Família e Escola - Nadir Zago

Processos de escolarização nos meios populares As contradições da obrigatoriedade escolar
Nadir Zago -Professora do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina.

As Ciências Sociais e da Educação produziram, nas últimas décadas, uma ampla literatura sobre as desigualdades escolares, demonstrando as grandes correlações estatísticas entre a origem social dos alunos e seu sucesso ou fracasso escolar (Forquin, 1995; Petitat, 1994; Patto, 1991). No Brasil, a constatação de que é nos meios populares onde estão concentrados os mais elevados índices de analfabetismo, reprovação, evasão entre outros problemas escolares, deu origem a inúmeras pesquisas voltadas para a compreensão do fracasso escolar, nesses meios, especialmente no ensino fundamental1. No que diz respeito aos alunos da escola pública, não faltaram estudos a respeito de suas características sociais, culturais e cognitivas e sobre as relações entre as condições de pobreza e os resultados escolares. Normalmente os estudos voltados para a realidade educacional das populações socialmente desfavorecidas colocam em evidência o número significativo de crianças que anualmente deixam a escola; todavia, continua a existir uma ausência de informações a respeito do destino posterior dos chamados “evadidos”. Uma das questões que permeou os estudos que realizamos entre os anos de 1991 e 1998, com apoio do CNPq, esteve voltada para os processos de escolarização em famílias de baixo poder aquisitivo. Com esse objetivo acompanhamos, em intervalos de tempo e durante o período acima indicado, a situação escolar dos filhos de 16 famílias, com residência na periferia urbana de Florianópolis.

Adotar como opção metodológica o acompanhamento da situação escolar, num período considerável de tempo, nos permitiu observar o caráter dinâmico da formação dos percursos, tal como sua lógica não-linear, feita de ingressos, interrupções e retornos à escola. Esses acontecimentos, evidentemente com certas variações, fazem parte de realidades recorrentes nas camadas sociais em questão e, desse modo, permitem questionar a noção genérica de “evasão escolar”. A relativização dessa noção fica evidente quando tentamos compreender, tal como foi o objetivo deste trabalho, com base em quais processos a população em idade escolar deixa precocemente a escola, mas também a ela retoma e, em vários casos, nela permanece para além do ensino obrigatório.
  
 As relações entre as questões macroestruturais e o fracasso escolar já estiveram na pauta das análises produzidas sobretudo nos anos 70 e 80. Sem desconsiderar essa problemática e igualmente as relações entre realidades extra-escolares e práticas intra-esco-lares, buscamos compreender, nas relações microssociais, a formação dos percursos escolares a partir das condições objetivas de escolarização, das práticas e dos significados definidos pelos sujeitos implicados: pais e filhos. Não é propósito desenvolver uma leitura sociológica que dê conta das causas do fracasso ou do sucesso escolar, mas sim, mediante uma preocupação voltada para o entendimento dos processos, tentar mostrar como se configura a história escolar de crianças e jovens, ao longo de alguns anos; as mudanças processadas, principais entraves e perspectivas.

      Este estudo, voltado para a compreensão microssocial dos percursos escolares, está apoiado em algumas questões de análise aqui brevemente evocadas. Uma delas será a de apontar a existência de uma relativa variação na formação desses percursos entre os filhos das famílias estudadas, observação que não deve causar nenhuma estranheza ao pesquisador familiarizado com o tema. Compreender a formação do itinerário escolar como processo pressupõe o abandono de concepções universalistas que tomam as camadas populares como um conjunto indiferenciado e nos obriga a pensar em famílias e alunos datados, contextualizados, considerando a realidade a partir “de dentro” dos meios sociais estudados, no sentido atribuído por f^colaci-da-Costajl987).1

     Há hoje um certo consenso, entre os estudiosos da família, sobre as variações encontradas tanto nas formas de composição do grupo como nas estratégias educativas, entre outras práticas familiares. Partindo desta consideração, entendemos que o estudo sobre a realidade escolar nos meios populares, e este foi o propósito da pesquisa, deve levar em consideração outras dimensões da vida do aluno além da estritamente escolar, entre elas a participação deste no trabalho e a rede de relações sociais da qual faz parte. Neste sentido, nos apoiamos na compreensão dos destinos escolares, sejam eles de fracasso ou de sucesso, produzidos de forma dialética, complexa, no quadro de uma configuração de fatores em interdependência (Lahire, 1997), o que significa adotar uma posição contrária à lógica de fatores tomados numa relação de causa e efeito. Este procedimento permite observar, além das variáveis clássicas (como renda, ocupação e escolaridade dos pais), outros elementos mediadores do curso escolar: as trajetórias sociais, sabendo que essas produzem diferenças nas experiências de vida e visão de mundo2; os significados e as práticas de escolarização, entre outros fatores centrais e periféricos às questões escolares. O estudo de B. Lahire (1997) fomece exemplos significativos para a compreensão desta abordagem. O autor mostra que as variáveis tomadas isoladamente - a escolaridade dos avós, o fato de ter pais militantes, a presença ou ausência de leitura em casa, a existência de um projeto familiar, de uma intencionalidade ou estratégias de superinvestimento escolar - não agem de forma mecânica, mas correspondem a um entre outros possíveis sociais. Com esta observação retomamos a idéia, já assinalada, de uma configuração de fatores, definida por suas relações de interdependência, lembrando que esta não tem caráter normativo. Para completar esta observação, citamos Velho (1997):

                      Por mais que seja possível explicar sociologicamente as variáveis que se articulam e atuam sobre biografias específicas, há sempre algo irredutível, não devido necessariamente a uma essência individual mas sim a uma combinação única de fatores psicológicos, sociais, históricos, impossível de ser repetida ipsis litteris (p. 28).

      A família, por intermédio de suas ações materiais e simbólicas, tem um papel importante na vida escolar dos filhos, e este não pode ser desconsiderado. Trata-se de uma influência que resulta de ações muitas vezes sutis, nem sempre conscientes e intencionalmente dirigidas. A citação abaixo corrobora esta idéia:

               (...) a criança constitui seus esquemas comportamentais, cognitivos e de avaliação através das formas que assumem as relações de interdependência com as pessoas que a cercam com mais freqüência e por mais tempo, ou seja, os membros da família. (...) Suas ações são reações que “se apóiam” relacionalmente nas ações dos adultos que, sem sabê-lo, desenham, traçam espaços de comportamentos e de representações possíveis para ela (Lahire, 1997: 17).

    No entanto, com base em trabalhos de pesquisa, observamos que os comportamentos escolares adotados pelos alunos não se reduzem às influências do ambiente doméstico. Acompanhando seus desdobramentos, fica evidente a necessidade de considerar o papel do aluno como parte ativa do seu próprio percurso e das relações que ele estabelece com outras instâncias de socialização, seja no bairro, no ambiente de trabalho, entre outras formas de interações sociais. Nesse sentido, as experiências extra-escolares e a própria faixa etária em que ele se encontra são dimensões que não podem ser negligenciadas. De acordo com uma sociologia centrada unicamente nas questões das desigualdades, cujos princípios embasaram considerável número de trabalhos, o aluno é reduzido a um conjunto de variáveis, como sua origem social e resultados escolares, não dando conta da atividade real que esses atores sociais desenvolvem, dentro e fora dos estabelecimentos de ensino (Queiroz, 1995: 81).

    Neste trabalho que apresentamos voltado para os percursos escolares, concedemos um lugar importante às falas e à atuação dos filhos das famílias estudadas. Consideramos,,^3gra a apresentação e análise dos resultados, dados que tivemos a oportunidade de atualizar em duas ocasiões a partir de um estudo iniciado em 1991, ou seja, em pesquisas realizadas em 1993/94 e, posteriormente, em 1997/98. Nesses momentos, tivemos a oportunidade de acompanhar a escolaridade dos filhos de 16 famílias. Na primeira etapa, um dos critérios de seleção das famílias consistiu na presença de filhos em idade escolar e, na continuidade, o interesse foi acompanhar a formação de seus percursos escolares, independentemente dos resultados de fracasso ou de sucesso escolares.

    Procuramos também diversificá-las quanto às suas condições materiais, estimadas a partir do tipo de residência. Dessas 16 famílias, sete residiam na favela e as demais, mediante financiamento, tiveram acesso à casa própria de tipo popular. A renda familiar é de modo geral baixa. Conforme dados de 1998, sete tinham uma renda mensal entre 2 e 3 salários mínimos, três entre 4 e 5, e apenas duas atingiam 6 salários mínimos. Em quatro famílias, em função de trabalhos ocasionais e desemprego, a renda não foi estimada. Com poucas exceções, a situação socioeconômica do grupo estudado manteve-se praticamente inalterada ao longo dos anos. Os pais exerciam ocupações não qualificadas (diversos tipos de biscates) ou semiqualíficadas (pintor, pedreiro, mecânico, zelador), na maioria dos casos sem contrato de trabalho. Quanto às mães, seis eram donas-de-casa e dez trabalhavam fora, na sua maioria como empregadas domésticas ou faxineiras. Do número total de famílias, 12 eram de tipo nuclear, destas, cinco de uma segunda união, enquanto quatro eram formadas pela mãe e filhos. Do total de 16, três tinham dois filhos, cinco tinham três e oito de quatro a seis filhos. O capital cultural familiar, considerado segundo a escolaridade, era igualmente reduzido: do total de pais, apenas um obteve certificado do ensino fundamental e dois do ensino médio; quanto aos demais, dois eram analfabetos, cinco tinham entre 2 e 4 anos de estudo e três de 5 a 7 anos3. A situação de analfabetismo ou semi-analfabetísmo é maior entre as mães, ou seja, quatro entre as 16, seis tinham entre 1 e 4 anos de estudo, cinco entre 5 e 7 anos e apenas uma completou o ensino fundamental.

As questões norteadoras do estudo definem uma pesquisa qualitativa, centrada na produção do discurso dos sujeitos pesquisados e na obtenção de dados em profundidade. Neste sentido, a entrevista constituiu o principal instrumento de coleta de dados. Sua função difere do questionário tanto na forma de conduzir a obtenção dos dados quanto na natureza destes. Como observam Blanchet & Gotman (1992: 40), “o questionário provoca uma resposta, a entrevista faz produzir um discurso”. Um questionário para o levantamento de dados socioeconômicos e demográficos da população em questão e a observação de campo, efetuada no local de moradia dos entrevistados, serviram de instrumentos complementares à pesquisa. As entrevistas, feitas com os pais das 16 famílias e parte de seus filhos, privilegiaram dados sobre as trajetórias das famílias, suas condições socioeconômicas, situações escolares dos filhos4, os significados e as práticas familiares de escolarização. Nos encontros que se sucederam com a mesma população, esses dados iam sendo atualizados, o material, gravado e transcrito na sua totalidade. Registramos a situação escolar da totalidade dos filhos, ou seja, 56, e 30 destes (53%) foram também entrevistados, na última fase da coleta de dados.

    Para apreender elementos que permitam dar visibilidade às “mediações complexas” (Queiroz, 1995) constitutivas dos percursos escolares, conforme já observamos, consideramos as condições materiais de escolarização e a relação com a escola a partir dos significados e das práticas adotadas. A metodologia adotada na análise dos dados teve como procedimento inicial a impregnação do conteúdo das entrevistas, pelo pesquisador, possibilitada pelas leituras e releituras do material. Como bem observou Michelat (1981: 204), “as leituras repetidas vão progressivamente suscitar interpretações pelo relacionamento de elementos de diversos tipos". Adotamos esse procedimento até encontrar, dentro das questões gerais mencionadas, categorias e subcategorias de análise. De posse destas, a sistematização dos dados obedeceu a um duplo procedimento: 1) uma análise horizontal, pela qual procuramos encontrar pontos que aproximam as famílias estudadas; 2) uma análise vertical, para aprofundar casos singulares. Este procedimento é sistematizado por Michelat (1981: 205): “a atenção particular dedicada à singularidade de cada entrevista é concomitante a um relacionamento das diversas entrevistas entre si. Isso conduz a alternar as leituras verticais das entrevistas (guardando a lógica própria a cada uma) e as leituras horizontais, para estabelecer a relação com as outras entrevistas”.

    A análise dos dados recaiu sobre um material cumulativo, tendo permitido, nos momentos assinalados, a atualização da situação escolar dos filhos como também das alterações sofridas no contexto familiar {demográficas, escolares, ocupacionais, entre outras). Embora a pesquisa tivesse inicialmente seu objetivo voltado para o ensino fundamental, considerando o período que o estudo abrangeu, tivemos a oportunidade de verificar qual o destino escolar e social dos filhos de mais de 14 anos.

DA OBRIGATORIEDADE OFICIAL À ESCOLARIDADE REAL NOS MEIOS POPULARES
 1.Dados gerais sobre os percursos escolares
 
  Com o desenvolvimento de abordagens microssociaís nas Ciências Sociais e da Educação, sobretudo a partir dos anos 80, o tema da presença da família na escolarização dos filhos vem se constituindo num capítulo importante da Sociologia da Educação5. Estudos sobre as relações entre a escola e a família têm permitido, entre outras questões, dar visibilidade às práticas de escolarização e ao valor social da educação institucionalizada em diferentes segmentos sociais. Para compreender a intensificação dos investimentos educativos dos pais em favor da escolaridade dos filhos, é oportuno retomar alguns antecedentes históricos. Conforme observou Philippe Ariès (1981), a relação das famílias com a escola alterou-se significativamente se compararmos o momento em que a reprodução social não dependia de títulos escolares (sociedade tradicional), com outro, característico da sociedade moderna, quando o capital dominante é notadamente escolar. No Brasil, as transformações ocorridas com a industrialização da economia e a aceleração da urbanização - com impulso verificado em meados deste século - foram acompanhadas do aumento de ocupações não manuais e da maior demanda da população pela educação formal e elevação do seu nível escolar (Rodrigues, 1995: 60). Em 1950 uma escolaridade de nível primário garantia o acesso a grande parte dos empregos de prestígio; mas, gradativamente, com a elevação do nível de escolaridade da população e conseqüente aumento das exigências escolares, o ensino médio “passou a ser decisivo para alguém disputar uma vaga na maioria das ocupações do mercado de trabalho” (Rodrigues, 1995: 61). Esse fenômeno é particularmente compreensível nos tempos atuais, quando a inserção no mercado de trabalho é dificultada pela crise de desemprego e aumento da demanda pela qualificação da força de trabalho para enfrentar mudanças impostas pelo capital econômico e o sistema produtivo. Essa tendência se acentua nos anos 90, marca-damente críticos para os jovens do ponto de vista profissional (Pochmann, 1998).

Como mostram estudos empíricos realizados em diferentes estratos sociais, a forte demanda da população pela escolaridade representa uma necessidade de responder a essas mudanças6. No caso específico de nossa pesquisa, o reconhecimento da educação escolar como requisito básico para responder às exigências do mercado de trabalho e, sobretudo, como possibilidade de romper com as condições de pobreza familiar, é variável colocada pelos pais de forma recorrente, independentemente das diferenças internas do grupo estudado. Uma análise do significado que eles atribuem à escolarização de seus filhos revela que a valorização da instrução se alicerça ao menos sobre dois pilares: o que corresponde a uma lógica prática ou instrumental da escola (domínio dos saberes fundamentais e integração ao mercado de trabalho) e outro, voltado para a escola como espaço de socialização e proteção dos filhos do contato com a rua, do mundo da droga, das más companhias, indicando a inseparabilidade entre instrução e socialização 7.

    Contrariando esse interesse dos pais, tal como registrado na primeira fase da pesquisa (1991/92) e renovado nas que se sucederam, o nível de instrução obtido depois de vários anos (1997/98) é limitado para um grande número dos filhos pertencentes às famílias estudadas. As mães usam expressões que revelam bem esse estado da vida escolar: uma delas, cujos filhos estão em grande atraso escolar, fala de uma escolarização “a reboque”, e outra, para indicar a difícil ultrapassagem da 5a para as demais séries do ensino fundamental, diz que na 5a eles “começam a patinar”. Estes termos são bastante reveladores do que é a vida escolar para parte importante de nossos entrevistados: a escola está “a reboque” da vida social e não representa necessariamente o centro da vida da população. Problemas históricos no sistema educacional brasileiro, como os altos índices de reprovação e interrupção escolar, são igualmente comuns no grupo estudado. Os números são bons indicadores para exemplificar esta observação. Conforme dados obtidos na última fase da pesquisa, do número total de 56 membros, representado pelos filhos das 16 famílias estudadas, a maior parte concluiu as quatro séries iniciais, mas a grande maioria que havia deixado a escola não obteve certificado escolar. A escolaridade atingida pelos 28 ou 50% que não freqüentavam escola, todos com mais de 14 anos, era a seguinte: dois cursaram até a 2i série do ensino fundamental, cinco completaram a 4- série, oito a 5a, três a 6a e cinco a 7a série. Desse mesmo grupo de 28, apenas cinco obtiveram certificado escolar, sendo dois do ensino fundamental e três de nível médio. Dos outros 28, ou 50% que freqüentavam escola, aproximadamente a metade estava em situação de defa-sagem entre a idade cronológica e a série escolar8.

    Para compreender a construção dos percursos escolares numa perspectiva de processo, toma-se necessário ir além dos indicadores acima e de outros como aprovação/ reprovação e interrupção dos estudos, tomados isoladamente. Nos meios populares, as crianças, no mais freqüente das vezes, não têm o seu dia organizado em tomo das atividades escolares, com acompanhamento regular nos deveres de casa e outras atividades extraclasse para reforçar e tomar mais rentável o currículo do aluno, conforme estratégias comuns aos estratos médios da população (Nogueira, 1995). Nas camadas populares, embora a maioria ingresse na escola conforme os ditames previstos, isto é, aos seis ou sete anos de idade, geralmente a continuidade do percurso transcorre de forma oposta ao “ideal tipo”, entendendo-se aqui a adequação idade-série e permanência na escola até os 14 anos. Parte da população estudada havia também freqüentado a pré-escola, mas parece que a semelhança com a escolaridade correspondente aos padrões “normais” termina com estas identificações.

      Quando passamos a analisar as histórias escolares dos filhos, observamos que vários deles detinham um nível de escolaridade incompatível com o tempo que permaneceram vinculados ao sistema de ensino. Uma análise dessa discrepância indica uma caraCterística freqüente nos percursos, a saber, o seu desenrolar fortemente acidentado, í seja pelas reprovações - em muitos casos de ocorrências múltiplas -, seja pelas inter-; rupções temporárias da escola. Do total de 16 famílias, em mais da metade, todos ou parte de seus filhos reúnem esses fenômenos de fragmentação do curso escolar, reproduzindo, em muitos casos, situações muito semelhantes às dos próprios pais, tanto em relação à escolaridade quanto às condições de trabalho. Procuramos saber, para além dos dados objetivos, qual o significado que a escola assume na vida dos jovens e como vivem a pouca escolaridade obtida. O estudo dessas, entre outras questões, indica que a relação com a escola se define pela heterogeneidade mais do que pela unidade de práticas e significados. Nas páginas que seguem, tentaremos mostrar essas variações e outros elementos integrantes dos processos escolares, lembrando que a ênfase dada neste trabalho recai sobre o caráter irregular ou acidentado desses percursos. Os dados que apóiam esta análise possibilitam levantar dimensões tanto materiais quanto simbólicas, constitutivas da experiência escolar.

  2.A interrupção escolar no ensino fundamental: o descompasso entre o tempo passado na escola e o resultado obtido
     
Augusto9,17 anos, teve êxito escolar até a 4a série e um desempenho com profundas mudanças após este nível. Foi reprovado duas vezes na 5a, transferiu-se para o ensino noturno e permaneceu até meados da 6a série, quando interrompeu os estudos. Depois de legalizar a situação militar, espera encontrar um emprego fixo, pois embora há muitos anos se reconheça como trabalhador, as ocupações que exerceu foram sempre em caráter precário, realizadas de forma intermitente. Quanto a seu planos, observou: “é   o dia-a-dia. [...] Eu gostaria de voltá a estudá” mas, acrescentou, “se tivesse serviço pra trabalhá, daí eu preferia mais trabalhá do que estudá”.

      Os registros do nosso último encontro com Augusto não nos autorizam a dizer que ele encerre sua vida escolar na 6a série. Há uma legião de ex-alunos que recomeçam seus estudos mesmo após vários anos de interrupção, indicando que a escolaridade não obedece ao tempo “normal” de entrada e permanência até a finalização de um ciclo escolar, mas se define no tempo “do possível”10. A retomada dos estudos, embora com tempo de permanência na instituição bastante variável, significa que a vida escolar não foi encerrada, que há uma ou mais razões para voltar a ser aluno. As histórias escolares que acompanhamos evidenciam a interrupção dos estudos como parte de um processo de eliminação que acontece de forma contínua e ao longo de toda vida escolar. Ao investigar os percursos escolares não podemos ignorar as contradições entre o prolongamento da obrigatoriedade escolar e a realidade concreta vivida por parte significativa da população que, quando inserida na escola, tem uma trajetória em constantes descompassos com as normas da instituição de ensino, produzindo o que Bourdieu & Champagne (1998: 221) denominam de “excluídos potenciais”.

    Apesar de reconhecermos o caráter não-determinista das relações entre as condições socioeconômicas das famílias e os resultados escolares dos filhos, não podemos ignorar que a situação escolar nas populações de mais baixa renda está associada a um quadro social de natureza bastante complexa. Há evidentemente variações no grupo estudado, mas as condições materiais das famílias são, no seu conjunto, bastante modestas e em vários casos encontram-se em situação de grande vulnerabilidade material e social. A instabilidade faz parte do cotidiano desse grupo e se apresenta, entre outros domínios, no trabalho irregular, tanto dos pais quanto dos filhos, o que acarreta renda instável e dificuldades na satisfação das necessidades básicas. Como não poderia deixar de ser, a instabilidade e a precariedade nas condições de vida têm um peso importante sobre o percurso e as formas de investimento escolar.

    A mobilização familiar é voltada, em primeiro lugar, para a sobrevivência, e é graças ao rendimento coletivo do grupo, decorrente do trabalho de seus integrantes, que este tenta assegurar suas necessidades básicas. A participação dos filhos no trabalho, para um número significativo deles, teve lugar ainda na infância. Essa inserção acontece geralmente nos serviços domésticos, para as meninas, tomando conta da casa quando a mãe trabalha fora, ou em ocupações como babás ou empregadas domésticas. Para os meninos, as atividades são bem mais variadas, na maioria das vezes ligadas aos serviços de ajudante de pedreiro, pintor, limpeza de terrenos, comércio ambulante, etc.

    Quando nos reportamos ao trabalho infantil, é preciso considerar que não se trata de uma situação generalizada, que atinge indiscriminadamente as crianças das camadas socialmente desfavorecidas. Há diferenças quanto à delimitação da idade de ingresso no trabalho, sendo que nas situações de maiores dificuldades financeiras - tais como as associadas ao desemprego, morte ou separação dos pais, além de outros acontecimentos familiares que fragilizam as condições socioeconômicas da família a introdução no trabalho se dá geralmente em idade mais precoce. Em vários casos, em razão de uma maior estabilidade na renda, mas também das práticas educativas adotadas pelos pais, é bem visível a ação destes a fim de preservar os filhos do trabalho durante o ensino fundamental11. Essa variação no modo de ocupação do tempo da criança praticamente inexiste a partir dos 14 anos, quando os filhos já trabalham ou tentam inserir-se no mercado de trabalho. Nesse momento da vida, ter uma ocupação remunerada corresponde a um desejo da família e do próprio filho, que quer ter sua independência financeira12. Na ausência da ocupação pretendida, a maioria começa com o que surge como possibilidade, seja na condição de trabalho regulamentado e carteira assinada, seja nas inúmeras formas de biscates encontradas, conciliando ou não essa atividade com a escola. Toda escolarização posterior ao ensino obrigatório é considerada de responsabilidade dos próprios filhos.

    Pressionados pelas exigências do mercado de trabalho, os jovens que não freqüentaram a escola na idade prevista tentam ou fazem projetos para retomar os estudos, geralmente através do ensino regular noturno ou de fórmulas mais rápidas que podem ser viabilizadas pelos cursos supletivos13. Nas camadas populares, é sempre dentro destas modalidades que o futuro escolar é projetado, na perspectiva de uma conciliação entre estudo e trabalho14. Porém, retornar à escola pode dar apenas prosseguimento a uma escolaridade acidentada, conforme se pode verificar por meio de vários exemplos nos quais essas tentativas foram também acompanhadas de novas interrupções15. Esses percursos acidentados (sejam decorrentes de reprovações ou de interrupções) aumentam a distância entre a idade cronológica e a idade escolar, e quanto maior a diferença, mais improvável se torna a conclusão de um ciclo completo de ensino16. Estes dados se aproximam da realidade brasileira, que historicamente vem reproduzindo altos índices de repetência, sobretudo nas primeiras séries17.

    Os depoimentos obtidos através de entrevistas mostram, de um lado, a difícil relação entre o mundo do trabalho e o da escola e, de outro, as contradições entre o valor social da escola e a escolarização na sua condição real. Não raro, os filhos perdem a ocasião de ser estudante “normal”, passando essa fase, é a de trabalhador ou trabalhador-estudante a condição mais freqüente. “Já passou da hora”, observa Lucas, 21 anos, que tenta obter um certificado escolar por meio do curso supletivo. Ele, como muitos outros jovens, procuram recuperar o atraso escolar, mas já são trabalhadores em tempo integral, em ocupações fisicamente estressantes. Da parte de muitos, ocorrem tentativas de retorno à escola, mas em muitos casos a relação entre o mundo do trabalho e o da escola se mostra de difícil conciliação. Aqueles que trabalham regularmente (12 dos 30 entrevistados) reclamam do cansaço, do reduzido tempo para os estudos, das freqüentes ausências às aulas, das dificuldades em certas disciplinas e, em vários casos, da não-disposição psicológica para estudar. Entrar, sair, retornar, sair, retornar novamente são acontecimentos que se sucedem, pois, para muitos deles, ainda persiste a crença do estudo como uma neces-. sidade indispensável, como ilustra Lucas: “porque é na escola que se pode formá e algum dia ser alguém na vida”.

    Com freqüência, a pouca escolarização os deixa sem opções, obrigando-os a aceitar os baixos salários e a permanência em ocupações que muitas vezes rejeitam, às quais se submetem por falta de melhor alternativa. O desemprego, a rotatividade e a diversidade de ocupações exercidas são situações conhecidas da maioria dos entrevistados. Muitos deles não tiveram senão serviços temporários, em forma de “biscates”. Além do desemprego que atinge os jovens, a baixa escolarização e qualificação profissional e, num determinado momento, a própria faixa de idade associada ao serviço militar, são outras barreiras que dificultam o acesso ao mercado formal de trabalho .

    Sem formação adequada para as exigências do mercado de trabalho (não raro o ensino médio e novas qualificações como a informática), não resta outra alternativa senão “pegar o que aparece", para parafrasear uma expressão comum no grupo entrevistado. Quando tentam inserir-se na vida ativa, o fazem em ocupações bastante variadas como as de office-boy, servente de pedreiro, auxiliar de mecânico, balconista, babá, empregada doméstica, entre outras. As tentativas de mudança de ofício são acompanhadas de longa espera e incerteza, conforme observa Lucas, que está tentando deixar o cargo de zelador de um condomínio para se tomar cobrador de ônibus. Quando da última entrevista, fazia sete meses que havia preenchido uma ficha em uma empresa do ramo, tempo que lhe permitiu proceder a um balanço da situação e de suas chances: “a gente vai lá, eles ficam enrolando... hoje em dia a gente tem que segurá o que tem. E pouco mas serve!”

    Aparentemente poderíamos pensar que não há relação entre o trabalho e a interrupção escolar quando, desempregado, o jovem está também fora da escola. Desemprego não significa um estado de inatividade, uma vez que, nessa situação, a grande maioria procura inserir-se nos setores informais de atividades. A cada entrevista podia-se perceber a falta de recursos financeiros e a decepção daqueles que se viam privados de participar de certas formas de lazer, do acesso a bens de consumo que criam marca e identidade entre os jovens. Poder desfrutar de bens de consumo como roupas, calçados entre outros que, fortalecidos pela mídia, gozam de prestígio nessa faixa etária, faz parte do imaginário de todas as camadas sociais e não constitui prerrogativa das classes sociais mais favorecidas.

    Situações em que a ausência de um certificado mínimo de escolaridade impõe limites à inserção ou à reconversão profissional chamam a atenção para a necessidade do diploma, e é especialmente nesse momento que o estudo ganha real significado instrumental. Ou, como observou Jauss (apud Duschatzky, 1999:81), “a escola adquire sentido para o sujeito quando a experiência escolar entra no horizonte de suas expectativas de vida”. Assim, a interrupção dos estudos é revista em outro momento, quando então tentam reingressar ou fazer projetos de retomar à escola, muitas vezes após vários anos de interrupção.

    Para exemplificar, tomemos o caso de Luana, 18 anos, que considera humilhante seu trabalho de empregada doméstica exercido desde a idade de 13 anos. Todas as vezes que tentou mudar de profissão, esbarrou na ausência de credenciais escolares. Sua trajetória escolar não seguiu o padrão convencional previsto pelo sistema de ensino. Até a 5S série não havia interrompido os estudos, mas acumulava quatro reprovações: uma na 3a série e três na 53 série. Esta última transcorreu com dificuldades escolares (principalmente em matemática), freqüência irregular às aulas e interrupção temporária aos 12 anos, quando trabalhava na função de babá. Sua última tentativa de retomar os estudos foi no curso supletivo noturno, mas, face às tentativas mal-sucedidas, interrompeu sem concluir o ensino fundamental: “eu chegava cansada à noite e não dava tempo pra mim estudá. [...] Eu reprovei porque não consegui estudar, tava muito forte pra mim”. Com 13 anos  parou de estudar e foi, como suas duas irmãs, trabalhar como empregada doméstica, ocupação que ainda exercia quando a reencontramos em 1997. À época percebia o equivalente a dois salários mínimos, quantia que dividia com a mãe para ajudar nas despesas da casa. Apesar do desânimo frente às reprovações e do longo tempo sem estudar, a escola ocupava um lugar importante no seu universo simbólico e planos futuros. Seu desejo era acumular uma poupança para investir num curso de computação, fazer o curso médio, incluindo também, no seu horizonte, uma formação de nível superior, conforme revelou na última entrevista, realizada em 1997. Retomar os estudos representa para ela o desejo de se reconhecer como estudante e poder se identificar com os colegas da mesma faixa etária. Esse fato não reflete apenas sua situação particular, mas a de significativa parcela da população, como mostra Duschatzky num estudo com jovens argentinos, para os quais “a escola é vivida como a oportunidade de construir outro modo de ser jovem” (1999: 85). Nas palavras de Luana, “o estudo é uma coisa bonita de se falá. Por exemplo, se alguém chega e pergunta: tu estuda? tás em que série? ah, eu tô fazendo tal, tô quase chegando naquele curso. Eu acho muito legal. (...) Eu me arrependo um monte de té desistido”. Para ela, fazer parte do universo estudantil se traduz num fator de reconhecimento social, um reconhecimento que, como também observou Duschatzky (1999: 81), tem um duplo significado: o de “distinção no interior da própria comunidade”, noção que inclui o grupo de jovens que constitui parâmetro de referência e identificação, e “de articulação com a sociedade global” que, no caso de Luana, corresponde ao desejo de poder exercer uma ocupação mais valorizada na estrutura social. Como ela, outras entrevistadas recusam-se a aceitar a realidade social que empurra as mulheres residentes no bairro para os serviços domésticos, como uma espécie de tradição e fatalidade.

                    Na adolescência, quando eu fiz 14 anos, eu fui conhecendo mais sobre a vida, fui achando mais interessante o estudo. 1...] Eu via as pessoas mais jovens, rapazes, moças, indo pra escola, vi as minhas amigas, têm umas que terminaram, têm umas que tão fazendo vestibular. Eu sempre quis fazê vestibular. [.. .1 Eu acho humilhante trabalhá pros outros. É horrível. (...) Como a gente é pobre, a gente tem que vivê nessa vida!

O quadro descritivo de Aníbal, a seguir, revela algumas similaridades com o percurso escolar de Luana. Filho de catadores de papel, mãe analfabeta e pai com 7a série, foi também um trabalhador precoce, tendo acumulado muitas experiências fora da escola, situadas nas fronteiras com a atividade adulta. Dentre as muitas ocupações que exerceu, foi vendedor ambulante, carregador de compras em supermercado e, como sua mãe e irmãos, catador de papel. No plano escolar, detém um nível desproporcional ao tempo que passou na instituição de ensino. Entre a 1- e a 2â séries teve várias reprovações, freqüência irregular às aulas, culminando com a interrupção na 2- série, em situação de se-mi-analfabetismo: “Eu ia na escola, não passava, às vezes desistia. Eu acho que estudei uns 5, 6 anos, não passei, daí desisti”. Quando criança, a escola não era sua ocupação principal. Orgulha-se de ter ajudado a família e não esconde sua preferência pelo trabalho, que lhe permitia ter seu próprio dinheiro, em relação à escola. No último encontro, estava com 17 anos e trabalhava em um estacionamento como guardador de carros, função que ocupava desde os 14 anos. Tinha uma renda de um salário mínimo e meio, e havia retomado os estudos no curso supletivo (3a série). Esse retorno à escola está apoiado no interesse em mudar de profissão e em não se sentir desqualificado perante os quefa-zem parte do mundo dos letrados. Segundo suas palavras: “tem muita gente que é esperta, só porque tem um pouquinho de estudo querem passá por cima dos outros. E por isso que a pessoa tem que sabê lê e escreve bem [...] e é bom pra subi na vida, senão ganha pouco, ganha mixaria”. Seu projeto é cursar o ensino fundamental, talvez o ensino médio, mudar de emprego, segundo seu desejo, para o setor de mecânica de automóveis.

    Apesar dessa valorização pró-escola, o discurso que evidencia o valor inegável da educação escolar nos meios populares não pode ser sempre tomado como sinônimo de um projeto de longevidade escolar. Esta observação não é contraditória com a valorização atribuída aos estudos, uma vez que há uma percepção muito clara dos limites impostos pelas condições materiais objetivas. O desejo manifestado pelos filhos entrevistados é de superação das condições familiares mediante inserção em uma atividade profissional mais valorizada do que a de seus pais. Não se trata de projetos ambiciosos19, abstratos e distantes das condições materiais. Do mesmo modo, quando os pais procuram transmitir sua crença num futuro melhor por meio da escolarização, têm igualmente presente que as condições materialmente limitadas, sem perspectivas concretas de mudança, limitam projetos futuros. Como observa Lahire (1997: 24), “o distanciamento das formas organizadas de trabalho e a insegurança econômica são situações pouco favoráveis ao desenvolvimento de uma atitude racional em relação ao tempo”. E acrescenta: “para que uma moral da perseverança e do esforço possam constituir-se, desenvolver-se e ser transmitidas, é preciso certamente condições econômicas de existência específicas”. O conjunto dos indicadores objetivos de Luana, de Aníbal e de outros alunos e ex-alunos permite observar e avaliar as condições que os mantiveram em situação desfavorável em relação à escola, assim como para enfrentar as exigências escolares, como a freqüência regular às aulas, a solicitação de reforço nas tarefas de casa, o material nem sempre possível de ser comprado, o estudo associado ao trabalho como necessidade, para citar alguns exemplos.

    Nos últimos dois casos citados, como em muitos outros, a relação que estes jovens mantêm com a escola está associada à obtenção de um certificado para ampliar suas chances no mercado de trabalho, o que não exclui a presença de outros significados simbólicos igualmente importantes. Os percursos acidentados criam um distanciamento temporal com a escola, mas, em vários casos, a mobilização dos jovens para mudar sua posição na sociedade inclui a obtenção de um certificado escolar. Após vários anos sem estudar, procuram retomar os estudos ou mantê-los em seu horizonte futuro.

    Com estas observações, não estamos querendo concluir que os comportamentos sejam sempre coerentes e conscientemente dirigidos visando à adaptação escolar. A aparente similaridade nas características objetivas dos percursos daqueles que não freqüentavam escola pode ocultar comportamentos diferenciados na relação que estabelecem com a instituição de ensino. Nas camadas populares a relação com a escola é heterogênea e com freqüência também contraditória, ou seja, apesar do discurso marcadamente pró-escola, não a assimilam subjetivamente, como uma disposição real para os estudos, adotando comportamentos que podem ser caracterizados de contracultura escolar, como foi identificado no clássico estudo de Paul Willis (1991) feito com filhos de operários, na Inglaterra. Enquanto para vários de nossos entrevistados o retomo à escola é uma meta carregada de significado positivo, para outros, o prolongamento da escolaridade não se constitui necessariamente um projeto de vida. Para ilustrar essa última situação podemos citar, entre outros casos estudados, Wendel e Andréa como exemplos típicos de uma trajetória frágil com a escola, demonstrada através dos resultados escolares (repetidas reprovações e interrupções temporárias) e de suas relações subjetivas com a instituição. Em geral, isso fica mais claro por volta dos 14 anos, independentemente do nível escolar atingido, quando manifestam uma declarada opção pelo trabalho e investimento na formação profissional, não escolar. Quando retomam os estu-^ dos, interrompem novamente, com flagrantes comportamentos de resistência à freqüência escolar. Mesmo reconhecendo os limites que representa a ausência de um certificado, quando procuram inserir-se profissionalmente, podem interromper o ano escolar a poucos meses de sua finalização. Não raro, isso acontece quando as avaliações parciais sinalizam reprovação e passam a considerar aquele ano perdido, como pode ser verificado no exemplo a seguir.

     No último-encontro que tivemos com Wendel, ele tinha 17 anos e havia concluído a 6a série. Sua história escolar foi bastante irregular e com passagem em vários estabelecimentos: entrou na Ia série quase no final do Ia bimestre, tendo aí sua primeira reprovação. Cursou, no período diurno, até a 4a série, mas não de forma linear, pois ocorreram reprovações e interrupções, uma delas resultando em um ano fora da escola. Sobre esses acontecimentos disse: “sempre tirava notas baixas, desanimava, daí eu queria gazeá aula, depois acabei desistindo”. A partir da 5a série, estudava no período noturno e era auxiliar de mecânica de automóveis. Nessa situação cursou a 5a e 6a séries, iniciando a 7a, que interrompeu um mês após iniciar o curso, e não descartava a possibilidade de concluir a 8a série, nível que considera suficiente porque “prá sujá a mão de graxa não precisa mais”. Seu projeto é habilitar-se melhor no ramo que exerce e montar sua própria oficina mecânica.

     A situação acima descrita retrata o que chamamos de uma frágil relação com a escola, fruto de vários acidentes no percurso: reprovações, sentimento de discriminação pela professora, mudanças de estabelecimentos de ensino e interrupções. Ao ingressar no mercado de trabalho, freqüentar a escola requeria disponibilidade de tempo e mobilização, situações dissonantes às suas preocupações então voltadas para o campo profissional. Participar da vida ativa predispõe a outros interesses e ao investimento do aluno em ocupações que podem competir com aquele voltado para a escola. Além disso, a escola da qual o aluno obtém resultados não-satisfatórios pode ganhar um lugar marginal frente a outras solicitações como o lazer e a conquista de maior independência dos pais mediante a obtenção de sua própria renda. O depoimento de Andréa é, nesse sentido, revelador:

                 [...} estudá eu nunca gostei. Se eu disser pra você que eu gosto de estudá eu tô mentindo, mas eu sinto falta dele agora, né. No serviço eu podia pegá uma profissão legal, mais leve, né. Mas só isso aí. [...] Em geral, hoje em dia, a pessoa tem que ter estudo. Tá cada vez pior, pior, pior. Só isso aí que tá pegando, mas se eu falá que eu gosto de estudá, eu vou estar mentindo. Se dependesse só de mim, eu nunca tinha entrado na aula.

    Todo o discurso de Andréa sobre a escola está ancorado nessa dupla face da realidade com a qual vem se confrontando: de um lado uma reação antiescola, e de outro, o reconhecimento do certificado de ensino como uma necessidade social. Ao referir-se ao fato de ser convidada para ocupar um posto de balconista em uma loja, lamenta ter ape-nasa5ã série: “eles me liberaram... dancei, perdi o serviço... eles pediam o 2a grau”. Nos seus planos inclui retomar os estudos, no ensino supletivo noturno, e concluir o ensino fundamental, mas não tem ilusão sobre as aquisições que possa ter. A preocupação de Andréa não é com o saber escolar em si mesmo, mas a obtenção de um certificado, que constitui uma exigência, entre outras, do mercado de trabalho, cada vez mais seletivo. Andréa, como é o caso de muitos outros entrevistados que carregam o peso de um histórico de fracasso escolar e muitas incertezas sobre seu lugar social, oscilam entre a aproximação e o recuo da instituição de ensino. Retomando expressão de Bourdieu & Cham-pagne (1998: 221), essa instituição passa a representar um verdadeiro “engodo”, ou ainda, uma “espécie de terra prometida, semelhante ao horizonte, que recua na medida em que se avança em sua direção”.

