológico de Londres:
Isso foi o que decidiu minha vida. Porque eu
vi que eu gostava do zoológico, de criação em cativeiro, e me deu muita força
pra passar no concurso da Fundação Zoobotânica, no zoológico daqui, que é onde
eu estou agora.
Ao
referir-se ao estágio que fez na Itália, em História da Arte e do Renascimento,
Irene, a estudante de Arquitetura, também já mencionada acima, afirma:
Eu comecei a ficar simplesmente fascinada com
as coisas que eu tava vendo em termos de arquitetura, porque eu nunca imaginei
que eu fosse num lugar... aonde o espaço arquitetônico, onde as coisas
aconteciam daquela maneira. [...] Aí eu voltei pro Brasil, e aí eu tive
contacto com uma matéria que chamava Teoria da Arquitetura, e eu comecei a
entender toda aquela beleza que me deixou fascinada. (...) Aí eu fiquei
fascinada com aquela parte, aí fiz uma BIC, Bolsa de Iniciação Científica,
sobre esse tema de teoria da arquitetura, fazendo uma releitura da história da
arquitetura.
Para outros,
o impacto sobre a trajetória acadêmica dar-se-á menos no plano da descoberta
dos objetos de interesse e mais no que concerne às condições otimizadas de
aproveitamento da formação que recebem na volta ao país. Este é o caso, por
exemplo, de Miguel, estudante de Filosofia que, imediatamente após ser aprovado
no vestibular brasileiro, rumou para a França (acompanhando a família que se
mudava em decorrência do pós-doutorado do pai), onde permaneceu por dois anos
cursando Filosofia no Institut Catholique de Paris. Na volta ao Brasil, ele
retoma - graças ao mecanismo legal de equivalência de disciplinas - os estudos
de Filosofia, sentindo-se, entretanto, apoiado em bases mais sólidas do que
seus colegas, no acompanhamento do curso de graduação.
Eu
senti, quando eu estava na graduação, que eu tinha uma formação melhor do que
meus colegas. Eu senti isso em duas coisas. Eu sentia isso porque eu tinha mais
facilidade em organizar um texto. [...] Que é o negócio da dissertação
francesa, é super-rígida. [...] Outra coisa [...] a gente tinha muito contacto
com os textos. Quer dizer, a gente lia muito os próprios textos. [...] Acho que
a minha melhor virtude filosófica, digamos assim, se eu tenho alguma, é saber
ler texto. Eu sabia pegar um texto de um filósofo e ler melhor. [...] Isso eu
atribuo à formação francesa. Era uma coisa que a gente fazia muito exercício.
[...] Tinha também dissertações temáticas. São os dois exercícios escolares
muito formadores. Um é o comentário. Freqüentemente textos curtos. E o outro
eram dissertações com temas. Por exemplo, o ano que eu fiz era “consciência”.
Cada ano tinha um tema assim.
É também o
caso de Lucas, estudante de Medicina, que - devido ao pós-doutorado do pai -
trancou matrícula, ao final de seu
período universitário, e passou um semestre na Inglaterra estagiando no
Instituto de Psiquiatria da Universidade de Londres, onde -juntamente com um
professor e um doutorando desse instituto - desenvolveu um projeto no
laboratório de neuroquímica que resultou em dois artigos já publicados: o
primeiro no Biochemistry Journal (1993) e o segundo em Neuroscience Letters
(1994). Ao ser interrogado sobre o saldo da experiência, ele diz:
Uma, que me
deu uma margem de inglês muito boa, não tive mais problema com leitura de
textos em inglês, então assim, em termos de bibliografia, só de já poder ler
textos em inglês sem dificuldade, já é um avanço. Outra, que foram os dois
trabalhos publicados que, para o currículo, sem dúvida nenhuma, pesa. E acho
que mais em termos da medicina, a própria experiência de trabalhar sozinho [ele
se refere ao trabalho de laboratório].
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao trabalhar
com essas trajetórias escolares, minha intenção era, de fato, conhecer, mesmo
que parcialmente, os mecanismos que tomam o capital cultura! (e profissional)
familiar, rentável em termos escolares. Em outras palavras, observar como se dá
o processo de conversão de capital cultural em capital escolar. Tentei fazê-lo
através da observação - em contexto brasileiro - de alguns usos do sistema de
ensino por parte daqueles que detêm uma posição dominante no espaço escolar,
particularmente no mundo acadêmico e da pesquisa.
A hipótese
norteadora - já suficientemente testada em diversos países - é a de que as
diferentes categorias sociais são desigualmente predispostas a “compreender,
valorizar e praticar o jogo escolar” e que tal predisposição encontra-se
intimamente associada ao volume do patrimônio cultural possuído (Perrenoud,
1970: 34).
