Relação
com a escola e o saber nos bairros populares
Bernard
Charlot
Resumo O
texto reúne as principais questões desenvolvidas pelo professor Bernard
Charlot em uma conferência realizada na UFSC, em 2002. O autor discute a
problemática teórica e apresenta dados de suas pesquisas sobre a relação e o
sentido que alunos estabelecem com a escola e o saber, especialmente em bairros
populares, na França. A atividade intelectual, do sentido, do prazer são,
segundo o autor, questões chaves do ensino. Os resultados das pesquisas
realizadas mostram que tanto o êxito quanto o fracasso na escola fazem parte
de um processo complexo, onde interagem diferentes mediações. Daí a importância
da pesquisa e da mobilização simultânea de diferentes disci
plinas para
dar conta do caráter social e singular desses fenômenos escolares. Palavras
chaves Relação com o saber; Fracasso Escolar; Processos Escolares.
Eu gostaria
de agradecer à Universidade Federal de Santa Catarina pelo convite. Agradecer
vocês também por estarem aqui sentados no chão escutando um sotaque francês, o
que nos remete à questão do sentido, do saber, temas que tratarei nessa
conferência. Em primeiro lugar, vou apresentar o tema da palestra, depois vou
ler alguns textos escritos pelos jovens para vocês terem uma idéia dos dados
sobre os quais estamos pesquisando e, ainda, apresentar a problemática teórica
e sua relação com a Sociologia da Reprodução de Pierre Bourdieu. Há treze anos
estamos pesquisando as relações dos alunos com a escola e com o saber e eu vou
focar a conferência sobre alguns resultados dessas pesquisas.
Estamos
pesquisando sobre três questões básicas: 1ª) para um aluno, especialmente de
meios populares, qual o sentido de ir à escola? 2ª) para ele, qual o sentido de
estudar ou de não estudar na escola? 3ª) qual o sentido de aprender, de
compreender, quer na escola quer fora da escola 2 . Por que levantei essas
questões? Para falar simplesmente da experiência do aluno que não entende, que
fracassou ou está fracassando.
Essa é uma
experiência que os docentes do mundo inteiro conhecem.
Neste caso,
quando um aluno encontra dificuldades, que questão devemos nos colocar? Será
que devemos saber se o aluno tem carências socioculturais que, na França,
chamamos de handicaps? Será que devemos perguntar se o professor ensinou com um
método construtivista ou tradicional? Qual a questão? Acho que tem uma questão
mais imediata e muito simples, mas importante, para desconstruir uma parte da
Sociologia que foi construída.
A primeira
questão é saber se o aluno estudou ou se ele não estudou porque se ele não
estudou, é evidente que não aprendeu e fracassou. Segue uma outra questão:
porque ele estudaria? Qual o sentido de estar na sala de aula fazendo ou
recusando-se a fazer o que o professor está propondo? Qual é o prazer que pode
sentir ao fazer o que deve fazer na escola? As questões da atividade
intelectual, do sentido, do prazer, na minha opinião, são chaves do ensino.
Quem puder
resolver as questões do sentido, da atividade intelectual e do prazer, vai ser
um docente bem sucedido. É muito difícil resolvêlas. No entanto, me parecem
fundamentais, muito mais fundamentais do que saber se o ensino é construtivista
ou tradicional. Descobri que, no Brasil, tradicional não é um conceito, é um
insulto. Mas se deveria refletir sobre a significação do que é tradicional. Tem
uma filosofia de ção tradicional cujos métodos são também interessantes. Eu sou
mais construtivista do que tradicional, mas sei o que estou dizendo, do que
estou falando ao dizer construtivista. O que importa no método construtivista é
a atividade intelectual do aluno. Quem consegue desenvolver, incentivar a
atividade intelectual do aluno, faz o que e mais importante de um ponto de vista
construtivista. Já encontrei professores rotulados de tradicionais que davam
mais oportunidades para os alunos ter uma atividade intelectual do que outros
rotulados de construtivistas. O que importa não é o rótulo, o que importa é ter
o objetivo de permitir ao aluno uma atividade intelectual, porque é ele que
aprende, ninguém pode aprender no lugar do aluno. Ele deve ter uma atividade
intelectual.
Após essa
breve apresentação da área de reflexão de nossas pesquisas, gostaria de
comunicar alguns dos seus dados. Estamos utilizando alguns métodos clássicos,
como a entrevista chamada de semiestruturada3 , e também estudos voltados para
a análise das tarefas dos alunos para verificar como realizaram suas tarefas.