    Longe de sentirem-se vítimas, a posição freqüentemente assumida por aqueles que não obtiveram um certificado escolar é a de transferir para si mesmos a responsabilidade do fracasso escolar. Muito embora não poupem críticas à escola pública, ao avaliar sua própria situação, consideram-se os principais responsáveis pelo baixo nível escolar, e quanto aos resultados obtidos, os atribuem principalmente às características individuais como incompetência e desinteresse. A análise dos pais, quando se referem à situação específica dos filhos, não foge a isso. Talvez por isso estes não vivam as reprovações como um drama, pois, afinal, se sentem responsáveis pelo seu fracasso. Andréa foi reprovada na 23 e 48 séries, segundo ela, porque:
               [...] queria conversá muito com os amiguinhos. [...1 Na 5a eu ia rodá do mesmo jeito porque eu matava mais aula do que ia ... Não posso culpá ninguém porque fui eu mesma que fiz isso pra mim. Me arrependo, mas fui eu. Eu não era nenhuma criança, sabia o que estava fazendo. Faltava! Se num ano eu fosse meio ano, era muito, e a mãe achava que eu tava na aula...
    Ou ainda, conforme outro entrevistado, também com grande atraso escolar: “a gente gazeava, fazia bagunça, levava suspensão e a mãe nem ficava sabendo. A gente fingia que ia pra escola e não ia [risos] (Élton, 17 anos).

    As transgressões às normas escolares, entre outras formas que encontram para justificar a interrupção dos estudos, revelam uma relação ambivalente com a escola, como mostram Andréa, Wendel e Élton, acima citados, entre vários outros casos estudados. A relação com o universo escolar não é destituída de ambigüidades: de um lado não ignoram o peso social do certificado escolar, de outro, e não raro, adotam práticas antagônicas às normas escolares. A situação escolar de Élton, que reúne diversos traços característicos desta observação, serve de ilustração: aos 12 anos, com uma escolaridade de 4â série e duas reprovações, interrompeu os estudos e não atribuía grande importância à freqüência escolar. Em 1998 havia retornado à escola e freqüentava a 5a série. Sobre esses acontecimentos, faz a seguinte avaliação:

                    Eu não gostava [da escola]. Quando o meu pai era vivo, eu gazeei 3 meses de aula, 3 meses e meio eu gazeei. Chegava pela porta do colégio e saia pela outra. Era começo da adolescência e a gente não tem muita cabeça, depois que bota a cabeça no lugar vai ver que eu fiz errado. Pegava e ia pra uma lanchonete jogar fliperama, vi-deo-game. Eu chegava do jornal [vendedor ambulante de jornal], tinha um dinheiri-nho, chegava lá e gastava tudo, já tava viciado, não queria saber mais de estudá.

     Os comportamentos de resistência aos estudos, tal como podemos inferir a partir dos relatos, expressam uma certa negação do mundo da escola, materializada na prática de gazear aula para encontrar os amigos ou distrair-se com jogos eletrônicos, entre outras fartamente narradas tanto pelas mães quanto pelos seus filhos. Uma análise voltada para esses comportamentos contrários à educação institucionalizada, tão freqüente nos meios populares20, não pode recair em explicações de tipo individualizante, resultado de uma simples escolha ou tendência particular. Não podemos deixar de considerar que onde tais comportamentos foram verificados há freqüentemente uma história de fracasso escolar, e não é precipitado afirmar que o aluno que passa anos na escola vivendo sucessivas derrotas certamente não fica impune. A interiorização do fracasso, além de ou-! tros efeitos relacionados à auto-estima, certamente não favorecem uma relação positiva com a escola. Como observa Esteban (1992),

               [...Ja ação escolar tem importante papel na construção/reconstrução desse auto-conceito. A criança que possui expectativas negativas em relação a si mesma não acredita em suas diversas possibilidades. Portanto, o seu resultado escolar pode ;       negar ou confirmar suas expectativas em relação a si mesma, contribuindo para o reforço ou para a superação dessa realidade (p. 75).

     Como já foi assinalado, as avaliações de alunos e ex-alunos sobre seus insucessos escolares são, tanto no discurso dos pais quanto no dos filhos, freqüentemente apoiadas nesses comportamentos contrários às normas escolares, mais do que nas condições materiais da família e nas práticas da escola. Os comportamentos que sinalizam rupturas com o mundo escolar recebem, da parte da família, uma explicação resumida: “falta de interesse”. Assim julgado, o comportamento do filho que se recusa em permanecer na escola não ocorre sem conflito familiar. Em geral, os pais esperam ver através de seus descendentes a superação de sua condição social, e a desescolarização precoce representa a frustração desse desejo. A discrepância, de um lado, entre a moral doméstica -que sobretudo as mães tentam transmitir por meio de conselhos - e, de outro lado, o comportamento de resistência à escolarização, revelam que a transmissão de valores e condutas familiares em relação aos estudos não é necessariamente apreendida pelos filhos com igual significado. Essa constatação reforça a idéia, defendida também por outros autores (Lahire, 1997; Viana, 1998), de que a mobilização familiar não é condição suficiente para garantir uma permanência duradoura na escola, como tivemos a oportunidade de observar em vários casos analisados. Faz sentido então a observação de Lahire(1997: 26) quando diz que “se a ordem moral e material em casa pode ter uma importância na escolaridade dos filhos, é porque é, indissociavelmente, uma ordem cognitiva”. Mas não podemos ignorar também que a adesão do filho ao que os pais procuram transmitir em favor dos estudos depende também dos “veredictos da escola e, portanto, passa pelo sucesso escolar” (Bourdieu, 1998: 233).

    Nossa constatação é de que o retorno ou a intenção de voltar à escola não representa para o conjunto dos sujeitos estudados, conforme já assinalamos, um projeto propriamente dito. Para vários deles, essa retomada dos estudos indica muito mais a própria ausência de perspectivas de trabalho do que uma decisão que situa os estudos como parte de um plano raciona! e conscientemente dirigido. O esforço despendido em permanecer na escola é uma resposta à necessidade de aumentar as chances já reduzidas de acesso ao mercado de trabalho, e não a uma idealização da escola no sentido_mais global. Assim, ao estudar os percursos escolares, não podemos ignorar o comportamento dós filhos e o sentido que eles atribuem à escola e ao saber escolar. O estudo realizado por Charlot (1996: 49) sobre a relação de jovens de meios populares com o saber escolar apóiam esta observação. E função da escola permitir ao aluno se apropriar dos saberes, mas, como observa o autor, “a criança só pode se formar, adquirir esses saberes, obter sucesso, se estudar. E ela só estudará se a escola e o fato de aprender fizerem sentido para ela. A questão do sentido deve portanto preceder a da competência [...) e permanecer presente durante a aquisição das competências”.
    A distância do mundo da escola se manifesta, nas histórias estudadas, por meio de múltiplos elementos: dificuldades materiais, freqüentes insucessos escolares, concomitância entre estudo e trabalho, interesses que fazem parte do mundo infanto-juvenil, mas, também, pela descrença frente à situação da escola pública e a falta de sentido, de que fala Charlot. Por isso, mesmo que nesse trabalho o foco de análise não esteja voltado para a relação entre a formação dos percursos escolares e as práticas da instituição onde o saber é transmitido, não podemos deixar de lembrar que:

              !...] uma análise do sucesso e do fracasso não pode considerar como insignificante nem o fato de que a instituição tem como função específica transmitir saber aos jovens, que ela se pensa como tal e se organiza para esse efeito, nem o fato de que a história escolar dos jovens se desenvolve em estabelecimentos escolares e através de práticas pedagógicas cujas políticas e lógicas devem ser interrogadas (Charlot, 1996.- 49).

3.Passando a barreira do ensino fundamental: um percurso nada natural

    Reunimos, nesta última parte, os percursos escolares que ultrapassaram o ensino fundamental e confirmam o desejo dos pais, de obtenção de um certificado escolar. Nosso objetivo não será o de buscar explicações para esses casos mais bem-sucedidos na escola, como outros o fizeram (Laurens, 1992; Lahire, 1997: Viana, 1998; Portes21), mas chamar a atenção para outros aspectos da heterogeneidade no desempenho escolar que demonstram maior adaptação e persistência de parte da população para elevar seu capital escolar. Assim, a realidade que tentamos descrever, em páginas anteriores, sobre o fenômeno truncado de escolarização é apenas uma parte da dinâmica que reúne as condições materiais e também as ações dos sujeitos sociais. As carreiras escolares interrompidas precocemente, embora representativas no grupo estudado, não atingem a população de forma indiferenciada. Em situações em que as condições econômicas são altamente desfavoráveis à escolarização, pode-se identificar um relativo êxito no ensino fundamental e médio, materializado durante todo o ciclo ou a partir de um determinado momento do percurso escolar. Como exemplo desta segunda situação, citamos o caso de Júlia, 20 anos, ex-empregada doméstica, membro de uma família de seis filhos; destes, cinco com mais de 14 anos. Desses irmãos, três cursaram até a 4a série, um freqüentava a 5a série e somente ela concluiu o ensino fundamental. Júlia teve, durante os primeiros anos, uma escolaridade problemática: foi reprovada na 3a e 5â séries e, na 5a série, desistiu na metade do ano letivo. Após esses acontecimentos, retomou os estudos e conseguiu romper com a tradição de fracasso escolar na família, tendo seguido o curso escolar sem reprovação até o momento do nosso último encontro, quando freqüentava a 2a série do ensino médio. A avaliação de Júlia sobre a freqüência escolar tem por parâmetro de comparação a irmã, empregada doméstica e nível de instrução de 4'3 série, situação que serve para alimentar seu propósito de, por meio dos estudos, aumentar suas possibilidades de trabalho: “eu não desisto porque eu quero me formá, eu quero tê uma profissão, uma coisa que vai tê valorizá mais tarde”. Num plano mais imediato, e como outras moças e rapazes que querem se inserir no mercado de trabalho, quer fazer curso de computação, mas não descarta a possibilidade de freqüentar a universidade.

    O exemplo citado indica que não há regras gerais para definir a condição escolar do conjunto da população estudada ou dos chamados grupos populares. No interior de uma mesma família há variações nos percursos escolares e nas práticas adotadas, como o do exemplo acima, entre outros.

    Diante deste quadro, é importante reafirmar o peso das condições socioeconômicas sobre a definição do futuro escolar e social; porém, conforme já observamos, esta relação não se dá de forma mecânica ou determinista. As difíceis condições de sobrevivência face à baixa renda, trabalho instável, moradia na favela, não são evidentemente elementos favoráveis à freqüência escolar e à construção de um percurso escolar regular, mas estes dados tomados isoladamente não fornecem evidências suficientes para explicar as situações escolares de sucesso ou fracasso escolares. Entre os jovens que concluíram o ensino fundamental ou que têm, nesse nível de ensino, uma relação de assiduidade escolar, há também moradores de favela. Assim, a realidade social nos mostra que em condições socioeconômicas similares pode-se identificar percursos diferenciados, como foi assinalado acima. A mobilização familiar voltada para as atividades escolares dos filhos, as práticas de socialização e transmissão de valores, o apoio sistemático de um professor, a demanda escolar relacionada à atividade profissional, o tipo de trajetória social e escolar, entre outras situações, podem tornar-se fatores escolarmente rentáveis na definição de percursos singulares com características nitidamente distintas das de colegas da mesma idade e origem social. Daí a pertinência do conceito já referido de configuração de fatores, compreendido não como uma somatória de elementos tomados isoladamente, mas definido nas suas relações de interdependência.

    Dos 56 casos dos quais acompanhamos a situação escolar no período de 1991 a 1998, treze, ou 23%, concluíram o ensino fundamental, e destes, três obtiveram um certificado de nível médio, enquanto oito o cursavam. Dos onze que ultrapassaram o ensino fundamentai, dez o fizeram no período noturno, e de modo gera! conseguiram essa façanha com grande investimento. Ilustrando com alguns exemplos, podemos citar Márcio, que pelo seu bom desempenho escolar foi favorecido com uma bolsa de trabalho que lhe permitia estudar; situação semelhante é a de Maurício que, graças aos resultados obtidos no ensino fundamental, obteve uma bolsa para cursar o ensino médio em escola privada; já Magda, parou um ano de estudar para juntar uma poupança e poder pagar o ensino noturno em uma escola particular, e ainda Gabriela, que é reconhecida pelos colegas como a aluna CDF22. Diante desse quadro, faz-se mister não ignorar as oportunidades que agiram favoravelmente e as ações dos alunos como produtoras de configurações diferenciadas. Uma característica mais próxima aos vários casos incluídos nesta categoria diz respeito aos resultados escolares favoráveis nas séries iniciais, o que nos permite inferir que “a forma como o saber e o não-saber são vividos no cotidiano escolar é relevante para a compreensão dos mecanismos que possibilitam a construção do sucesso de alguns e o fracasso da maioria” (Esteban, 1992: 77).

    Conforme já observamos, freqüentemente o investimento escolar reúne outros significados além do estritamente voltado para a adoção de estratégias utilitaristas, a fim de tornar o diploma mais rentável23, que se referem à subjetividade e à identidade social. Em vários casos com melhor desempenho na escola, pode-se observar uma relação com o universo escolar fundado em certas proximidades, e não unicamente nos desencontros entre os jovens dos meios populares com a escola. Nessa direção, encontramos o testemunho de Magda sobre o prazer que encontra na leitura ou, ainda, o caso de Júlia, entre outros que reconhecem no estudo uma forma de garantir um reconhecimento social. Expressões que revelam a crença nos benefícios que o estudo pode oferecer, como “deixar a gente com mais confiança, ter mais conhecimento, não ter uma vida dura como os pais", são carregadas de valor simbólico e reveladoras do lugar ocupado pela escola não apenas de emprego de um tempo reconhecido como necessário para a aquisição de um certificado e saberes fundamentais, mas também como um lugar que inclui diferentes desejos, e subjetividades.

    Para superar a condição de exclusão econômica e social em que se encontram, certos jovens passam a investir fortemente na atividade profissional e escolar, sobretudo quando vêem possibilidades de promoção no próprio local de trabalho. Para Ana, 22 anos, retomar os estudos representou a busca de uma outra identidade: a de sair da condição de empregada doméstica e o desejo de reconhecimento e crescimento pessoal. O caso dessa jovem moradora de favela é um, entre outros, cuja escolaridade se desenvolveu dentro de um quadro social e familiar complexo, tendo, entre os fatores desencadea-dores, uma situação ocupacional instável do chefe da família, problemas de moradia e recorrente mobilidade geográfica no curso do ano letivo. Como muitos de seus colegas, nos primeiros anos escolares, Ana interrompeu os estudos e nas estatísticas certamente figurou como um caso de abandono escolar. Acontecimentos em sua vida escolar como uma reprovação na Ia série e a ocorrência de interrupção dos estudos até a idade de 10 anos não correspondem ao que se costuma designar, por meio de uma categoria genérica, de fracasso escolar. Ana fez a 2a série com grande atraso escolar. Tinha à época 11 anos, mas todo curso escolar posterior ocorreu sem reprovação. Aos 16 anos interrompeu os estudos pela segunda vez, em razão de uma gravidez. Recomeçou tempos depois, no ensino noturno, concluindo a 8a série aos 18 anos. Iniciou sua trajetória profissional como empregada doméstita, mais tarde foi balconista, e quando a entrevistamos pela última vez, era operadora de caixa de uma grande empresa comercial, onde tinha um cargo de responsabilidade e pelo qual percebia aproximadamente quatro salários mínimos mensais. Seu desejo é investir na profissão, e nesse sentido se esforça para obter um certificado de ensino médio - à época cursava a Ia série -, descartando de seus horizontes uma formação universitária, pois considera que “exige muito tempo e não vai dar pra trabalhar e estudar^Neste caso particular, obter um certificado de ensino médio constitui um projeto consciente, determinado, articulado com a carreira profissional e na empresa onde trabalha: “eu ainda pretendo subir mais... quanto mais responsabilidade você tem, mais vai ganhar”. Faz parte de seus planos futuros dar continuidade a sua formação, através de cursos de inglês e computação e melhorar suas condições de vida. Isso pode ser traduzido pelo desejo de mudar de bairro, ter uma casa independente da família e dar estudo e vida digna para seu filho, sob sua responsabilidade única. Sua determinação está ancorada numa compreensão meritocrática do sucesso profissional mediante o esforço pessoal, e é só através dele que vê possibilidades de reverter sua situação social: “uma pessoa só se dá bem na vida quando ela estuda, quando ela trabalha, quando ela corre atrás daquilo que ela quer”. Seu caso traz à tona vários elementos que podem ter exercido um papel favorável em sua trajetória escolar e profissional, sendo alguns desses possíveis sociais, o tipo de trajetória social, com residência duradoura em uma grande cidade e junto a uma família (não consangüínea) que, segundo vários exemplos por ela citados, concedia grande valor à instrução escolar; a influência de relações de amizade que facilitaram mudança para um local de trabalho mais favorável e, ainda, pequenas conquistas de ascensão dentro da empresa em que trabalhava.

   E oportuno retomar as considerações de Rodrigues (1995), quando considera que o trabalhador/estudante dos cursos noturnos vivência quotidianamente a divisão social do trabalho e, como trabalhador, adquire um conhecimento muito além do necessário para a execução das tarefas que lhe são confiadas. Para citar alguns exemplos desse aprendizado, o autor cita o respeito à hierarquia e a aquisição de estratégias de conservação do emprego, tais como podemos observar no caso de Ana, ilustrativo da realidade desse estudante noturno,

               […] cuja experiência adquirida nas relações de trabalho não lhe deixa dúvidas sobre o valor da credencial escolar para aumentar o seu pequeno poder de barganha junto a um estreito e cada vez mais segmentado mercado de trabalho, diminuindo, com isso, os efeitos da exploração à qual é freqüentemente submetido (p. 68).

    Assim, parece ficar claro, conforme nossa argumentação anterior, que além da socialização exercida pela família de origem, outras experiências são capazes de mobilizar os sujeitos em tomo de um projeto, apesar das condições materiais desfavoráveis de suas famílias. Os desejos que apóiam esse projeto não surgem do acaso nem são dados isolados das relações históricas e sociais dos sujeitos singulares, mas são construídos no curso da vida “a partir de sua primeira infância sob o efeito da coexistência com os outros, e fixam-se progressivamente na forma que o curso de sua vida determinar, no correr dos anos, ou, às vezes, também de maneira brusca, após uma experiência particularmente marcante” (Lahire, 1997: 18).

    Reafirmamos, assim, a idéia defendida nesse trabalho, de que é nas relações dinâmicas, por meio de múltiplas inter-relações e nas experiências sócio-históricas de sujeitos concretos que se tece a trama da complexa relação com a escola. Acreditamos, como Viana (1998), que nos meios sociais caracterizados mais pela imprevisibilidade do que por uma definição racional de um projeto escolar, as oportunidades e a diversidade de experiências socializadoras podem constituir elementos propulsores de uma maior sobrevida escolar. A escolaridade mais prolongada, mas que contou com grande esforço centrado em atitudes racionais visando à superação da condição familiar e ao crescimento profissional, pode ser identificada, mesmo que muitas vezes de forma ambígua e contraditória. Os êxitos escolares relativos são indicadores pertinentes dessa noção de imprevisibilidade e se revertem em base importante, embora insuficiente. Observa ainda a autora que as noções de imprevisibilidade e de aleatoriedade não são contraditórias à noção de autodeterminação e horizonte temporal distendido.

    O caso de Ana, de Gustavo, entre outros casos estudados, mostram o trabalho e a escolaridade sendo assumidos como parte de um projeto. Eles têm claros objetivos de ascensão social que orientam suas práticas. Não são projetos destituídos de bases objetivas, mas definidos dentro do horizonte possível e, por isso mesmo, vão sendo construídos gradualmente ou “por etapas”, conforme definiu Gustavo, 17 anos, cursando a Ia série do ensino médio: “eu faço de acordo com o meu alcance, eu sonho com aquilo que eu tenho possibilidades... No momento agora tô pensando em subi de cargo, completar o 2° grau, depois eu vejo o que fazer”. Este conjunto de interesses vai se configurando dentro de um quadro de imprevisibilidades, mas também de mobilização e de pequenas oportunidades e conquistas que vão se apre traditoriamente, o trabalho pode servir de sentando no curso de suas vidas. Assim, con-elemento mobilizador da carreira escolar. O que fica evidente ao se dirigir o olhar sobre a relação entre o trabalho e a escola, é a existência de outros elementos como a natureza da atividade, as condições do trabalho exercido, o resultado das experiências escolares e os benefícios que podem tirar da escolarização, além de outros significados que a educação institucionalizada possa representar. Concordamos ainda com Rodrigues (1995) quando afirma que
              [...] o fato de estar ou não trabalhando interfere decisivamente no rendimento escolar do aluno, mas ele não está condenado a um baixo rendimento escolar pelo fato de estar trabalhando. Aliás, a combinação do trabalho com o ensino não é impossível, nem mesmo indesejável; é o caráter classista da escola que joga um papel decisivo na definição do sucesso ou do fracasso nos estudos (p. 66).

Os percursos escolares analisados e que ultrapassam a barreira do ensino fundamental evidenciam uma estatística pouco representativa nos meios sociais estudados. Trate-Se de percursos que transcorreram dentro de condições pouco favoráveis à escolaridade. Ademais, como demonstramos, para permanecer na escola são feitos grandes sacrifícios, pois ser estudante não é um ofício que possa ser exercido sem ônus, tais como a escassez de recursos financeiros para adquirir livros - fato que limita os alunos a fotocopiarem o que é estritamente necessário freqüência ao ensino noturno e a convivência com as condições desfavoráveis do ensino público. São freqüentes as reclamações sobre a organização da escola, as disciplinas com falta de professor, assim como as ausências e constantes substituições do corpo docente. Para finalizar um curso de nível médio é preciso muitas vezes ainda abrir mão de um plano inicial, fazer concessões, como no caso de Márcio, que deixou a escola técnica por outro curso profissionalizante de menor prestígio e menos exigente, mas que permitia uma conciliação com suas atividades profissionais.

    O caso de Márcio é representativo: quando não é possível investir no ensino que se acredita ser de melhor qualidade e mais rentável profissionalmente, opta-se pelo que é viável. A opção é por um curso que condiz com as atividades do aluno trabalhador e representa menor risco de fracasso escolar. As mudanças de estabelecimento de ensino, na rede pública, não são raras, e suas razões são variadas. Em alguns casos, a transferência parece ser motivada pela estratégia de tornar mais rentável o certificado escolar (escola reconhecida por sua reputação favorável e tipo de curso oferecido), pela tentativa de reverter a situação de fracasso escolar, mas a razão mais freqüente é favorecer a associação com o trabalho, pela maior proximidade geográfica do emprego com a escola ou pela oferta do ensino noturno. Considerando essas estratégias como parte de um projeto, vale lembrar algumas características que, segundo Velho, o definem: “o projeto, sendo consciente, envolve algum tipo de cálculo e planejamento, não do tipo homo oecono-micus, mas alguma noção, culturalmente situada, de riscos e perdas, quer em termos estritamente individuais, quer em termos grupais” (1997: 29).

    O aumento do período de inatividade dedicado à formação escolar (no ensino médio e superior) e que serve de “passaporte” para a vida profissional não faz parte da história de vida de nenhum dos 30 jovens entrevistados. Os que atingiram a escolaridade pós-obrigatória o fizeram paralelamente ao trabalho, e não pela ampliação do tempo de inatividade. Para estes, a fase de transição da inatividade para o ingresso na vida ativa é curta, diferente da tendência verificada nas camadas economicamente favorecidas, que estendem o período de vida escolar como um meio para enfrentar a crise do mundo do trabalho (Pochmann, 1998: 26). Esses dados vêm apoiar a necessidade de relativizar a noção genérica do que é ser criança, adolescente ou jovem na sociedade brasileira. Como observou Madeira (1986),

              [...] a categoria jovem acha-se tão segmentada como a sociedade brasileira como um todo, [...] cada uma das situações específicas vividas pelo jovem delimita a onipotência, as aspirações, os limites que os códigos sociais escritos e não-escritos determinam, o nível de conflito, a maior ou menor responsabilidade (p. 18).

Não poderíamos concluir este trabalho sem constatar, como também já fizeram outros autores (Gouveia, 1978; Neto, 1996), a grande distância entre as intenções que em-basam as políticas de democratização do ensino e a realidade escolar da população socialmente desfavorecida. A escola brasileira continua a apresentar elevados índices de evasão e repetência24, fenômenos estes que não são as causas dos problemas escolares, mas a expressão de um sistema de ensino elitista e excludente.
   
Os avanços proporcionados pela extensão da escolaridade (lei 5692/71), pela ampliação de vagas e pela representação das camadas populares na escola produziram uma democratização quantitativa do ensino, mas esta não foi acompanhada de um avanço qualitativo, que produzisse mais igualdade escolar. Como observa Queiroz (1995: 15), a população socialmente mais desfavorecida tem de fato cada vez mais acesso à escola e, nesse sentido, as diferenças entre as classes sociais se reduzem porque essa população se beneficia com a extensão da obrigatoriedade escolar, mas não se beneficia em condições de igualdade. A presença crescente dessa camada social em diferentes níveis do sistema escolar não oculta as reais diferenças sociais entre os alunos, como lembram Bourdieu & Champagne (1998):

                    Os alunos ou estudantes provenientes das famílias mais desprovidas culturalmente têm todas as chances de obter, ao fim de uma longa escolaridade, muitas vezes paga com pesados sacrifícios, um diploma desvalorizado; e, se fracassam, o que segue sendo seu destino mais provável, são votados a uma exclusão, sem dúvida, mais estigmatizante e mais total do que era no passado... (p. 221).

    Para retomar algumas diferenças relativas aos benefícios escolares e sociais testemunhadas pelos nossos informantes, vale lembrar a desigual distribuição do tempo investido no estudo, associada à dupla jornada como estudante e trabalhador; os limites na escolha de estabelecimento de ensino e curso oferecido, seja voltada para o ensino médio de nível técnico (lembramos o exemplo acima citado do aluno Márcio), seja direcionada à formação geral de preparação para o vestibular, sem desconsiderar outros tipos de investimentos educativos que as camadas mais favorecidas têm fora da escola e que fazem a diferença na disputa pelo acesso aos cursos de nível universitário e na rentabilização das carreiras. Por todas as injunções do jogo escolar, os jovens originários de meios populares que conseguem permanecer por mais tempo na instituição, isto é, além do obrigatório, são constantemente submetidos a práticas de eliminação de diferentes graus e em todos os níveis de ensino, constituindo-se, na justa expressão de Bourdieu & Champagne, nos “excluídos do interior” (1998) do sistema escolar.

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Longevidade escolar em famílias de camadas populares Algumas condições de possibilidade*

Maria José Braga Viana** *              Uma versão ligeiramente abreviada deste artigo foi apresentada na 22a Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, em setembro de 1999.
** Professora da FUNREI {Fundação de Ensino Superior de São João Del-Rei).

 [...] a nossa família, lá na realidade nossa, na região ali, é tida como um pouco fora da realidade; sabe... porque... poucos dos que moram lá saíram pra estudar... E é assim, a gente nem sabe exatamente por que saiu [...la gente poderia muito ter ficado lá. (Angela, uma de nossas entrevistadas).

Este capítulo descreve alguns dos principais resultados da investigação realizada no contexto da minha tese de doutorado1. A longevidade escolar em famílias de camadas populares, entendida como a permanência no sistema escolar até o ensino superior, constituiu o tema central desta investigação. Buscou-se compreender algumas condições que possibilitaram uma escolarização prolongada a indivíduos, cuja probabilidade estatística de chegar à universidade sabe-se ser reduzida.

    A construção do objeto de pesquisa deu-se na confluência dessa indagação mais geral com o trabalho de autores (Zéroulou, 1988; Terrail, 1990; Laurens, 1992; Portes, 1993; Lahire, 1994, 1995; Rochex, 1995) que abordam, mediante pesquisas empíricas importantes e de maneira inovadora, a mesma problemática2.

    Nortearam a pesquisa as seguintes questões mais específicas: Em que consiste e como se expressa a presença familiar nesses itinerários escolares atípicos? Em que a configuração familiar desses indivíduos se diferencia de características mais gerais das camadas populares? Quais os sentidos que uma escolarização prolongada assume para esses pais e filhos? Esses processos de mobilidade cultural e social são mediatizados por quais tipos de relações intergeracionais e intersubjetiuas? Noutros termos, quais os custos subjetivos dessa mobilidade? Existem, além do grupo de pertencimento, entendido enquanto o núcleo familiar no sentido estrito, outros grupos de referência que se constituíram em modelos impulsionadores dessas trajetórias escolares? Como esses sujeitos concebem e se posicionam em relação ao futuro e como se utilizam do tempo na construção de sua escolarização?

    Foram sete os sujeitos pesquisados (5 mulheres e 2 homens), que, no momento da pesquisa, eram estudantes de graduação ou de pós-graduação3. Definimos como indicador de longevidade escolar a chegada ao 3- grau; no entanto, dois alunos de pós-graduação, um lato sensu e outro stricto sensu, por representarem o perfil de sujeito que buscávamos, foram incorporados ao processo. A escolha dos entrevistados deu-se através de dois tipos de procedimento. O primeiro, por indicação de colegas de trabalho e de professores e colegas do Curso de Doutorado; uma lista de quarenta alunos bolsistas de trabalho da FUNREI, selecionados para o ano de 1996, constituiu a segunda fonte.

    Recrutamos os entrevistados entre famílias com baixo nível de escolaridade, com dificuldades econômicas, ainda que em níveis diferenciados, e cujos pais exerciam no momento da pesquisa, ou exerceram no passado, ocupações predominantemente manuais.

    Entrevistas abertas e semidiretivas com os sujeitos, em sua universidade de origem, e com suas famílias, em sua residência, constituíram a fonte básica de dados. Essas entrevistas centraram-se nas histórias escolares dos sujeitos, mas a investigação de dados das trajetórias escolares teve um caráter apenas instrumental, na medida em que buscávamos, através dessas trajetórias, olhar para os pontos que nos interessavam e que se encontravam condensados em cinco parâmetros ou traços estruturantes da análise, descritos à frente, neste artigo. Informações sobre os avós foram também buscadas, não diretamente, mas através dos depoimentos dos filhos e netos. Acreditamos, como Laurens (1992), que algumas práticas e significados escolares só se tomam compreensíveis quando colocados no contexto da genealogia familiar.

1.OS DOIS GRANDES EIXOS DO MODELO DE INTELIGIBILIDADE DOS DADOS EMPÍRICOS
1.1.Os parâmetros ou traços estruturantes da análise

    Pensar sociologicamente um material empírico como o que coletamos, portador de uma forte dimensão biográfica, colocou-nos, por uma dupla razão, uma exigência metodológica: a de estabelecer parâmetros para a análise.

    Por um lado, o pesquisador que trabalha com a narrativa biográfica corre o risco de considerar que tudo é pertinente e relevante para a análise, podendo, desse modo, per-der-se numa infinidade pulverizada de informações que essa narrativa permite. Por essa via, ele pode “escorregar" para o campo da literatura e cair, segundo Passeron (1995), numa “utopia biográfica” e, nesse caso, perder de vista o problema teórico da pesquisa. Esse autor argumenta que “a narrativa biográfica apresenta uma ordem falante demais que parece dispensar qualquer trabalho dè reconstrução" (p. 213). Nesse sentido, num leque amplo de dados e leituras possíveis, os parâmetros selecionados permitiram um recorte, um direcionamento do olhar para pontos específicos.

    Por outro lado, mesmo trabalhando com um pequeno número de biografias - como é o caso desta investigação esses traços ou parâmetros estabelecem um denominador comum para a interpretação dos dados, evitando outro risco para o pesquisador: o de trabalhar o caso fechado nele mesmo, “monograficamente”, idiossincraticamente, e, assim, construir uma pulverização de objetos de estudo, sem comunicação entre si.

    Em tempo, poderíamos citar ainda uma terceira necessidade que justificou o estabelecimento de princípios norteadores da análise, isto é, a delimitação de alguns pontos sobre os quais se focalizou a atenção no interior do conjunto do material empírico levantado: a complexidade do fenômeno estudado, seu caráter pluridimensional.

    Quanto à origem dos parâmetros que adotamos, eles nasceram na confluência de duas fontes: as contribuições dos autores visitados e as primeiras leituras dos dados empíricos provenientes de nossa investigação. A primeira fonte foi a própria literatura visitada e, nesse sentido, esses parâmetros representaram uma transição da teoria para a construção do nosso objeto de estudo; ou seja, são o resultado da utilização (seletiva, direcionada e pontual) dessa teoria na elaboração dos princípios de análise. A segunda fonte são dados empíricos diretamente provenientes de nossa investigação. É que uma primeira leitura das entrevistas nos revelou elementos pertinentes e fecundos para a compreensão do problema colocado, os quais foram incorporados como hipóteses de trabalho. Os referidos parâmetros incluem, portanto, elementos oriundos de histórias familiares e escolares, circunscritas a condições específicas de vida na realidade brasileira. São eles4:

 1)Os significados que a escola, em geral, e o acesso ao ensino superior, em particular, assumem para os filhos-alunos - sujeitos investigados - e para os seus pais: as diferentes formas de relações intersubjetivas e intergeracionais que uma escolarização prolongada implica para as camadas populares.

 2)As disposições e condutas em relação ao tempo que são favorecedoras de longevidade escolar (perspectiva dominante de “conquista”, extensão do horizonte temporal de futuro, moral da perseverança): a reconstrução de um movimento em relação ao futuro, de modos particulares de relação com o tempo por parte dos entrevistados e suas famílias.

3)Os processos familiares de mobilização escolar: os tipos de presença familiar no processo de construção dessas escolarídades atípicas.

4)Outros grupos de referência para o filho-aluno na família ampliada e/ou exteriores a ela: modelos que se constituem também como oportunidades.

5)Modelos socializadores familiares ou tipos de presença educativa das famílias que são favorecedores de longevidade escolar. Supunha-se, já no ponto de partida da pesquisa, que os sujeitos das camadas populares que conseguem chegar ao ensino superior contam com algum tipo de sustentação que vem de sua socialização familiar.

1.2.Uma perspectiva de análise centrada na interdependência dos traços estruturantes

Inspirei-me, no que diz respeito a essa questão, no modelo proposto por Bernard La-hire (1995). Buscando, então, elucidar o fenômeno de escolaridades longas nas camadas populares à luz do método proposto por esse autor, precisaríamos deslocar o olhar sociológico da linguagem das variáveis para a descrição de processos e, nesse sentido, adotar um modelo de inteligibilidade do social que nos permitisse aproximar do microssocial sob a forma do estudo de casos singulares. “Singulares" não com o sentido de casos excepcionais, mas de “combinações sempre específicas de traços gerais pertinentes”, sínteses inéditas, à imagem da linguagem musical, onde se assiste a “uma série de variações sobre temas mais ou menos comuns” (Lahire, 1997). Isso implicaria na necessidade de “desconstruir as realidades que os indicadores objetivos nos propõem, a heterogeneizar o que havia sido, forçosamente, homogeneizado em uma outra construção do objeto” (Lahire, 1997: 33); na necessidade da construção de “contextos mais precisos”.
Para operacionalizar essa abordagem, o autor em questão propõe um modo de pensamento relacional, processual, que evite absolutizar fatores ou traços sociais explicativos dos fenômenos sociais, mas que, ao contrário, os tome numa perspectiva de interdependência. Essa perspectiva teórico-metodológica, que Lahire situa no quadro de uma antropologia da interdependência, se inspira sobretudo em Norbert Elias, particularmente no conceito de configuração social5, conceito que se caracteriza por ser aberto e que, segundo este autor,
          
   [...] aplica-se tanto a grupos relativamente restritos quanto a sociedades formadas por milhares ou milhões de seres interdependentes. [...] O conceito de configuração direciona nossa atenção para as interdependências humanas (Elias, 1991: 158, 160)6.

    Adotar a perspectiva da interdependência para a interpretação do material empírico de nossa investigação significou, em termos operacionais, reconstruirmos a tessitura dos traços pertinentes adotados, acima citados, buscando-os na trajetória escolar dos sujeitos entrevistados e em seus contextos familiares. As biografias escolares de André, Júlia, Catarina, Helena, Ângela, Luís e Olga7 representaram o resultado dessa leitura.
2.CARACTERÍSTICAS CENTRAIS DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DAS ESCOLARIDADES INVESTIGADAS
2.1.Ausência de projeto de escolarização de longo prazo: a construção progressiva de práticas, sentidos e disposições
  
 A pesquisa permitiu-nos constatar que não havia, no ponto de partida, um projeto, conscientemente elaborado pelos entrevistados ou suas famílias, de se chegar ao ensino superior. As práticas, sentidos e disposições que, interdependentemente, tornaram possível a construção dessas trajetórias escolares atípicas foram progressivamente construídos. D’Ávila (1998) extrai conclusão semelhante de seu estudo sobre trajetórias escolares de alunos oriundos de bairros de periferia da cidade de Vitória. Sobre esse ponto, ele afirma que as estratégias desses alunos
          
    [...Iseconstroem aos poucos, pelo cultivo familiar de pendores familiares, inicialmente, e, a seguir, segundo as possibilidades surgidas em um novo espaço de relações, que transcende as expectativas construídas no estrito círculo da família (1998: 31).

    O processo de escolarização de nossos interrogados não se mostrou portador de urna dimensão de intencionalidade, mas, ao contrário, acusou a marca de uma significativa imprevisibilidade em função da importância que assumiram, por um lado, as oportunidades advindas de universos exteriores ao familiar e, por outro, os êxitos escolares parciais, sobretudo os que se deram na escola primária.

A noção de oportunidade nos pareceu, então, centralmente articulada a essa dimensão de imprevisibilidade presente nas biografias escolares investigadas. Em primeiro lugar, porque implicou uma certa aleatoriedade8 e, em segundo, porque apareceu vinculada à possibilidade de apreensão de outras referências de mundo e, nesse sentido, de uma diversidade de experiências socializadoras, distintas das advindas do universo familiar.

    A dimensão de aleatoriedade esteve presente nas seguintes situações de nossa pesquisa, entre outras: a chance de Olga realizar (integralmente) sua trajetória escolar num estabelecimento de ensino como o Instituto de Educação de Minas Gerais; a de Helena que, através de um tio que era porteiro de escola, teve acesso a determinados estabelecimentos da Rede Municipal de Belo Horizonte9; a de Júlia, de ter sido “escolhida” para ser monitora da escola rural onde estudara, sendo, assim, “forçada”, aos 20 anos, a concluir a 4- série primária; a chance de Catarina ir para São Paulo com uma família conhecida e lá se alfabetizar. Essas chances/oportunidades, incertas no ponto de partida, tornaram-se auspiciosas no processo por terem sido altamente otimizadas, rentabilizadas. Nesse sentido, assumiram uma significativa centralidade nos destinos escolares em questão.

  [ | Os êxitos escolares parciais10, por sua vez, sobretudo aqueles relativos à escola primária, mostraram-se como uma constante nos casos estudados. Nesse aspecto, nossa investigação confirma conclusões dos estudos de Laurens (1992) e de Terrail (1990). Esse último autor afirma que, dentre as 23 biografias escolares - de intelectuais filhos de operários - que reconstruiu, não constatou em nenhum caso dificuldade ou malogro na escola primária. Laurens (1992: 231), por sua vez, mostra, além disso, que o êxito escolar inicial atraiu êxitos subseqüentes, como se os sujeitos entrassem numa “lógica do sucesso”. Nesse sentido, o êxito escolar inicial - mas também os intermediários - constituí-ram-se como circunstâncias produtoras de sentidos, disposições e práticas que tenderam a reforçá-lo, e se transformaram numa base importante, embora insuficiente por si só, para a continuidade dos estudos.

Assim, Sr. Vicente, pai de Angela, comenta que começou a acreditar na possibilidade de sua filha ir mais longe nos estudos, assim como seus outros filhos que estudaram, quando percebeu que eles “estavam desenvolvendo”. Eu via o desenvolvimento deles lá no começo”, afirma. Da mesma forma, a mãe de Olga, D. Madalena, em relação à possibilidade da realização de curso superior por suas filhas, considerava: (no início de sua es-
colarização) “eu achava que eta impossível! [...] eu não sonhava muito alto não... 'eu achava que não tinha chance”.

    Contrapondo-se a comportamentos familiares de tipo estratégico, característicos da escolarização dos grupos sociais mais favorecidos (Nogueira, 1998), a imagem de uma embarcação navegando “ao léu” parece-nos extremamente adequada para ilustrar as dimensões de imprevisibilidade e aleatoriedade que detectamos nas biografias estudadas.

    No entanto, em nosso estudo, essa imprevisibilidade não se mostrou contraditória com a noção de autodeterminação nem com um horizonte temporal distendido. Ao contrário do que se pode concluir à primeira vista, essas trajetórias supõem um querer e uma autodeterminação imbatíveis, sobretudo dos filhos, condição sine qua non de produção de sobrevida escolar em meios populares. O que se contraporia a essa característica seria uma planificação dos estudos a longo prazo. Assim, as etapas intermediárias do processo assumem uma importância decisiva enquanto momentos de produção e de realização dessa autodeterminação.