E bem
verdade que a evolução mais recente da produção sociológica insiste na
necessidade de se atentar para as variações internas a um mesmo grupo social, o
que obriga o analista a se
dotar de um instrumental teórico-conceitual mais fino, capaz de detectar as
dinâmicas e a diversidade dos modos de funcionamento de cada família segundo a
trajetória social dos pais, os acidentes biográficos, as características de
cada filho, etc. (Mon-tandon, 1987; Kellerhals & Montandon, 1991; Boyer
& Delclaux, 1995; Lahire, 1995; Rochex, 1995). Desejável, sem dúvida
alguma, um estudo desse tipo não foi, porém, possível nas condições atuais
desta pesquisa.
Entretanto,
como comprovam os (cada vez mais numerosos) estudos comparativos, apesar das
diferenciações internas, regularidades evidentes e flagrantes nos valores,
disposições, condutas de sujeitos originários de um mesmo meio social são
facilmente identificadas (Establet, 1987; Lareau, 1989; Sirota, 1994; Boyer
& Delclaux, 1995; Bou-noure, 1995; Dubet & Martucelli, 1996; Gewirtz et
al., 1995).
No caso das
famílias das camadas médias intelectualizadas aqui enfocadas, foi possível
perceber sua capacidade de tirar proveito das oportunidades, trunfos e recursos
disponíveis -em cada conjuntura particular do campo escolar - em favor do
destino escolar dos filhos.
Estratégias
de excelência, por parte dos pais ou do próprio jovem, foram detectadas no que
concerne à escolha dos estabelecimentos de ensino, à utilização do capital de
informações sobre o sistema educativo, às formas de gestão da carreira escolar,
ao investimento do capital social e profissional paterno, às estadias no
exterior. Fizeram-se ver es-colaridades no decurso das quais pouco espaço se
deixa ao acaso; em que a antecipação e a previdência primam sobre a correção
dos desvios; em que a formação intelectual e a preparação para a autonomia têm
precedência sobre a formação profissional e a relação pragmática com o
conhecimento. Escolaridades que se desenrolam num horizonte temporal estendido
que autoriza o pressentimento da chegada aos níveis mais altos da pirâmide
escolar. Escolaridades que se dão em escala internacional, propiciando, desde
cedo, a experiência de outros sistemas de ensino e a aquisição de um habitus
cosmopolita.
Mas a essa
altura o leitor estará se perguntando se essa não é uma visão idealizada da
questão, tudo se passando como se se tratasse de uma lei perfeita e inexorável
da transmissão familiar das vantagens e dos privilégios culturais.
Com
efeito, a despeito do peso dos determinantes socioculturais nas trajetórias
examinadas, 5 estudantes da amostra (14%) apresentaram acidentes em seu
itinerário escolar. Além disso, dados relativos ao conjunto das fratrias
mostram, por exemplo, que a história escolar de 28% dos irmãos dos
entrevistados apresenta atrasos, interrupções e, até mesmo, alguns casos de
abandono dos estudos. Nesses casos, como era de se esperar, as famílias se vêem
obrigadas a reorientar suas condutas e investimentos, adaptando-os às
diferenças na escolaridade de cada filho. Não se pode, portanto, tratar o
sucesso escolar nesses meios como uma fatalidade sociológica.
No entanto,
por um longo período de tempo, uma forte tradição sociológica nos habituou a
pensar que a transmissão intergeracional de capital cultural se fazia, à
semelhança da herança biológica, por um processo quase que automático de
transferência do patrimônio. Para o sociólogo da educação e da família François
de Singly (1993B; 1996B), essa tradição se desenvolve a partir dos primeiros
escritos de P. Bourdieu e J.C. Passe-ron, em especial do livro Os herdeiros, de
1964. A seu ver, o uso da metáfora da herança cultural e sua conseqüente
“analogia” com a herança econômica apresenta um lado positivo inegável que deve
ser preservado: o de revelar que os benefícios culturais (particularmente os
escolares) constituem uma forma de riqueza e que, a exemplo dos bens materiais,
pode ser transmitida. Entretanto, ele se acompanha, ao mesmo tempo, de um
efeito perverso, o de ocultar o trabalho específico que essa herança requer
para ser apropriada. Converter o capital cultural familiar em capital pessoal
demanda mobilização e de ambas as partes: da parte dos jovens bem como da parte
dos pais.
Dois fatores
permitiram esse avanço teórico. De um lado, a constatação do fenômeno do
fracasso escolar entre indivíduos pertencentes aos estratos superiores da
população, inclusive às elites diplomadas (Fourastié, s. d.)20. De outro, a
observação, em lares altamente favorecidos (inclusive do ponto de vista
cultural), de intenso e diversificado investimento pedagógico, como meio de tomar
atuante o capital familiar de origem, evitando assim sua permanência em estado
virtual (Establet, 1987). É para o desenvolvimento desse segundo ponto que o
presente trabalho pretende contribuir.
Se a análise
dos dados empíricos aqui realizada tem alguma validade, é forçoso reconhecer
que a alternativa “herança ou mobilização” contém muito de artificial e que
essas duas dimensões não podem ser dissociadas no estudo das formas de
transmissão do privilégio cultural.
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