    As trajetórias escolares de Júlia, Catarina e André, por exemplo, mais irregulares, apontaram veementemente essa atitude de autodeterminação. Cada etapa intermediária de sua escolarização não só exigiu uma firmeza heróica, como a continuidade dos estudos ficara à mercê de circunstâncias que, muitas vezes, fugia ao seu controle. Um momento em particular da história de Catarina, história que fora marcada por um difícil começo e uma luta sem tréguas, mostra o peso assumido pelas “pequenas” vitórias parciais das etapas intermediárias de escolarização e como estas foram altamente rentabilizadas. Aos 17 anos, cursando a 4S série primária, tinha ela que, laboriosamente, conciliar estudo e trabalho numa gráfica, depois de ter sido também doméstica. O patrão exigia, por exemplo, que ela fizesse hora extra - condição de permanência no trabalho. Assim sendo, muitas vezes ela ficava impossibilitada de freqüentar as aulas, tendo sido, ao final do ano, oficialmente reprovada em matemática. Sua professora de então, provavelmente a figura mais significativa de sua história escolar, segundo ela mesma declara, decidiu conferir-lhe, assim mesmo, o certificado de conclusão dessa série. De posse do certificado, Catarina percebeu que podia dar um passo além: “e eu, com esse atrevimento todo meu, pensei assim... eu tenho um diploma de 4â série... eu vou para a 5S série com esse diploma!”

    Assim, as biografias escolares desses três universitários, em particular - Júlia, Catarina e André -, testemunharam a necessidade de fazer o possível, considerando essa expressão com um duplo sentido. Por um lado, “aceitar” que avançar nos estudos só seria possível se fosse num tempo próprio, “por etapas” não previstas a longo prazo. Por outro lado, havia que se fazer tudo o que fosse possível, ou seja, esgotar as possibilidades de luta.

    Um outro aspecto a ser ressaltado a esse respeito é o de que a autodeterminação, característica de nossos entrevistados, fora construída no processo mesmo de escolarização. Nesse sentido, ela não tem existência a priori, nem se funda num essencialismo intrínseco aos sujeitos11.

    Finalmente, se o processo de construção dessas escolaridades se deu sob a ótica da imprevisibilidade, somos instigados a situá-lo também num contexto de uulnerabilida-de, à imagem de uma “situação de navegação em embarcação frágil”, viagem que pode chegar a bom termo, mas sempre sob o risco de naufrágio (Lahire, 1996)12.

2.2- As formas específicas da presença das famílias de camadas populares na escolarização dos filhos ,

Preliminarmente faz-se necessário tecer algumas considerações acerca da noção de “mobilização escolar familiar”. Portadora do sentido de luta e engajamento direcionados para um determinado fim, a noção de mobilização, recentemente introduzida nos estudos sociológicos da relação família-escola (Laurens, 1992; Lahire, 1995; Zéroulou, 1988), foi inicialmente importada das Ciências Políticas para explicar os casos estatisticamente improváveis de sucesso escolar em meios populares. Paulatinamente, essa noção foi estendida para identificar e descrever atitudes e intervenções práticas das famílias, voltadas sistemática e intencionalmente para o rendimento escolar dos filhos - comportamentos e condutas familiares que os estudos no campo da Sociologia da Educação raostram 'ser mais característicos das camadas médias.

    Nogueira (1995), analisando as relações das camadas médias com a escola, dá a conhecer resultados de pesquisas recentes sobre o tema. Reportando-se a esses estudos, a autora lista uma série de práticas de investimento escolar de famílias provenientes dessas camadas, tais como: acompanhamento minucioso da escolaridade dos filhos, escolha ativa do estabelecimento de ensino, contactos freqüentes com os professores, ajuda regular nos deveres de casa, reforço e maximização das aprendizagens escolares, assiduidade às reuniões convocadas pela escola dos filhos, utilização do tempo extra-escolar com atividades favorecedoras de sucesso escolar, entre outras.

    Nossa pesquisa mostrou, no entanto, que é possível acontecer longevidade escolar nas camadas populares, mesmo na ausência de práticas familiares, tais como as descritas acima. Não se identificaram, em nosso estudo, investimentos específicos e intencionais na carreira escolar dos filhos, que nos permitissem reconhecê-los como um traço explicativo dessas situações de longevidade escolar.

Apoiamos a defesa dessa constatação em alguns dados de nossa investigação, sucintamente descritos a seguir. O primeiro exemplo é o do Sr. Hélio, pai de Catarina, um homem de idade avançada e saúde fragilizada, que, para garantir ensino gratuito aos filhos, submeteu-se, por anos a fio, a trabalho extra, muitas vezes noturno, no colégio onde atuava como faxineiro e prestador de serviços gerais. A segunda ilustração é extraída da história escolar de Olga. Sua mãe, D. Madalena, figura central dessa trajetória escolar bem-sucedida, envolvera-se de uma maneira sistemática e laboriosa em seu processo de escolarização, investimento aqui entendido, sobretudo, como um fundamental suporte moral e afetivo. A própria D. Madalena, viúva muito cedo e faxineira desde quando ainda solteira até a aposentadoria, no Instituto de Educação de Minas Gerais, afirma: “eu nunca me ausentei da vida dela[s], nem um segundo”. Ao lado dessa presença de todos os instantes, de um trabalho sistemático de persuasão acerca do valor do estudo, destacamos também a estratégia do fechamento familiar, no contexto da configuração socializado-ra mais ampla dessa família. Olga era sistematicamente proibida, por exemplo, de brincar na rua com outras meninas de sua idade (assim como suas duas irmãs, que também alcançaram o nível de mestrado pela UFMG, uma em Educação e a outra em Letras). Da biografia escolar de Luís destacamos a contribuição decisiva de seus três irmãos mais velhos, que, assumindo financeiramente a casa por ocasião do falecimento de seu pai, permitiram que ele participasse menos no orçamento doméstico e, dessa forma, pudesse estudar.

   Concordamos, então, com Laacher (1990: 35) que a pergunta fundamental a ser formulada em relação à participação das famílias de camadas populares na longevidade escolar de seus filhos é a seguinte: “[...] em que consiste e como se traduz a presença da família no sucesso escolar dos filhos?”

    Assim, a esse respeito, nossa conclusão contraria alguns resultados de pesquisas que abordaram igualmente o tema do sucesso escolar de sujeitos originários das camadas populares, nas quais se comprova que as práticas educativas familiares de superinvestimento escolar se constituem como fatores indispensáveis ao sucesso escolar nessas camadas (Laurens, 1992; Zéroulou, 1988). Por outro lado, esse trabalho veio confirmar a tese de Lahire (1995) de que as práticas de superescolarização não se constituiriam numa característica inexorável das famílias populares que têm filhos em situação de sucesso escolar. Esse autor defende a idéia de que o superinvestimento escolar familiar, por si só, não produz o sucesso escolar dos filhos, argumentando, inclusive, que determinados investimentos familiares podem provocar até mesmo efeitos negativos. Nesse sentido, reportamo-nos também a Accardo (1993), que analisa a biografia escolar de um jornalista de origem popular, Sé-bastien, marcada negativamente por equivocados investimentos paternos.

    Esse estudo sinaliza, assim, no sentido da necessidade de deslocamento de foco para formas peculiares de envolvimento das famílias populares na escolarização dos filhos, fací-litadoras de sobrevida escolar nesses meios. Nesse sentido, existiria um tipo particular de presença familiarna escolarização dos filhos, presença que, na falta de expressão melhor, qualificaríamos como “periférica ao estritamente escolar". Noutros termos, os dados da pesquisa apontaram, com força, pistas que nos permitem defender a especif icidade das formas de relação das camadas populares com a escola. Portanto, sendo essas relações diferenciadas daquelas descritas pelos estudos centrados nas relações de famílias de camadas médias com a escola, defendemos também que não seria pertinente nomear as formas específicas de envolvimento das famílias populares na escolarização dos filhos como “mobilização escolar familiar”. Noutros termos, tal como tem sido a tendência de definir “mobilização escolar familiar”, os dados da pesquisa revelaram uma patente ausência de comportamentos familiares que podem ser subsumidos por essa noção.

    E preciso, assim o entendemos, que novos estudos acerca dessa temática venham ampliar a compreensão das particularidades das relações das camadas populares com a escola, sobretudo no caso brasileiro.

2.3. Família e escola: a difícil conciliação entre dois mundos

    Uma outra constatação que emergiu do estudo foi a de que a longevidade escolar nas camadas populares, potencialmente produtora de descontinuidades culturais e subjetivas entre as gerações envolvidas, não trabalha no sentido de inscrever afetivamente o sujeito no seio da família. Ou seja, não se vive impunemente o distanciamento das origens, seja pela sua resultante, a de se transformar em “trânsfuga”13, seja pela experiência, muitas vezes dolorosa, do processo.

    Bourdieu (1993), Nicolaci-da-Costa (1995, 1987), Rochex (1995) e Terrail (1990) também trabalham com a hipótese acima colocada. O que estaria basicamente em jogo, segundo Nicolaci-da-Costa, é a “inserção simultânea em dois grupos sociais” e tudo o que isso implica em termos de “descontinuidade entre sistemas simbólicos diferentes”. Lahire (1998) se utiliza dessa mesma idéia através da noção de “multipertencimento social”, fenômeno que, sobretudo no mundo contemporânceo, produziria um “homem plural”. Para esse autor, a situação específica de exposição simultânea a contextos socia-lizadores de famílias populares e do mundo letrado da escola pode gerar contradições culturais e encontra-se entre as “múltiplas ocasiões de desajustamento e de crise” (p. 56).

   Sem ignorar os conflitos intergeracionais que esse tipo de escolarização pode acarretar também para os pais, deter-nos-emos nas dificuldades vividas pelos filhos-alunos. Essas se processaram em dois campos: aquelas vividas no contexto da experiência escolar e as vividas no bojo das relações familiares.

   1)         Quanto às dificuldades vividas na escola, foram identificadas duas formas de existência. Para descrevê-las, tomamos emprestada a imagem de peixe fora e dentro d’água, que Olga utiliza para expressar o sentimento, através da qual ela definiu sua inserção no universo escolar.

   As biografias de Olga, Angela e Helena evidenciaram essa marca, a da ambigüidade. A escola, para estas entrevistadas, representou um espaço onde foi possível, ao mesmo tempo, estar à vontade, como o peixe n 'água (constituindo-se, assim, como um espaço possíveFcJè afirmaçaoTsSJd nò"]5lãno de um rendimento escolar satisfatório, seja no plano de inserção em atividades sociais), e se sentir estrangeira, desadaptada, marginal, como o peixe fora d’água. Para Helena, a dupla vivência em questão localiza-se sobretudo no momento de entrada para a universidade. Ao longo de sua biografia escolar, ela sempre fora uma aluna com bons resultados escolares, o que a deixava à vontade na escola como um peixe n ’água. No entanto, ao entrar para a universidade, ela experimentou intensos confrontos de natureza social, nunca vividos antes com tanta intensidade. Sua linguagem e maneiras de se portar constituíam-se, da forma mais viva, em marcas de sua posição de classe e, portanto, em motivos de solidão na escola.

 Nos casos de Catarina, Júlia, Luís e André, prevaleceu a desadaptação, vivenciada sobretudo nos níveis mais avançados de escolaridade. Esse fenômeno foi identificado de forma mais nítida na biografia de Catarina, constituindo-se numa constante de seu processo de escolarização. Suas dificuldades deram-se sobretudo no âmbito da aprendiza gem, o que lhe custou vivências da mais completa exterioridade ao universo escolar. Para Júlia, Luís e André, as vivências de exclusão aconteceram na universidade. Luís e André, apesar das especificidades que os diferenciam entre si, acusaram grandes dificuldades de se adaptarem ao trabalho universitário: o modo de pensar, comunicar, ensinar e avaliar prevalecente no ensino superior lhes era “estranho”. A questão da linguagem, particularmente para Luís, mostrou-se um indicador de possíveis rupturas com a cultura de origem. Júlia, falando de um momento já avançado de sua trajetória na Universidade, expressa de maneira enfática sua desadaptação ao mundo acadêmico. Sua relação com colegas universitários fora marcada pelo sentimento de humilhação e hostilidade no plano do simbólico, de tomada de consciência de enormes diferenças sociais entre esse universo e suas origens: “um mundo muito diferente; [...] um contraste violento; [...] um período de muito problema”, afirma.

      2)      Para abordar os problemas vivenciados pelos entrevistados na esfera das relações familiares, tomo como referência teórica básica a noção de “tríplice autorização”, formulada por Rochex (1995) e produzida no contexto da temática dos sentidos atribuídos à escolarização dos filhos pela família e dos processos intersubjetivos e intergeracionais de continuidades, rupturas e ambivalências daí derivados. Trata-se de um tipo de relação in-tergeracional, cuja lógica fundamental orientadora é a da emancipação da herança familiar, não a de sua reprodução. O primeiro elemento desse fenômeno - o da “tríplice autorização - está no fato de que o aluno-filho se autoriza a “deixar” a família, a se distanciar cultural e socialmente dos pais. Em segundo lugar, os pais autorizam o filho a se emancipar. Finalmente, um reconhecimento recíproco, entre pais e filhos, de que “a história do outro é legítima, sem ser a sua”.

      Do ponto de vista dos custos subjetivos, as situações familiares mais difíceis foram as vividas por Júlia e André. Essas escolaridades parecem ter acontecido sem a “autorização” dos pais. As ambivalências de Sr. Tonico, pai de Júlia, e de Sr. Otávio, pai de André, em relação à instituição escolar em geral e, em particular, à escolarização dos próprios filhos, fizeram com que a luta desses últimos por uma emancipação através da escola se tomasse uma realização extremamente dolorosa e solitária. Júlia forneceu fortes indícios desse fato, consubstanciados fundamentalmente em sua reiterada queixa de que seu pai, em relação aos seus estudos, a puxaua para trás. André, ao contrário, dei-JLxou patente sua queixa de solidão.
    
Em relação ao tema dos distanciamentos família-escola nos meios populares e guardadas as especificidades de cada relato, reportamo-nos à autobiografia de Albert Camus (1994). Romancista de origem argelina e popular, que alcançou renome internacional, Camus vivera intensa e dolorosamente, em sua trajetória de escolarização, um processo de “cisão, uma divisão entre mundos distintos, tão distantes como a noite e o dia” (Uria, 1995:60).

 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
 3.1. A descoberta de algumas pertinências

Uma conclusão de caráter mais geral a que chegamos em nosso trabalho é a de que tanto a perspectiva de análise adotada quanto os parâmetros orientadores da coleta e interpretação dos dados, descritos acima, eixos do modelo de inteligibilidade do materia! empírico, permitiram a emergência de importantes elementos explicativos da problemática colocada pela pesquisa.

    Assim, destacamos, por um lado, a pertinência da noção de configuração social para o estudo de casos de longevidade escolar em meios populares. Entendemos que uma das maiores vantagens desse modo de abordagem é a de dar visibilidade a dimensões significativas do processo de construção das situações de longevidade escolar, tais como as relações finas que se estabelecem entre os protagonistas das histórias, pouco visíveis em outras formas de construção científica. Por outro lado, mostraram-se também pertinentes os parâmetros ou traços estruturantes da análise adotados, uma vez que estes possibilitaram a identificação de características centrais das escolaridades investigadas.

    Ressaltaremos, no espaço das notas conclusivas do presente capítulo, apenas os dois pontos conclusivos ligados às pontencialidades específicas apontadas pela perspectiva de análise adotada, no que diz respeito ao uso da noção de configuração social.

3.1.1.     A alternância de traços que se sobressaíram

   A perspectiva de interdependência de traços explicativos evidenciou uma grande heterogeneidade das configurações familiares e de situações de longevidade escolar. Confron-tando-as, verificou-se que esses traços se entrecruzaram diferentemente na tessitura de cada uma delas, acusando significativa alternância de ênfases; ou seja, cada caso acusou maior visibilidade de determinados traços, dentre os adotados como referenciais de análise.

   Assim, a história de Helena fora marcada pelo bom aproveitamento da oportunidade de freqüentar estabelecimentos de ensino de qualidade, pelo êxito escolar regular, pela inserção de seu processo de escolarização num contexto de relações familiares bastante homogêneas. André, por sua vez, imerso num quadro familiar onde se produziram significados extremamente ambivalentes em relação à escola - centrados sobretudo na figura paterna escolarizando-se, buscou evitar a reprodução de suas origens, especialmente a condição de trabalhador manual do pai. Na história desse jovem foi também marcante sua inserção num grupo de amigos de classe média. Luís e Catarina têm sua biografia escolar caracterizada pelo fato de terem contado com suportes familiares decisivos, sobretudo do ponto de vista de uma autorização simbólica para se emanciparem de suas origens. Os dados da trajetória escolar de Olga, por sua vez, revelam, a esse respeito, a presença forte e sistemática de sua mãe e a excepcionalidade das situações de escolaridade de seus avós e tios matemos, marcadas, sobretudo, por uma grande afinidade com a cultura legítima. Ou seja, alguns elementos da biografia da mãe de Olga apontam traços distintivos em relação ao seu meio social de pertencimento. Finalmente, um dos traços que mais se sobressaiu no processo de escolarização de Júlia e Ângela e que as impulsionara, segundo nosso entendimento, fora o significado construído em torno do desejo de emancipação de suas origens rurais, de “sair” cultural e socialmente “da roça".

3.1.2.     Para além de um estudo de trajetórias

Com o objetivo de reconstituir o cenário do passado escolar dos entrevistados, utili-zou-se nesse trabalho, secundariamente e como “pano de fundo”, uma abordagem em termos de trajetórias escolares. Desse ponto de vista, mesmo considerando o número reduzido de pesquisados, algumas semelhanças entre os casos vieram à tona, tais como: desempenho escolar relativamente bom e regular nas séries iniciais de escolarização, seguidas de períodos marcadamente acidentados e o vestibular se apresentando como o grande obstáculo para o prosseguimento dos estudos. Emergem ainda, como coincidências, a utilização freqüente do curso pré-vestibular, a dificuldade de conciliação entre trabalho e estudo, a freqüência à escola pública. Essas semelhanças corroboram algumas tendências mais gerais das trajetórias escolares em meio popular, no Brasil, e permitem afirmar que estas, de um ponto de vista formal e exterior, são significativamente determinadas pela origem social.

    No entanto, se nos restringirmos à descrição formal das trajetórias, dimensões fundamentais das biografias - facilitadoras ou dificultadoras da sobrevivência no sistema escolar -, e que ao mesmo tempo as diferenciam, podem ficar invisíveis e excluídas da análise. Processos uiuidos pelos sujeitos interrogados nos diferentes momentos de sua trajetória, diferenças finas mas significativas só se deram a ver em nosso estudo porque estivemos atentos à rede de interdependências dos parâmetros pertinentes adotados.

    Nesse sentido, parece-nos necessário avançar para além da constatação, por exemplo, de que o momento de conciliação entre tempo de trabalho e tempo de estudo, muitas vezes precoce, se constitui numa dificuldade nevrálgica na trajetória escolar da maioria dos jovens das camadas populares. Outras dimensões articuladas a esse momento, menos visíveis e construídas numa tessitura de interdependências específicas, diferenciam as trajetórias, dão um sentido particular a esse momento e determinam, em grande medida, seus desdobramentos.

    Luís, por exemplo, inserido num contexto familiar de extrema dificuldade material, só pôde prosseguir os estudos porque seus irmãos mais velhos permitiram que ele trabalhasse “apenas” para manter seus estudos. Essa situação propiciou-lhe, desde o ensino médio, manter-se com “bicos”, ou que pudesse “esperar” por um trabalho que lhe proporcionasse condições mais favoráveis aos estudos, como o de estagiário na Caixa Econômica Federal. No entanto, nosso estudo apreendeu, ainda, outros elementos do contexto da história de escolarização desse jovem, no interior do qual, destacando-se a participação decisiva do pai, se produziu uma sensibilidade em relação à importância da escola, fundamental para que os irmãos de Luís, sem ressentimentos, pudessem1'liberá-lo” do trabalho para estudar.

3.2. A família, o filho-aluno, a escola: esferas diferenciadas e interdependentes do objeto de estudo

    Três esferas diferenciadas e interdependentes de pesquisa configuraram o objeto de estudo em questão: a família, o filho-aluno, a escola. Quanto à família, admitíamos, já no ponto de partida da pesquisa (e as biografias escolares investigadas corroboraram de maneira enfática esta “hipótese”), que as famílias populares participam da construção do sucesso escolar dos filhos de modo diferenciado, nem sempre facilmente visível e voltado explícita e objetivamente para tal fim. Identificar algumas formas desta presença foi uma das ambições dessa investigação. Por outro lado, concluímos que o sujeito - filho-aluno -
desempenha um papel específico e ativo na construção do seu sucesso escolar. Ele manifesta uma autodeterminação e dá mostras de um investimento pessoal na sua escolarização. Embora essa autodeterminação e esse investimento sejam produzidos no contexto da família, são seus. Finalmente, embora não ignorando que questões especificamente ligadas à escola e seu funcionamento estejam embutidas nas configurações de sucesso escolar que investigamos - tais como propostas curriculares, procedimentos metodológicos, critérios de avaliação, relação professor-aluno -, investigar diretamente as formas da presença dessas dimensões nas biografias de nossos entrevistados não constituiu objetivo desse trabalho. Assim, a escola, entendida como fator dinâmico do processo de construção dessas situações de sobrevida escolar, aparece em nossa pesquisa, de forma indireta, como figura importante de bastidores.

3.3. A abordagem do tema da longevidade escolar em meios populares: uma trajetória de pesquisa marcada pela incursão no novo

   No Brasil, a transformação do tema do sucesso escolar em famílias de camadas populares em objeto de estudo é ainda embrionária. Mesmo no exterior, onde essa problemática vem sendo objeto de todo um investimento de pesquisa por parte de sociólogos da Educação, a produção de conhecimento ainda é recente e incipiente. Daí resulta que esta investigação tenha se dado num contexto teórico-metodológico marcado pela dimensão do novo e, nesse sentido, portador tanto de possibilidades quanto de riscos.

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O trabalho escolar das famílias populares
 Ecio Antônio Portes*Professor do Departamento das Ciências da Educação. Fundação de Ensino Superior de São João Del-Reí (FUNREI).
   
 O objetivo deste texto é se ocupar com o trabalho escolar efetuado pelas famílias pertencentes aos meios populares que conseguem colocar filhos na universidade pública, através do vestibular, em carreiras altamente seletivas e supervalorizadas socialmente, como: Medicina, Fisioterapia, Direito, Comunicação Social, Engenharia Elétrica e Ciência da Computação. Essas são as carreiras de mais difícil acesso através do vestibular na Universidade Federal de Minas Gerais entre os anos de 1990 a 1996. Existe, no interior desses cursos, uma sub-representação de estudantes provenientes dos meios sociais desfavorecidos. Por sua vez, o curso de Odontologia figura como um dos mais seletivos, sendo que nenhum estudante pertencente aos meios populares conseguiu aprovação nele em 1996, razão pela qual esse curso não figura em nossa pesquisa.

    Entendemos aqui por trabalho escolar todas aquelas ações - ocasionais ou precariamente organizadas - empreendidas pela família no sentido de assegurar a entrada e a permanência do filho no interior do sistema escolar, de modo a influenciar a trajetória escolar do mesmo, possibilitando a ele alcançar os níveis mais altos de escolaridade, como, por exemplo, ter acesso ao curso superior. Essas ações não nos parecem completamente autônomas. As vezes elas se sustentam e adquirem clareza mediante a interferência de outros sujeitos e mesmo instituições que detêm um conhecimento mais completo das possibilidades escolares e materiais do sujeito pertencente aos meios populares.

    As pesquisas mais recentes que tratam da relação escola/família e privilegiam como objeto de estudo as camadas populares (D’Ávila, 1998; De Queiroz, 1995; Dubet & Martuccelli, 1996; Lahire, 1994,1997; Laurens, 1992; Portes, 1998; Viana, 1998; entre outras) indicam que o trabalho escolar é algo complexo, que não vem obedecendo a modelos, difícil de ser compreendido e que não se pode generalizá-lo. Esse trabalho se dá em um tempo próprio, muitas vezes estabelecido pelas condições materiais de existência e da constituição histórica das famílias das camadas populares, quase sempre marcado pelo desconhecimento da estrutura e do funcionamento dos sistemas escolares por parte dessas famílias, além da evidente ausência de um capital escolar.

    Para nos ocuparmos com a questão, que diz respeito ao trabalho escolar das famílias, efetuamos uma primeira leitura de uma parcela específica de dados mais amplos provenientes de uma pesquisa que foi feita com um grupo de seis universitários que tiveram acesso à UFMG nos cursos anteriormente mencionados. A escolha desses estudantes obedeceu a dois critérios básicos: serem filhos de famílias pertencentes aos meios populares e terem conseguido aprovação no vestibular naquelas carreiras mais seletivas da UFMG.

    Esse grupo de entrevistados - três rapazes e três moças - tinham na época a idade média de 19 anos. De forma geral, são provenientes de famílias pequenas (três filhos) e fre-
qüentaram o primeiro e o segundo graus em escolas públicas1. Eles são filhos de motorista de caminhão (três), auxiliar de topografia, carpinteiro e raspador de tacos. Apenas duas mães se apresentaram com atividade remunerada regular no momento da pesquisa. Ambas são viúvas e exercem a função de costureira. Quanto ao capital escolar desses pais, uma mãe concluiu a 8a série e outra foi além: terminou o 22 grau. Os outros (pais e mães) possuem uma escolaridade que não ultrapassa a 4- série primária. Quando se observa o nível de escolaridade dos ancestrais, deparamos com apenas um avô que cultivava o hábito da leitura e redigia um dicionário da língua portuguesa, cujos manuscritos se encontram, ainda, de posse dos familiares. Essas famílias têm casa própria, não vivenciando, portanto, aquela preocupação constante e desestabilizadora para os meios populares 2.

    Para concluir esta caracterização, é importante ainda citar um dado mais geral que nos possibilita compreender, de forma ampla, a trajetória escolar desses jovens: eles se aproximam daquele tipo de aluno, denominado por Pierre Bourdieu (1998: 46) de su-perselecionado, pois compensaram “a desvantagem inicial que devem à atmosfera cultural de seu meio”. Eles tiveram uma trajetória escolar brilhante, marcada por sucessos e conquistas em todo o seu percurso. Foram, até o final do 2a grau, os melhores alunos das turmas escolares pelas quais passaram. Porém, esses estudantes representam uma improbabilidade estatística: pouquíssimos alunos provenientes das camadas populares têm acesso a esses cursos através do vestibular. O sucesso nos níveis que antecedem a entrada no curso superior não assegura a eles saírem diplomados da UFMG. Tanto é verdade que a preocupação de muitas famílias dos meios populares, ao constatarem a aprovação de seus filhos e filhas na Universidade Federal, era de outra ordem, expressan-do-se da seguinte forma: “Meu filho chegou lá. E agora?" É que essas famílias, mesmo não possuindo um amplo domínio do significado da entrada do filho em uma universidade pública de qualidade, sabem, sem vivenciar essa circunstância, o custo objetivo e subjetivo de ele ter ultrapassado essa barreira. E as ações desses estudantes, em seus diferentes campos de atuação, serão marcadas muito de perto pelas necessidades materiais.

    Retomando nossa preocupação inicial, que outras ações - embora não meramente escolares/pedagógicas, mas com reflexos sobre o escolar, sobre o pedagógico - teriam esses pais empreendido no sentido de fazer atuarem circunstâncias favoráveis aos filhos e das quais estes pudessem tirar proveito escolar?

    Essa questão, pensada a partir dos dados empíricos e daquela literatura anteriormente mencionada, pode nos ajudar a compreender que as ações de determinadas famílias pertencentes às camadas populares, com relação à escola, são diversas e se recobrem de significados próprios que podem ser ocultados, dependendo do olhar que se dirige a elas. Por exemplo, acreditamos que há uma armadilha na forma de se analisar o possível trabalho escolar de famílias populares através de regularidades típicas observadas em frações das classes médias - que configurariam investimento escolar -, como a série apontada por Nogueira (1998): acompanhamento estrito da escolaridade - tanto na escola como fora dela estratégias de escolha do estabelecimento; relações freqüen-j tes com os professores; ajuda regular nos deveres de casa; reforço e maximização das / aprendizagens escolares; assiduidade às reuniões convocadas pela escola; utilização do / tempo extra-escolar com atividades favorecedoras de sucesso escolar; controle do tempo de exposição à televisão, etc.
   
No nosso caso, retiramos os elementos que nos propiciam pensar, aquelas questões anteriormente colocadas, das representações produzidas pelos estudantes universitários nas entrevistas efetuadas, o que permite ainda reconstituir não só as trajetórias sociais e escolares desses sujeitos, mas também suas vivências universitárias.

O acompanhamento efetuado com esses universitários não previa ouvir os pais. Entretanto, as condições reais de entrevista propiciaram que se ouvissem duas mães e um pai. Trabalhávamos com a hipótese de se efetuar a entrevista onde e quando o entrevistado sugerisse. Assim, em duas visitas às casas dos jovens tivemos a oportunidade de ouvir seus pais, registrar suas manifestações diante das perguntas dirigidas a seus filhos. É nesse sentido que se afirma não serem os pais objeto direto de nossa investigação, e sim seus filhos. Nesse caso, as intervenções dos pais revelaram um material importante para as nossas análises sobre o trabalho escolar das famílias, mesmo que tais análises sejam centradas nos depoimentos dos jovens.
  
   Portanto, quando se atenta para a questão família/escola, o que se buscou com essa primeira análise dos dados foi, a partir da identificação de unidades significativas que aparecem nos discursos, constrúir um “conjunto de circunstâncias atuantes”, comple-xas, que podem variar de família para família, mas que guardam relações entre si. Essas circunstâncias atuantes caracterizam-se por um planejamento precário, por um horizonte temporal bastante curto, diante da frágil situação material da família que se desestabili-za freqüentemente frente às exigências escolares. Essas circunstâncias se combinam entre si e só fazem sentido se inseridas “na rede de seus entrelaçamentos concretos” (Lahire, 1997: 72), sendo que não parecem possuir efeito importante de forma isolada. Elas atuam no decorrer da trajetória, diante das necessidades e questionamentos cotidianos a serem enfrentados pela família.

     Exigências intrínsecas e periféricas ao acadêmico e exigências características de cada curso exercem aí uma forte influência. Aquelas dizem respeito a transporte, compra de livros, xerox, material escolar, roupa, calçado, aluguel, alimentação e lazer, etc., enquanto que as últimas se configuram por necessidades como: por exemplo, para quem faz Comunicação Social, coloca-se a exigência de se assinar revistas e jornais diversos; para quem faz Ciência da Computação exige-se ter em casa um computador; para quem faz Direito, desde muito cedo, exige-se usar paletó, gravata, sapatos (e não tênis), etc. Tudo isso irá propiciar uma instabilidade econômica familiar capaz de refletir-se de forma preocupante naquilo que ao longo da trajetória escolar (e social) mais parecia alicerçar esse estudante: sua segurança nas questões atinentes ao escolar.

   Entretanto, as iimitações de ordem econômica das famílias não nos impedem de observar todo um trabalho escolar empreendido, visto naquilo que convencionamos chamar conjunto de circunstâncias atuantes. Algumas dessas famílias vivem um certo desespero econômico que certamente afeta suas relações internas de convivência no lar. São famílias que vivenciam uma realidade material que não conseguem prever (nem controlar). Apenas conseguem ir fazendo adaptações possíveis para que o filho não jogue por terra o esforço empreendido, como bem ilustram os pais de Maurício, estudante de Engenharia Elétrica. Diz D. Teresinha:
   
              Não sei como esse menino dá conta... Ele nunca me deu trabalho na escola }ao contrário, os outros dois filhos não seguiram em frente). Sempre foi bom aiuno, querido por todas as professoras... Mas agora está demais! Para tudo precisa de dinheiro. Para o senhor ver, já costurei, antigamente. Hoje, não dá. Tinha umas três, quatro freguesas. Hoje gasto meio dia de trabalho em uma peça e a pessoa quer pagar um real. Tá doido! Faço algumas coisas para mim e camisas para o Jair. Não posso ajudar! Tem mês que o Jair não consegue mandar um centavo para o Maurício. Ele [o pai] fica num estado de nervo que você num imagina... Não sei como esse menino dá conta... E preciso muito esforço...
  
 Noutro momento, distante da esposa e dos filhos, o Sr. Jair se questiona: “Como é que eu ia continuar no hospital, ganhando um salário mínimo e iria manter essa família? Olha, tem dia que dá um desespero, rapaz... Olha só, pra você vê....” Levanta as barras rotas das calças e mostra os joelhos esfolados e calejados pelo ato de trabalhar ajoelhado na raspagem de tacos e aplicação de sínteco, como se necessitasse demonstrar o esforço que ele faz para manter a casa, como ele diz.
 
  Assim, o trabalho escolar das famílias aparece e ganha sentido através das ações que configuram o conjunto de circunstâncias atuantes capaz de auxiliar na possível compreensão das preocupações levantadas no corpo deste texto. Essas ações guardam similaridades entre si e operacionalizá-las diz respeito a um modus operandi de cada família.

   O nosso esforço de construção de circunstâncias atuantes é trazer uma contribuição para se entender o trabalho efetuado pelas famílias populares que, por extensão, pode assegurar o possível sucesso escolar de estudantes egressos de famílias populares. Para o caso brasileiro, uma discussão atual e esclarecedora sobre a longevidade escolar nos meios populares pode ser encontrada no trabalho de Viana (1998). No nosso caso, procuramos examinar aquelas circunstâncias que a pesquisa, até o momento, permitiu elucidar e que revelam parte do esforço das famílias para garantir uma situação escolar improuáuel e precariamente planejada. Não é sem razão que o sucesso no vestibular para as famílias de nossos investigados é visto (vivido) como um golpe de sorte, uma ajuda de Deus, um milagre, mesmo que os resultados escolares construídos anteriormente indicassem uma passagem sem muitos atropelos. Além, claro, da descrença que está sempre presente ao se conferir o nome na lista dos aprovados no vestibular: Será que é meu nome mesmo?

A seguir, abordaremos aquelas circunstâncias que dizem respeito à presença da ordem moral doméstica, à atenção para com o trabalho escolar do filho, ao esforço para compreender e apoiar o filho, à presença do outro na vida do estudante e a eterna aproximação dos professores, à busca da ajuda material e à existência e importância de um duradouro grupo de apoio construído no interior do estabelecimento escolar. Circunstâncias atuantes que legitimam e dão visibilidade ao trabalho escolar empreendido pelas famílias populares.

  1. A PRESENÇA DA ORDEM MORAL DOMÉSTICA
                   
Então cê... eu acho assim, se todos os pais tiver força de vontade pra educar os filhos ele, eles consegue, mas é muito difícil! E é isso que acontece. Muitas pessoas fala assim, igual muitas, vamo tirar daquela... daquela... é... Leonardo Pare-ja , né? Foi um menino que a mãe dele alegô que ele tinha condições financeiras, depois perdeu pai, perdeu tudo e ele virou uma... [o latido do cachorro interrompe] num é isso que faz virar marginal. Então, situação financeira num faz ninguém virar marginal. Vai é a educação que um pai e uma mãe pode dar. Que se o pai ou a mãe leva uma vida difícil, mas explica pro filho, que a gente tem que ser um pobre, mas honesto e aprender respeitar as pessoas, ele aprende a enfrentar a situação sem roubar. Então, é o que todo mundo devia de fazer, é ensinar pros filho a levar a vida e güentar a vida que tem, com honestidade e com mais humanidade, né? E isso que é mais importante na vida das pessoas. Não é só porque a pessoa perdeu tudo que vai virar um marginal, não! Porque se fosse o caso de ter um marginal, na minha família todo mundo era marginal, porque a gente nunca, desde a minha família, assim, quando eu era criança, o meu pai não levou uma vida muito fácil também. A minha família toda enfrentou, assim, meus irmãos são muito respeitador, eles leva a vida com dificuldade mas vida com honestidade. Eu acho que a família por ser pobre, ele deve ser um pobre honesto, honrado e exigir respeito, pra que ele seja um cidadão reconhecido. (Mãe de Márcio,'estudante de Direito.)
  
O esforço contínuo para incuicação de uma ordem moral doméstica no filho, desde tenra idade, suficientemente forte para balizar os procedimentos sociais, como disposição, está presente em todas as entrevistas. Parece funcionar como um lastro para o conjunto de ações a serem empreendidas pelas famílias e pelos filhos. Trata-se de um esforço contínuo que não tem como alvo específico o sucesso escolar e, sim, uma educação mais abrangente, uma educação para a uida.

O conjunto de entrevistas efetuadas com esses sujeitos revela com bastante clareza que não só seus procedimentos sociais, mas também os escolares, possuem a marca distintiva dessa formação adquirida de forma lenta e processual no interior da família. Não é sem razão que Lahire (1997: 25) afirma que
           
  [...] fora dessa ação socializadora, que se concentra no aspecto moral das condutas infantis, o universo doméstico, através da ordem material, afetiva e moral que reina ali a todo instante, pode desempenhar um papel importante na atitude da criança na escola.
  
 Os sujeitos investigados são estudantes que aprenderam desde muito cedo o valor e a importância da escola, possuem um comportamento escolar elogiável e uma grande disposição não apenas para as tarefas escolares cotidianas, como ainda para as tarefas domésticas e as ajudas no lar. Eles são os “bons filhos, aqueles que nunca dão trabalho”, nos dizeres dos pais. Trata-se aqui de uma referência ao desempenho escolar do filho, com relação a outros irmãos que “não foram adiante e não deram para a escola”. Mas não parece ser uma desvalorização social destes em função do desempenho escolar daqueles. Essa disposição parece ser uma herança proveniente de gerações anteriores que, diante de circunstâncias favorecedoras, como oferta escolar de qualidade mínima, pôde se realizar. Entretanto, o fato de terem internalizado uma imagem de pais sérios, trabalhadores e honestos parece contribuir para a fixação dessa ordem moral doméstica.

  1. A ATENÇÃO PARA COM O TRABALHO ESCOLAR DO FILHO

  Isso [ajudar nas tarefas escolares] ela [sua mãe] nunca fez não. Ela, até hoje eu reclamo com ela, que ela sempre me deixou muito... é... eu sempre fui muito independente nas minhas tarefas, eu... Ela... Eu não esperava pra ela me ajudar, eu fazia antes de ela querer me ajudar. [...] Mas se eu tivesse... perguntar como que tinha sido assim, eu num lembro disso, mas se eu chegava pra ela pra falar alguma coisa da escola, ela me ouvia atentamente. Se eu chegava pra perguntar alguma coisa, se ela não sabia ela procurava saber. Então sempre tava tentando fazer alguma coisa. Por exemplo, não era uniforme novo, né? Mas o uniforme tinha. Eu tinha como ir pra escola, um caderno... Até mesmo quando não tinha alguma coisa, a minha tia me dava, ajudava e tal. Então... [...] Há! Todo mundo queria que eu fosse pra lá [Colégio Tiradentes, da Polícia Militar de Minas Gerais, Unidade de Bom Despacho], né? Porque minha mãe, inclusive, sabia que eu era uma aluna muito boa, que eu tinha capacidade, então... Ela incentivou, ela estudou comigo, o que ela podia, que ela sabia, ela me ensinou, me ajudou [até a 4a série do P grau] e... porque no colégio, no outro colégio que tinha, nos outros colégios era... era... eram considerados piores, né? Então todo mundo queria que eu fosse. Minha tia, essa que eu te falei que eu tenho muito vínculo, todo mundo queria que eu fosse pro Colégio Tiradentes, né? Estudei. E eu também queria ir pro Colégio Tiradentes, mesmo pra dar um... um feedback pros meus pais, né? Pra minha família, e pra mim mesma, né? Ai fui. entrei no colégio na 5'- série, e sempre fui uma aluna muito boa, até... quando eu saí de lá. (Alice, estudante de Fisioterapia.)
 
  No depoimento acima identifica-se uma (atenção para com o trabalho escolar do filho, seguida de acompanhamento e vigilância, mesmo quando a mãe está impossibilitada de interferir no processo pedagógico propriamente dito, depois do ensino primário, em função dos poucos conhecimentos escolares acumulados.j
   
Nota-se todo um cuidado, um rol de preocupações, pequenas intervenções das mães (principalmente), naquilo que se refere ao trabalho escolar ou indiretamente a ele ligado. Nos nossos casos^o que parece ser rentável é a presença possível, a disponibilidade em escutar, ouvir e dar atenção ao filho, permitir que ele dê conta de suas tarefas e necessidades escolares, indagar-lhe de seu dia escolar] Essas ações são perceptíveis na busca do estabelecimento escolar e na escolha da escola (sempre pública) quando viável, na  luta pela matrícula, nos possíveis contatos com outras mães, nas aproximações (mesmo esporádicas) com os professores, nas reuniões escolares (quando convidadas), na manutenção física da criança e dos equipamentos necessários à freqüência da escola, na atenção para as companhias dos filhos, no ato de levar à escola (e buscar), na vigilância da rua, etc. Essas situações revelam todo um cuidado dessas mães para com a escolaridade dos filhos, mesmo que elas não pensem nisso como um projeto, mesmo que não se trate de uma ação racional visando a um fim futuro, distante (por exemplo, a chegada à universidade). Para elas, trata-se de uma obrigação cotidiana que tem que ser feita, necessária para a formação do filho, para seguir em frente4.

  1. UM ESFORÇO PARA COMPREENDER E APOIAR O FILHO

Márcio: - Aqui... eu fico preocupado com o negócio, ah, tem que pagar isso, tem que pagar aquilo... Inclusive, dois meses aí eu tô com... tô com o orçamento tudo  comprometido... tava pagando prestação lá, ainda bem que termina a semana que vem, agora, termina...
Dona Jandira: - Ele queria trabalhar, ele queria ter dinheiro,
Entrevistador: - Ah, teve essa crise, também?
Dona Jandira: - Teve. Essa mesma situação. Ele tá enfrentando agora, que quer mais dinheiro. Então, ele teve esse período que ele não tinha dinheiro nenhum e ele queria ter dinheiro. Então ele queria trabalhar. Não achava que era só ficar por  de estudo, não. [...] Ah... eu falava: - Cê num tem condições pra trabalhar agora. Cê vai pegar um serventede pedreiro, aí, cê vai carregar saco de cimento? É isso que eles vão dar pra você! [...] É! Eu falava pra ele: - Cê vai enfrentar isso, estuda primeiro, depois vê um emprego melhor pra você. Que não adianta cê correr agora pra trabalhar. Cê vai pegar um serviço aí de fazer entrega nos caminhão aí,  fazer entrega de compra aí, cê vai pegar caixa pesada, cê vai pegar saco de cimento, troço pesado, cê num vai agüentar. Aí cê vai desanimar. Então prepara seu estudo primeiro, pra você pegar um serviço mais leve. Foi indo... foi indo... que ele entendeu e aceitou, né?...Mas foi difícil!
Márcio: - [Hoje] num ligo mesmo... posso estar com o maior problema do mundo lá... se eu tiver que estudar lá, vou estudar e... me abstraio do resto, de problemas externos...
Entrevistador: - Tem conseguido fazer isso?
Márcio: - Mais ou menos tenho... [sorrindo] é difícil... é difícil, mas dá pra fazer sim [pigarreia]. Eu tô dando um valor muito grande, agora, pro curso, sabe?
Dona Jandira-.- Eu fico querendo acalmar ele... mas eu num fico calma... [sorrisos].

  Aparece, no conjunto das entrevistas, um trabalho de persuasão afetiva (que se toma efetivo), no sentido de se continuar a escolaridade, diante de complexos momentos vi-venciados no decorrer da trajetória escolar e universitária. Trabalho executado pelas famílias no interior do lar, para que o filho não se renda diante da escola em função de situações pessoais difíceis de serem vividas, e necessidades materiais de difícil controle. Essas situações não marcam hora e dia para acontecerem. Por exemplo, a ausência do pai (morte ou abandono do lar) - situação vivida por três entrevistados - coloca a família em situação de instabilidade, diante da falta de recursos materiais ou pensões significativas, o que jogará inevitavelmente a mãe ou o filho mais velho no mercado de trabalho. A vida tem que continuar o seu curso.

    Aqui, aparece todo um esforço da mãe para que o filho não se ocupe com o trabalho remunerado antes de terminar o 2" grau (horizonte que se vai vislumbrando para algumas dessas famílias). Para essas mães, a entrada no mundo do trabalho parece significar um desvio de rota quase irrecuperável, danoso, no futuro, quanto à esperança de se conseguir algo mais leue como ocupação. Essa resistência da mãe irá chocar-se com as necessidades materiais da família e do próprio jovem, que, criado sob a ética do trabalho e exposto a toda uma mídia que incentiva o consumo, se vê na obrigação moral de produzir a sua própria existência, adquirir uma autonomia mínima. Esse conflito perpassa boa parte da trajetória e parece não ter fim, o que produz um enorme desgaste nas relações intrafamiliares.

    Mas a família funciona, também, como refúgio necessário para o jovem no decorrer de sua trajetória escolar e universitária. E na família que ele irá buscar energia, sustentação para enfrentar situações difíceis de serem vivenciadas. Diante da perda do marido, Dona Jandira relata os efeitos sobre a escolaridade de Márcio, quando ele estava na 5a série. Ele ficou uma semana sem ir à escola. Não tinha disposição, ânimo para explicar mais aos colegas por que, como, onde, etc., o pai havia falecido. Todos os dias Márcio respondia às mesmas perguntas, até que decidiu não mais ir à escola. Dona Jandira resume suas intervenções:
          
    Dona Jandira: - E! Eu falei: eu pedi, porque eu não quero que você dá satisfação pra ninguém também não. E se os outro perguntar também, você fala assim: - Ah, eu num sei de que que foi não, eu num perguntei pra minha mãe. A resposta sua é essa, cê num tem de dá satisfação pra ninguém. E foi assim que ele aceitou. Eu fui uma psicóloga na vida dele. Porque se eu num tivesse feito isso, ele num ia aceitar ir na escola mais não! E foi assim que ele aceitou. No outro dia ele foi e continuou.

   Se após a morte do pai ou da mãe determinado aluno abandona a escola, seja em função da necessidade de entrar no mercado de trabalho para recompor a renda familiar ou mesmo em função de circunstâncias emocionais, essa não é uma ação relevante para a instituição escolar e mesmo por aqueles que o cercam. E esse abandono, que se inicia de forma frágil, pode levar a um abandono definitivo, servir de justificativa natural para não ir mais à escola. E a presença, apoio, indignação, atuação e discernimento da mãe (ou do pai), a intervenção propriamente dita, o que propicia ir-se contra os efeitos de uma fatalidade, instaurando-se a possibilidade de continuidade dos estudos e de crescimento subjetivo do filho.
  
 No interior da universidade, nos primeiros períodos, essas intervenções serão demandadas pelos filhos. Para utilizarmos uma expressão do campo médico, é como se faltasse a esses jovens imunidade ao entrar na universidade. Eles se apresentam muito frágeis. Principalmente aqueles provenientes do interior.
Alice: - Porque muitas vezes eu num queria, eu chorava na hora de voltar pra cá, porque eu num queria, eu... Eu já num... eu já num gostava de Belo Horizonte e no /    segundo semestre eu odiei mais. Vim pra cá, eu chorava na hora de vir pra cá...que eu num queria...
Entreuistador. - Tinha algum motivo?
Alice: - Ah! Sei lá! Eu achava assim, principalmente no segundo período, que isso aqui pra mim num era vida. Como eu te falei, minha rotina de casa pra faculdade e da faculdade pra casa e no... no mínimo. E num tinha dinheiro pra nada, doente e minha mãe lá doente também, então... Ah! Sei lá! [...] É complicado. Então muitas vezes, eu já... conversava com minha mãe: - Ah, mãe! Eu num quero voltar lá. Ela ficava apertada, porque ela sabia que se eu cismasse que não ia voltar, eu não ia j       voltar. Ela falava: - Alice, mas cê num pode... [...] Cê num pode fazer isso e tal, cê lutou tanto pra chegar até aí![...] Cê lutou tanto e tal, cê num pode desistir. Mas pra mim naquela época, num fazia a menor importância, eu acho que eu fiquei aqui ;    mais de... insistência dela, num sei. Talvez, talvez no fundo no fundo eu num ia ter coragem de deixar a faculdade, mas a minha vontade no segundo período, era essa. Eu num... Chegou um ponto que eu num... de eu num querer estudar, num tinha vontade. Tinha tudo pra estudar às vezes, num tinha ninguém em casa, num tinha desculpa de ter barulho, de ter... é... assim, de ter rádio ligado e tal, às vezes, num... num tinha desculpa nenhuma pra eu num estudar e eu num queria estudar, num queria pegar no livro, pra mim era um martírio! Eu ficava em Bom Despacho, se eu pudesse ficar uma semana direto, eu ficava, se eu pudesse matar aula uma semana direto, eu matava. 1...] Tomara que as férias cheguem, antes de... antes de í        entrar de férias! [risadaj Eu tava louca pra entrar de férias, num agüentava mais Belo Horizonte. Belo Horizonte, pra mim, no segundo período, foi uma tristeza, né? Eu odiava essa cidade! Não gostava mesmo, queria minha mãe, conversa decriança pequena, “eu quero a minha mãe”, queria voltar pra Bom Despacho, que ria... (Estudante de Fisioterapia.)
 
  Viver esse processo de separação da família e adaptar-se aos modos, tempos e espaços de uma grande cidade têm produzido nesses estudantes uma incerteza intensa e adoecedora. Associa-se a esse distanciamento o novo processo de adaptação às dificuldades materiais que impedem esses estudantes de viver novos momentos, conhecer o espaço que habitam, efetuar atuações que possam integrá-los ao estranho mundo e retirá-los de um roteiro necessário mas adoecedor: casa-faculdade-casa.

    Os relatos dão conta de um desejo, cada vez maior, de voltar ao lar. Como se ele fosse um refugio seguro, capaz de protegê-los de um estado mórbido diante da ausência e impossibilidade de participar de um conjunto de novas experiências que se colocam, se oferecem e não podem ser vividas.

  A atuação afetiva da família age no sentido de se superar essa fase para que o filho possa seguir adiante. Esse trabalho da família é difícil de ser percebido, mas perpassa toda a trajetória escolar desses estudantes. É efetuado na solidão do lar e pouco compartilhado com terceiros. Quiçá, envolvem-se professores. Mas, apenas aqueles mais compreensivos. Não se admite que o filho esteja doente ou preocupado e incerto quanto ao projeto universitário (que pode ser também um projeto de vida) que se iniciou. Aposta-se, aqui, na capacidade de o filho processar os conselhos, as ajudas afetivas da família e na T ação do tempo: é tudo uma questão de tempo. Aposta-se, também, na capacidade moral do filho de superar-se diante da família, que vê nele um sujeito merecedor das preocu-jL pações e da solidariedade a ele dispensadas.

  1. A PRESENÇA DO OUTRO NA VIDA DO ESTUDANTE

Alice: - Eu fiz o jardim nessa escola, né? O pré foi na Escola Estadual João Borges Filho, que é estadual, e lá eu fiquei até a 3- série. Só que era escola de periferia essa escola, e eu... Era a escola mais pertinho do bairro onde eu morava, então eu fui pra lá. E lá eu fiquei até a 3a série, como eu já falei e só que senti... A professora sentiu que eu tava na frente dos alunos de lá porque eu fazia... o dever eu fazia tudo na aula, enquanto os alunos copiavam o dever. Então tudo ela sentia assim, que eu num podia ficar lá porque eu ia ser prejudicada no meu desenvolvimento. Aí ela conversou com minha mãe, pediu que ela me mudasse de escola, que era uma escola mais longe, mas era a melhor escola de Bom Despacho, escola pública, também, né? Escola Estadual Coronel Praxedes, que era a escola do centro da cidade, né? Lá vai a Alice pra escola! [risadal

 Entrevistador: - Mas essa... essa professora conhecia a sua mãe? Tinha alguma relação com sua mãe?
  Alice: - Não, não! Ela pediu, ela escreveu... Eu me lembro direitinho que ela escreveu um bilhetinho e pediu pra mim entregar pra minha mãe, pra que minha mãe fosse conversar com ela. Conhecia assim das reuniões que as professoras faziam e tal, que minha mãe sempre ia.
    
   Nas falas acima transcritas observa-se a atenção, valorização e aceitação da ajuda de outros que conhecem a estrutura e o funcionamento do sistema escolar ao indicarem caminhos alternativos importantes, a partir do reconhecimento e valorização do destacado trabalho escolar do filho.
    
Já dissemos, anteriormente, que os nossos sujeitos configuram casos de estudantes superselecionados. E aqui, a percepção de determinados professores, ainda nas séries iniciais, de que a atuação do aluno supera aquela do conjunto de colegas e que, apesar de pobre, ele tem um desempenho excepcional, parece ser determinante na vida desses sujeitos. Esses professores, sensíveis à atuação escolar de tais alunos, entram em contato com a família, articulam com colegas e diretores a transferência para escolas melhores, freqüentadas basicamente pela elite da cidade, principalmente quando se trata de cidades do interior. Vale a pena observar, aqui, que Nogueira (1998) mostra como os professores parecem constituir a categoria social onde se encontrariam os melhores pais “estrategistas”, pois            
      (...) convictos do valor do capital escolar, desenvolvem forte aspiração a “bens” escolares superiores; aspirações seguidas de realizações concretas eficazes pois que, na condição de agentes da instituição escolar, conhecem bem esse meio, conseguem comparar com discernimento, rentabilizando assim as possibilidades de ação que ela oferece aos usuários (p. 53).
    De posse dessa indicação, a família, na figura da mãe, efetua a transferência do filho, e esse, como previu o professor, não decepcionará. Efetua-se, assim, uma mudança radical na vida da criança, que irá conviver com um mundo social completamente diferente daquele no qual vivia até então, enfrentando-o.

    É o que nos conta Esdras, estudante de Ciência da Computação, que, ao se transferir de sua pequena cidade para outra, pólo da sua região, se matriculou em uma escola pública à noite, que era “mal vista, mal freqüentada, que tinha alunos envolvidos com drogas, onde se estourava bombas no banheiro”. Nesse caso, a pronta intervenção de uma prima, pedagoga e sócia de uma escola, parece ter sido providencial. Após saber que o primo recém-chegado do interior havia se matriculado naquela escola, convida-o a ir estudar na escola da qual era sócia. Esdras pôde concluir o 22 grau de forma mais apropriada e, em suas palavras, com mais qualidade.
 
  Podemos perceber que essa atitude do professor, ou do outro, esporádica mas determinante, aceita e operacionalizada pela família, irá modificar as possibilidades escolares do aluno. Ele irá desenvolver-se escolarmente cada vez mais, reafirmando prognósticos anteriores e merecendo, nesse novo meio, elogios dos novos professores e aceitação por parte dos novos colegas. Dá-se, assim, mais um passo para se atingirem outros níveis de escolaridade, antes não ventilados.
    Observa-se, ainda, uma eterna aproximação dos professores, que contribui na construção da autonomia propriamente dita, a partir de uma aproximação/relação dos jovens com aqueles que reconhecem e incentivam a dedicação, o esforço e o desempenho escolar diferenciado do pesquisado frente a outros colegas de sala.
    
         Rosa: - A minha professora de Português era assim... ela me... me achava a melhor aluna da turma [risada]. E tudo ela deixava eu fazer. Porque num é legal, né, e tudo que ela chamava era eu, aquela coisa toda. Eu era boa em Matemática, também. A professora de Matemática... eu sempre tive essa facilidade, de ter facili... de ter desenvoltura em diversas áreas, porque geralmente quem é bom em Matemática, não é bom em Português, né? E eu num tinha esse problema não. Eu... eu cresci com a auto-estima elevada. Eu cresci acreditando que eu era inteligente [sorrindo alto], (Estudante de Medicina.)
Essa circunstância, aparentemente muito próxima daquela que acabamos de discutir nos parágrafos anteriores, difere-se por ser uma ação constante que se observa ao longo da trajetória escolar e que irá se aprofundar no interior da universidade. Não tem nada de ocasional. E contínua, persistente e presente na vida desses estudantes. Observamos nas entrevistas que a busca de uma proximidade, de ser reconhecido no interior da escola pelo conjunto de professores, é incentivada pela família, que apóia essa proximidade como se fosse uma delegação de cuidados que ela não pode mais ter para com o filho. Em determinadas situações, os próprios sujeitos ensaiam substituir os pais na figura de alguns professores mais atenciosos e dedicados às questões existenciais vividas por es-
ses jovens. Entretanto, um elemento que assegura e dá consistência a esse jogoe a competência escolar, vista aqui através dos resultados obtidos, do comportamento, que não pode ser marginal, da aceitação das determinações institucionais, enfim, por todo um conformismo estratégico.

5.A BUSCA DA AJUDA MATERIAL

Alice: - ...E conversei com minha avó, conversei com minha tia, conversei com todo mundo, né, da família pra ver se me ajudava a me manter aqui, a me sustentar, se me dava algum dinheiro e tal. Minha mãe, sempre trabalhando pra fora também, me ajudou a me sustentar. Eu vim, e com dificuldade, passei dificuldade, bastante dificuldade! [...] Meu pai fez uma dívida que ele pagou até quando eu tava no2- período [risada] de faculdade, pra me sustentar, pra me manter lá. E fiz, estu...No final do ano eu já tava anêmica, já num comia mais nada, de tanto estudar. Inclusive as apostilas eu ganhei do colégio pra estudar.

Como no depoimento acima, as manifestações das necessidades materiais aparecem de forma abundante no conjunto das entrevistas, em quase todas as situações abordadas, como se fossem um lugar comum no discurso desses jovens e familiares. Assim, as manifestações simbólicas que contribuem para a construção e estruturação de uma trajetória improvável - e, conseqüentemente, para a construção da identidade dos sujeitos - parecem, no nosso caso. vir sufocadas pelas necessidades materiais primárias, básicas, que assaltam essas famílias cotidianamente. É o esforço, às vezes desesperado, para ajudar materialmente o filho estudante diante da sua impossibilidade de desenvolver qualquer trabalho remunerado (ou mesmo bicos), em função do tempo necessário despendido com os estudos.

   Colocar e manter um filho nos cursos de Medicina, Fisioterapia. Direito, Comunicação Sociai, Engenharia Elétrica e Ciências da Computação, mesmo numa universidade pública como a UFMG, são atos que retiram a tranqüilidade da família, pois. nos nossos casos, trata-se de um ensino público relatiuizado. Isso se confirma pelas exigências intrínsecas e periféricas ao acadêmico, as quais marcam esse ensino. Como bem iiustra o estudante de Ciências da Computação:
           
  Esdras: - Então, iogo, logo que a gente chegou, a primeira coisa foi ir na FUMP. Vê como é que tava a situação, porque o bandejão era 1.50 [Real]. Era um custo assim que... já dava. sei iá. dava noventa reais por mês de ai... de... de... aiimenia-ção. Aí. já era muito pesado, num tinha dinheiro mesmo Aí a gente foi iá. eu fui iá, fiz a entrevista. levei meus... meus... meus... documentos e tal Fiz a entrevista com a M. Ai. julgaram iá que tem... é... num sei como é a avaliação deles lá e. liberaram isso pra mim. Eu pedi a... a carência de alimentação e a... e... a bolsa de manutenção. poroue era meio compiexo ficar iá, poraue num tinha dinheiro pra... pra... sobreviver. Ficava an... porque o meu pai era aposentado, né? t num tinha condições de me ajudar muito. Minha mãe também, minha mãe era costureira. Entãc, num tinha como me amimar dinheiro. No começo antes da bolsa sair. minha tia é que mc ajudava. Normalmente ela me dava um dinheirinho lá todo mês...
Nos nossos casos, é claro que a família (e o próprio estudante) tem sua tarefa um tanto facilitada pela presença da Fundação Universitária Mendes Pimentel, que cuida de amenizar essa etapa da passagem, oferecendo/distribuindo um leque de benefícios materiais (bolsa de alimentação, empréstimo de material, financiamento de livros, bolsa de manutenção, dispensa de taxas escolares, etc.) e simbólicos (assistência pedagógica, psicológica, psiquiátrica, social, entre outras). Benefícios que vêm se revelando fundamentais para o estudante pesquisado se manter na UFMG, desde a data de sua fundação, o que á diferencia de suas congêneres, quanto à presença e permanência desse tipo de estudante em seus diferentes cursos.
 
 Mesmo contando com essa importante ajuda, observa-se uma submissão e humilhação ao pedir de forma recorrente, ou aceitar ajuda material de terceiros (geralmente, parentes um pouco melhores de situação econômica ou amigos íntimos ou mesmo agiotas). Ajuda frágil, inconstante, mas que assegura condições materiais e psicológicas básicas para a continuidade dos estudos acadêmicos do filho.

  Trata-se de uma situação complicada, porque aquele que ajuda sabe de antemão que está fazendo uma doação a fundo perdido ou um investimento, como bem ilustra Esdras, falando das ajudas recebidas de uma prima distante:
      
       Aí, ela me ofereceu pra fazer cursinho e tal, perguntou se eu queria em Belo Horizonte, ela ia pagar, ia pagar pra mim e... ela sempre viu, tipo assim, viu que é... é... [eu] era uma pessoa que compensava investir, que ia dá futuro, digamos assim.

   Essas famílias não têm muito como pagar a ajuda recebida, pois o salário percebido pelos provedores é todo utilizado na manutenção da casa e do filho universitário. Observa-se, também, uma certa solidariedade material de alguns parentes para com esses estudantes, que efetuam algumas doações diante da manifestação dos pais de que o filho se encontra necessitado. Porém, os filhos pouco se empenham em pedir ajuda aos parentes ou amigos da família. É como se eles cuidassem de manter um certo distanciamento dessas questões que os preservassem em futuras negociações de posições no interior da família extensa. Pedir ajuda é uma tarefa da família!

6.A EXISTÊNCIA E IMPORTÂNCIA DE UM DURADOURO GRUPO DE APOIO CONSTRUÍDO NO INTERIOR DO ESTABELECIMENTO ESCOLAR
      
        Alice: - Minha avó, tinha me dado o dinheiro de aniversário, que eu tava guardando. Aí eu peguei o dinheiro...[...] paguei a inscrição da prova, da prova... da... da... prova do... do... de seleção né? Daqui do Pitágoras. Que principalmente eu queria vir... por mim e porque todas as minhas amigas, das minhas intimidades, das minhas relações tavam vindo pra cá também, tipo assim. [...] Fazer o terceiro ano. Num vou ficar aqui, né? Quê que eu vou ficar fazendo aqui? Eu pensava, eu pensava mais no meu futuro, porque lá eu num ia ter futuro, lá num tem faculdade, num tem nada. Peguei esse dinheiro, paguei a inscrição da prova de seleção aqui do Pitágoras. Estudei pra caramba, vim e fiz a prova, e passei. Aí passei na prova, né? E agora? Como que eu venho pra cá, né? Não tem jeito. [...] Aí vim, fiz a prova da Timbiras, passei e queria vir de todo jeito, né? [...] Eu vim morar com uma colega minha lá na Bias Fortes, perto da Praça Raul Soares. Então ela morava lá com um irmão dela, e mais dois colegas de sala meus, que era a V. e o B. Então morava-a C. com o irmão, que era da minha sala, a V. também era da minha sala e o B. que tam-bén» era da minha sala, e o C. que era irmão dela, fazia faculdade já, fazia Engenharia Elétrica, na Federal. Todo mundo de Bom Despacho.
   
O grupo de apoio, como aparece na fala de Alice, é outra circunstância importante para assegurar a continuidade dos estudos e se associa àquela anteriormente discutida no item três, pois poder-se-ia dizer que se trata de uma conseqüência de ações desenvolvidas ao mudar-se o filho de estabelecimento escolar. Quando essa ação se efetiva, a criança é transferida para um mundo diferente daquele em que ela vivia e estudava até então. Espaço dominado por filhos de uma classe média privilegiada econômica e escolarmen-te, que vão ditando os gostos e os modos de agir no interior da escola e à sua volta. Nesses casos, a família procura facilitar, dentro de suas posses econômicas e culturais, a inserção, mesmo parcial, do filho nesse novo mundo. E uma disposição que facilitará a vida do aluno pobre nesse novo espaço é a facilidade para aprender, ser bom aluno, ser inteligente. Essa disposição conta ainda com o apoio e o incentivo dos professores no decorrer da trajetória.
 
  Porém, quando o jovem proveniente das camadas populares passa a pertencer ao novo grupo constituído por jovens de uma classe média, ele será influenciado pelas aspirações escolares do grupo e buscará desenvolver estratégias que possam garantir a continuidade dos estudos. Esse novo grupo manter-se-á coeso até por volta da conclusão da 8série. Observa-se, pelos depoimentos, que essa coesão é mantida pela crença dos jovens de que as escolas que freqüentam oferecem um ensino de qualidade até esse nível de ensino. A partir daí, esse grupo irá se fracionar ou mesmo se reagrupar em um outro centro urbano que ofereça melhores oportunidades de escolarização, que facilite e garanta a continuidade do projeto traçado por seus pais: atingir o ensino superior, se possível, nas universidades públicas. Observa-se, ainda, aqui uma forte influência do marketing de grandes “sistemas” particulares de ensino (no caso de Belo Horizonte) que prometem que seus alunos passarão por cima das barreiras colocadas pelo vestibular e se colocam como a via mais fácil para se efetuar essa travessia.

    Observa-se nesse movimento de mudança de estabelecimento que o estudante pobre, embora carente daquele projeto racional de escolaridade de seus colegas, é fortemente influenciado no sentido de uma ampliação dos seus desejos de seguirem frente, não estacionar na cidade de origem, ou seja, amplia-se a sua visão de mundo, mesmo com uma certa consciência dos conflitos intrafamiliares que as atitudes daí decorrentes acarretariam. Os pais nunca podem sustentar os filhos nessa empreitada, mas se sacrificam (veja item 5) para que o filho saia e obtenha sucesso, visto aqui como seguir passo a passo, de acordo com as possibilidades. Mas, com certeza, esse novo projeto não se efetivará para o pesquisado sem altos custos afetivos (veja item 3).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após discutirmos esse conjunto de circunstâncias atuantes, retomando as reflexões que originaram este texto, nossos dados indicam um enorme esforço das famílias pobres, que, desprovidas de capitai escolar e material, contribuem efetivamente no processo de construção de uma trajetória escolar empreendida pelos filhos com relativo sucesso, pois eles chegaram à universidade.
  
 Mesmo naqueles casos em que a autonomia e o empenho individual do sujeito parecem encobrir ou negar o trabalho escolar da família, ele está presente. Noutros termos, parece-nos imprescindível para a compreensão do processo de construção de uma trajetória escolar que configure uma improbabilidade estatística, não somente desvelar mas ainda admitir o trabalho escolar da família, como acima o definimos.

   Do contrário, correremos o risco de ignorarmos práticas originais empreendidas por essas famílias. Práticas nascidas diante das possibilidades - imprevistas - de continuidade dos filhos no interior do sistema escolar. Isso instala uma insegurança, e não uma imobilidade, pois trata-se de um conjunto de novas atribuições cobradas dessas famílias nas suas relações com o sistema escolar.

   As famílias populares não podem se espelhar nas ações escolares mais conhecidas e identificadas das famílias de diferentes frações das classes médias. Empreender essas ações demandaria capital cultural e mesmo uma disposição econômica de que as famílias populares não dispõem. Essas famílias lidam em um espaço ainda pouco compreendido por nós, onde a privação, a instabilidade, a insegurança e a angústia impulsionam e orientam as ações.
   
Não é sem razão que Carolina Maria de Jesus (1993) comumente inicia os seus relatos matinais fazendo referência à escola. Ela própria não pôde estudar muito. Desejava ser professora, sonho da mãe, mas fez apenas a 2- série primária no interior de Minas Gerais. Segundo ela, tudo deve à sua professora, que incutiu nela o gosto pela leitura e pela escrita:

- Seria uma deslealdade de minha parte não revelar que o meu amor pela literatura foi-me incutido por minha professora, dona Lanita Salvina, que aconselhava-me para eu ler e escrever tudo que surgisse na minha frente. E consultasse o di cionário quando ignorasse a origem de uma palavra. Que as pessoas instruídas vivem com mais facilidade (p. 170).
 
  Carolina, pelas contingências da vida, tornou-se uma catadora de papel e moradora em condições subumanas de uma favela em São Paulo, onde suportou todos os tipos de privações. Entretanto, observa-se nos seus relatos cotidianos um desenvolvido gosto pela leitura, pela escrita, pela música e um discernimento sobre as questões sociais mais gerais. Cotidianamente discutia essas questões com seus três filhos:
 
                  Ele [o filho João] passa o dia lendo. Ele conversa comigo e eu vou revelando as coisas inconvinientes que existe no mundo. Já que o meu filho já sabe como é o mundo, a linguagem infantil entre nós acabou-se. [...10 meu filho, com 11 anos já quer mulher. Expliquei-lhe que ele precisa tirar o diploma de grupo. E estudar depois, que o curso primário é muito pouco (Jesus, 1993: 82) .
   
Sabemos que sua filha caçula, Vera, concluiu o curso superior de Letras e se tôrnou professora na cidade de São Paulo.
   
As referências de Carolina sobre a escola são sempre tensas, marcadas pelo desejo de os filhos serem diferentes de mim, mas também marcadas pelas imposições da miséria material:
   
                O José Carlos não quer ir na escola porque está fazendo frio e ele não tem sapato. Mas hoje é dia de exame, ele foi. Eu fiquei com medo, porque o frio está congelando. Mas o que hei de fazer? (Jesus, 1993: 59).
   
Entretanto, Carolina sabia que o conhecimento escolar poderia fazer a diferença, futuramente. Para ela, a escola propicia superações. Permite ultrapassar a linha de pobreza na qual se encontrava. Possibilitaria a ela livrar-se de uma condição humana indescritível, insuportável, limitadora de sua aventura:
   
              Encontrei com a dona Nenê, a diretora da Escola Municipal, professora do meu filho João José. Disse-lhe que ando muito nervosa e que tem hora que eu penso em suicidar. Ela disse-me para eu acalmar. Eu disse-lhe que tem dia que eu não tenho nada para os meus filhos comer (Jesus, 1993: 92).
 
  Os resultados desse conjunto de práticas podem propiciar, também, claro, alegrias, esperanças e a consecução de sonhos antes nunca sonhados. É o que nos diz dona Jandira, entre um sorriso e outro, expondo sua alegria por ter um filho na Faculdade de Direito da UFMG:

                   Eu até hoje eu falo com eles. Eu falo não é só com eles. Eu falo até com minhas amigas, quando a gente tá conversando, elas falam: - Ah, Jandira, quem viu você enfrentar a vida que você enfrentou e hoje seu fiiho tá na faculdade, né? É muito difícil, né! Mas eu falei assim: - Pois é, é muito difícil, né9 Mas, acontece o seguinte, eu falo com eles, se eles quiser ser diferente do que eu fui eles têm que estudar. Porque eu fui assim porque eu não tive tempo pra estudar.
    Nessa mesma linha também se expressa Esdras, alegre e emocionado, quando nos relata as manifestações de sua família, diante de seu desempenho no curso de Ciências da Computação:

                  Bem, minha mãe é... é... é... fica toda orgulhosa de eu poder tá fazendo um curso como esse, que ela... que eia sabe que é um curso difícil de se... de se entrar, né? E é uma coisa promissora, né? E meu irmão, também, né? Fica lá sonhando de repente [euj fazer uma pós-graduação no exterior, não sei o que lá e tal.
  
 Mas, de qualquer forma, para esses pais que não puderam ter uma relação de maior prazer e proximidade com a escola e, conseqüentemente, não puderam se preparar melhor para a vida, como dizem, ter um filho em um desses cursos é uma vitória. Sua família é uma família diferente no seu meio, agora, mesmo que não dominem todo o significado
dessa aventura6. Por exemplo, Dona Teresinha, mãe de Maurício, entre uma conversa e outra, pergunta: “Para que serve mesmo Engenharia Elétrica?” Porém, resta, ainda, a eles a certeza de que isso não se deu “de graça: foi preciso muito esforço e sacrifício”.

   Lahire (1997: 334) considera, ao final de sua obra, que um fato pode ser estabelecido: “o tema da omissão parental é um mito”. Segundo esse autor,
        
      [...] esse mito é produzido pelos professores, que, ignorando as lógicas das configurações familiares, deduzem, a partir dos comportamentos e dos desempenhos escolares dos alunos, que os pais não se incomodam com os filhos, deixando-os fazer as coisas sem intervir.

   Podemos afirmar que, em todos os casos vistos por nós, o trabalho escolar da família, revelado no conjunto de entrevistas, foi imprescindível para o estudante ter trilhado a trajetória escolar (e social) que trilhou e o é, ainda, para se manter na posição ocupada no interior da universidade. Nesses cursos, a competição velada entre os sujeitos, seja por melhores notas ou por melhores posições nas hierarquias que vão se estabelecendo e, conseqüentemente, pelos melhores postos de trabalho a serem oferecidos, é acirradíssima. O estudante não pode perder tempo com atividades que não dizem respeito ao acadêmico ou que com ele não se relacionam. Fazer bicos, trabalhar meio período... isso está fora de cogitação. Admitem-se uma monitoria, uma iniciação científica, a participação remunerada em projetos de pesquisa, etc. Aqui, não nos parece ser possível prescindir de todo esse trabalho escolar da família subsumido na figura da mãe, como bem ilustra Rosa: “E. E assim, quem batia, quem educava era minha mãe que tava ali no dia-a-dia, né?” Plagiando François Héran (1994: 2) aqui, as mães perseveram. A figura do pai é uma sombra tênue.

   Acreditamos que as reflexões contidas neste capítulo possam contribuir, no caso brasileiro, para o entendimento da complexa relação famílias populares/escola. Relação muito pouco pesquisada entre nós e ainda desconhecida.

BIBLIOGRAFIA
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NOGUEIRA, Maria A. (1997). Convertidos e oblatos - Um exame da relação classes médias/escola na obra de Pierre Bourdieu. Educação & Realidade. P. Alegre, v. 20, n. 1, jan./jun., p. 109-129.
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PORTES, Ecio A. (1998). Estratégias escolares do universitário das camadas populares: a insubordinação aos determinantes. In: PAIVA, Aparecida & SOARES, Magda. (orgs.). Universidade, cultura e conhecimento - A educação pesquisa a UFMG. B. Horizonte, FAE/UFMG, p. 251-277.
VIANA, Maria J.B. (1998). Longevidade escolar em famílias de camadas populares: algumas condições de possibilidade. B. Horizonte, UFMG, 302 p. [Doutoramento em Educação)



Ultrapassando o pai Herança cultural restrita e competência escolar
   Ana Almeida -   Professora da Faculdade de Educação da UN1CAMP.

Et, capítulo discute as condições de possibilidade da utilização da educação secundária como estratégia de inserção nas camadas intelectualizadas por famílias de grupos médios possuidoras de credenciais escolares relativamente baixas.

    Concebida como uma análise das desigualdades de performance dos alunos frente às exigências do sistema de ensino, esta discussão refere-se a um problema central da Sociologia da Educação e tem sido objeto de muitos estudos. No entanto, esses estudos têm se concentrado em estabelecer uma correlação positiva entre credenciais escolares dos pais e resultados escolares dos filhos, e poucos trabalhos têm se detido sobre o problema de como esse efeito se produz.
 
   A meu ver, isso tem provocado uma relativa fragilidade das análises que procuram entender as situações em que a correlação entre os resultados escolares dos pais não correspondem aos resultados escolares dos filhos. Ao mesmo tempo, isso tem incentivado uma utilização bastante mecanicista da noção de capital cultural. Nos casos em que isso acontece, a noção é empregada de maneira substantivista, esvaziada da sua função de conceito operatório\
 
   Assim, a discussão das condições de possibilidade da utilização da educação secundária como estratégia de inserção social por grupos possuidores de credenciais escolares relativamente baixas é guiada, neste capítulo, por uma tentativa de problematizar esses usos da noção de capital cultural, oferecendo um esquema analítico capaz de aproveitar melhor as potencialidades dessa noção.
  
  A discussão apóia-se sobre um estudo desenvolvido num colégio privado da cidade de São Paulo que tem se destacado, nos últimos anos, pela capacidade de preparar eficazmente jovens oriundos desses grupos para as carreiras mais seletivas da Universidade de São Paulo (USP). Esse colégio caracteriza-se por exigir dos seus alunos pesados investimentos em tempo e energia nos estudos, e o objetivo da pesquisa foi identificar os elementos responsáveis pela adesão dos alunos a esse programa2.
    
 No esquema analítico proposto aqui, o exame dos recursos (materiais e simbólicos) possuídos de fato pelas famílias no momento em que se realizou o estudo é associado à análise da história do grupo social no qual essas famílias estão inseridas. Verificand®-se, especialmente, se as famílias fazem parte de frações em ascensão ou em decadência dentro do grupo, é possível interrogar o grau e,m que as trajetórias escolares desses alunos, especialmente os seus investimentos em tempo e em energia nos estudos, são tributárias das disposições com relação ao futuro expresso por eles e/ou por suas famílias 3.

 1.Como pode ser visto, entre outros, em Katsilis & Rubinson (1990).
2. O trabalho de campo foi realizado durante o ano de 1996 na cidade de São Paulo como parte de uma pesquisa financia-^“Ida pela FAPESP. que abrangia ainda dois outros colégios. Além de um questionário apiicado ao conjunto dos alunos da j segunda série do segundo grau (n=252), foram realizadas longas entrevistas com quatro aiunos. com dois ex-alunos, com J os quatro coordenadores (individualmente e em grupo), com três professores - dois de português e um de química, e outro da disciplina considerada como o ponto de estrangulamento do secundário, em função da alta proporção de reprovações. Além disso, desenvolveu-se uma observação de caráter etnográfico. Através das informações construídas por esses procedimentos foram examinadas (1) as características sociais das famílias dos alunos: (2) as práticas escolares e culturais dos alunos; (3) a ação pedagógica exercida pelo colégio em questão e (4) as exigências específicas colocadas pelo formato atual do vestibular da USP para esse tipo de familia. - O caráter restrito da herança cultural recebida pelos aiunos desse colégio manifesta-se de duas maneiras. Por um lado, tem-se uma alta proporção de pais e mães sem diploma de ensino superior (numa taxa de 40% e 60% respectivamente). Além disso, como pode ser aferido nas entrevistas, uma parte importante dos pais diplomados concluíram seus cursos superiores depois de casados, em faculdades privadas pouco prestigiosas da cidade. Por outro lado, a também alta proporção de avós sem diplomas (92.7% dos avós paternos e 95.7% dos ^ avós matemos) indica, por sua vez. a novidade da educação universitária para essas famílias. A proporção de avós que não concluíram o ginásio está em tomo de 53,7% para os paternos e 53,1% para os matemos.

1.AS NOVAS CLASSES MÉDIAS
 

  A história familiar mais comum no Colégio Cristo Rei4 já foi contada em termos estatísticos por alguns estudiosos da estrutura social brasileira, principalmente por aqueles que se dedicaram a estudar a mobilidade social na segunda metade do século XX5. Esses estudos mostram a presença de uma forte rigidez durante todo o período. As possibilidades de mobilidade social foram significativas apenas nos momentos em que houve uma ampliação importante do número de postos no mercado de trabalho. Mesmo nesse caso, as situações de mobilidade restringiram-se a mudanças de posição no interior dos estratos médios da estrutura social, ocorrendo um alto fechamento da elite em relação aos demais estratos (particularmente em relação aos manuais). Tal fechamento se caracterizaria pela alta capacidade dos grupos privilegiados em garantir a transmissão das suas posições àqueles que ali já estão incluídos pelo nascimento6.

    Essa fórmula descreve os processos de urbanização e industrialização ocorridos no Brasil a partir da década de cinqüenta, que estiveram na origem do importante crescimento das ocupações administrativas e de direção, assim como de ocupações ligadas ao comércio de valores, às instituições de crédito e seguro, descritas, no jargão das análises demográficas, como “ocupações não manuais qualificadas” (Bacha e Klein, 1986) '.
  
 Tanto as pesquisas de mobilidade que partem das grandes bases de dados quanto estudos de caráter mais qualitativo que tomaram esses grupos para análise apresentam evidências de que as famílias dos pequenos proprietários urbanos foram aquelas que contribuíram com maior peso para a constituição dessa nova camada média, oferecendo uma nova geração com as disposições adequadas para responder às exigências colocadas
para a ocupação desses postos, isto é, para construir as disposições ascéticas necessárias a uma longa escolarização bem-sucedida8.
   
A fundação do Colégio Cristo Rei, em 1984, é um dos efeitos desse processo. Na história contada pelo padre-diretor, a sua criação inseria-se num projeto para “implantar um colégio de alta qualidade na zona leste de São Paulo”.
   
O estabelecimento encontra-se num dos bairros mais antigos dessa região, o Tatua-pé, numa área onde os imóveis residenciais misturam-se a estabelecimentos comerciais e a velhos galpões de antigas indústrias. Trata-se de um prédio novo (inaugurado em 1986). Um pequeno jardim cercado por grades é todo o espaço verde de que dispõe a escola. As quadras esportivas ficam no subsolo e têm as paredes revestidas de azulejos. Isso multiplica o ruído causado pelos gritos dos jovens e crianças que jogam. Um barulho ensurdecedor é o resultado. A tinta amarela que cobre as paredes internas dos longos corredores dão a esse colégio uma aparência bastante asséptica. Os alunos acusam o prédio de parecer um shopping center. A semelhança vem principalmente do exterior (uma caixa de concreto), do piso de pedra polida e das jardineiras internas.
 
  A associação do colégio com um shopping, intuição dos alunos, é, porém, mais do que arquitetônica. A criação do Cristo Rei segue de perto a criação do primeiro shopping center importante, próximo o suficiente para ser considerado da região - o Shopping Norte. Isso não é forçosamente uma coincidência. A existência tanto de um quanto do outro parece estar vinculada a um movimento mais amplo que orientou uma certa mudança de imagem da zona leste, ou, pelo menos, de uma parte dela, à qual estão associadas algumas transformações na organização do espaço urbano.

   Trata-se de um processo do qual são protagonistas determinadas frações das classes médias, tradicionais moradoras da região. São elas as principais fornecedoras de alunos para esse colégio, mas também de clientes para o comércio diferenciado que se instalou nos shoppings.

   Um estudo do habitat das famílias dos alunos do Cristo Rei, principalmente se for tomado para análise um longo espaço de tempo, permite captar esse processo, na medida em que os sinais inscritos nas casas, edifícios e na organização do espaço podem ser vistos como instrumentos de afirmação pública da posição social de seus habitantes (Augé, 1989).

2.A INVENÇÃO DA ZONA LESTE
 
  A cidade de São Paulo passou por uma fase de excepcional crescimento na última década do século XIX. A população de 64.934 habitantes em 1890 chegou a 239.820
em 1900, números que representaram um aumento de 13,9% ao ano9. Os novos habitantes eram sobretudo imigrantes europeus, encorajados pelo governo brasileiro, interessado em encontrar trabalhadores substitutos para os escravos libertados. Já em 1893, 55% dos habitantes de São Paulo haviam nascido no estrangeiro.

    A população estava concentrada sobretudo no centro da cidade. Havia uma certa mistura social nessa área, mas a zona leste foi rapidamente definida como área industrial e como lugar de habitação dos imigrantes estrangeiros que trabalhavam nas indústrias -sobretudo têxteis e alimentícias - dos bairros da região. Os bairros do Brás e da Moóca foram os primeiros a serem ocupados. Em seguida, os bairros do Belém e do Tatuapé também começaram a receber os imigrantes.

    Esse processo foi estimulado pela instalação de um importante centro de recepção dos imigrantes num desses bairros. A Hospedaria dos Imigrantes, nome dado ao centro, recebia os estrangeiros chegados ao porto de Santos - a principal porta de entrada dessa população no Brasil durante o período. Fornecendo moradia e oferecendo ajuda para a regularização dos documentos e para a procura de trabalho, a Hospedaria dos Imigrantes funcionava sobretudo como um depósito de mão-de-obra, onde os imigrantes esperavam, em condições difíceis, ser escolhidos pelos empregadores, que passavam regularmente para selecioná-los.

  O Rio Tamanduateí, o Córrego Anhangabaú e a Estrada de ferro Santos-Jundiaí constituem-se, nesse momento, nos marcos da fragmentação da cidade, que passa a se organizar de fato em dois blocos distintos: a zona leste, lugar de moradia da população operária, de indústrias e comércio; a zona oeste onde se localizava o centro tradicional da cidade e a partir de onde se deu uma expansão de bairros habitados por grandes donos de terra e industriais10.
    Alguns estudos mostram que essa divisão esteve na origem da constituição de um novo espaço de convivência social, política e cultural relativamente independente do centro tradicional da cidade e localizado no Brás. Paoli (1991: 34) identifica ali, assim como na Moóca, o desenvolvimento de uma uida social mais intensa e estratificada coletiua-mente do que nos outros bairros da região. Esse espaço parece ter sido instrumental para a ocorrência das greves operárias do início do século na cidade (Alencar, 1981).

   No final dos anos 50, quando a existência de uma indústria de base passa a fornecer as condições para a instalação de indústrias pesadas, São Paulo afirma-se como o centro industrial do país. E um período de decadência das indústrias têxteis e alimentícias alocadas. em parte significativa, nos bairros da zona leste. Essas não desaparecem completamente, mas perdem importância e vão sendo substituídas na região por um comércio local e pequeno artesanato.

   Ao longo dos cinqüenta anos seguintes, São Paulo vai se tomar a maior e mais rica cidade do país.

   Nos anos sessenta, com uma imigração estrangeira que se reduzira progressivamente a partir das primeiras décadas do século, a cidade continua ainda a receber novos moradores. Os imigrantes do período são os moradores das zonas rurais do nordeste do país, fugindo das condições de vida miseráveis da região agravadas pela seca. Esses migrantes ocupam sobretudo a periferia de São Paulo, provocando a expansão territorial da cidade. Certas partes mais periféricas da zona leste são significativamente afetadas por esse processo.

    O         povoamento da zona leste da cidade segue uma antiga linha de trem que começou a ser progressivamente substituída pelo metrô a partir dos anos 70. Hoje, quanto mais se avança na direção leste, mais os bairros são pobres. A extremidade final da região é muito pobre. Alguns bairros das zonas sul e oeste, em contraste, afirmaram-se como lugar de moradia das camadas sociais privilegiadas a partir dos anos setenta, em seguida a uma onda de investimentos imobiliários. A instalação do campus da USP na zona oeste no final dos anos cinqüenta contribuiu provavelmente para definir a uocação dessa zona como lugar de moradia desses grupos privilegiados.

    Na simbologia da cidade, os bairros da zona leste já estavam, nesse momento, associados a uma imagem peculiar, algumas vezes objeto de zombaria, definida em função de um sotaque, vagamente italiano, e uma maneira de vestir considerada provinciana. Alguns bairros da zona sul e oeste, sobretudo o Bairro dos Jardins, representam, em oposição, uma imagem de sofisticação associada, especialmente, à concentração do comércio de luxo, dos museus, cinemas, etc.11

   Durante os anos setenta, em seguida ao milagre econômico brasileiro, ocorre um êxodo particular da população dos bairros da zona leste. Os que deixam a região são principalmente os jovens beneficiados pelo crescimento econômico dos anos sessenta e setenta e por uma maior escolarização, que os admite nas novas posições abertas no setor de serviços. A ascensão social desses grupos acaba por impulsioná-los em direção aos bairros mais ricos das regiões sul e oeste.

   Esse modelo de ocupação urbana, no qual os grupos sociais mais privilegiados migram para o sul e oeste da cidade, veio a se modificar apenas a partir do final dos anos setenta e início dos oitenta, quando a crise econômica já havia afetado bastante o mercado de construções em São Paulo. Nessa época, os investidores descobrem as frações médias que moram nos bairros da zona leste e são também descobertos por elas. Uma engrenagem para levar a esses grupos o consumo de artigos reservados até o momento apenas aos moradores das zonas sul e oeste foi colocada em marcha. Ela consistiu na construção de shoppings centers. clubes de espetáculos e, naturalmente, edifícios de luxo. O "estilo zona leste” é inventado pela imprensa e pela publicidade. espaço, como aponta Maurice Halbwachs (1950), é uma das condições de permanência de um grupo social. A memória coletiva do grupo apóia-se sobre os elementos aí presentes que lhe permitem atualizar o passado. A produção de um enquadramento espacial mais apropriado para as classes médias da zona leste nada mais é, assim, do que um dos elementos promotores da consolidação dos “grupos médios emergentes” enquanto grupos novos, que trazem inscritas na sua história as transformações por que passaram nas últimas décadas. Nesse processo sublinha-se, ao mesmo tempo, a novidade da sua entrada nas posições dominantes e o caráter relativamente dominado das posições que aí lhes são reservadas.
                                                             I
      3.      ENDEREÇO E VALOR DA PESSOA
             
Como mostra Goffman (1963), um traço de identidade atribuído a uma pessoa ou a um grupo de pessoas não se constitui num estigma, a não ser nas situações em que ele pode atuar para diminuir ou desacreditar a pessoa. As referências ao endereço para exprimir as propriedades sociais dos alunos e suas famílias, recorrentemente notadas nas falas dos diretores, coordenadores, professores e alunos entrevistados na pesquisa que deu origem a essa análise, constituem uma dessas situações.
              Nessas falas, os bairros da zona leste não são jamais mencionados pelos seus nomes. Em se tratando ou não de morador da região, as pessoas falam de zona leste. Na medida ' : que a zona leste diz respeito a uma enorme região da cidade e abrange vários bairros, a j„ > maioria deles bastante pobres, essa prática de denominação dá lugar a uma homogenei-.f ;          zação por baixo. A imagem da zona leste que resulta indica automaticamente uma posição social inferior para os seus habitantes.
Diferentemente, as referências a uma certa zona sul estão presentes exclusivamente no discurso dos habitantes da zona leste. Aqueles que são apontados pelos moradores da zona leste como habitantes da zona sul não se reconhecem como tais. No vocabulário dessas pessoas, elas moram no Alto de Pinheiros e nos Jardins, entre outros. Essa estratégia de nomeação lhes permite transcender a heterogeneidade social das zonas sul e oeste, que também é grande, e identificar-se aos bairros que se tornaram os símbolos da sofisticação em termos de endereço na cidade12.
 O exame das práticas de nomeação colocadas a serviço das estratégias de diferenciação social permite a análise de um vocabulário propriamente paulistano para declarar as hierarquias sociais. Esse vocabulário impregna as práticas de distinção operadas pelos alunos dos estabelecimentos estudados, sobretudo no momento da constituição de suas redes de amigos e de um mercado matrimonial13. E interfere também nas relações profissionais, segundo indicam as entrevistas realizadas com ex-alunos moradores da região nas quais aparecem testemunhos do difícil aprendizado do significado de Habitar na zona leste para os jovens que disputam a entrada nos grupos sociais mais intelectualizados.
                 
 Eu fui fazer um estágio na I— Tinha um cartaz aqui... [no seu departamento, na faculdade] dizia que era uma firma de automação. Você vê? É tudo o que a minha classe quer. Mas embaixo tinha o endereço: Rua Juventus, número 28, Moó-ca. Aí todo mundo dizia, você é louco, eu éque não vou trabalhar na Moóca. É porque esse pessoal mora na zona sul. [O que é a zona sul aqui em São Paulo?] A zona sul é... o pessoal aqui [na faculdade) mora nos Jardins, ou mora em Pinheiros, ou mora em Osasco, ou mora no Butantã...[acho que eu preciso olhar no mapa...] A zona sul é a classe alta e a zona leste a classe mais baixa. Então as pessoas olham... puta, meu, a zona leste... precisa atravessar a cidade para chegar lá. E as pessoas não vão. Quando eu liguei para a firma, o cartaz estava aqui há mais de um mês e eu fui o primeiro a ligar. E o único. [...] Eu tive uma entrevista com a pessoa que é meu chefe hoje [...] e ele achou que eu era superqualificado. Ele me contratou na hora. No dia seguinte eu já estava trabalhando. (L., morador da zona leste, estudante (sexo masculino) do Curso de Engenharia Mecatrônica da USP, ex-aluno do Colégio Cristo Rei. Pai, economista e dono de loja de material de construção; mãe, dona-de-casa. O escritório da firma fica a duzentos metros da sua casa.)

    E assim que se toma possível dizer que as histórias familiares de mobilidade social ascendente e a subordinação relativa das famílias na estrutura social da cidade são os elementos definidores da posição em que se encontram os alunos do Colégio Cristo Rei. É apenas quando confrontados com esses elementos que os fortes investimentos dos alunos nos seus estudos adquirem toda a sua inteligibilidade.

4.            O ADESTRAMENTO DOS CORPOS E DOS ESPÍRITOS
 
  Tudo se passa como se o sentido ascendente da trajetória social das famílias, associado à sua posição dominada no espaço social da cidade de São Paulo, fizesse com que os jovens desses grupos que assumem a via escolar como a mais interessante para a sua inserção social sejam aqueles que apresentam disposições especialmente favoráveis à submissão às exigências desse colégio. Exigências cujo rigor eles são os primeiros a valorizar.
                 
 Vim para cá pela fama do Cristo Rei... colégio muito rígido, o melhor da zona leste e que colocava o pessoal na faculdade. Era isso o que a gente escutava. Eu queria entrar numa boa faculdade. I...) Aqui passei a estudar muito mais. As provas são mais difíceis, é preciso pensar muito mais. (B., aluna da terceira série do Cristo Rei. Pai, médico dermatologista, filho de chineses; mãe, farmacêutica/bioquímica. Aluna hoje do curso de Engenharia Mecânica da Unicamp. Pais separados, B. foi criada pela mãe.)
                
Fiz o Coiégio São João até a 8- série. Aqui ainda não havia o primeiro grau. O meu irmão mais velho veio para cá depois da oitava série. Era uma continuação natural, lá não havia segundo grau. No ano em que eu ia começar o primeiro ano, iniciaram o colegial lá. Mas eu confiava mais no ensino daqui. Não tinha muita confiança no ensino de lá. Eu achava uma mamata. Aqui não. O l5 e 2° graus têm que ser fortes, exigentes, para não se ter dificuldades depois com a faculdade. (S., aluno da terceira série do Cristo Rei. Pai, assistente social, advogado, corretor e construtor de imóveis, filho de mãe italiana; mãe, diploma de advogada, mas atua como dona-de-casa, bisneta de italianos. Ambos nasceram no interior e vieram para São Paulo quando tinham 20 anos para “ganhar a vida”. Fizeram o curso superior juntos, depois de casados, quando os filhos eram pequenos. Hoje S. é aluno do curso de Engenharia Civil na USP.)

    Exercida sobre uma população motivada de antemão, a ação pedagógica nesse colégio caracteriza-se como rígida mais pela maneira como as diferentes atividades são organizadas do que propriamente pela profundidade dos conteúdos trabalhados. Esses não escapam do programa básico exigido pela Fuvest14.
  
 O que faz a diferença é a proposta de ministrar 4/5 de todo o programa do ensino médio nos dois primeiros anos, dedicando o tempo que resta no último ano a uma revisão intensiva do que já foi estudado. Existe apenas uma estratégia de avaliação desse conteúdo: as provas mensais.
        
     [O que faz o curso ser puxado?] Na minha opinião, são as provas unificadas. Nós não damos provinhas, nós não damos nota por trabalho. E uma única prova no mês, quer dizer, não uma única prova, são duas provas todo bimestre por matéria, mas a nota que ele tirou tem que refletir a realidade. Se foi mal, não tem provinha para aumentar a nota, muito menos para baixar. Não damos nota para trabalhos e o aluno sabe disso. Então ele tem que vir naquele dia para fazer aquela determina-: da prova e tirou, tirou. (K., coordenador geral do ensino médio .)
   
As notas finais são a média ponderada das notas alcançadas em cada bimestre, atribuindo-se peso 2 às notas do primeiro semestre e peso 3 às notas do segundo. As provas são iguais para todos os alunos de uma mesma série e são objeto de uma encenação própria a transformá-las em momentos altamente temidos pelos alunos.
           
  G- Nossos alunos não fazem a prova na sala de aula. Existe todo um sistema. Eies fazem as provas na quadra. [...] E coberto e cabe, quantos alunos mais ou menos?
           
  K.: - 500 alunos T.: - Quase 530, né?
           
   G. : - Mas é um sistema assim, fantástico.
           
  T.: - Onde cada um tem sua cadeira.
          
   G.: - Eu fiquei impressionado quando eu conheci pela primeira vez.
          
    K.: - Eu... nós dividimos, é, nós dividimos por setores onde, isso aí é sigiloso [risos], se bem que todos os alunos... não, não, pode gravar. Todos os alunos sabem. Nós temos uma classificação onde os melhores alunos fazem num determinado setor, na ordem, e os piores num determinado setor. Então é uma filosofia do nosso diretor. Ele fala, bom, os melhores não vão colar entre si e, se colar, um sabe tanto quanto o outro. Entre os piores é a mesma coisa. Um olha para o outro e nem tentam colar porque sabem que quem está lá é porque...
          
  K.: - Mas dificilmente eles colam e nem damos chance. Pode ser que tenha cola, já tivemos casos aí, mas assim, colar acintosamente como fazem por aí, aqui não existe. Eles sabem que a prova é para valer. É como se fosse um vestibular já, da Fuvest.
            
  T.: - E. A idéia é essa.
            
 R.: - Tem um horário estipulado, tem um horário de término também estipulado, os que terminam não voltam...
          
  K.: - Pode entregar antes... Então nós temos todo um esquema que faz com que muitos alunos, principalmente do primeiro colegial, fiquem temerosos, com medo e tal. Mas acredito que esse medo, essa coisa toda... essa insegurança, no fundo, no fundo é falta de estudo. Estudo diuturno, quer dizer, não adianta o aluno aqui querer estudar de véspera. Ele vai mal nas provas. Acaba indo mal. Tem que [estudar] todos os dias para chegar nessa época de prova e ele já estar preparado. Não adianta querer ficar sem dormir como acontece...
          
   (Equipe de coordenadores do Cristo Rei.)
 
  Ao acelerar o ritmo dos estudos e impor um sistema de avaliação que funciona em estreita analogia com o juízo final, o colégio antecipa para as séries iniciais do curso médio o temor que os alunos sentem com relação ao exame vestibular a que serão submetidos apenas no final do terceiro ano.

    O primeiro ano é considerado uma etapa especialmente sensível para os alunos e também para os professores e coordenadores. Isso é atribuído às diferenças entre a organização desse ensino e daquele que os alunos acabam de deixar. Segundo os coordenadores, professores e alunos entrevistados, o Cristo Rei passa subitamente a exigir uma dedicação muito maior do que aquela exigida nos colégios de onde vêm a maioria dos alunos16.

    Esse período é vivido com bastante ansiedade pelos alunos, que trabalham sob a ameaça constante e real de serem reprovados. Normalmente, das oito turmas formadas por exatamente 42 alunos que começam o primeiro ano, apenas quatro chegam ao terceiro17.
 
  É nesse momento que os alunos devem desenvolver as qualidades que supostamente os levarão a enfrentar com sucêsso o restante do ensino médio e o vestibular. As exigências colocadas pela instituição, sempre apresentadas em bloco, e tendo por referência a ameaça do fracasso nos exames, são entendidas como necessárias em seu conjunto na construção dessa competência escolar da qual os alunos se sentem despossuídos e que buscam a todo custo. Reinterpretadas como condição de saluação, os alunos não têm como negar-se a submeter-se a elas.
 
  A isso corresponde um aumento do tempo e da energia investidos nos estudos, como demonstra, por exemplo, o número relativamente elevado de horas por semana que os alunos dizem dedicar aos estudos fora do colégioI8.

    As condições para que esse envolvimento dos alunos possa ocorrer passa forçosamente por uma disponibilidade pessoal da parte deles em acreditar na necessidade dessa modalidade de trabalho para o sucesso nos exames. Por isso, o processo de seleção dos novos alunos, que acaba por reunir o conjunto de alunos mais predisposto a sofrer a ação pedagógica exercida pelo colégio, é objeto de uma cuidadosa preparação por parte da direção e da coordenação, que chegam mesmo a declarar ser este um aspecto fundamental do sucesso da ação pedagógica exercida por eles.
 
  O controle da composição do conjunto dos alunos do ensino médio dá-se essencialmente através do exame de admissão. Esse exame constitui-se necessariamente num momento privilegiado para a interiorização do sistema de valores do próprio colégio19. No Colégio Cristo Rei, a concordância da parte do candidato em se submeter às exigências disciplinares aí em vigor é o elemento de triagem, já que se acredita que a adequação dos alunos a tais exigências é um requisito para a construção da competência acadêmica. Uma série de procedimentos é empregada, então, para identificar entre os candidatos aqueles jovens já predispostos a aceitar essa exigência.
    
         T.: - Nós temos alguns alunos, [...] são as famílias que querem que eles estudem aqui.
    
         R.: - Imposição.
      
       T.: - Já houve anos em que a gente teve alunos que não suportavam de jeito nenhum. Ele queria um outro tipo de escola, oqueédireito dele. [,..]Então, quandoa gente percebe, a gente tenta ver o que é melhor para esse aluno porque, como a gente já te disse, a gente tem salas vazias e nós não vamos encher essas salas. [...]
   
          T. -.-A gente está procurando aquele jovem que realmente tenha um objetivo de lutar pelo melhor. A gente não está tachando universidade a, b ou c, para ele entrar... Não. A gente quer formar um aluno que aprenda a lutar pelo melhor, que tenha confiança. Porque esse problema [...] de pré-requisito, a gente até tem alguns problemas em lidar com isso porque a gente não está aqui para levantar pontos falhos em escolas que eles já estudaram, né? A gente está aqui para resolver a situação que a gente tem em mãos. Então, quando a gente faz esse questionariozinho, vamos chamar assim, não é bem um questionário, não. É um papo que a gente abre. (Equipe de coordenadores do Colégio Cristo Rei.)

5.            FUROR DISCIPLINAR

    A preparação para o vestibular efetivada pelo Cristo Rei é compreendida também como uma “preparação para a vida”, como explicita o editorial do jornal do colégio, reproduzido abaixo.
  
               A educação tem que visar uma formação integral do homem, a qual reclama uma visão compreensiva e harmônica de toda sua realidade. [...] (A aquisição do] conhecimento, o mais abrangente possível, dessa realidade, é uma das tarefas principais da escola. [...] O engenheiro, o advogado, o médico ou qualquer outro profissional, com o tempo, esquece a maior parte dos conhecimentos adquiridos na escola. O que permanece é o nível cultural, a postura perante a vida. Quando conversamos com alguém, percebemos que tipo de escola freqüentou, a cultura adquirida, quais as áreas mais carentes de sua personalidade. Por isso, não tem sentido discutir o que é mais importante na escola: se preparar para a vida ou para o vestibular. A escola que prepara para o vestibular está preparando para a vida, ao atingir a área cognoscitiva da personalidade, a área da cultura, a postura perante a vida. [...]
     
             O               vestibular no Brasil tem por objetivo selecionar os candidatos melhor preparados para ingressar na universidade. Essa preparação é uma garantia de um desempenho melhor na carreira escolhida. Por outro lado, a concorrência e a competição para conseguir a melhor faculdade para cursar a carreira escolhida é uma amostra apenas da competição e concorrência do dia-a-dia na nossa sociedade. Gostemos ou não, o princípio é este: ‘não adianta ser bom, você tem que estar entre os melhores’. No mundo da economia, a própria globalização impõe a concorrência e, se essa for leal, estimula uma sociedade mais justa. [...] (Jornal do Cristo Rei, edição extra, 1997: 1.)
 
  Mas, a vida para a qual o Cristo Rei procura preparar seus alunos caracteriza-se, sobretudo, pela submissão ao status quo. O trabalho pedagógico busca, assim, a adaptação dos alunos a uma sociedade cujos princípios de organização e hierarquização são tomados como dados da realidade. Trata-se de desenvolver nos alunos as disposições mais adequadas às posições de gerência que serão chamados a ocupar. A ênfase do trabalho pedagógico dirige-se, assim, para o desenvolvimento da obediência a normas disciplinares rígidas e na imposição de hábitos de trabalho definidos minuciosamente. Também faz sentido, nesse projeto, regular aspectos íntimos da vida dos alunos como a maneira de se vestir, o uso de adereços e o comprimento do cabelo para os rapazes e o uso de maquilagem para as moças. O trabalho pedagógico é preenchido, assim, por um conteúdo propriamente civilizatório (Elias, 1973), a partir da submissão às normas de comportamento dominantes.

   Mas, o conteúdo civilizatório do trabalho pedagógico desenvolvido no Cristo Rei abrange também o trato com os saberes escolares. Com a missão declarada de preparar os seus alunos para os cursos mais prestigiosos da USP, a montagem do currículo e a organização do tempo adquirem contornos específicos no colégio. Entendendo “cursos mais prestigiosos da USP” como “carreiras da Engenharia e da Medicina”, montou-se um currículo que dá lugar de destaque às disciplinas das áreas exatas e biológicas, em prejuízo das humanas. História e Geografia, por exemplo, só aparecem na segunda série. Não há curso de Filosofia ou qualquer disciplina optativa dessa área. Os cursos extras, entendidos como “reforço”, concernem apenas à área de línguas: inglês e espanhol. Mais recentemente começou a ser implantado um curso de informática nos mesmos moldes. A carga horária de português, por sua vez, foi aumentando progressivamente ao longo dos últimos anos, acompanhando nitidamente a valorização dessa disciplina nos vestibulares.

K.:- A filosofia é que o aluno sendo bom em exatas também é bom em humanas. Então História e Geografia, Deus me livre de dizer que não são importantes, [mas] segundo a visão do nosso diretor, é uma matéria assim mais de leitura mesmo, que j depende mais do aluno. Se ele tem mais vontade, então ele lê todos os livros, essa ; coisa toda. Seria uma espécie de autodidata. Ao passo que em Matemática, Química, Física, a presença do professor é imprescindível.

T.: - Pelo menos a colocação que o [diretor] sempre dá é aquela de se trabalhar bastante justamente essas matérias de exatas, porque eles vêm muito mal preparados. Então trabalhar bastante em cima disso, preparar bem, o aluno no primeiro ano. E a partir do segundo trabalhar o currículo normal, vamos dizer assim. Vamos taxar o primeiro ano de um pouquinho diferente, a partir do segundo e terceiro ano aí se trabalharia aquele volume. E ele acha também que essas matérias no primeiro ano deixariam uma carga muito grande no... pra esse aluno que vem pra cá, pra uma realidade muito diferente da que ele estava acostumado. (Equipe de coordenadores do Cristo Rei.)

Imposta sobre uma população de alunos relativamente despreparada academicamente, a concentração dos esforços nas disciplinas das áreas exatas acaba por produzir um trunfo valioso. A competência nessas áreas é, como se sabe, um ponto de estrangulamento no sistema de ensino, visto como um todo. Associada a um estilo de exame vestibular no qual o peso dos conteúdos é ainda bastante importante, ela acaba por garantir aos alunos do Cristo Rei uma vantagem significativa em relação aos seus colegas vindos de outras escolas. E isso o que impulsiona as altas taxas de aprovação dos seus alunos no vestibular da Fuvest.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que leva um jovem de quinze anos a submeter-se de boa vontade a condições de trabalho escolar altamente rígidas e a controles minuciosos dos aspectos conside-
rados hoje como os mais pessoais da sua existência? Essa é a pergunta que orientou este capítulo.
  
 A situação particular dos alunos do Cristo Rei é tanto mais intrigante quando se sabe das mudanças profundas nos padrões de imposição da autoridade que governam as relações entre pais e filhos, professores e alunos e, de uma maneira mais geral, gerações mais velhas e mais novas ocorridas nas últimas décadas. O que buscam esses alunos? O que pensam estar adquirindo com a sua dedicação às exigências colocadas pela direção do colégio onde estudam?

    Esta pesquisa procurou responder a esta pergunta sem se deter exclusivamente na discussão das representações dos próprios alunos sobre os investimentos que realizam. Não se trata, é claro, de duvidar quando eles dizem que se sujeitam a isso porque entendem ser esse o caminho para conseguir a aprovação num dos vestibulares mais valorizados do país e ampliar suas chances de ingresso numa carreira social e economicamente recompensadora. Esse dado é, ao contrário, tomado aqui como um elemento central do sistema de crenças que orienta as práticas desses jovens.

    Mas a discussão das suas representações, por si só, não permite investigar as condições de possibilidade da ocorrência dessas crenças. A questão não é tanto entender por que fazem determinadas coisas, mas por que estão em condições de fazê-las. Assim, por exemplo, não é difícil imaginar que grande parte dos adolescentes que freqüentam as escolas secundárias brasileiras dirá, se interrogada, que acredita ser necessária uma grande dedicação aos estudos para serem aprovados num dos vestibulares oferecidos por universidades prestigiosas. Isso não explica, porém, por que apenas alguns dentre eles dispõem-se, de fato, a realizar os sacrifícios necessários quando uma escolarização desse tipo lhe é acessível.

   Ao mostrar o pertencimento desses jovens a grupos sociais em ascensão, mas ocupando ainda posições dominadas na estrutura social da cidade, esta pesquisa apresenta uma das chaves para se compreender as condições que tornam possível a confiança que os adolescentes depositam no veredicto e nas diretrizes apresentadas por seus professores. Confiança essa que é o ponto de partida para o estabelecimento de uma relação de comunicação pedagógica eficaz.

    Mais especificamente, o estudo mostra a pertinência de se abordar as disposições que os alunos apresentam para com a escola como tributárias da história de toda uma família e da relação que o aluno mantém com essa história. Ao final, é possível pensar que aí está a pista para se compreender as condições que tomam possível a alguns, mas não a todos, utilizar determinados recursos materiais e simbólicos como capital cultural.

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Famílias de camadas médias e escolarização superior dos filhos O estudante-trabalhador
Geraldo Romanelli - Professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da USP.


Felicidade, passei no vestibular, mas a faculdade, ela é particu -lar, particular, ela é particular.... (Martinho da Vila)1.            

    A demanda por educação no país está relacionada a mudanças ocorridas em diferentes esferas da vida nacional, em particular, àquelas que conduziram à ampliação do sistema de ensino e à diversificação do sistema produtivo. Essa procura, no entanto, foi acompanhada pela redução do número de vagas no mercado formal de trabalho e pelo aumento da desigualdade social. Se o acesso à escola é concretizado por sujeitos específicos, o interesse em freqüentá-la é, em larga medida, organizado e planejado pela família, que visa proporcionar determinada escolaridade aos filhos e que, inclusive, pode ser beneficiada, simbólica e/ou materialmente, pelo êxito escolar da prole. Certamente, a influência da família na escolarização dos filhos depende de vários fatores, mas deve-se levar em conta que essa influência pode ser mais intensa em relação à freqüência ao ensino fundamental, reduzindo-se quando se trata do ensino médio e tomando-se menos atuante ainda quando se refere ao ingresso no curso superior.
  
 De qualquer modo, a relação da família com a escola é mediada por determinantes macroestruturais, fruto das pressões que o processo de modernização do país impõe ao sistema educacional e ao mercado de trabalho, e também por fatores de cunho microes-trutural, associados à organização da unidade doméstica e ao significado por ela atribuído à escolarização dos filhos.
    Este trabalho procura examinar e discutir algumas dessas questões, objetivando tornar a complexidade da relação família/escola um pouco mais inteligível2 e contribuir para se entender o modo como, em famílias das camadas médias, os filhos mobilizam-se para a obtenção de um diploma de curso superior.
   
Para tanto, é necessário considerar que o sistema produtivo passa a exigir, cada vez mais, determinado grau de escolaridade, mesmo para o trabalhador que desempenha atividades pouco qualificadas (Spindel, 1985). Essa pressão do mercado de trabalho também está associada a características específicas do processo de reprodução do capital, que acarreta alterações significativas nas formas de produção, que, por sua vez, incorporam novos aparatos tecnológicos. Mas, ao mesmo tempo que a exigência por maior grau de escolarização incentiva a procura pela educação formal, as mudanças no mercado de trabalho reduzem o número de empregos, tomando a competição ocupacional mais acirrada.
   
Nessas circunstâncias, o acesso aos vários níveis do sistema educacional depende da origem socioeconômica dos estudantes (Paul, 1989; Schwartzman, 1992), o que coloca em pauta as condições econômicas e culturais das famílias.

 2.Segundo Lévi-Strauss (1970), o conhecimento científico não consiste na substituição da complexidade pela simplicidade, mas na transformação de uma complexidade pouco inteligível em outra que é mais compreensível.
 
  Diversas pesquisas mostram que as famílias das camadas médias têm um grande empenho para que os filhos obtenham um diploma de curso superior (Almeida, Nogueira, Prado, nesta coletânea; Foracchi, 1965; Nogueira, 1995, 1998; Romanelli, 1986, 1995). No entanto, as camadas médias não constituem um universo social homogêneo, havendo segmentos diversos em seu interior, seja em função de condições socioe-conômicas, seja devido ao capital cultural de que dispõem. Por isso, os integrantes de cada segmento dessas camadas desenvolvem práticas específicas, objetivando o sucesso escolar dos filhos.
   
Daí ser necessário analisar a questão a partir de uma perspectiva macroestrutural, iniciando-se por uma apresentação, ainda que sintética, das transformações ocorridas no sistema de ensino superior, para proceder-se à avaliação do modo como pais e filhos de um segmento dessas camadas, que constitui o objeto deste trabalho, representam a escolarização superior.

1.            O SISTEMA DE ENSINO SUPERIOR E O MERCADO DE TRABALHO
 
  O crescimento econômico dos anos 50 e 60 produz a ampliação dos estratos médios urbanos. Inicialmente, a demanda por educação das famílias desses setores volta-se para a expansão do ensino médio da rede pública. Embora a satisfação dessa procura tenha ficado restrita a segmentos limitados da população, há um acréscimo expressivo no número de alunos que concluem o ensino médio e que constituem clientela para o ensino superior. Paralelamente a esse processo, o aumento de empresas privadas do setor terciário e o desenvolvimento concomitante de organizações estatais gera novo mercado de trabalho e amplia a quantidade de empregos, que exigem novas formas de qualificação profissional.
  
 Com a expansão acelerada das Instituições de Ensino Superior (JES), iniciada nos anos 60, cresce o número de matrículas, que passam de 107.509 em 1962 para 1.868.529 em 1996. O sistema de ensino superior conta com 922 instituições, das quais 136 são universidades, 643 são estabelecimentos isolados e 143 são federações e faculdades integradas (Dantas, 1998). Esse crescimento ocorre de modo desigual no país, pois, em 1996, a região sudeste abrigava 62,4% de estabelecimentos, a sul 13,2%, a nordeste 10,5%, a centro-oeste 10,2% e a norte apenas 3,7%. A distribuição regional desequilibrada é acompanhada por uma predominância de IES privadas em todas as regiões do país, que correspondem a 77% do total de estabelecimentos de ensino superior. Entre 1980 e 1996, ocorre um aumento das universidades estaduais, que passam de nove para 27, e das particulares, que, de 20, saltam para 64 (Dantas, 1998: 63).
 
  Os estabelecimentos de ensino superior privado são presididos pelas leis de mercado e, em sua maioria, oferecem cursos que não exigem investimentos de vulto para a implantação, e a qualidade da formação dos alunos fica subordinada a critérios de rentabilidade financeira. Também em sua maioria, o sistema empresarial de ensino oferece poucas possibilidades para a realização de atividades de pesquisa, o que inviabiliza a concretização do modelo de universidade previsto na legislação de 1968 e reafirmado no artigo 207 da Constituição de 1988, que estabelece a indissolubilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
  
 Desigualdade assemelhada à distribuição de estabelecimentos por regiões do país e pelos setores público e privado encontra-se na alocação dos alunos por IES. Nas instituições públicas, a clientela é predominantemente originária da classe dominante e de segmentos das camadas médias. Por isso, a universidade brasileira é considerada mesocráti-ca (Braga, 1989), já que é constituída por alunos originários, sobretudo, de diferentes segmentos das camadas médias. Essa predominância, no entanto, não é recente. Em estudo pioneiro sobre estudantes da Universidade de São Paulo (USP), realizado em 1963, Foracchi (1965) analisa a relação dos alunos com a família e com o mercado de trabalho e mostra que as camadas superiores, tradicionais freqüentadoras da universidade, são parcialmente substituídas pelos estratos médios em ascensão.

    Os dados obtidos indicam que, em 1963, 71% dos universitários provinham dos estratos médios e que 76% deles são a primeira geração a obter formação superior (Foracchi, 1965). Embora a pesquisa tenha sido feita em uma única instituição pública de ensino superior em que o ingresso era restrito a uma parcela reduzida da população, pois o número de vagas na USP era, e é, limitado, os dados testemunham um processo de transformação na clientela universitária.

   E essa clientela proveniente das camadas médias e da classe dominante que, segundo Foracchi, preenche 70% dos cursos mais seletos que exigem melhor formação no ensino fundamental e médio para que o aluno possa concorrer, com vantagens, ao vestibular das carreiras mais prestigiosas.

   Da clientela que freqüenta as universidades gratuitas e de maior reputação não fazem parte, a não ser como exceção, estudantes de famílias da classe operária. No conjunto da população brasileira, apenas 9% de jovens na faixa etária de 20 a 24 anos chegam à universidade. Esse percentual é bastante baixo, quando comparado com a proporção de jovens da mesma idade que cursam universidade não só nos países mais desenvolvidos, mas também na América Latina, como ocorre na Argentina, no Chile e no Uruguai (Dantas, 1998: 68).
  
 Além disso, um dos fatos mais significativos do redimensionamento das universidades é o aumento da participação feminina na clientela dos cursos superiores. Esse aumento deve ser relacionado ao conjunto de transformações ocorridas na sociedade brasileira, que abriram o mercado de trabalho para as mulheres e também às mudanças que revestem as representações sobre o sexo feminino.

    O aumento das matrículas nos cursos noturnos permite avaliar outra faceta importante das transformações no curso superior, como a presença de um alunado mais velho, já incorporado ao mercado de trabalho, para quem a qualificação profissional significa a oportunidade de avanço na hierarquia das empresas onde trabalha, ou a possibilidade de vir a procurar ocupação melhor de acordo com a nova habilitação. Sem dúvida, atualmente a universidade abriga uma clientela socialmente diversificada, mas essa mudança ocorre às custas da massificação do ensino, com uma maioria de estudantes que precisa trabalhar para estudar e que são, trabalhadores assalariados que eventualmente estudam (Braga, 1989: 6).

    Na realidade, esses estudantes são vítimas da estrutura dicotômica de funcionamento do sistema educacional, fundada em dois circuitos. Num deles, o circuito virtuoso, o estudante freqüenta o ensino fundamental e médio em escolas particulares e universidade pública; no circuito vicioso, o aluno percorre trajetória inversa (Souza, 1990/1991: 27). Esses percursos estão associados à situação social e financeira da família do estudante e condicionam tanto o ingresso na universidade quanto o futuro profissional do aluno.

   O número de matrículas no sistema de ensino superior continua a crescer em termos absolutos, mas a intensidade da expansão registrada na década de 60 foi substituída por relativa estagnação na década de 80, com aumento de 16% de ingressantes, que, no período de 1990 a 1993, cai para 3,5% (Dantas, 1998: 67).
  
 Se há crise no sistema universitário, que exige uma nova política educacional, nem por isso ele deixa de ser considerado como um valioso investimento para os jovens. Para uma parcela cada vez mais expressiva de estudantes, o que importa não é tanto a qualificação adquirida na universidade, mas a posse de um título que capacite formalmente o sujeito a concorrer no mercado de trabalho.

2.            FAMÍLIAS DE CAMADAS MÉDIAS E A ESCOLARIZAÇÃO DOS FILHOS
 
  Para se apreender como famílias das camadas médias pensam a escolarização dos filhos, é necessário examinar a relação família/escola.
 
  De modo geral, a família é unidade de reprodução social (Durham, 1983; Bourdieu, 1996; Singly, 1993) e, como tal, tem um papel determinante na manutenção da ordem social, na reprodução, não apenas biológica, mas social, isto é, na reprodução da estrutura do espaço social e das relações sociais (Bourdieu, 1996: 131).
 
  A reprodução social configura-se como processo de transmissão da herança familiar para os filhos, mediante difusão de diversos tipos de capital - simbólico, econômico, cultural, social, escolar -, processo por meio do qual se estabelecem vínculos entre gerações. Nesse sentido,
   
          [...] a família permanece um dos lugares de acumulação, de conservação e de reprodução de diferentes tipos de capital (Bourdieu, 1996: 177).
 
  Dentre os tipos de capital, o simbólico tem no nome de família seu elemento básico (Bourdieu, 1996), e pode-se associá-lo ao processo de nominação e de identificação pública da família. Desse modo, todos os possuidores do mesmo nome de família são incluídos em uma unidade coletiva, que se espraia além do âmbito da família, incorporando o conjunto de parentes portadores do mesmo sobrenome. Outros tipos de capital são: o econômico, constituído pelo patrimônio da família; o social, formado pela rede de relações estáveis com pessoas de prestígio; o cultural, incorporado mediante inculcação e assimilação de disposições duráveis; e o escolar, institucionalizado em formas de saberes escolares e objetivado nos títulos outorgados pela escola (Bourdieu, 1998A, 1998B).
 
  O capital econômico não é o patrimônio mais importante transmitido pela família; atualmente, o capital escolar e o dominante (Singly, 1993), o que explica o investimento das famílias na escolarização dos filhos. Certamente o valor atribuído a esse tipo de capital reporta-se ao fato de que ele qualifica o trabalhador para o mercado de trabalho. Cabe observar que, no presente, o capital escolar está sujeito à obsolescência precoce, em função das mudanças nos postos de trabalho, e precisa ser constantemente renovado, o que cria novos nichos para o sistema de ensino - sobretudo para o particular - oferecer mercadorias educacionais para reciclagem profissional.
   
A reprodução social da família não envolve apenas a transmissão de diferentes tipos de capital, mas inclui ainda auxílio material que os pais dão aos filhos para ajudá-los, de forma direta ou indireta, e que hoje se prolonga com o aumento da escolaridade (Sega-len, 1999). Tal auxílio inclui apoio material e financeiro e troca de bens e serviços (Sega-len & Zonabend, 1999).
 
  O fato de se considerar a família como unidade de reprodução social não significa tomá-la como instituição encarregada da mera reposição de estruturas estruturadas, mas enquanto grupo de convivência que pratica estratégias específicas que se referem a estruturas estruturantes (Bourdieu, 1996), que não repõem apenas o instituído. O caráter estruturante da família emerge na tomada de decisões, quando ela se abre para inovações necessárias, a fim de enfrentar novas dificuldades. Aqui, é necessário incluir o conceito de estratégia, que não é ação inconsciente, tampouco fruto de cálculo racional e consciente, mas envolve invenção permanente, indispensável para se adaptar a situações indefinidamente variáveis, jamais perfeitamente idênticas (Bourdieu, 1987: 79).

   Dentre as estratégias de reprodução encontram-se as escolares, que se referem ao investimento feito pelos pais para encaminhar os filhos para escolas e cursos adequados à manutenção e ampliação da posição social da família (Singly, 1993). Mas, como adverte Singly (1993), as estratégias não têm o condão de produzir efeitos imediatos e, sobretudo, positivos. Nesse sentido, é importante avaliar as condições de transmissão do capital cultural e escolar da unidade doméstica, já que esta nem sempre consegue construir os dispositivos familiares que possibilitariam “transmitir" alguns de seus conhecimentos ou algumas de suas disposições escolarmente rentáveis, de maneira regular, contínua, sistemática. É por essa razão que, com capital cultural equivalente, dois contextos familiares podem produzir situações escolares muito diferentes... (Lahire, 1997: 338).

    Lahire mostra ainda que a explicação do sucesso ou do fracasso escolares não deve ser imputada a um fator isolado ou mesmo a determinada forma de investimento familiar, tomada como modelo. Antes, explicações possíveis são encontradas no modo como, no seio de uma configuração social específica, os indivíduos vivem em relação de interdependência e adquirem diversos tipos de capitais. O conceito de configuração social, central na reflexão de Lahire (1997: 39-40), consiste no conjunto dos elos que constituem uma “parte” (mais ou menos grande) de realidade social concebida como uma rede de relações de interdependência humana.
   
No entanto, se a família age como sujeito coletivo (Bourdieu, 1996), não se pode desconsiderar que, enquanto grupo, a unidade doméstica é constituída por pessoas que são, igualmente, sujeitos individuais. Nessa condição, estes podem voltar-se inúrrferas vezes contra as determinações de cunho coletivo, escolhidas pelos pais. Assim, em determinadas circunstâncias, as forças de fusão, que convergem para ordenar o que é considerado de interesse coletivo, superam as de fissão, que são geradas e postas em ação por sujeitos individualizados (Bourdieu, 1996). Desse modo, é possível postular que as forças de fusão configuram-se como fundamento do familismo, que suplanta os interesses particulares de indivíduos. Inversamente, as forças de fissão são extremamente atuantes e poderosas, já que remetem à luta pela autonomia de sujeitos individuais que se contrapõem | à família como sujeito coletivo. Quando essas forças predominam, temos a emergência | do individualismo no interior da família.

De modo geral, familismo e individualismo não se excluem, mas convivem de modo tenso e conflitante na cena doméstica. Assim, pode-se argumentar que a ação dos pais não é soberana e encontra seu limite na reação dos filhos ’ às tentativas de controle e imposição dos genitores.

     A problemática da reprodução social e da transmissão cultural coloca em pauta não apenas a família, mas a instituição escolar, outra agência fundamental nesse processo. Porém, é necessário estabelecer a especificidade de cada uma dessas instituições. Como afirma Bourdieu (1996), o capital simbólico e o social só podem se reproduzir pela família. Já a escola é difusora do capital escolar, que contém saber genérico e também específico, e que, em princípio, capacita seu portador para o mercado de trabalho. Cabe aqui uma observação: embora a escola não seja transmissora de capital social, ela constitui local importante para os alunos construírem uma rede de relações que pode ser extremam ente importante na vida profissional, complementando o capital social da família (Romanelli, 1995).
 
   Entre as duas instituições, há ainda outra distinção, referida ao modo como se dá a transmissão de informações. Na família, a difusão de diferentes formas de capital ocorre no interior de um conjunto de formas de sociabilidade eminentemente personalizadas e impregnadas de afetos, tenham eles uma dimensão positiva ou negativa, ou, o que é mais comum, uma combinação ambígua desses aspectos. De fato, os filhos têm um valor afetivo para com os pais (Salem, 1980), que, certamente, é variável em função da ordem de nascimento, do gênero, das particularidades e idiossincrasias dos envolvidos, da posição no ciclo do grupo doméstico, que se refere à idade, à experiência adquirida, à maturidade, à escolaridade.
 
   Desse modo, como Bourdieu (1996) esclarece, a economia doméstica é regida pela lógica do amor, já que a troca entre gerações é transfigurada pela piedade filial, pelo amor, assim como por empréstimos monetários que os país concedem aos filhos, sem esperar retribuição. Essa dimensão da afetividade e de sua importância na transmissão e incorporação do capital cultural e escolar também está presente nas análises de Rochex (1995), de Lahire (1997), de Segalen & Zonabend (1999).
 
   O estudo de Lahire (1997) trata das possibilidades de sucesso escolar de crianças pertencentes a famílias dos meios populares de Lyon. Embora as relações socioafetivas não assumam papel relevante na pesquisa, ainda assim Lahire aponta, mesmo que tangencialmente e em situações específicas, a importância desses vínculos entres pais e filhos para o bom desempenho escolar destes:
 
             O apoio moral, afetivo, simbólico se mostra tanto mais importante quanto sejam pequenos os investimentos familiares (por exemplo, o caso dos pais analfabetos). Ele possibilita à criança sentir-se investida de uma importância exatamente por aqueles de quem ela está em via de separar-se (Lahire, 1997: 172).

    Já Segalen & Zonabend (1999) colocam a importância da troca entre parentes, o que cria uma sociabilidade familiar, caracterizada pelo encontro entre os componentes da família, favorecendo a ajuda que os mais velhos dão às gerações mais novas.

    De todo modo, a afetividade transparece na relação dialética entre objetividade e subjetividade, apontada por Rochex (1995), a partir da análise das trajetórias escolares de adolescentes da periferia de Paris. Esse autor traz uma contribuição que articula fatores sociais e subjetivos, expressa no que denominou tríplice autorização. Esse fenômeno assenta-se na negociação entre pais e filhos em torno de hábitos culturais distintos e conflitantes, incluindo-se a maneira como cada um deles avalia a escola. Esse fato manifesta-se quando os filhos autorizam-se, “sem grandes dificuldades subjetivas” (Rochex, 1995: 260), a ser diferentes dos pais, aceitando-os como eles são, embora não reproduzam suas histórias de vida. Os pais, por sua vez, de modo simbólico, igualmente autorizam os filhos a concretizarem suas escolhas. Esses últimos, em retomo, reconhecem a legitimidade da história dos genitores e de suas práticas.
 
  Essa negociação coloca pais e filhos diante da alteridade, que pode resultar de experiências como a imigração, como é o caso de adolescentes estudados por Rochex, ou de mudança no capital cultural de duas gerações. A solução para os impasses gerados pela alteridade encontra-se na aceitação mútua e respeitosa dos anseios do outro:
  
                 E o reconhecimento, de cada um - pais e filhos de que a história do outro é legitima, sem que seja a sua, que toma possível este fenômeno de tríplice autorização e permite que, por meio dos filhos, a história da família prossiga sem se repetir, e que isto ocorra sem práticas nem conflitos graves e insuperáveis (Rochex, 1995: 261).
  
 Tal modalidade de negociação intergeracional - que nem sempre ocorre de modo harmonioso - constitui uma poderosa força subjetiva de mobilização escolar, já que significa autorização parental e do filho pata que esse último possa ir além das conquistas escolares dos pais e escolher um modo de vida próprio, sem desqualificar o dos genitores, conjugando mudança e permanência.
  
 A partir da tríplice autorização, jovens podem deixara família (Rochex, 1995: 260) sem renegá-la e sem que o êxito na escola seja apreendido como oposição à história dos pais. Mais importante ainda é o fato de que o processo de emancipação dos jovens depende da apropriação da história e dos projetos familiais, que constituem marcos importantes para construção de sua identidade. Esse processo de conquista de autonomia e de emancipação, em vez de desencadear a ruptura com a família de origem, permite efetuar a reprodução social em outros moldes,- incorporando alternativas inovadoras para organizar projetos de escolaridade e de mobilidade social.
 
  Nessas circunstâncias, é como grupo efetivo de convivência, permeado por relações afetivas, que se pode examinar como, em segmentos específicos das camadas médias caracterizados pela posse de reduzido capital econômico, cultural e escolar, pais e filhos mobilizam determinadas estratégias para que estes se tomem estudantes universitários. Tomando-se como referência os trabalhos de Foracchi (1965) e de Spósito (1989), os estudantes, universitários ou não, são divididos em três categorias em função de sua inserção no sistema escolar, que pode ocorrer paralelamente a sua incorporação no mercado , de trabalho. Assim, o estudante totalmente mantido pela família, sem participação no j mercado de trabalho, podendo dedicar-se exclusivamente ao estudo, é classificado como es tudanteem tempo integral. Quando o estudante trabalha, mas continua a ser parcialmente mantido pelos pais, mesmo que o auxílio familiar limite-se a fornecer moradia e alimentação, é denominado estudante-trabalhador. Finalmente, quando a família não tem recursos financeiros para arcar com a manutenção, total ou parcial do filho, ele é classificado como trabalhadorestudante.

Para o universitário incluído nas duas últimas categorias, o curso superior representa um investimento de vulto, pela necessidade de conciliar trabalho e estudo, pelo pouco tempo livre que reduz as oportunidades de lazer e de repouso, além do que, em muitos casos, deve arcar com o pagamento do curso.

Não obstante, esse investimento é considerado compensador, pois qualifica a força de trabalho, possibilitando ao portador competir por empregos melhor remunerados, j- ] Ainda mais, para muitos jovens - e também para adultos já profissionalmente integrados em determinadas empresas - o diploma de curso superior é necessário para ascenderem na organização em que trabalham, mesmo quando o capital escolar não tem relação direta com as tarefas que devem desempenhar.

      Ora, é justamente o aumento do sistema de ensino superior privado, que, ampliando o número de vagas sobretudo nos cursos noturnos, cria oportunidade para uma clientela proveniente de famílias de segmentos das camadas médias com parcos recursos em termos de capital econômico, cultural e escolar, ingressar no terceiro grau.

 3. O ESTUDANTE-TRABALHADOR E SUA FAMÍLIA
 
     Para se proceder à reflexão sobre a relação família/escola, apresentam-se dados resultantes de pesquisa realizada com estudantes de uma instituição particular de ensino superior de Ribeirão Preto no estado de São Paulo. A cidade, com cerca de 480 mil habitantes, tem cinco estabelecimentos privados de ensino superior e seis unidades no campus de uma instituição pública - a Universidade de São Paulo (USP) - para atender à população local e inúmeros estudantes provenientes de outros municípios do estado e, em menor grau, do país. Dessa clientela, deve-se considerar um grupo que fixa residência na cidade e outro que se desloca diariamente para freqüentar os cursos noturnos das escolas privadas e os três oferecidos pela Faculdade de Economia e Administração da USP. Este último grupo desloca-se de suas cidades para Ribeirão Preto, às vezes percorrendo distâncias superiores a 80 quilômetros, em transporte próprio ou coletivo, em veículos especialmente fretados para isso3. A ampla movimentação de estudantes em direção a Ribeirão Preto, pólo aglutinador de serviços nas áreas de educação, saúde e comércio da região nordeste do estado de São Paulo, deve ser confrontada com o fluxo inverso de
universitários que deixam a cidade à noite em busca de cursos em escolas privadas ou públicas de outras cidades da região.

   A amostra selecionada para a pesquisa é constituída de dez estudantes-trabalhado-res solteiros4, do curso noturno de um estabelecimento particular de ensino superior indicado pelo nome fictício de Faculdades Alvorada, sendo cinco de cada sexo, entre 18 e 25 anos, distribuídos pelos seguintes cursos: quatro de Ciências Biológicas (dois do sexo feminino e dois do sexo masculino), três de Letras (dois do sexo feminino e um do sexo masculino) e três de Matemática (um do sexo feminino e dois do sexo masculino). Sete desses universitários moram em Ribeirão Preto e três residem em Brodósqui, Batatais e Morro Agudo, cidades que distam, no mínimo, 30 e, no máximo, 80 quilômetros da localidade onde estudam.

    Examinando-se os dados referentes à idade dos genitores dos estudantes, nota-se que os pais encontram-se na faixa etária entre 42 e 59 anos, enquanto as mães têm entre 42 e 61 anos. Dos pais, um tem curso superior, outro concluiu o ensino médio e oito freqüentaram o ensino fundamental sem concluí-lo. Entre as mães, duas completaram o ensino médio e oito freqüentaram, mas não terminaram, o ensino fundamental. Os indicadores referentes ao grau de escolaridade de pais e mães mostram que ele é bastante similar, revelando a posse de um capital escolar relativamente homogêneo.
 
  Todos os pais exercem atividades não-manuais no setor terciário, havendo um gerente de loja, um administrador comercial, três proprietários de pequenos empreendimentos -um lava-rápido, uma fábrica de móveis e uma loja - quatro escriturários do setor privado e um policial militar que também é proprietário de duas grandes lojas. Das mães, oito são do-nas-de-casa, uma é professora do ensino fundamental e outra é costureira.

    Em oito famílias, o pai é o único provedor da renda familiar, já que as esposas não têm rendimentos, e nenhum dos filhos, embora tenham rendimento, contribui para o orçamento doméstico. Em quatro famílias, o rendimento dos pais atinge cinco salários mínimos, em outras quatro situa-se entre cinco e dez, em uma está entre 10 e 15, havendo uma única - a do policial que também é proprietário5 - que ultrapassa 15 salários mínimos. Tendo como referência a escolaridade e o rendimento dos pais, essas famílias podem ser classificadas como portadoras de reduzido capital escolar e econômico, com exceção de F-A.
 
  Todos os estudantes começaram a trabalhar bastante cedo, entre 13 e 19 anos, em atividades do terciário, como serviços gerais de escritório (cinco), balconista (um), vendedor (um), professora do ensino fundamental (duas), professor e proprietário de escola de inglês (um).

    As características sociais desses estudantes e de suas famílias são bastante assemelhadas às dos alunos de uma faculdade particular de São Paulo, estudada por Spósito (1989). Essa autora mostra que a escola superior noturna é freqüentada por alunos que são assalariados do terciário, trabalhando principalmente como auxiliar de escritório, bancário, professor, vendedor, balconista e em outras atividades similares do setor priva-
do ou do setor público. A clientela e formada por unis maioria dc Gstudíintcs na faixa etá-ria de 18 a 25 anos - 71,28% da amostra predominantemente solteiros e o grau de escolaridade da maioria dos pais é o antigo primeiro grau incompleto (Spósito, 1989).
    Os relatos dos universitários das Faculdades Alvorada indicam que o início precoce no mercado de trabalho não resulta de pressão parental explícita para contribuírem para as despesas domésticas. Porém, os pais incentivam os filhos a se tomarem trabalhadores, o que ocorre após a conclusão do ensino fundamental, quando eles têm cerca de 14 ou 15 anos, alegando que isso contribui para a maturidade. É como se os pais deixassem implícito que, a partir desse momento, não são mais responsáveis pela satisfação de todas as necessidades dos filhos, continuando a assegurar-lhes moradia, alimentação e, às vezes, indumentária, mas não provendo os demais gastos, sobretudo aqueles com lazer. Os filhos, por sua vez, incorporam essa orientação paterna. As falas abaixo expressam essa postura parental e filial:
 
                 Eles [pais] incentivaram, porque, segundo meu pai e minha mãe, eles pensam o seguinte: que se você tem vontade de trabalhar, vai trabalhar, entendeu? Porque se você, segundo eles, desanima a pessoa de trabalhar, de repente ela vai querer sempre ficar na boa-vida. Então, quer trabalhar, vai trabalhar, vai ver como é o negócio. (Marcos, segundo ano do curso de Matemática, começou a trabalhar com 14 anos.)
 
                Comecei a trabalhar com 15 anos. Opção própria, uma independência econômica, né, não teve nenhum aspecto de imposição familiar ou pra ajudar no orçamento de casa. Eu trabalhei por opção mesmo. (Edgar, segundo ano do curso de Ciências Biológicas.)
 
  Essa estratégia para o ingresso dos filhos no mercado de trabalho e as autorizações que a acompanham fazem parte do capital cultural de famílias de um segmento das camadas médias, para as quais a divisão etária do trabalho funda-se em princípios que, justamente por estarem implícitos, não são enunciados de modo claro. A estratégia de pais e mães para encaminharem os filhos para o trabalho assume um caráter de naturalidade, de tal modo que os próprios filhos incorporam o que já está previsto como se fosse fruto de sua decisão. Dessa forma, o anseio de autonomia dos filhos, que implica valorização de aspirações individuais, pode conviver com o familismo parental.
 
  Como os dados das entrevistas revelam, a entrada no mercado de trabalho - que, em geral, coincide com o ingresso no ensino médio - não é considerada incompatível, nem pelos filhos, nem pelos pais, com a continuidade dos estudos. Pelo contrário, os genitores estimulam os filhos a darem prosseguimento à escolarização.

   Se os filhos não colaboram com as despesas domésticas, o fato de proverem parte de suas necessidades reduz os gastos parentais com eles e permite que recursos financeiros domésticos sejam investidos na aquisição de outros bens que podem melhorar o padrão de vida familiar. Além do mais, a orientação parental para que os filhos iniciem a atividade produtiva não significa que os pais não contribuam financeiramente para as despesas, sobretudo, quando se trata de gastos diretos ou indiretos com a educação.
 
  Nessas circunstâncias, a estratégia dos pais expressa-se na autorização - situada no plano subjetivo - concedida aos filhos para que eles mudem de posição na família, deixando de ser apenas consumidores, passando a provedores de parte de suas necessidades e, simultaneamente, continuando a freqüentar a escola. Ao papel de estudante improdutivo, os filhos acrescentam o de trabalhador produtivo, duplicando seu papel não apenas no espaço privado da família, mas igualmente na esfera pública e convertem-se em estudantes-trabalhadores. Os filhos endossam a autorização parental e se autorizam a ser estudantes-trabalhadores, já que eles próprios desejam independência financeira em relação aos pais e autonomia para tomar decisões concernentes à realização das aspirações. A essa dupla autorização que abre caminho para o novo, deve-se acrescentar que os filhos também autorizam os pais a preservarem seu modo de vida, mantendo, desse modo, a relação dialética entre mudança e permanência. Estratégia paterna e prática dos filhos assentam-se na tríplice autorização (Rochex, 1995) que, nesse caso, tem como pressuposto implícito a compatibilidade entre trabalho e estudo.

    E fundamental considerar que se trata de um momento de transição extremamente significativo para pais e filhos, verdadeiro ritual de iniciação, já que esses últimos começam a viver o processo de construção de independência financeira e de autonomia face à unidade doméstica. Nessa etapa do processo de reprodução social da família, os filhos adquirem não apenas um novo papel, mas uma nova identidade pessoal, a de trabalhador, que vem juntar-se a outras, redefinindo sua identidade social (Goffman, 1978). Essa fase de transição constitui a primeira etapa do processo vivido pelos filhos, quando eles começam a deixara família (Rochex, 1995), sem que isso implique o abandono da família de origem.
  
 Mas, acima de tudo, o ingresso no mercado de trabalho assegura independência financeira - na verdade, sempre relativa, já que os filhos continuam a ser parcialmente mantidos pelos pais -, permitindo a eles ampliarem a possibilidade de negociar as decisões parentais. E assim que o trabalho assume uma dimensão positiva para esses universitários:

                   Ah [motivo para começar a trabalhar), pra ficar mais independente. Apesar... tanto financeiramente quanto em outras partes... não ter que dar tanta satisfação. Tem né, porque você tá morando junto, sempre tem que dar, né? Mas não tanto. (Fabiana, segundo ano do curso de Ciências Biológicas.)    
  
 A fala de Fabiana é bastante sugestiva, pois revela que a independência financeira, por ser relativa, não acarreta, como contrapartida imediata, autonomia completa em relação ao controle familiar, mas reduz as modalidades de interferência dos pais, aumentando o espaço de liberdade individual.
   
O primeiro emprego é conseguido pela mobilização de contatos pessoais, isto é, utilizando-se o capital social da família, prática bastante co»num na sociedade brasileira, ainda regida por relações personalistas (DaMatta, 1985).
  
 Os salários recebidos pelos estudantes são reduzidos: três recebem até três salários mínimos, três até três e meio, um ganha quatro, dois alcançam quatro e meio e o último, professor de inglês e proprietário de uma escola de ensino médio profissionalizante, consegue rendimentos que atingem dez salários mínimos.
   
 Despesas pessoais, incluindo-se pagamento de mensalidade escolar, transporte? lazer, roupas, eventuais refeições fora de casa, consomem a maior parte dos rendimentos dos universitários. Considerando-se o salário recebido pela maioria deles e que o valor da mensalidade dos diferentes cursos situa-se em torno de dois salários míninos, torna-se claro que seus ganhos cobrem despesas básicas. Essa situação é mais grave para três universitários que viajam diariamente de três cidades, Brodósqui, Batatais e Morro Agudo, o que amplia gastos com transporte e alimentação e reduz o tempo de repouso e estudo.

   Não obstante o salário reduzido, os universitários declaram estar, em parte, satisfeitos com o trabalho, quando o avaliam como fonte de recursos que lhes assegura relativa independência financeira. Outro fator que contribui para essa representação dos estudantes resulta da apreciação do emprego atual, considerado como ocupação provisória que poderá ser substituída por outra, quando concluírem o curso superior.

4.            O INGRESSO NA UNIVERSIDADE
 
  A escolha do curso resulta do interesse do estudante por determinada área de conhecimento e da profissão a ela associada, da avaliação das profissões e do mercado de trabalho, das condições financeiras para arcar com custos diretos e indiretos da escolarização, das informações de que dispõe sobre as instituições de ensino, das orientações, explícitas ou indiretas, recebidas da família e das possibilidades de contar, mesmo eventualmente, com o suporte material dos pais. Depende, portanto, de uma configuração de fatores (Lahire, 1997), multiplamente articulados, que incluem ainda o capital cultural e escolar dos alunos. Esse último é considerado, por eles próprios, insuficiente para concorrerem aos vestibulares das universidades públicas e de maior prestígio. A carência desse capital advém, pelo menos em parte, do fato de esses estudantes terem percorrido o circuito uicioso (Souza, 1990/1991), trajetória pouco propícia para prepará-los para a competição nos exames vestibulares de estabelecimentos públicos, cujas exigências são, reconhecidamente, muito maiores do que as que imperam em escolas privadas6. A única exceção é uma estudante aprovada no vestibular para o curso de Letras da USP, em São Paulo7, mas que não pôde matricular-se devido aos problemas financeiros da família. Posteriormente, prestou exame vestibular e foi aprovada para o mesmo curso nas Faculdades Alvorada.

E a partir da apreciação bastante objetiva dessas desvantagens pessoais e financeiras, que limitam as aspirações de ingresso no ensino superior, afastando a pretensão de concorrer a uma vaga nas universidades públicas, que esses estudantes encaminham-se para as instituições privadas, acerca das quais têm informações bastante precisas, inclusive sobre o valor da anuidade. Assim, a opção do estudante é inseparável da avaliação do custo financeiro, e as Faculdades Alvorada são escolhidas, basicamente, em função de sua anuidade ser mais baixa do que a praticada pelas demais instituições da cidade. Outros motivos agregam-se a este, como o fato de a escola ser próxima da residência, a falta
de opção ou ainda porque a faculdade é mais humana, como está expresso nas falas de alguns universitários:
    
              Porque era mais acessível pra mim, né? Preço também, porque era mais moderado em relação a outras escolas de Ribeirão Preto... Aqui, já é uma escola um pouco mais humana. (Edgar, segundo ano do curso de Ciências Biológicas.)
      
             Pelo preço. É, a primeira coisa foi pelo preço, sim. (Carlos, segundo ano do curso de Matemática.)
         
          Falta de opção... Minha vontade era fazer Tradução e Interpretação. Mas escolhi as [Faculdades] Alvorada porque era a mais barata. (Fernando, terceiro ano do curso de Letras.)

    Fora os motivos alegados acima, nenhum universitário menciona a qualidade dos cursos oferecidos, valorizando, em primeiro
lugar, os aspectos informais da instituição.

    Na verdade, se há escolha, essa parece ser feita levando-se em conta o custo da anuidade cobrada pela instituição. Só então o candidato ao vestibular escolhe um curso em função de sua vocação (Schwartzman, 1992) - ou que mais se aproxime dela - isto é, que possibilite aliar o conhecimento adquirido na faculdade ao exercício da profissão desejada. A escolha, portanto, é feita no interior das grandes áreas de conhecimento das ciências exatas, biomédicas e das humanas e sociais. Dos dez universitários, quatro declaram ter ingressado no curso escolhido; quatro argumentam que não tiveram oportunidade de exercer sua opção e dois matricularam-se em um curso assemelhado ao que desejavam fazer. Alguns relatos permitem vislumbrar os motivos da escolha por determinado curso:
     
              Porque eu gosto de exatas, eu sou apaixonado por exatas. Agora eu escolhi licenciatura, entendeu, porque eu poderia ter saído por $í fazer bacharelado, porque eu pretendo dar aula. (Marcos, segundo ano do curso de Matemática.)
     
             É o mais próximo do que eu gosto de fazer. Queria fazer Engenharia. E hoje eu dou mais valor, sabe? Quando eu entrei, eu não entrei assim, ah, vou fazer esse curso. Mas a partir do momento que você começa a fazer e íai se interessando.... (Carlos, segundo ano do curso de Matemática.)
    A satisfação com o curso pode ainda ser aferida pela aspiração que os universitários têm em relação ao futuro, pois quatro declaram que, após a conclusão, farão outro curso de graduação, a fim de satisfazer sua vocação. Todos os universitários - mesmo os que almejam fazer outro curso - declaram ter a expectativa de que a formação acadêmica os habilite a exercer o magistério de ensino médio. De fato, os cursos escolhidos qualificam preferencialmente para o magistério, embora existam outras possibilidades de profissionalização, como lembram os próprios universitários.
Pode-se ainda confrontar a escolha do curso com o trabalho que realizam. Apenas três estudantes - duas professoras de ensino fundamental e um estudante proprietário de uma escola - declaram estar satisfeitos com o trabalho; os demais expressam insatisfação com as atividades desempenhadas no emprego. Quando inquiridos sobre a possível vinculação entre trabalho e curso, somente as duas professoras respondem afirmativa-
mente, declarando haver conexão entre ambos. Mesmo o aluno que é proprietário de escola relata que sua atividade não tem relação com o curso.
  
 A essa insatisfação com o trabalho no presente corresponde a expectativa de realização profissional e de melhoria financeira no futuro, após a conclusão do curso, quando os alunos estiverem formalmente habilitados a exercer o magistério.
  
 Quanto à avaliação do curso, há uma oscilação entre aqueles que estão satisfeitos e os que têm postura crítica. Os primeiros apontam como indicadores positivos as facilidades oferecidas pela instituição, que sempre atende suas reivindicações:
                  Acho que existem cursos mais fracos, né, acho que o das Alvorada, eu acho que é um bom curso, um curso que prepara, que puxa pro lado humano, né, que a imagem que se tem do matemático, que eu tive quando era aluno, assim de ginásio e de colégio, a imagem que eu tinha do professor de matemática era de uma pessoa fria... Pô, não é nada disso, né, professor é frio, porque ele quer ou porque a faculdade que o forma, que o faz assim, né? Então, eu acho que as Alvorada não te torna frio, eu acho que esse clima de calor, sabe, de calor que ela te dá. (Marcos, segundo ano do curso de Matemática.)
 
  As críticas reportam-se à qualidade do ensino, à deficiência da biblioteca, à carência de equipamentos nos laboratórios, à ausência de vida acadêmica:
   
              Eu acho que eu não posso esperar muito de um curso noturno, porque a gente trabalha e um curso noturno, o máximo que ele pode oferecer é um mínimo de aulas. Mas, eu, lógico que gostaria que tivesse mais, assim, atividades extracurriculares, mais debates, seminários, mais palestras, mais assim... uma vida acadêmica. Mas a gente sabe que isso não é possível pelo fato de ser um curso noturno, por 90% dos alunos trabalharem o dia todo e muitos deles serem de fora e no fim de semana quererem descansar. Então, não dá pra você exigir de uma pessoa que trabalha o dia todo e estuda à noite e mora fora, ficar aqui no sábado também pra ter uma atividade extracurricular. (Mariana, terceiro ano do curso de Letras.)
       
            Tem muitas falhas, bastante falhas, mas o curso... há professores bons, excelentes professores, tentam fazer do curso um bom curso, algumas vezes tem falha. Falta de organização, mal aparelhamento da faculdade. Eu acho que há certas coisas que a faculdade deveria oferecer como um laboratório de línguas, isso não tem, biblioteca, não tem uma biblioteca boa. Então, eu acho que se você quer montar um bom curso você tem que dar condições pro aluno prosseguir nesse curso. (Fernando, terceiro ano do curso de Letras.)
 
  Por sua vez, a apreciação da instituição é semelhante à do curso. Embora estribada em uma aparente apreciação das relações de poder existentes em seu interior, o que se nota é a valorização das facilidades que ela oferece aos alunos:
    
         A faculdade, ela é uma faculdade muito democrática. Você tem liberdade de falar o que você pensa, você tem liberdade de expor seus problemas, ela [a faculdade] sempre nos ouve e na medida do possível a gente, eu vejo que eles tentam fazer sempre aquilo que é necessidade para os alunos, né? Não digo quanto à mensalidade, porque, quanto à mensalidade, você já toca num problema mais delicado, mas, no problema do conteúdo programático da faculdade, eles estão sempre prontos pra atender às solicitações dos alunos. (Joaquim, segundo ano do curso de Ciências Biológicas.)

Assim, as características percebidas como positivas remetem ao aspecto informal dos cursos e da instituição, enquanto as críticas são endereçadas à qualidade de ensino, que é percebido como insatisfatório.

    Outro dado apontado como positivo é a relação com os professores, considerados como amigos, próximos, sempre disponíveis a resolver dúvidas e problemas das matérias específicas:
                    Os professores são assim superliberais, deixam você brincar na aula, que tem uma oportunidade de chegar com o professor e bater um papo com ele. (Edgar, segundo ano do curso de Ciências Biológicas.)
      
           O curso de Matemática das Alvorada é mais humano... Tem um ponto assim que faculdade nenhuma de Ribeirão tem, é o contato próximo, nós temos amizade com os professores, né? Por exemplo, se não tem aula e a gente for prum barzinho e chamar o professor, o professor vai, entendeu? Então, não é aquela coisa, no [outro estabelecimento da cidade] é mais frio, né? Aqui é mais humano, sabe, te dá a impressão de que você ainda tá no colégio, por exemplo, a minha classe é superu-nida. (Marcos, segundo ano do curso de Matemática.)

    E interessante comparar essa postura com a dos alunos da USP, que julgam os professores a partir de sua qualificação e competência científicas* deixando em segundo plano os atributos pessoais. O elemento mediador para os alunos se aproximarem dos professores é o interesse pelas pesquisas que esses desenvolvem e nas quais os alunos se engajam, inclusive com bolsas de iniciação científica (Romanelli, 1995). Certamente, a proximidade com docentes também é valorizada, mas a transição para o plano das relações personalizadas e informais ocorre pela mediação da atividade científica.

    De uma perspectiva contrastiva, toma-se como referência o modo como os estudantes apreciam a universidade pública. A maior parte dos estudantes da USP - e, pode-se supor, das demais instituições públicas - ingressa na universidade com uma representação bastante clara de sua importância na pesquisa e na produção de conhecimento. Essa percepção integra o conjunto de representações sobre as universidades públicas -mesmo considerando-se a campanha desencadeada contra elas por alguns setores da sociedade brasileira - e ancora-se no significado positivo da importância do conhecimento para o desenvolvimento da sociedade e também para a ascensão pessoal de indivíduos específicos (Romanelli, 1995). Dito de outro modo, essa representação funda-se em uma concepção de universidade como produtora e transmissora de conhecimento científico, fundamento e pressuposto do progresso individual e social. Já os alunos das Faculdades Alvorada têm uma representação sobre ela, antes mesmo de seu ingresso, como instituição transmissora, e não produtora de conhecimento, que é fruto da pesquisa. Tampouco, os serviços de extensão à comunidade são percebidos como uma das funções constitutivas das instituições universitárias. De fato, como as Faculdades Alvorada são um estabelecimento isolado, a própria concepção de universidade não faz parte da percepção desses alunos.

    De qualquer modo, quando comparam a escola que têm condições de freqüeriiar com as instituições públicas, às quais não têm acesso, esses universitários percebem a exclusão a que estão sujeitos no sistema de ensino e, conseqüentemente, no mercado de trabalho. É nessa situação que assoma com clareza uma exclusão que não é apenas escolar, mas que também faz parte da história da família de origem e que eles procuram não reproduzir, lutando para conseguir o diploma de ensino superior:
 
Porque, por mais que pessoa tenha uma boa situação financeira, ela tá se privando de alguma coisa pra fazer a faculdade, entendeu? Ela poderia tá fazendo outra coisa com esse dinheiro, poderia se ela não quisesse, não estar gastando com a faculdade. Então, eu acho assim, é, independente da situação financeira da pessoa, é um sacrifício estudar. (Adriana, quarto ano do curso de Ciências Biológicas.)

Aí há uma inversão. Eu freqüento uma faculdade particular, sou de classe média baixa. Eu deveria estar freqüentando uma escola estadual. Só que quem tá freqüentando lá é a classe alta, é a elite. (Fabiana, segundo ano do curso de Ciências Biológicas.)

No segundo depoimento, Fabiana esclarece seu autopertencimento de classe ao mesmo tempo que explicita o sentimento de exclusão.

Todavia, o recurso para tentar superar a desigualdade socialmente construída encontra-se no plano das iniciativas individuais, como o relato abaixo deixa entrever:

 Olha, eu acho que qualquer curso prepara o aluno a partir do momento que ele se prepara, porque quem faz seu curso é você mesmo, tá? A escola apenas te orienta da melhor maneira possível e é você que vai fazer seu curso, você que vai fazer sua formação. (Roberta, terceiro ano do curso de Letras.)

A fala acima é esclarecedora do modo como os estudantes concebem a ação da universidade. Considerada como instituição que orienta da melhor maneira possível, a função da universidade fica limitada à transmissão de saber, cabendo ao estudante, no plano individual, concretizar essa orientação. Na percepção dos estudantes, cabe ao indivíduo, exercendo a competência por ele adquirida, atuar como elemento nivelador de desigualdades socialmente construídas, superando-as mediante seu empenho. Nesse caso, a ideologia de ascensão pelo esforço individual, ou mais propriamente, pelo trabalho, encontra eco e é plenamente incorporada por esses universitários.

 Apesar das críticas, os estudantes avaliam de modo positivo o ingresso na universidade, e todos apontam a riqueza de experiências, a diversidade de relações, a ampliação no modo de avaliar a realidade, que são fruto da aquisição de formas de saber. E o que pode ser constatado no depoimento de um aluno:
 
 Eu me sinto mais enriquecido na parte de cultura. Relacionamento também com as pessoas mudou, né, você se relaciona muito melhor. Vamos supor... eu tive um ano de Psicologia, Didática também. Isso ajudou bastante, porque hoje, no meu próprio emprego, eu uso isso. (Carlos, segundo ano do curso de Matemática.)
Embora apontem falhas no curso e no funcionamento da faculdade, ainda assim os universitários acreditam que o conhecimento aí adquirido é importante para consegui-
rem outro tipo de trabalho, com melhor remuneração, como se depreende do relato de uma aluna:

Eu até gosto de dar aula, me sinto bem e porque dando aula, financeiramente eu vou ganhar bem melhor. Apesar de professor ganhar pouco, é bem melhor do que eu ganho trabalhando na loja, no escritório, em qualquer lugar, entendeu? (Fabiana, segundo ano do curso de Ciências Biológicas.)

 Essa avaliação decorre da comparação com a situação atual. Contudo, esses alunos reconhecem que, se a posse de um diploma de ensino superior é importante para conseguirem outro tipo de ocupação, é ainda insuficiente para promover a tão desejada mobilidade social, como algumas falas revelam:
 
 Porque depois que eu terminar a faculdade, eu pretendo procurar e exercer uma profissão dentro dessa área e procurar, nem que tenha que trabalhar durante o dia e durante a noite pra melhorar minha situação financeira. (Joaquim, terceiro ano do curso de Ciências Biológicas.)
 
Eu pretendo pegar algumas aulas à noite, não muitas e não necessariamente todos os dias... qualquer tipo de aula, mais pra ter um contato com o pessoal que está se formando. (Mariana, terceiro ano do curso de Letras.)

Um recurso que os universitários pensam utilizar para aumentar os ganhos, no futuro, é exercer o magistério, ampliando a jornada de trabalho, e não, simplesmente, conseguir outro emprego com rendimento mais elevado do que atual.

A necessidade de aumentar a qualificação profissional está presente em nove universitários, dos quais sete manifestam interesse em ingressar em curso de pós-graduação:

Eu pretendo fazer pós-graduação, mestrado, seguir a minha carreira, né, e trabalhar assim no campo profissional... Porque, deste jeito a gente dá uma primeiramente, uma, mais conhecimento na área, e vai te dar possibilidade de uma ascensão, quanto mais você subir na carreira, você vai ter melhor oportunidade de arrumar emprego, oportunidade de ganhar mais. (Edgar, segundo ano do curso de Ciências Biológicas.)

Essa aspiração de melhorar a qualificação profissional, mediante a incorporação de novos conhecimentos, possíveis de serem adquiridos em curso de pós-graduação, resulta da percepção desses universitários de que o curso de graduação é insuficiente para conseguirem empregos melhor remunerados. Embora fazendo parte do horizonte desses estudantes, o acesso a um curso de pós-graduação permanece como algo virtual, difícil de ser concretizado, mesmo porque o capital escolar incorporado por eles nas Faculdades Alvorada é, ao que tudo indica, insuficiente para ingressarem em um curso de pós-graduação stricto sensu.
Para esses universitários, o ingresso no curso já é em si uma conquista e o exercício da profissão - em geral, o magistério - é visto como bico ou complemento em duplo sentido. Amplia rendimentos e permite o exercício simultâneo de outra ocupação que, embora desvalorizada como é o caso do magistério, exige uma habilitação escolar que possibilita certa ascensão social, mesmo que seja no plano simbólico:

Um nível de vida melhor, mais elevado em termos de prestígio social... uma posição social mais elevada, de destaque. (Cristina, terceiro ano do curso de Matemática.)

O êxito desses universitários pode ser aferido de outra perspectiva, comparando-se seu grau de escolaridade atual - mesmo sem a conclusão do curso - com o de seus irmãos, que freqüentaram o ensino fundamental e médio em escolas da rede pública, já que nenhum deles, mesmo os mais velhos, chegou ao ensino superior. Há uma única exceção referente aos irmãos de Mariana de F-A, pois dois deles ingressaram no curso superior de uma instituição privada. Obviamente, alguns dos universitários têm irmãos mais novos que poderão seguir a mesma trajetória e até superá-la. Contudo, cabe considerar que esses estudantes, mesmo não tendo obtido o diploma do curso superior, vivem, no interior da própria família, uma ascensão simbólica, visível sobretudo para os pais, o que pode estimulá-los a continuar a auxiliar os filhos a concluírem o curso superior.

5.A INFLUÊNCIA DA FAMÍLIA NA ESCOLARIZAÇÃO DOS FILHOS

Os universitários são unânimes em declarar que seus pais não influenciaram a escolha do curso superior e que não interferem em sua vida escolar. Aparentemente, a família não se imiscui nesse território, uma vez que, à primeira vista, a escolha do curso e da faculdade resulta de decisão dos filhos. Contudo, um exame mais acurado das entrevistas mostra que, se pais e mães mantêm certa distância das decisões e das práticas dos filhos, isso decorre do modo como se relacionam com eles e da carência de capital cultural e escolar dos genitores, que não os deixam à vontade para opinar sobre situações que não conhecem, como relata um estudante:
 
Bom, como ela [mãe] teve pouco grau de instrução, ela vai muito pela minha opinião né, se eu comento coisa boa em casa a respeito da faculdade, ela acha que realmente é boa e concorda comigo, né. (Joaquim, terceiro ano do curso de Ciências Biológicas.)

Na realidade, a intervenção da família ocorre de modo indireto, pois os filhos, enquanto trabalhadores, gozam de relativa independência financeira e autonomia, o que reduz as possibilidades de ingerência direta e pressão por parte dos pais. Antes, a intervenção deve ser entendida como uma modalidade de autorização para que os filhos amadureçam e tor-nem-se independentes, e a distância que os pais mantêm em relação a eles não significa desinteresse ou desamor. Nesse sentido, os pais assumem posições diversas, oscilando entre situações em que tentam exercer certo controle sobre os filhos, enquanto, em outros momentos, procuram participar da vida deles - e não só na parte escolar -, sem imposição e mantendo certa reserva. Dito de outro modo, aqui entram em confronto as forças de fissão e fusão (Bourdieu, 1996), opondo familismo e individualismo.

Uma forma de interferência direta está associada ao gênero dos filhos, havendo maior controle sobre as aspirações de escolarização das filhas. Mesmo quando dispõem de recursos financeiros para mantê-las em outra cidade, freqüentando o curso por elas escolhido, os pais exercem sua autoridade para impedi-las, como ocorre com uma delas, que relata o seguinte-.

Eu passei em Psicologia em Uberaba e meu pai não quis me sustentar em outra cidade... Existe, além disso, o problema de eu deixar a casa. Seria como se eu tivesse renegando, pra eles, que têm formação cristã e paternalista de... seria o mandar nos filhos até eles casarem, né. Tem aquela rigidez em cima do que a gente tá fazendo. (Mariana, terceiro ano do curso de Letras.)

Nesse caso, em que o pai não autoriza a filha a concretizar sua escolha, o familismo predomina sobre o princípio do individualismo e a pressão parental impõe-se integralmente.

Outra modalidade de tentativa de influenciar, de modo indireto, a escolha da prole, mas que não se concretiza, ocorre quando os pais têm aspirações bastante elevadas em relação ao futuro profissional dos filhos e almejam que estes façam certos cursos, o que demonstra que as expectativas parentais são menos realistas do que as dos filhos:

Meu pai queria muito que eu fizesse Pediatria, na área de Medicina, mas é uma coisa que eu não daria nunca, tá, porque é muito diferente da área que eu atuo. (Roberta, terceiro ano do curso de Letras.)

Os filhos optam por cursos mais próximos à realidade que os cerca. Deixam, inclusive, de lado, cursos preferidos, ingressando naqueles que são acessíveis. E o caso de um deles, que ingressa em Matemática em vez de Engenharia; de outro que se contenta com Ciências Biológicas, deixando Medicina; e de uma terceira que cursa Ciências Biológicas em lugar de Direito.

Mas, a influência mais intensa da família na vida esco!ai>>dos filhos aparece com nitidez na ajuda financeira.

Algumas vezes eu pago (a mensalidade], algumas vezes a minha mãe paga a dos meus irmãos, aí ela faz a uia crucis e paga a minha também. (Mariana, terceiro ano do curso de Letras.)

Recebo, sempre que necessário, depende da necessidade, não muito porque eles [os irmãos] chiam. (Roberta, terceiro ano do curso de Letras.)

Mesmo quando o filho tem rendimento elevado, como ocorre com o universitário que recebe dez salários mínimos, metade do valor da mensalidade é paga pelos pais.

O auxílio recebido dos genitores nem sempre é constante, pois muitos não têm condições para arcar com essas despesas com regularidade. Além disso, muitas vezes, o auxílio financeiro é indireto, pois não se destina a cobrir despesas com a escola, mas a outros gastos dos filhos.

 Há ainda outra forma de ajudar os filhos, quando os pais manifestam disposição de realizar gastos maiores, mesmo tendo rendimentos reduzidos, como é o caso de Edgar:
 
Meu pai queria que eu fizesse Medicina, né. Até falou que se fosse, fazia o cur-sinho melhor, parava de trabalhar e só dedicava ao cursinho, pra ser um bom e chegar preparado pro vestibular, ele pagaria, né?
    De qualquer modo, os filhos não se lembram de mencionar que vivem na casa~dos pais e recebem, gratuitamente, moradia, alimentação e benefícios indiretos, como cuidados com a indumentária. Sem essa importante ajuda não monetária, certamente não teriam condições de arcar com o pagamento do curso que freqüentam. Ao mesmo tempo, esse auxílio tem um valor não apenas material, mas está impregnado de afeto, mesmo quando isso não é expresso de modo claro.
Coloca-se, dessa forma, a dimensão da vida afetiva doméstica. Nessas famílias, a sociabilidade familiar (Segalen & Zonabend, 1999) parece ser relativamente restrita, com pouco espaço para conversas, sobretudo com o pai, que é considerado distante e com quem o contato e o diálogo são difíceis.

O meu pai... a gente não conversa muito. Eu acho que ele é muito machista, entendeu? E a gente não concorda na maioria dos aspectos, na maioria das opiniões, na maioria dos nadas. Então, a gente vive brigando muito. Então, eu procuro no máximo evitar conversar com ele, porque eu só fico no geral. (Mariana, terceiro ano do curso de Letras.)

Em contrapartida, a mãe é considerada mais próxima e mais presente no cotidiano dos estudantes:

Porque, desde criança ela sempre me, vamos dizer assim, me bajulou mais que meu pai, né. Então, a gente tem uma, não vamos dizer assim que a gente goste mais dela, entendeu, a gente gosta igual. Mas é uma coisa assim, é uma confiança a mais que a gente tem nela, entendeu? Porque o meu pai já é uma pessoa mais rígida, mais severa, né, ela já é uma pessoa mais liberal, né. (Edgar, segundo ano do curso de Ciências Biológicas.)
 
Ah... ela [a mãe] me dá mais liberdade pra falar, sabe? Ha pode dar o contra no que eu falo, mas ela vai me dar mais liberdade pra falar. Meu pai, já não, ele é uma pessoa fechada, não é assim... A minha mãe é mais aberta, ela também se abre muito com a gente, entendeu? (Carlos, segundo ano do curso de Matemática.)

A mãe não é apenas a principal doadora de afeto; é também a interlocutora disposta a ouvir os filhos e a dialogar com eles. No entanto, a relação mãe/filhos tem ainda outra dimensão, referida ao incentivo à escolarização deles (Schwartzman, 1992) e à transmissão de capital cultural (Singly, 1993). Considerando-se a observação de Lahire (1997) acerca das condições de transmissão do capital cultural, o fato de os filhos conversarem mais com a mãe cria a oportunidade para a difusão de conhecimentos e experiências que fazem parte de seu capital cultural, mesmo que seja reduzido. Mais ainda, a influência materna não se dá pela imposição, pois os filhos esclarecem que, contrariamente ao pai, a genitora comunica-se de modo mais afetuoso e não os obriga a acatarem suas opiniões. Desse modo, o capital cultural transmitido pela mãe constitui elemento significativo no processo de reprodução social da família que tem, na escolarização superior dos filhos, um recurso importante para promover relativa mobilidade social deles e, indiretamente, da própria unidade doméstica. Contudo, a maior presença da mãe nesse tipo de relação não exclui a importância do pai no processo. De fato, o pai sente afeto pelos filhos, embora muitas vezes o expresse de modo canhestro. É o que ocorre quando procu-
ra orientar os filhos, evitando que eles cometam o que considera errado e acaba impondo sua decisão. Prova desse afeto paterno são os relatos dos filhos acerca da preocupação e do interesse do pai em sua vida escolar, mesmo quando essas manifestações são relativamente distantes e, aparentemente, pouco envoltas por afeto. Um exemplo dessa postura, que pode ser aproximada do que Zéroulou (1988) denominou de ética do sacrifício, está presente no depoimento de Edgar, acima transcrito, e pode mostrar que um dos modos de expressão afetiva do pai é através da doação financeira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

   A promoção social dos filhos, em termos de escolaridade, pode ser avaliada conside-rando-se que todos concluirão o curso em que estão matriculados. Ao que tudo indica, essa suposição tem grande probabilidade de se efetivar. Comparando-se o grau de escolaridade que os universitários devem atingir com o dos pais e também com o dos irmãos, eles certamente alcançarão certa ascensão no plano simbólico, indo além de pais e irmãos, exceto no caso já citado de F-A.
  
 No entanto, o ingresso desses estudantes no curso superior não resulta da democratização do ensino. Pelo contrário, ele só é possível graças à imensa expansão de estabelecimentos particulares, que não só acarreta ampliação do número de vagas, como aumenta a oferta de vagas no curso noturno. Além do mais, a competição entre as escolas para arrebanhar novos alunos pode baratear o custo das anuidades.

   O avanço no grau de escolaridade deve ser contrastado com a avaliação que os universitários fazem do valor que a escolarização prolongada pode agregar a sua força de trabalho, comparada com o ua/ordispendido com anuidades e outras despesas, diretas e indiretas, para mantê-los na faculdade. Os universitários percebem, de modo bastante objetivo, que a qualificação profissional é insuficiente para alavancar a desejada melhoria financeira. O capital escolar adquirido em uma instituição de pouco prestígio e em cursos que preparam para o exercício de uma profissão também bastante desqualificada, apenas habilita o portador do diploma aí obtido a trabalhar mais, ampliando a jornada de trabalho, e não a ganhar mais. Certamente, a oportunidade de conjugar, no futuro, o trabalho atual com o exercício simultâneo do magistério amplia as oportunidades de se obter outro emprego, pois a qualificação escolar que irão obter duplica os atributos da força de trabalho que se toma mais competitiva na disputa por emprego. Todavia, cabe considerar que os universitários ingressam nesses cursos que oferecem poucas oportunidades de trabalho bem remunerado devido a limitações da própria história familiar.
 
  Se as possibilidades de mobilidade financeira são drasticamente limitadas, esses universitários também reconhecem que, sem esse investimento, oneroso para eles e para as famílias, as possibilidades de alguma melhoria profissional e financeira seriam menores ainda.
    Outra questão que emerge do material coletado é o fato de os universitários declararem que os pais não influíram na escolha do curso e da faculdade. De fato, todos assumem as escolhas como se fossem exclusivamente pessoais, nada devendo à família. Sus-peita-se que essa postura procure demonstrar autonomia, e é como se esses estudantes, em sua interioridade, dependessem apenas da própria autorização, não precisando da
autorização parental. Assim, a influência da família na escolarização desses universitários - e, muito provavelmente, não só desses - não deve obscurecer que ela se dá no confronto constante com aspirações e anseios dos filhos. A família, portanto, não é a instância todo-poderosa que consegue impor-se como sujeito coletivo, mantendo o princípio do familismo sempre atuante, pois enfrenta as forças de fissão, que traduzem a presença do individualismo em seu interior, o que cria um equilíbrio constantemente reposto através das ações concretas dos integrantes da unidade doméstica.
  
 Mas, se os pais não interferem na escolha do curso, eles incentivam e estimulam, mesmo que seja de fnodo indireto, o ingresso dos filhos no curso superior. Desse modo, os dados deixam muito claro a importância da família no processo de escolarização superior desses universitários, mediante apoio material, pecuniário ou não, bem como através do amparo afetivo que os pais dispensam aos filhos para conquistarem o tão almejado diploma do curso superior.

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 A construção da excelência escolar
 Um estudo de trajetórias feito com estudantes universitários provenientes das camadas médias intelectualizadas
Maria Alice Nogueira**     Professora da Faculdade de Educação da UFMG.

Pela simples razão de que tudo depende de determinação, de -termine, rapaz, onde vai ser seu curso de pós-graduação... (Gilberto Gil).

O material a ser explorado neste trabalho consiste num corpus formado por relatos de trajetória escolar colhidos - através de entrevista semidiretiva - de um grupo de estudantes universitários pertencentes a famílias das camadas médias intelectualizadas, obtido no quadro de uma pesquisa realizada em 1994-95, em Belo Horizonte e financiada pelo CNPq1. Trata-se de um grupo de 37 estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais, 21 mulheres e 16 homens, selecionados segundo dois critérios:
    1) estar cursando ou ser recém-formado num dos 37 cursos de graduação oferecidos pela UFMG, à época. Tomou-se um estudante para cada curso, com o fim de evitar um possível viés resultante da concentração dos sujeitos investigados nos cursos mais prestigiosos ou, hipótese bem mais remota, nos mais desvalorizados;
    2) ser filho de pai e mãe professores do ensino superior/pesquisadores, com a mais alta titulação possível.
 
  Este último critério situa-se no centro do objeto de estudo, a saber: as formas de atuação do capital cultural familiar sobre a vida escolar dos filhos2. O pressuposto era o de que a busca de situações em que esse fator se visse potencializado ao seu grau máximo (pai £ mãe), favoreceria a obtenção e a,visibilidade dos efeitos, sobre a escolaridade dos jovens, do estado de acumulação dessa espécie de capital - sobretudo em sua forma escolar. As elites escolares constituiriam, nesse sentido, excelente terreno de observação, posto que compõem a elite escolar no duplo sentido do termo: porque são pais altamente diplomados e porque ocupam as posições dominantes do sistema de ensino.
 
  Tratava-se, de um modo geral, de conhecer os itinerários escolares percorridos por esses jovens até o momento da entrevista, e as estratégias postas em prática pelas famílias e por eles próprios no decorrer dessas escolaridades.

   Não é meu propósito discorrer aqui sobre a noção de “estratégia”. Mas cabe lembrar que, atualmente, um debate agita o meio sociológico a esse respeito. No centro da discussão, encontra-se a questão da natureza consciente (explícita) ou inconsciente (implícita) das condutas educativas dos atores, mas também o sentido que esses últimos atribuem a elas (Singly, 1993A; Plaisance, 1988; Queiroz, 1995). Neste trabalho, utilizo a noção de estratégia no sentido proposto por Bourdieu, a saber; não como o produto inevitável de um cálculo custo-benefício mas, tampouco, como um mero resultado do acaso. Se certas ações podem ser fruto de decisões explícitas e racionais, outras decorrem do processo de interiorização das regras do jogo social e revelam a intuição prática (o “sens du jeu”) que marca o bom jogador, o estrategista. Além do fato de que essas não constituem, necessariamente, possibilidades excludentes 3.
 
 No texto que se segue, buscar-se-á fazer uma síntese dos principais resultados da pesquisa. Optei - em razão do espaço disponível - por oferecer ao leitor uma reflexão que prioriza as práticas dos atores, dando menor ênfase à dimensão dos valores que subjazem a essas condutas, ainda que reconheça que o ideal seria a observação desses dois aspectos reunidos.

1.O FLUXO DAS TRAJETÓRIAS
   
Com relação ao fluxo, os itinerários escolares encontrados, caracterizam-se, de um modo geral, por sua fluência, linearidade, continuidade. Trata-se de um percurso que se faz sem rupturas e que parece desembocar na universidade como que “naturalmente”. Se se toma os fatores repetência e interrupção dos estudos como indicadores do fluxo de uma trajetória, vê-se que - para esse grupo - o itinerário escolar se desenrola sem rupturas e de modo absolutamente fluente, em nítido contraste com os trajetos de tipo errático freqüentemente observados nos meios populares4.

A maior evidência empírica desse fato está na idade de entrada na universidade, a qual resume, em si mesma, a fluência de um percurso. 40% dos jovens pesquisados chegaram à universidade antes da idade regular, ou seja, aos 17 ou aos 18 anos incompletos. Se a eles se adicionarem os 35% que nela chegaram em idade regular (18 anos completos, no caso brasileiro), teremos que 75% do universo pesquisado não apresentam, em seu passado escolar, qualquer tipo de atraso5.

 Em síntese, para caracterizar, em poucas palavras, o tipo de trajeto que essas escola-ridades configuram, recorro à expressiva metáfora utilizada por Berthelot (1993) em sua pesquisa sobre a orientação escolar e profissional na França, para definir o itinerário escolar pós-secundário de uma pequena parcela de seus pesquisados, o qual se notabilizaria por apresentar “a precisão e a rapidez de uma flecha”.

2.AS REDES DE ENSINO E OS ESTABELECIMENTOS FREQÜENTADOS

 Tem-se tornado habitual, entre os pesquisadores, a afirmação de que, no Brasil, nas últimas décadas, dois tipos de trajetória escolar vêm se estruturando: de um lado, freqüência a escolas privadas de ensino fundamental e médio e, depois, ensino superior público para os favorecidos - o chamado “circuito virtuoso”; e, inversamente, freqüência a escolas públicas de ensino fundamental e médio e, depois, faculdades particulares (em geral de baixa qualidade) para os mais dasafortunados - o chamado “circuito vicioso” (Souza, 1990/1991).

   Ainda que uma aproximação ao circuito de tipo “virtuoso” possa ser esboçada a partir das trajetórias recolhidas, não se pode, no entanto, encerrá-las numa estrutura de tipo dicotômico, segundo a qual esperar-se-ia encontrar, dada a origem social desse grupo de jovens e o momento histórico em que viveram seu período de escolarização, um passado escolar de nível fundamental e médio totalmente desenrolado na rede particular de ensino. Como veremos, os favorecidos podem - em certas condições - se utilizar da escola pública.
 
  Dado que, por uma delibáração metodológica, o ensino superior público federal constitui uma constante nessas 37 trajetórias, focalizar-se-á sua distribuição segundo a rede de ensino apenas no que concerne à história escolar anterior à universidade. Os dados encontrados foram:
    •15 casos (40%) de percurso do tipo “todo privado” (ensino fundamental e médio);
    •14 casos (38%) de percurso do tipo “misto” (alternando público e privado);
    •8 casos (22%) de percurso do tipo “todo público” (ensino fundamental e médio)6.

    Usuárias fiéis da rede particular, as famílias incluídas no grupo “todo privado” - fração majoritária da população pesquisada -, são as que apresentam menor número de filhos e, portanto, maior capacidade financeira de arcar com as despesas de escolarização deles.
 
  Nas situações de “percurso misto”, a passagem de um setor a outro se dá em 86% dos casos, no sentido do público para o privado. As transferências se concentram nos estágios iniciais da escolaridade, revelando que, para esse grupo, o uso da escola pública decresce na medida em que se avança na carreira escolar.

   O          percurso “todo público” aparece entre as famílias mais numerosas, compostas por fratrias com mais de 3 filhos, as quais se vêem atraídas por uma escolaridade integralmente realizada na escola pública. Dentre os 8 casos de alunos estáveis da rede pública, em apenas um caso houve transferência - no decorrer do percurso - de uma escola estadual para uma escola federal. Em todos os outros 7 casos restantes, a escolaridade se de-
senrolou inteiramente no circuito “CP/COL.TEC ”, isto é, em situação excepcional, á saber, nas duas escolas de aplicação da UFMG: o Centro Pedagógico - CP - (ensino fundamental) e o Colégio Técnico - COLTEC - (ensino médio), ambas localizadas no campus universitário da Pampulha. Como se sabe, sua vinculação à esfera federal, aliada às privilegiadas condições de ensino decorrentes de sua incorporação a uma universidade, fazem deles estabelecimentos públicos de excelência.
 
  No que concerne aos estabelecimentos freqüentados, as escolhas verificadas sofrem pequenas modulações segundo o grau de ensino cursado:

2.1. A pré-escola
  
 A totalidade dos pesquisados freqüentou a pré-escola, tendo 75% dos jovens se beneficiado de, pelo menos, dois anos de estudos pré-escolares. Isto explica o fato de que apenas 10% deles chegaram à primeira série do ensino fundamental ainda não completamente alfabetizados. Tal fato sugere que, para esse grupo social, mesmo sem imposição legal, a pré-escola já se tornou um elemento obrigatório do percurso escolar.
 
  Do rol das 26 escolas freqüentadas, apenas três são instituições públicas, todas elas estaduais. Mas o mais importante ponto comum entre as três é o fato de se tratar de antigos e tradicionais estabelecimentos de ensino, criados nas primeiras décadas deste século e, no caso de duas delas, localizadas em bairro nobre da cidade.

2.2 - O ensino fundamental
2.2.1.     Ia a 4~ séries

 A totalidade dos pesquisados entrou na 1- série do ensino fundamental em idade regular, ou seja, ao redor dos 7 anos. 90% deles já chegaram à escola primária completamente alfabetizados.
  
 Do rol de 19 escolas freqüentadas, 12 pertencem à rede privada de ensino, dentre as quais se destacam alguns dos mais tradicionais e reconhecidos estabelecimentos confessionais privados de Belo Horizonte, ao lado de instituições mais recentes e não confessionais cuja reputação se baseia em sua suposta eficácia pedagógica. As 7 restantes são instituições públicas de ensino. Dentre essas últimas, 6 são instituições estaduais representadas, em geral, por estabelecimentos tradicionais (um deles experimental, à época) e situados em bairros nobres da cidade. Uma única instituição é ligada à rede federal: o Centro Pedagógico da UFMG. Entretanto, chama a atenção a ampla utilização da escola de aplicação da UFMG - onde se concentra a maior parte das escolhas desse último grupo (50%) -, cujo ensino é reputado põr sua boa qualidade.

2.2.2.     5a a 8i séries

    Da lista de 16 escolas freqüentadas, 13 pertencem à rede privada de ensino, dentre as quais figuram alguns dos mais tradicionais e renomados estabelecimentos de Belo Ho-
   rizonte, ao lado de instituições mais recentes e não confessionais. Apenas 3 são instituições públicas de ensino. Dentre estas últimas, duas são estaduais e a terceira, federal (Centro Pedagógico). Observe-se que a concentração neste último estabelecimento aumenta ainda mais neste nível do ensino (87% das escolhas da rede pública), numa clara demonstração da preferência dessas famílias pela escola de aplicação da UFMG. Se tal fato se liga, por um lado, ao recrutamento desse colégio que destinava, à época, parte de suas vagas aos docentes dessa universidade, por outro, ele encontra-se intimamente associado às origens desse tipo de estabelecimento, criado para fins de pesquisa e experimentação em ensino, e à sua administração por uma instituição universitária federal, o que lhe confere amplas credenciais no plano do recrutamento docente e do ensino oferecido, entre outros.

 2.3. O ensino médio

      Do rol das 13 escolas freqüentadas, 12 pertencem à rede particular de ensino, dentre as quais figuram tradicionais e renomados estabelecimentos escolares de Belo Horizonte, ao lado de instituições mais recentes. Neste nível, há apenas um caso de instituição pública: o Colégio Técnico da UFMG7, que divide com um colégio confessional, de longa tradição na cidade, a preferência de boa parte das famílias investigadas.

      Será preciso proceder-se fíituramente - através de análise mais acurada - a uma avaliação da repercussão, sobre o destino escolar, da freqüentação de um campus universitário desde os primeiros anos da escolaridade básica. De um modo muito geral, é possível distinguir, desde já, dois níveis de influência.

       No plano mais subjetivo, o discurso dos interrogados, escolarizados nas escolas de aplicação, deixa patente a proximidade e o sentimento de familiaridade desenvolvido para com a instituição superior. Expressões como: “a gente cresceu dentro da universidade”; “o campus é uma verdadeira casa”; “a gente já se sentia universitário”, permeiam os depoimentos. Além de proporcionar um interesse mais estreito e maior conhecimento da vida interna da universidade:

Já tem não sei quantos anos que eu tô aqui dentro. Eu acho que cê cria o maior amor. [...] E cê já... conhecer tantos professores assim, cê acompanha, né? Cê acompanha os reitores que vão passando, o que que tá acontecendo, os processos de eleição que têm aqui dentro... os problemas que têm de greve, cê acom-C ar- A -1 panha todas as greves... cê entra de greve também, eu já era até acostumada.

Todo ano eu tava de greve. (Regina8, estudante de Engenharia Química.)

Por outro lado, e num plano mais concreto, manifestam-se também favorecirrrentos como o domínio do espaço físico e do funcionamento local (bandejões, bibliotecas, ônibus circulares internos, etc.). Sem falar no fato de que parte dos sujeitos declararam se servir, enquanto atividades extra-escolares, dos cursos de línguas estrangeiras oferecidos pelo centro de extensão da Faculdade de Letras, bem como da prática de esportes oferecidos pelo setor de extensão da Faculdade de Educação Física.
 
Para concluir esse ponto relativo aos estabelecimentos freqüentados, observe-se que, quando se passa da pré-escola ao ensino médio, diminui crescentemente o leque dos estabelecimentos. Passa-se de um rol de 26 instituições no nível pré-escolar a uma dispersão da escolha da ordem de 19 estabelecimentos da lâ a 4a séries, 16 da 5® a 8a séries e, finalmente, 13 no nível do ensino médio. Também o número de estabelecimentos públicos freqüentados cai consideravelmente, na medida em que se avança na escolaridade, passando de 7 no nível da lâ a 4- séries, para 3 no nível da 5a a 8a séries e para apenas um no nível do ensino médio.
   
Com relação às razões da escolha dó estabelecimento, ressalta-se que - à exceção da pré-escola - a opção pela “qualidade do ensino” constitui o principal critério de escolha em todos os níveis da escolaridade, embora quase sempre associado (mas secundariamente) a outros fatores, tais como: praticidade (distância do domicílio, horários, preços), pedagogia praticada (inovações pedagógicas, disciplina), tradição familiar (pais, tios, irmãos ex-alunos) ou confessionalidade.
   
Deve-se acrescentar a isso o fato de que, à medida que se avança na carreira escolar (isto é, da escola elementar ao ensino médio), as razões de ordem prática têm sua importância diminuída no ato de escolha9.
   
Todos esses elementos estão certamente associados às preocupações familiares com a aproximação do vestibular, uma vez que, para esse grupo, esse é o destino escolar “naturalmente” esperado.

3.O MOMENTO DO VESTIBULAR

Mais do que uma decisão, a ida para a universidade aparece, nessas trajetórias, com a força de uma quase “evidência”. Na grande maioria das entrevistas, os interrogados manifestam, explicitamente ou em filigrana, a certeza íntima de que a chegada à universidade é inevitável e está inscrita em seu destino escolar. É interessante observar que essa certeza interior se mantém constante em modelos relativamente diferentes de socialização familiar. Os dois depoimentos abaixo demonstram que modulações no habitus familiar não conseguem impedir essa orientação:

 Lá em casa, é muito da criação, meu pai sempre achou que carreira que não fosse estudar, formar, arranjar um emprego e trabalhar [...] não era muito bom. E!e sempre valorizou muito isso e isso ficou muito em mim. A influência foi muito grande. E eu sabia. Eu sentia. Eu não sabia separar se era uma coisa realmente minha ou se era uma coisa que ele foi colocando na minha vida como uma certeza, de que eu tinha de fazer faculdade. Então, eu não sei te dizer se para um garoto de 13,14 anos, ele falar que vai fazer faculdade é uma coisa dele, é uma coisa íntima, ou se era influência da família. Minha mãe havia feito, meu pai havia feito. Era uma carreira normal. Eu não entendia muito bem alguma coisa fora disso. {Rafael, estudante de Engenharia de Minas.)

Minha mãe sempre falava que a gente era obrigada a terminar o primeiro grau, que o resto seria opção da gente. Segundo grau e faculdade seria opção da gente. Só que eu nunca vi como uma opção. Eu sempre tive certeza que eu ia fazer tudo. Eu nunca pensei em parar. Os meus colegas não iam parar. Todo mundo ia continuar. Eu não via sentido em parar. Parar para quê? Para trabalhar? Eu não tinha nenhuma perspectiva de trabalho, eu não tinha nenhum interesse específico. Eu vi, realmente, que eu ia terminar o colégio, fazer a faculdade. (Olívia, estudante de Administração.)

 Esse traço se manifesta mesmo nos casos em que a trajetória não se pauta pelos padrões de excelência, tal como os define a instituição escolar:

Eu nunca fui um aluno exemplar, [...] se tirasse um 100 era bem-vindo, mas meij objetivo não era tirar o 100. Meu objetivo era saber dar conta da escola, não viver só para a escola. (...) Seria procurar a diversão junto com a escola. Nunca só diversão, nunca só escola. Meus irmãos também chegam nessa linha também. A escola é escola, tem que fazer, não tem que fazer obrigado, mas sempre: vamos chegar no 2- grau, vamos chegar na universidade, mestrado e tal. Tanto é que hoje todos estão no mestrado, doutorado. Daqui a pouco sou eu: mestrado, doutorado, o Daniel. Então, assim, meu pai, todo mundo mais ou menos seguindo a linha do meu pai, que fez mestrado, doutorado. A vida toda dele foi em tomo da universidade, estudar, formar, passar no concurso e ser professor. (Fernando, estudante de Educação Física.)

A tese da “causalidade do provável”, formulada por Bourdieu, parece ser a melhor explicação para esse fenômeno, na medida em que estabelece que a propensão ao provável, que orienta as aspirações e as condutas dos sujeitos, resulta da interiorização das condições objetivas de existência ou, mais precisamente, da confluência entre um “agente predisposto e prevenido, e um mundo presumido, isto é, pressentido e prejulgado, o único que lhe é dado conhecer” (Bourdieu, 1998: 111).

Mas a despeito da escolarização superior aparecer como uma quase-evidência, o período que cerca o ingresso na universidade é vivido de modo tenso e marca fortemente as trajetórias escolares, em razão da consciência que têm os jovens da acirrada seleção a que estarão submetidos, embora em graus variados segundo o maior ou menor prestígio do curso escolhido. Visando elevar as chances de sucesso na competição pelas vagas na universidade pública, algumas estratégias são acionadas. Duas delas se sobressaem pela í 1 freqüência com que são utilizadas ou por seu grau de eficácia. São elas: a estratégia do “treineiro” e o “efeito cursinho”.

3.1. A estratégia do “treineiro”

Tal estratégia consiste na prática de se expor ao exame vestibular antes mesmo da conclusão do ensino médio, visando treinar-se e, assim, capacitar-se para enfrentar esse exame no momento oportuno10.

 Metade dos estudantes da amostra submeteu-se uma ou duas vezes a essa prática an-tecipatória. Em dez casos, ela ocorreu ao final do segundo ano colegial; em outros dez, no meio do terceiro ano. Em apenas um caso ela se deu já ao final do primeiro ano.
Desse total de 21 “treinos”, em 11 casos houve aprovação e em 6 reprovação, tendo 4 estudantes abandonado o teste antes de seu final.
   
As razões declaradas pelos jovens para enfrentar o teste não são propriamente surpreendentes e provavelmente seriam encontradas em outros meios sociais: dar um balanço em seus conhecimentos, avaliar seu desempenho, conhecer os procedimentos das provas:
                 
Quando eu estava terminando o segundo ano, eu falei: vou fazer vestibular para Educação Física, porque tinha aquela prova específica, aquela prova didática. Eu vou fazer um ano antes para eu ver que bicho é esse, [...] para eu não chegar na hora H mesmo, para valer, para eu não chegar muito nervoso, para eu não chegar meio sem saber o que fazer, como que era o tempo, se o tempo da prova era muito comprido, um tempo muito curto. Para eu errar no segundo ano, aquela hora podia errar. Depois, no terceiro ano, não podia errar, tinha que passar. (Fernando, estudante de Educação Física.)
   
O que dificilmente poderia ser captado fora da situação de pesquisa é toda uma gestão calculada e informada, por parte de alguns desses estudantes, da melhor rentabilidade a ser extraída desse empreendimento:
                  
Aí, no segundo ano [do colegial], como eu estava na dúvida em que eu ia fazer vestibular, estava com uma forte tendência que era área biológica. Então, no segundo ano, eu fiz vestibular para Farmácia. Só na UFMG, porque primeira etapa [do vestibular] era igual e a segunda etapa, na prova de Farmácia, eu ia ter Química e Biologia, das específicas. [...] E qualquer outro curso das Ciências Biológicas estaria coberto porque a prova especifica era a mesma. [...] Farmácia era um curso que não era muito conconido, que eu teria condição... eu teria mais chance de passar para a segunda etapa. Então, falei: então pronto, vou fazer prova de Química e Biologia, o que eu escolher, já vou ter uma experiência. (Lucas, estudante de Medicina.)
                   
Então, a turma que ia fazer Exatas, a gente fez inscrição para a Física, porque o curso de Física, a primeira etapa, o mínimo de pontos que pedem para você passar para a segunda etapa era bem mais baixo do que a Engenharia. [...] Acho que o mínimo era 70. Na Engenharia era por volta de 100. [...] Então, a gente pensou assim: vamos fazer para a Física, porque a primeira etapa é igual para todos os cursos, e a segunda etapa é igual para todas as engenharias. Igual assim, praticamente igual porque não tem química, não. Acho. Praticamente igual. (Leonardo, estudante de Engenharia Mecânica.)
   
Esse mesmo estudante de Engenharia Mecânica também “treinou” o vestibular da PUC-MG na área de Mecânica, quando estava no meio do terceiro ano colegial. Eis suas impressões:             -
                  
Esse vestibular dar Católica, eu não sei se valeu muita coisa para mim, não. [...] Passei em quarto [lugar] lá. Só que o nível do meio do ano da Católica é mais baixo. É porque quem faz mais vestibular no meio do ano da Católica é o pessoal que fez no final do ano, fez na Federal, porque a Federal só tem no final do ano. Fez na Federal, não passou, não passou na Católica no final do ano, então vai fazer no meio do ano.
   
Na verdade, o que aparece com força inesperada, nos depoimentos, é que os resultados positivos do treino incidem menos no plano cognitivo ou do saber-fazer, e mais no plano emocional. A tal ponto que me parece lícito afirmar que sua mais poderosa atuação consiste em seus efeitos tranqüilizadores e reconfortantes. A esse respeito, um depoimento resume vários outros:
              
[...] porque eu queria ver como era uma prova. Eu achei bastante tranqüilizante, porque eu não estava numa situação de prova, não estava sendo testado. Eu é que estava me testando. Eu não tinha obrigação de passar. Então, eu ficava olhando o pessoal do lado mordendo gola de camisa, nervoso e eu... tranqüilo. [...] Meu pai também falava, minha mãe também falava. Inclusive eles ficaram bem tensos. Não, Rafael fica tranqüilo, você não está precisando ser aprovado, não se preocupa, vai lá. E estavam com medo de ser algum impacto para mim se eu não passasse. E passei. [...] Mas isso me deu bastante tranqüilidade para estudar. E quando fiz o vestibular valendo realmente, eu não estava sob tensão nenhuma. (Rafael, estudante de Engenharia de Minas.)
Essas condutas devem ser consideradas no quadro das características que marcam a relação das famílias culturalmente favorecidas com o universo escolar. Dentre essas características, os sociólogos têm observado um traço designado como “antecipação à ação e aos ritmos escolares" (Devouassoux-Merakchi, 1975). De diferentes maneiras, a família ou o próprio jovem se antecipam à ação pedagógica escolar, no intuito seja de uma superpre-paração para os momentos decisivos do percurso escolar, seja de prevenção a eventuais acidentes futuros (atrasos, reprovações, etc.). Ao que parece, esse traço tende a se fortalecer e a se estender ao longo das escolaridades, evidentemente com variações nas suas formas de manifestação segundo as conjunturas escolares. Um indício dessa tendência pode ser encontrado na história escolar de Gilberto, estudante de Matemática que, decidido a mudar de estabelecimento ao final da 8a série do ensino fundamental, antes de partir em viagem de estudos para a Holanda, candidatou-se - apenas com o intuito de “treinar-se” (já que ficaria no exterior por seis meses) - aos testes de seleção de dois colégios confessionais de grande tradição na cidade, os quais, em razão de sua boa reputação, desfrutam de uma demanda maior do que sua capacidade de atendimento, o que os obriga a selecionar os candidatos provenientes de outros estabelecimentos. Temos aqui, então, um caso de “treineiro” em testes de seleção para o ensino médio.

3.2.        O “efeito cursinho”
   
Ao estudar o perfil dos candidatos ao vestibular da UNESP dos anos de 1985 e 1986, a socióloga Dulce Whitaker (1989) criara a expressão “efeito cursinho” para designar a maior probabilidade de sucesso (em maior ou menor grau, segundo o ramo universitário escolhido), verificada entre os vestibulandos que prestavam o exame um ou dois anos após a conclusão do ensino médio e que, presumivelmente, haviam passado pelos cursos pré-vestibulares. Repetindo a experiência dez anos depois, Whitaker & Fia-mengue (1999), focalizam agora os perfis dos candidatos de 1995 e 1996 e confirmam o “efeito cursinho”, embora peçam prudência no uso dessa expressão, Uma vez que detectaram o surgimento - durante a década - de novos modos de preparo para o vestibular, tais como: “oficinas de redação, cursos de Exatas com aulas individuais ou em pequenos grupos, aulas de línguas, etc., que o jovem combina de acordo com as possibilidades financeiras da família” (p. 65).
   
Os dados de Whitaker & Fiamengue - reunindo vestibulandos originários de meios sociais diferentes - são apenas parcialmente verificados quando se trabalha com uma amostra de jovens provenientes de lares altamente diplomados. Do total dos 37 jovens, 19 passaram por um cursinho, mas 18 (49%) não o fizeram.
   
Mas o mais importante é que foi justamente entre esses 18 últimos que a aprovação no vestibular se deu em melhores condições: 10 deles obtiveram os primeiros lugares na classificação final do exame (8 deles entre o primeiro e o quinto lugares, geral ou em suas áreas). Quando indagados da razão da dispensa do cursinho, muitos declararam que o mesmo se fazia desnecessário em função de seu bom desempenho escolar anterior, numa forte demonstração de autoconfiança, para a qual o próprio resultado positivo do “treino" pode contribuir:
                   
A princípio eu tinha até essa preocupação de talvez fazer cursinho. [...] Mas depois do resultado da PUC, no meio do ano [treino], já foi descartada essa hipótese mesmo de fazer [cursinho], de ter algum reforço. Realmente eu estava bem confiante. Confiança mesmo que cortou essa opção de cursinho. (Carlos, estudante de Ciências Contábeis.)
                 
Não, nunca fiz cursinho. Ah, tinha passado no segundo ano [colegial, como treineiral, não era possível que no terceiro ano eu não passava. Muita coisa mais eu sabia. (Mareia, estudante de Física.)
  
 Uma outra razão - bastante distinta da excelência escolar - aparece secundariamente para a dispensa do cursinho: a baixa competitividade na luta pelas vagas nas carreiras de menor demanda:
             
Uma coisa é que o vestibular da Filosofia deve ter influenciado [a decisão de não fazer cursinho], porque 8 por vaga... As coisas vão e voltam. Porque, assim, eu não vou passar, oito por vaga, eu passo. Outra, também, não tinha tempo. Porque eu tinha aula de manhã e à tarde, e eu fazia inglês e francês. (Miguel, estudante de Filosofia.)
   
Já quanto às novas formas de preparação, detectadas por Whitaker & Fiamengue, o mesmo se verificou na pesquisa aqui relatada. Em particular, o aparecimento, com muito sucesso, em Belo Horizonte, de uma espécie de cursinho “à la carte”, onde o aluno se concentra nas disciplinas em que se sente menos preparado, alocando nelas o tempo que gastaria com aquelas nasrquais considera que atingiu bom nível de rendimento. Ocupando o segundo lugar no rol dos pré-vestibulares freqüentados pelos pesquisados, o cursinho Edna Roriz (o “cursinho da Edna”, como é mais conhecido), criado em 1986, apresenta essas características11.
                  
Eu fiz [cursinho] no segundo semestre do terceiro ano [colegial]. Eu fiz na Edna, não sei se você conhece. [...] E na casa dela, tinha só aula de Matemática, Física e Química. [...] Isso é uma característica do curso dela. Para você fazer o curso com ela, obrigatoriamente você faria essas três matérias, são as matérias que ela própria dá. E se você quiser fazer Biologia, você faz; se você quiser fazer Português... Aí, o resto é opcional. [...] Lá tinha muito problema de matrícula, que são pouquíssimas vagas e tal. Então, o pessoal deixa o nome com um ano de antecedência. (Olívia, estudante de Administração.)
                   
Não sei se você já ouviu falar no cursinho da Edna. Pois é, ela me deu aula só de Química. Inclusive tinha um pessoal que praticamente morava na casa dela. Eu, não. Eu só ia para a aula de Química, porque eu fiquei um pouco com medo de Química para a segunda etapa. (Priscila, estudante de Fisioterapia.)
   
Para fechar esse ponto, resta assinalar que a duração do cursinho variou entre um e 6 meses. Em apenas 3 casos, excedeu-se os 6 meses.
3.3.        O vestibular verdadeiro
   
Recém-saídos do ensino médio, a grande maioria dos investigados presta apenas um vestibular. Com efeito, 84% deles obtêm sucesso na primeira tentativa de ingresso na universidade. Daí o fato de chegarem ao ensino superior aos 17 ou 18 anos, como se viu acima.
   
Além disso, sua boa classificação no exame também se evidencia. Do total do grupo de 37 jovens, 13 (35%) obtiveram os dez primeiros lugares na classificação geral ou de suas áreas, passando esse total para 15 (41%) quando se vai até o 152 lugar.
  
 No momento da escolha da instituição de ensino superior, a opção pela UFMG aparece como uma decisão “óbvia”, termo empregado por um dos entrevistados. Freqüentemente, em seu discurso, esses jovens contrapõem a maior universidade instalada em Belo Horizonte às outras instituições de ensino superior localizadas na cidade. A superioridade da universidade federal aparece associada, em primeiro lugar, à qualidade da formação oferecida, a qual, por sua vez, encontra-se ligada a um clima favorável ao desenvolvimento de habitus acadêmicos e de uma cultura universitária que seria digna desse nome. Em acréscimo a isso, mas apenas em segundo lugar, intervém a vantagem de um ensino gratuito.
                   
Eu fiz vestibular na PUC, no Izabela [Instituto Metodista Izabela Hendrix] e na Federal. O da PUC foi supertranqüilo porque eu já tinha passado no meio do ano [treino], então eu fui muito confiante, sabe? E do Izabela, eu fui não querendo passar, por causa que eu fiz mais por obrigação, né? [...] Mas a prova tava muito fácil. Eu passei. Agora, o vestibular da Federal que, acho que eu tinha muito aquela... aquela... nó, meus pais, professores da Federal, eu tenho que passar. [...] Pra mim não valia outro vestibular. Talvez tenha sido uma cultura que eu fui pegando, né? Aqui em casa sempre falaram muito assim: a única universidade que presta é a Federal. O resto é só para ganhar título. Então assim, ficou aquela coisa na minha cabeça, né? (Solange, estudante de Comunicação Social.)
   
Mesmo nos casos em que o ingresso na universidade pública não se deu na primeira tentativa, a utilização - como segunda chance - de cursos superiores privados, não elimina essa visão das coisas, nem extingue a decisão de perseverar na busca do objetivo primeiro: a entrada na “Federal”. E o caso de Celina, estudante de Ciências Sociais, que só conseguiu chegar à universidade pública federal depois da passagem de um ano pelo ensino superior particular:
                   
Eu detestava a [nome da instituição de ensino privada], Eu era apaixonada pela Federal e tinha ódio da [nome da instituição de ensino privada], Porque parece colégio. E igualzinho colégio. Cê chega lá e tá todo mundo a mesma coisa. Aí tem uma cantininha, cê vai pra cantina e volta pra sala de aula. Aquilo ali é um esquema de co-legião, entendeu? Eu não me sentia... eu senti que eu não tava na universidade.
   
E também o caso de Alexandre, estudante de Engenharia Civil que, em sua primeira tentativa de vestibular, obteve aprovação apenas em curso particular da Fundação Mineira de Educação e Cultura. Ele relata:
                   
Eu estudei lá uns quatro meses, aí eu entrei num cursinho e vim fazer vestibular de novo. [...] Eu desisti da FUMEC... primeiro que eu sempre quis estudar aqui na Federal, eu sabia que pros meus pais era a maior felicidade, já que eles davam aula aqui, e por ser a melhor faculdade de Belo Horizonte. Então sempre tive vontade de estudar aqui. A FUMEC, eu tinha aula à noite, isso já não me agradava nada e não estava muito legal lá, não estava achando bom o jeito que estava correndo o curso, aí eu tranquei na FUMEC e vim fazer vestibular aqui.
   
Mas este último depoimento aponta para outras dimensões - mais diretamente ligadas ao âmbito da afetividade - que estão igualmente na origem do apego desses jovens à Universidade Federal. De um lado, ainda que boa parte desses pais se proíbam de impor e até mesmo de externar seus desejos ou seus pontos de vista, quando se trata de decisões atinentes ao futuro profissional do filho12, este último não só consegue captá-los, como se mostra sensível aos anseios paternos - ainda que implícitos, na maior parte das vezes - e reage de forma a fortalecer sua inserção nas relações afetivas familiares.
   
De outro, esse apego »esponde também a necessidades de construção e de revelação de suas identidades sentidas pelos jovens, as quais encontram na família contemporânea os meios de sua realização. Apóio-me aqui nas teses recentemente desenvolvidas por François de Singly (1996A), que vem deslocando o debate sobre as funções da família, de seu eixo anterior, centrado na reprodução biológica e social, para o papel - que lhe parece preponderante na família contemporânea - de espaço privilegiado de reconhecimento e valorização das identidades pessoais latentes, de revelação e desenvolvimento do “eu", tanto adulto quanto infantil. Para ele, as relações pessoais e afetivas que se desenvolvem entre os membros da família (“les autruis significatifs”) permitem que cada um descubra os recursos profundos que configuram sua identidade íntima, responsável pelo sentimento de “autenticidade”, produto do individualismo contemporâneo.
                  
E que eu não ia gostar de estudar na Católica. Acho que é porque meus irmãos estudam na Federal, e de repente eu estudo na Católica?! Lá em casa sempre fui vista como a que estuda menos. Eu ia ficar meio chateada de não ter passado [na UFMG). [...] Mamãe até trabalha na Católica. Ela gosta demais da Católica. A Católica é uma universidade boa, eu sei, mas é porque é aquele preconceito que eu mesmo tenho, eu sei que se eu estivesse estudando na Católica eu ia estar fazendo um bom curso... mas eu prefiro falar que estudo na Federal. (Andréa, estudante de Direito.)
   
O mais interessante é que nem mesmo nos poucos casos encontrados de trajetórias acidentadas ou problemáticas, essa disposição - durável como qualquer outro habitus - é capaz de se cilterar. O depoimento que se segue foi prestado por Celso, estudante de Belas-artes, cuja vida escolar foi marcada por duas reprovações no ensino fundamental, curso supletivo no nível do ensino médio e algumas tentativas fracassadas de entrar na universidade:
             
Eu queria entrar para a Federal. Primeiro porque, apesar da minha mãe não me proibir... Por exemplo, se eu entrasse para a Católica ou alguma faculdade que fosse cara e tudo, ela até pagava. [...] Ai, assim, se ficar muito caro, dá um tempo, você tenta para passar para a UFMG depois. Mas só que eu não sei... eu sempre estudei aqui na UFMG [Centro Pedagógico], eu tinha um certo carisma com a UFMG também. Conhecia as escolas aqui, conhecia o campus todo. E se fosse estudar pela Católica ia ser outra mudança na minha vida, uma escola longe, pegar ônibus... Tiríham amigos meus mais velhos que estudavam na Federal, que falavam sobre o curso. Então, é de graça, tinha o espaço. Esse tipo de coisa. Católica... eu não conseguia me ver na Católica, não.

4.A VIDA ACADÊMICA
   
Tendo a pesquisa sido realizada no momento em que a maior parte dos jovens ainda cursava o ensino superior, torna-se impossível a observação da totalidade do percurso universitário. No entanto, alguns dados foram detectados e merecem ser destacados, no intuito de um maior desenvolvimento em investigações futuras.
   
A meu ver, o aspecto mais importante, em razão de suas conseqüências acadêmicas, é a força que adquirem, nessas trajetórias, as atividades extra-sala de aula, que ocorrem paralelamente às aulas e atividades curriculares mínimas obrigatórias. Para além do currículo básico previsto em cada uma das formações escolhidas, grande parte desses jovens realiza atividades que estendem, reforçam, ampliam os saberes e saber-fazer mínimos oferecidos nos cursos freqüentados.
   
E assim que 51% dentre eles detêm, ou detiveram em algum momento do curso, uma bolsa de iniciação científica (IC). A isso devem ser agregados os diversos casos de monitoria de graduação, participação em programas de extensão universitária e estágios facultativos, elevando ainda mais esse percentual.
    Alguns fatores devem ser considerados aqui. De um lado, o alto grau de informação sobre o sistema universitário (e seu funcionamento) de que dispõem esses jovens, dada a familiaridade que possuem com o mundo acadêmico, decorrente do contacto cotidiano e doméstico com os meandros desse universo:
                  
Eu sempre vivi no meio da universidade. Então assim, tenho uma facilidade... muita coisa que eu entendo de universidade, meus colegas não entendem às vezes... Então assim, muito porque... por convivência mesmo. Bom, minha mãe é professora universitária. Meu tio, irmão dela também, a irmã dela também. Então assim, domingo, na casa de minha avó, eu ouvia tudo da universidade. Ouvia mil casos, os amigos deles são professores da universidade. (Mareia, estudante de Física.)
   
De outro lado, o papel ativo desempenhado pelos pais revela-se fundamental na concretização desses fins:
         
Desde que eu entrei na faculdade, minha mãe e meu pai sempre falaram isso, que a gente tem que correr atrás, porque na faculdade ninguém vai correr pela gente. E que isso é nosso futuro profissional. Então, se a gente pudesse fazer monito-^ ria, a gente fizesse. Se a gente pudesse trabalhar em projeto de iniciação científica, trabalhasse. (Cecília, estudante de Terapia Ocupacional.)
                 
Dentro de casa eu sempre tive um apoio para poder desenvolver atividades extracurriculares. (...) E quando isso interferia de certa forma, um pouco na carreira acadêmica normal, meu pai nunca viu isso como problema. Ele sempre apoiou atividades extracurriculares..., acho que ele julga isso muito importante. E acho que de certa forma ele deve ter razão, acho que contribuiu para eu continuar assim.
                 
É... a importância que eu dou para as atividades extracurriculares. Porque o currículo padrão, todo mundo faz. (Lucas, estudante de Medicina.)

Ao ser indagado sobre o que entendia mais precisamente por atividades extracurriculares, ele respondeu: “Tudo que você não está fazendo só para a universidade, para ter aula e passar de um ano para o outro”.
     
 Característica freqüente em famílias culturalmente privilegiadas, o desprezo pelo utilitarismo ou, mais precisamente, por formas utilitárias de aprendizagem escolar - em oposição ao saber como fim e valor em si mesmo -, não constitui objeto deste texto e será tratado em outro trabalho, em fase de preparação. Convém, no entanto, assinalar que as inúmeras manifestações desse fenômeno - tais como: a depreciação do “decore-ba” (em oposição ao raciocínio), do trabalho meramente copiado do livro ou da enciclo-| pédia (em oposição a uma apropriação pessoal do conhecimento), do mundo do “cruzado” (i.e., da múltipla escolha, em oposição a questões abertas), do “macete”, da “apostila", a crítica ao estudo meramente em função da sanção exterior (da nota, da aprovação, do diploma) - acabam por se constituir num treinamento para a excelência e a autonomia intelectual, para a formação de um “espírito crítico”, valor intelectual contemporâneo cuja rentabilidade no mercado escolar nem sempre é imediata ou facilmente visível. Esta questão está exigindo, com urgência, estudos mais aprofundados - como o de Almeida (1999) em razão de seu peso na construção das desigualdades escolares e, ao mesmo tempo, de seu papel na camuflagem delas.
     
Mas não se deve pensar que o papel desempenhado pelos pais, nessas famílias, se limita a conselhos ou exortações verbais prodigados. Com efeito, ele se estende também ao plano mais eficaz das ações concretas, que expressam investimentos intensos e diretos na vida acadêmica do filho. Citemos alguns exemplos.
     
A mesma estudante de Terapia Ocupacional, acima mencionada, cuja mãe ocupava, à época, posto importante num dos principais órgãos nacionais de fomento científico, declarou ter contado grandemente com sua ajuda na elaboração de um projeto de pesquisa, mediante o qual candidatou-se e obteve bolsa de I.C. Mas o que parece mais interessante, neste caso, é a mobilização da mãe, que chegou a vir a Belo Horizonte13 conversar com a coordenadora do curso no sentido de incentivar o departamento a incrementar suas atividades de pesquisa, solicitando maior número de bolsas, convidando pesquisadores-visitantes, organizando eventos.
     
Numa fala pontilhada de hesitações que exprimiam provavelmente o constrangimento do entrevistado por revelar a mescla de papéis experimentada por seu pai (de pai e professor-orientador, ao mesmo tempo)14, Francisco, estudante de Ciências Biológicas, relatou:
                 
Meu pai ofereceu, como um professor normal da universidade, pra sé? meu orientador, eu fiz o projeto, eu... é... nesse ponto ele me ajudou, é... talvez, eu às vezes sentia até um pouco de constrangimento porque às vezes meu pai fazia, fazia muita coisa, entende? Eu dava pra ele corrigir, ele mais do que corrigia os projetos. [...] Ele sempre teve extremo cuidado pra não influenciar, não... na posição dele como professor e como professor com grande influência. Ele sempre teve extremo cuidado pra não ser injusto com outras pessoas da universidade. É... mas na hora de fazer o projeto, por exemplo, eu fazia o projeto e ele, aí ele punha muita coisa, ele corrigia demais, ele queria que o projeto ficasse perfeito mesmo.
   
Diferentes aspectos devem ser levantados na tentativa de compreender essas condutas paternas, sem esquecer que estamos apenas no início do caminho desta compreensão.
   
Um primeiro aspecto, que aparece de modo explícito no discurso dos entrevistados, refere-se à constante preocupação desses pais com as credenciais acadêmicas adquiridas pelo filho ao longo do percurso universitário, pois, melhor do que ninguém, conhecem a importância disso no desenrolar desse percurso, com repercussões sobre a vida profissional futura. “Olha, preocupe-se com seu currículo, é uma coisa importante para você”, foi o conselho dado pelo pai de Manuela, quando a estudante acabava de ingressar no curso de Pedagogia.
   
Sociólogos da família e sociólogos da educação vêm discutindo, nos últimos anos, a necessidade com a qual se defrontam as famílias contemporâneas, de instrumentalizar seus filhos para as diferentes situações de competição que estes deverão enfrentar na vida, enfatizando, dentre elas, a competição pelo capital escolar, cuja importância na determinação do destino ocupacional e da posição social do indivíduo, é cada vez maior (Nogueira, 1998C).
  
 Um segundo aspecto - de caráter menos instrumental - merece ser levado em consideração na elucidação do fenômeno. Ele diz respeito ao lugar ocupado pelo filho, nos dias de hoje, no universo afetivo dos pais. Cada vez menos uma perspectiva de ganho futuro para eles, um recurso contra suas inseguranças na velhice ou um meio de reprodução da descendência, a criança deixa de representar um “capital” para se tornar um “bem de consumo afetivo”, significando cada vez mais, para os pais, um objeto de afeto e de preocupação, sua razão de viver, maneira de se realizar, fonte de prazer e de orgulho (Kellerhals et ai, 1984). A meu ver, é Godard (1992) quem melhor analisa os sentimentos de orgulho e de êxito pessoal demonstrados pelos pais face ao sucesso ou bem-estar psicológico do filho, símbolo para eles do bem fundado de suas próprias ações e concepções educativas, “como se esse êxito se tomasse para os pais um critério fundamental de sua auto-estima”. E, ao inverso, do mesmo modo, o fracasso do filho - escolar ou não - é vivido quase que inteiramente como de responsabilidade dos pais e, com freqüência, acompanhado de culpabilidade por parte desses últimos.
                 
Bom, eu acho que, para o meu pai, principalmente, porque meu pai, por ser da universidade, sempre ter sido um cientista, de pesquisa e tal, ele gosta de me ver envolvido nessas coisas, de, por exemplo, quando eu consegui a bolsa [de I.C.], ele gostou. [...] Falou: vai fundo mesmo. Eu acho que ele acha legal, se sente mais ou menos orgulhoso. Eu acho.
E mais à frente:
                  
Mas minha mãe gosta também. Ela dá muita força. Tipo ela está falando: ah, já vou pagar o mestrado para você fora, não sei o quê, arrumar um mestrado para você. (Danilo, estudante de Geologia.)
   
Porém, esses últimos aspectos afetam as famílias contemporâneas de um modo geral, embora em graus diversos segundo o meio social. Onde situar, então, a especificidade do grupo aqui estudado, com relação a essas questões? Por ora, só é possível elaborar a hipótese de que essas famílias se beneficiariam de uma forma de capital que não se reduz ao capital cultural, embora intrinsecamente ligado a ele. Trata-se de um patrimônio que decorre de sua condição de produtores do saber, de sua relação profissionalizada com ele (e com sua transmissão metódica) e que pode ser investido lucrativamente na escolaridade dos filhos, como demonstraram os exemplos acima. Essa forma de riqueza - que chamaríamos de “capital profissional" - faz deles pais “profissionais” de estudantes universitários, no mesmo sentido em que Establet (1987) falou de um “pai de aluno profissional” para definir as mães, pertencentes aos estratos superiores, encontradas em sua pesquisa.
   
Por parte dos jovens - tal como “necessidade feita virtude”15 - o processo de aquisição do habitus familiar expressa-se por meio da valorização dessas atividades e, na maior parte dos casos, de sua adesão a elas, como se vê nas palavras do estudante de Ciências Biológicas acima referido:
                  
Logo que eu entrei [para a universidade], eu já comecei... meu pai ficou tão animado, né, de eu tá... e eu... porque assim, desde os meus quatro anos de idade, eu saio com meu pai pro mato pra pegar libélula, porque ele tem como hobby a zoologia e principalmente a entomologia, [...] daí vem o fato de eu ter sido tão bom em biologia. E... então quando eu entrei na universidade, eu já comecei a pegar estágios de uma vez. Quando eu passei, meu pai falou: “bem, já que ocê passou na universidade agora você pode assumir estágios”. Mas não é estágios, é participar de atividades biológicas, então eu saí numa expedição, antes de eu entrar na universidade praticamente, eu saí numa expedição no sul da Bahia. E uma equipe que tava saindo pra estudar uns mamíferos e meu pai, ele contratou uma pessoa pra acompanhar essa expedição e pra pegar odonatos, libélulas, que ele estuda, né? Coincidiu que quando eu passei no vestibular, essa pessoa não pôde mais acompanhar a equipe e aí eu fui no lugar dessa pessoa. Então, eu fiquei dois meses rodando a Bahia inteira, no litoral baiano né, acompanhando essa equipe, olhando as partes de mamífero e pegando libélula pro meu pai. [...] E o meu currículo já começou a ser feito aí.
   
É quase desnecessário lembrar que a realização dessas atividades suplementares aumenta enormemente as chances de direcionamento do estudante para os cursos de pós-graduação stricto sensu, imediatamente após a conclusão dos estudos de graduação:
                  
Eu trabalhei na iniciação científica com astrofísica com o orientador que eu gostei muito de trabalhar com ele. A gente trabalhou num projeto que eu não tinha conseguido acabar na I.C. Então assim, tinha idéia também de continuar aquilo, de conseguir fechar aquilo. E... bom, eu tava com a faca e o queijo na mão. E durante a graduação, eu fiz três disciplinas do mestrado. Então, essas disciplinas, eu não podia aproveitá-las na graduação, mas, quando eu entrasse pro mestrado, eram automaticamente creditadas. (Mareia, estudante de Física.)
  
 Todos esses fatores condicionam, por certo, o enriquecimento encontrado nos históricos acadêmicos desses universitários. Entretanto, eles só encontram plena capacidade de atuação porque se dão em meio a condições objetivas de existência que eximem os sujeitos do exercício do trabalho remunerado, propiciando, por isso mesmo, estudos em turno diurno. 76% dos estudantes da amostra não exerciam atividade remunerada durante o curso superior e 95% deles realizavam seus estudos universitários no turno diurno16.

Ainda que apenas 8 dos 37 cursos oferecidos pela UFMG funcionassem, à época da pesquisa, no período noturno, não se deve acreditar que a maciça concentração verificada no tumo diurno obedeça simplesmente a razões de oferta educacional. Como se verá mais à frente, são as lógicas sociais subjacentes às estratégias de escolarização desse grupo social que melhor dão conta do fenômeno. E interessante observar ainda que os únicos dois casos encontrados de estudos noturnos deram-se em cursos de baixo prestígio (Pedagogia e Ciências Contábeis), segundo a definição dos sociólogos, isto é, cursos cuja clientela apresenta, em maior grau, as características do desfavorecimento social17.

Não é novidade para os pesquisadores que no quadro educacional brasileiro a clivagem social mais importante a dividir as diferentes categorias sociais de alunos face à distribuição dos bens escolares, é aquela referente ao turno freqüentado. Dos estudos pioneiros, como os de Gouveia (1967,1968,1981), aos mais atuais, como o de Whitaker & Fiamengue (1999), mantém-se a constatação de que a variável turno é a que se apresenta mais fortemente correlacionada à origem social e aquela que possui o mais forte poder preditivo, superior mesmo ao da variável rede de ensino (pública/particular). Estudar à noite representa, portanto, uma séria desvantagem na corrida pelos títulos escolares, efeito que não escapa certamente aos pais pertencentes aos meios culturalmente favorecidos, os quais se mostram dispostos a todo tipo de sacrifício para que o destino escolar dos filhos não corra riscos.
   
Dentre as situações que melhor deixam ver esse traço de conduta, talvez a mais notável seja a oposição que fazem à conciliação de estudos e trabalho:
                 
Eu tinha idéia mesmo de ir trabalhar, né? E bem... um pouco combatida pelo meu pai e pela minha mãe, né? Quer dizer, eles eram um pouco contra isso, né? Eu acho que professor universitário tem muito disso de querer que o menino faz um nível superior. [...] Pensando assim rapidamente, eu não conheço... não conheço ninguém que saiu para trabalhar. Que era filho de professor e foi trabalhar. (Marcos, estudante de Química.)
  
 Já discuti, em artigo anterior (Nogueira, 1997), as teses bourdieusianas sobre a propensão a investir no mercado escolar por parte dos grupos que devem sua posição social essencialmente à posse de capital cultural. Tributários do reconhecimento e da consagração escolares, desenvolvem disposições ascéticas face ao saber e investem pesados esforços em sua aquisição via escola.
                   
Meu pai falou que enquanto eu estivesse estudando, ele gostaria que eu não trabalhasse. [...] Ele falou que ele lutou até hoje é para eu estudar, então ele quer que meu tempo integral seja para estudo. (Cecília, estudante de Terapia Ocupacional.)
   
Mas por que, no imaginário dessas famílias, trabalhar fora influiria negativamente sobre a vida escolar? Quando indagados sobre isso, as respostas dos entrevistados apontam quase sempre, como justificativa, o prejuízo para os estudos. Como a estudante de Comunicação, Solange, que revelou: “Trabalhar, eles [os pais] não aceitam muito, não. Até hoje. Forque acha que vai atrapalhar estudo”.
   
Esse receio parece ir ainda mais longe, pois esses pais chegam até mesmo a evitar a colaboração dos filhos nas tarefas domésticas, toda vez que isso representar, a seus o-lhos, uma ameaça ao aproveitamento escolar. A esse respeito, observe-se a semelhança entre os discursos de Cinthia, estudante de Psicologia, e Miguel, estudante de Filosofia, respectivamente:
                  
Se a gente está estudando, está estudando. Se tem que fazer alguma coisa, eu estou estudando, eu estou ali, eu sou dispensada de outras atividades. Por exemplo? Ajudar, arrumar a cozinha. Se eu tenho uma prova amanhã, falo: não, vou estudar, então estou liberada.
              
[...] quando eu estou estudando, assim, digamos que eu esteja estudando, chega o mercado para ser tirado do carro, eu vou tirar. Mas se eu ficar estudando, ninguém vai pedir para eu parar de estudar. Se alguém tiver lendo, fica lendo. Tem outros lugares, por exemplo, que as pessoas falam assim: pô, você não está fazendo nada, você está lendo! Isso é uma coisa que lá em casa: não, está estudando, está estudando.
   
Quanto aos 9 casos encontrados de exercício de atividade remunerada, um aspecto chama a atenção: em 7 dentre eles, trata-se de trabalho em tempo parcial e, na maior parte, com caráter eventual. Quanto à sua natureza, ele consiste em aulas particulares (de disciplinas afins ao ramo universitário freqüentado ou de língua estrangeira), ministradas em domicílio ou na residência do universitário, ou, em aulas de língua estrangeira (inglês ou francês) ministradas nos chamados “cursos livres” de idiomas. Em geral, esse segundo tipo de atividade decorre dos períodos de estudo no exterior, como se verá no próximo item.
   
E aqui uma consideração se impõe. Muito provavelmente a razão pela qual tais práticas são toleradas pelas famílias, reside nas condições de trabalho e, sobretudo, no conteúdo das mesmas. Atividades de ordem intelectual e, mais precisamente escolar, esses encargos docentes não representam nenhuma contradição com o ofício de estudante mas, ao contrário, vão no sentido de seu prolongamento.
   
Mas seria essa recusa à conciliação trabalho/estudo uma tendência irreversível, nesses meios? É preciso ser cauteloso quanto a isso, pois dados mais recentes, emanados do levantamento feito por Whitaker & Fiamengue (1999) com o público estudantil da UNESP, sugerem que, nos últimos anos, sob pressão do modelo neolibeicil, famílias das classes médias (no sentido econômico do termo), mesmo aquelas mais providas em capital cultural, têm sido obrigadas a levar seus filhos ao mercado de trabalho, como forma de enfrentamento da crise econômica que as afeta mais diretamente.

5.OS ESTUDOS NO EXTERIOR
   
A análise dos itinerários escolares percorridos pelos jovens pesquisados não ficaria completa sem referência à marca do cosmopolitismo presente nessas trajetórias. Com efeito, praticamente a metade da amostra (46%) passou por, pelo menos, uma experiência de estudos no estrangeiro. Sobre o total de 37 casos investigados, 17 apresentavam experiências de escolarização no exterior, em momentos diferentes de sua escolaridade. Dentre esses, 4 casos acusaram duas experiências internacionais diferentes: em 2 casos no mesmo país (os Estados Unidos) e, nos 2 restantes, em países diferentes (Bélgica e França, num deles; Holanda e França, no outro).
   
A estratégia de escolarização no exterior encontra suas formas de viabilização através de diferentes mecanismos:

a)Mudança temporária da família para país estrangeiro para fins de aperfeiçoamento acadêmico dos pais (doutorado, pós-doutorado, estágio sabático, etc.). Neste caso, a duração da escolarização no estrangeiro e o período escolar freqüentado variam de um caso a outro; podendo, este último, incidir sobre desde as séries elementares até o período universitário. E de se salientar que alguns desses jovens usufruíram de mais de uma temporada de estudos no exterior, pelo fato de nem sempre haver coincidência entre os estudos do pai e os da mãe, mesmo quando estes vivem em regime matrimonial. E freqüente, no discurso dos pais que optam pela saída do país, encontrarmos associados o propósito de aperfeiçoamento acadêmico com a oportunidade de oferecer aos filhos essa experiência escolar. Podendo até mesmo, em alguns casos, a segunda razão primar sobre a primeira.

b)Estadias de mais curta duração (por volta de 6 meses), financiadas pelos pais e, via de regra, no decorrer dos estudos universitários. Neste caso, mediante o mecanismo de trancamento de matrícula na instituição de ensino brasileira, é o jovem que se desloca sozinho para o exterior, seja para um estágio lingüístico, seja para estágios no campo de seus estudos universitários. Como, por exemplo, o caso de Irene, estudante de Arquitetura, que ao final do 52 período do curso ganha de presente do pai uma viagem à Europa, onde permanece 6 meses e realiza um curso de inglês, na Inglaterra, por um mês, e depois segue, na Itália, cursos de italiano e de História da Arte e do Renascimento. Ou, então, o caso de Francisco, estudante de Biologia, que ao final do 5S período trancou matrícula e foi para a Europa, graças ao empenho da família, segundo suas palavras:
              
(...) meus pais sempre quiseram levar a gente para o exterior. Eles achavam extremamente importante todos os filhos terem uma dose de Europa ou Estados Unidos. E como a situação financeira de meus pais começou a melhorar depois que meu pai aposentou e pegou outro emprego, ele propôs à gente, deu como um presente uma viagem ao exterior para cada filho. [...] Minha irmã arrumou um estágio num hospital de Roterdã, e eu arrumei um curso de inglês em Londres, [...) e consegui, com a ajuda de um inglês, professor da universidade, um estágio de um mês no zoológico de Londres.
   
c)Participação em programas internacionais de intercâmbio cultural, organizados por empresas operadoras de intercâmbio. Também nesse caso, é o jovem sozinho que se desloca para o exterior, passando lá um período que varia freqüentemente entre seis meses e um ano, e que ocorre - na maior parte dos casos - durante os estudos de nível médio. Pesquisas recentes mostram que o número de “intercambistas” multiplica-se rapidamente, de ano a ano, no seio das camadas médias18, fazendo com que a viagem de estudos ao exterior venha deixando de ser o apanágio de famílias altamente equipadas em capital econômico, embora não se faça sem um certo sacrifício por parte do grupo aqui estudado. Vem comprová-lo a história de Catarina, estudante de Ciências Econômicas que, ao final da segunda série do ensino médio, não pôde passar mais do que 6 meses nos Estados Unidos, em razão dos recursos financeiros de que dispunha a família à época:

No Natal eu ganhei... meu presente de Natal era uma caixinha desse tamanho [gesto], Na hora que eu abri assim, era um bilhetinho escrito assim: vale uma viagem de intercâmbio... eu nem acreditei! [...] Só que, por questões de preço mesmo, o outro era muito mais caro, e a gente acabou optando por esse de seis meses mesmo. Porque os meus pais na época não tinham condições de me mandar ficar um ano, né?
  
Esses dois últimos depoimentos constituem novas manifestações do caráter ascético das práticas educativas desses pais, dispostos a renunciar a satisfações mais terrenas (“mundanas”, nos termos de Bourdieu), em prol de oportunidades culturais oferecidas aos filhos19.
   
Com relação ao país de destinação, convém chamar a atenção para o fato de que a escolha das famílias recai sobre os países desenvolvidos, ditos do “primeiro mundo”, e, dentre esses, uma nítida preferência se manifesta por aqueles de língua inglesa. Esse fenômeno está intimamente ligado a um outro traço marcante do estilo educativo das famílias aqui enfocadas, relativo à enorme importância atribuída, no plano das atividades extra-escolares, ao estudo das línguas estrangeiras (em especial o inglês), desde muito cedo; para alguns antes mesmo dos 7 anos. 90% dos pesquisados seguiram, em algum momento de sua escolaridade, ou em todo seu decorrer, cursos livres ou aulas particulares de inglês, que para esse grupo social adquire hoje o caráter de
um novo saber mínimo obrigatório. Limito-me, entretanto, a chamar a atenção do leitor para o papel que este fator desempenha na trajetória escolar do jovem (em particular, no seu desempenho nas provas de língua estrangeira do vestibular) e na própria elaboração do projeto de estudos no exterior.
   
A experiência de uma temporada de estudos fora do país repercute na vida desses jovens de várias maneiras. Retomo aqui - posto que tratei mais detalhadamente do assunto em outro texto (Nogueira, 1998B) - apenas sua influência mais direta sobre o itinerário escolar propriamente dito.
   
Como seria de se esperar, o domínio de uma língua estrangeira importante beneficia o aluno, na volta ao país, no acompanhamento dessa disciplina na escola brasileira, de um modo geral. Mas é sobretudo no momento do vestibular que essa vantagem cultural manifesta-se com maior visibilidade.
   
Mateus, estudante de Engenharia Elétrica, morou na Inglaterra, dos 6 aos 8 anos de idade, ocasião em que o pai realizava lá seu pós-doutorado, e a mãe, seu doutorado. Ele declara:
                 
Quando eu passei na primeira etapa [do vestibular], eu já estava esperando passar... Outra prova que eu sempre tiro o total é inglês, porque eu sou formado em inglês. Quando eu cheguei da Inglaterra, eu sabia muito inglês, como eu era muito novo, não tinha curso de inglês que me aceitasse, porque a turma que eu entraria ia ser de gente muito velha, então eu tive que esperar até a sexta, oitava série, sei lá... pra mim entrar num curso de inglês, mesmo assim numa sala de gente muito mais velho.
   
Gilberto, estudante de Matemática que, aos 14 anos, obteve o consentimento dos pais para passar seis meses na Holanda, na casa dos tios, onde estudou num colégio internacional [ISSE] para filhos de homens de negócios, ao ser indagado se havia valido a pena, revela:
                    
Valeu, assim, pelo fato de eu ter aprendido inglês, isso sim, [...] quer dizer, todas as aulas eram em inglês e eu tinha contacto com os colegas.
   
Mas é no plano das definições que a carreira escolar - em seu desenrolar - vai impondo ao jovem, que a influência dessa experiência parece ganhar toda sua importância. Eis algumas ilustrações nesse sentido:
                   
Foi na França que eu decidi justamente que ia fazer Matemática. (...) Foi aí que eu criei gosto mesmo por matemática. Eu não sei, mas tenho a impressão que o sistema francês de ensino é quinhentas vezes melhor que o brasileiro. A gente tem a impressão que matemática é uma coisa... aqui no Brasil, uma coisa assim, sem sentido, [...] sem lógica, sem profundidade. [...] Aqui no Brasil, a matemática escolar não faz pensar. Chega ao cúmulo das pessoas acharem que você tem que decorar coisas para aprender matemática. [...) E foi lá que realmente eu vi que não era isso, comecei a ver que era uma coisa muito mais ampla, muito mais interessante. Bom, a primeira diferença é o bom nível, que eu estava dizendo. A segunda diferença é a mentalidade. [Aqui] é só no segundo, terceiro período, quando você faz o curso de Matemática, que começa a se ver isso, a idéia da demonstração matemática, que é a base. A matemática lá, você já ensina desde o começo com isso. Quer dizer, aqui no Brasil é: calcula isso. Lá é-, mostra aqui. Simplificando, mas é assim.
   
Esse foi o depoimento colhido do estudante de Matemática acima citado, porém dessa vez relativo a sua segunda estadia no exterior. E que aos 17 anos, ele embarcou para a França, onde o pai iria realizar seu pós-doutoramento, residindo lá por 14 meses, ocasião em que finalizou seus estudos de nível médio no Liceu Montaigne, em Paris, tendo obtido, ao final, o “Baccalauréat C”.
   
Por sua vez, Francisco, o estudante de Biologia também já mencionado, declarou a respeito do estágio que realizou no zoológico de Londres:
                 
 Isso foi o que decidiu minha vida. Porque eu vi que eu gostava do zoológico, de criação em cativeiro, e me deu muita força pra passar no concurso da Fundação Zoobotânica, no zoológico daqui, que é onde eu estou agora.
   
Ao referir-se ao estágio que fez na Itália, em História da Arte e do Renascimento, Irene, a estudante de Arquitetura, também já mencionada acima, afirma:
                
 Eu comecei a ficar simplesmente fascinada com as coisas que eu tava vendo em termos de arquitetura, porque eu nunca imaginei que eu fosse num lugar... aonde o espaço arquitetônico, onde as coisas aconteciam daquela maneira. [...] Aí eu voltei pro Brasil, e aí eu tive contacto com uma matéria que chamava Teoria da Arquitetura, e eu comecei a entender toda aquela beleza que me deixou fascinada. (...) Aí eu fiquei fascinada com aquela parte, aí fiz uma BIC, Bolsa de Iniciação Científica, sobre esse tema de teoria da arquitetura, fazendo uma releitura da história da arquitetura.
   
Para outros, o impacto sobre a trajetória acadêmica dar-se-á menos no plano da descoberta dos objetos de interesse e mais no que concerne às condições otimizadas de aproveitamento da formação que recebem na volta ao país. Este é o caso, por exemplo, de Miguel, estudante de Filosofia que, imediatamente após ser aprovado no vestibular brasileiro, rumou para a França (acompanhando a família que se mudava em decorrência do pós-doutorado do pai), onde permaneceu por dois anos cursando Filosofia no Institut Catholique de Paris. Na volta ao Brasil, ele retoma - graças ao mecanismo legal de equivalência de disciplinas - os estudos de Filosofia, sentindo-se, entretanto, apoiado em bases mais sólidas do que seus colegas, no acompanhamento do curso de graduação.
                 
Eu senti, quando eu estava na graduação, que eu tinha uma formação melhor do que meus colegas. Eu senti isso em duas coisas. Eu sentia isso porque eu tinha mais facilidade em organizar um texto. [...] Que é o negócio da dissertação francesa, é super-rígida. [...] Outra coisa [...] a gente tinha muito contacto com os textos. Quer dizer, a gente lia muito os próprios textos. [...] Acho que a minha melhor virtude filosófica, digamos assim, se eu tenho alguma, é saber ler texto. Eu sabia pegar um texto de um filósofo e ler melhor. [...] Isso eu atribuo à formação francesa. Era uma coisa que a gente fazia muito exercício. [...] Tinha também dissertações temáticas. São os dois exercícios escolares muito formadores. Um é o comentário. Freqüentemente textos curtos. E o outro eram dissertações com temas. Por exemplo, o ano que eu fiz era “consciência”. Cada ano tinha um tema assim.
   
É também o caso de Lucas, estudante de Medicina, que - devido ao pós-doutorado do pai - trancou matrícula, ao final de seu  período universitário, e passou um semestre na Inglaterra estagiando no Instituto de Psiquiatria da Universidade de Londres, onde -juntamente com um professor e um doutorando desse instituto - desenvolveu um projeto no laboratório de neuroquímica que resultou em dois artigos já publicados: o primeiro no Biochemistry Journal (1993) e o segundo em Neuroscience Letters (1994). Ao ser interrogado sobre o saldo da experiência, ele diz:
                 
Uma, que me deu uma margem de inglês muito boa, não tive mais problema com leitura de textos em inglês, então assim, em termos de bibliografia, só de já poder ler textos em inglês sem dificuldade, já é um avanço. Outra, que foram os dois trabalhos publicados que, para o currículo, sem dúvida nenhuma, pesa. E acho que mais em termos da medicina, a própria experiência de trabalhar sozinho [ele se refere ao trabalho de laboratório].

CONSIDERAÇÕES FINAIS
   
Ao trabalhar com essas trajetórias escolares, minha intenção era, de fato, conhecer, mesmo que parcialmente, os mecanismos que tomam o capital cultura! (e profissional) familiar, rentável em termos escolares. Em outras palavras, observar como se dá o processo de conversão de capital cultural em capital escolar. Tentei fazê-lo através da observação - em contexto brasileiro - de alguns usos do sistema de ensino por parte daqueles que detêm uma posição dominante no espaço escolar, particularmente no mundo acadêmico e da pesquisa.
   
A hipótese norteadora - já suficientemente testada em diversos países - é a de que as diferentes categorias sociais são desigualmente predispostas a “compreender, valorizar e praticar o jogo escolar” e que tal predisposição encontra-se intimamente associada ao volume do patrimônio cultural possuído (Perrenoud, 1970: 34).
   
E bem verdade que a evolução mais recente da produção sociológica insiste na necessidade de se atentar para as variações internas a um mesmo grupo social, o que obriga o               analista a se dotar de um instrumental teórico-conceitual mais fino, capaz de detectar as dinâmicas e a diversidade dos modos de funcionamento de cada família segundo a trajetória social dos pais, os acidentes biográficos, as características de cada filho, etc. (Mon-tandon, 1987; Kellerhals & Montandon, 1991; Boyer & Delclaux, 1995; Lahire, 1995; Rochex, 1995). Desejável, sem dúvida alguma, um estudo desse tipo não foi, porém, possível nas condições atuais desta pesquisa.
   
Entretanto, como comprovam os (cada vez mais numerosos) estudos comparativos, apesar das diferenciações internas, regularidades evidentes e flagrantes nos valores, disposições, condutas de sujeitos originários de um mesmo meio social são facilmente identificadas (Establet, 1987; Lareau, 1989; Sirota, 1994; Boyer & Delclaux, 1995; Bou-noure, 1995; Dubet & Martucelli, 1996; Gewirtz et al., 1995).
No caso das famílias das camadas médias intelectualizadas aqui enfocadas, foi possível perceber sua capacidade de tirar proveito das oportunidades, trunfos e recursos disponíveis -em cada conjuntura particular do campo escolar - em favor do destino escolar dos filhos.
 
Estratégias de excelência, por parte dos pais ou do próprio jovem, foram detectadas no que concerne à escolha dos estabelecimentos de ensino, à utilização do capital de informações sobre o sistema educativo, às formas de gestão da carreira escolar, ao investimento do capital social e profissional paterno, às estadias no exterior. Fizeram-se ver es-colaridades no decurso das quais pouco espaço se deixa ao acaso; em que a antecipação e a previdência primam sobre a correção dos desvios; em que a formação intelectual e a preparação para a autonomia têm precedência sobre a formação profissional e a relação pragmática com o conhecimento. Escolaridades que se desenrolam num horizonte temporal estendido que autoriza o pressentimento da chegada aos níveis mais altos da pirâmide escolar. Escolaridades que se dão em escala internacional, propiciando, desde cedo, a experiência de outros sistemas de ensino e a aquisição de um habitus cosmopolita.
      
Mas a essa altura o leitor estará se perguntando se essa não é uma visão idealizada da questão, tudo se passando como se se tratasse de uma lei perfeita e inexorável da transmissão familiar das vantagens e dos privilégios culturais.
      
Com efeito, a despeito do peso dos determinantes socioculturais nas trajetórias examinadas, 5 estudantes da amostra (14%) apresentaram acidentes em seu itinerário escolar. Além disso, dados relativos ao conjunto das fratrias mostram, por exemplo, que a história escolar de 28% dos irmãos dos entrevistados apresenta atrasos, interrupções e, até mesmo, alguns casos de abandono dos estudos. Nesses casos, como era de se esperar, as famílias se vêem obrigadas a reorientar suas condutas e investimentos, adaptando-os às diferenças na escolaridade de cada filho. Não se pode, portanto, tratar o sucesso escolar nesses meios como uma fatalidade sociológica.
     
No entanto, por um longo período de tempo, uma forte tradição sociológica nos habituou a pensar que a transmissão intergeracional de capital cultural se fazia, à semelhança da herança biológica, por um processo quase que automático de transferência do patrimônio. Para o sociólogo da educação e da família François de Singly (1993B; 1996B), essa tradição se desenvolve a partir dos primeiros escritos de P. Bourdieu e J.C. Passe-ron, em especial do livro Os herdeiros, de 1964. A seu ver, o uso da metáfora da herança cultural e sua conseqüente “analogia” com a herança econômica apresenta um lado positivo inegável que deve ser preservado: o de revelar que os benefícios culturais (particularmente os escolares) constituem uma forma de riqueza e que, a exemplo dos bens materiais, pode ser transmitida. Entretanto, ele se acompanha, ao mesmo tempo, de um efeito perverso, o de ocultar o trabalho específico que essa herança requer para ser apropriada. Converter o capital cultural familiar em capital pessoal demanda mobilização e de ambas as partes: da parte dos jovens bem como da parte dos pais.
     
Dois fatores permitiram esse avanço teórico. De um lado, a constatação do fenômeno do fracasso escolar entre indivíduos pertencentes aos estratos superiores da população, inclusive às elites diplomadas (Fourastié, s. d.)20. De outro, a observação, em lares altamente favorecidos (inclusive do ponto de vista cultural), de intenso e diversificado investimento pedagógico, como meio de tomar atuante o capital familiar de origem, evitando assim sua permanência em estado virtual (Establet, 1987). É para o desenvolvimento desse segundo ponto que o presente trabalho pretende contribuir.
     
Se a análise dos dados empíricos aqui realizada tem alguma validade, é forçoso reconhecer que a alternativa “herança ou mobilização” contém muito de artificial e que essas duas dimensões não podem ser dissociadas no estudo das formas de transmissão do privilégio cultural.




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