Esse método é muito interessante, pois permite entender como está se
desenvolvendo a atividade do aluno. Utilizamos um outro método, que criei há 12
anos e que em francês se chama bilan de savoir. Esse tem várias traduções em
português: a tradução literal é balanços de saber, outra é escritas de saber,
que também me parece interessante. Não importa o título, o que importa é o
método. O que está sendo solicitado aos alunos é um texto respondendo ao
seguinte pedido: “Desde que nasci aprendi muitas coisas na minha família, na
rua, na escola e em outros lugares. Dentre as coisas que aprendi, quais são as
mais importantes? E agora, o que estou esperando?” Eles escreveram textos muito
interessantes, sobretudo a partir da 3ª, 4ª séries. O tamanho do texto varia de
uma linha (por exemplo, para perguntar “quem é o bobo que perguntou isso?”)
até uma página. Vou ler trechos de textos que foram escritos há dez anos, mas
os estou usando porque foram da primeira geração e são importantes para
levantar algumas indagações. Estamos pesquisando nos bairros populares, no
norte de Paris, em Saint-Denis onde fica minha universidade.
O 1º texto é
de um jovem de 16 anos, de classe popular. Ele responde: aprendi as coisas que
admiro na cidade como amizade, fazer sacanagem, me divertir, conhecer lugares,
ir na boate. Na escola, aprendi a escrever, ler, falar, me expressar, pensar,
saber, ter êxito, ter confiança em mim e todas essas coisas me servirão depois
para algum trabalho e para o futuro. Em casa aprendi a andar, falar e gostar
dos meus semelhantes. Mas a coisa mais importante pra mim são os estudos, mesmo
que eu não preste muita atenção porque os colegas de classe nos põem mais em
enrascadas do que nos safam delas
(...). Tem
uma frase que merece reflexão: o que espero mesmo agora é que eu me dedique
mesmo ao estudo, para poder ter êxito em todas as minhas escolhas e
empreendimentos, para ter uma profissão no futuro. Se entendermos o que
significa na cabeça de um adolescente de bairro popular, de 16 anos, essa idéia
de que estava esperando algo acontecer como se fosse um milagre, vamos entender
uma coisa importante do ponto de vista da teoria, mas também da prática, e que
discutiremos à frente.
Agora vou
ler um 2º texto, escrito por um aluno da 4ª série, filho de migrante, com mais
ou menos nove ou 10 anos. Ele escreveu esse texto como se fosse uma carta para
o seu docente. Bom dia Bruno (nome do docente), sou eu, Bilal. Tenho muitas
coisas para te dizer desde que eu nasci. A primeira coisa que aprendi foi falar
e dizer mamãe mas, quando tinha um ano, eu adorava contar. Essa era minha
paixão. Eu contava para me acalmar. Aprendi a falar em Paris, na minha casa.
Aprendi a falar, correr, contar com minha mãe, meu pai, meu irmão e minha irmã
mais velha. Depois, com três anos, fui ao maternal com minha professora Katy e
depois com Martine. Quando cheguei na primeira série, eu não parava de me
vangloriar, mas também contava muito com a minha irmã Maxime, que tem hoje 19
anos. Depois fui pra 2ª série, depois pra 3ª série e, não sei como, se foi um
milagre ou por causa de Deus, vim aterrissar aqui no 4º ano com você, Bruno.
Muitas vezes encontramos a palavra milagre. Quando eles não estão fracassando,
ficam sem entender porque os outros estão fracassando e eles não. É como se
fosse um milagre. Tem uma frase bastante extraordinária, uma análise de
política e educação muito fina, mas que não é fácil para traduzir: Talvez eu
passe para a 5ª série, depois para a 6ª, 7ª e depois para a 8ª, depois diploma,
vestibular, universidade e o trabalho, tudo isso e eu vou dizer: eu não gosto da
escola, mas tudo isso graças a escola. É uma frase que foi muito importante
para eu refletir: o que está acontecendo na mente de um aluno, filho de
imigrante, com nove ou 10 anos, quando diz eu não gosto da escola, mas tudo
isso graças a escola? Estamos no seio da relação com a escola: graças à
escola, mas não gosto da escola.
Para
comparar, vou ler trechos de um texto com mais de duas páginas, escrito por um
aluno de classe média, com 16 anos, excelente aluno que vai continuar os
estudos de Física, Matemática4 . Aqui já se pode verificar a diferença. Ele dá
um título para o trabalho: Faço um balanço do meu saber atual. Segue o texto:
adquiri um certo número de conhecimentos durante os meus 14 anos vividos. Cada
maté-ria tem sua utilidade e nos traz muita coisa. O francês nos ensina a bem
dominarmos a nossa língua, tanto na escrita quanto oralmente. Essa matéria nos
permite desenvolver a nossa expressão. Matérias como a história, o francês,
nos mostram a vida diferentemente (...) Mesmo se somos ainda apenas criança, é
preciso estudar o comportamento dos nossos pais e tentar entender seus passos e
gestos porque mais tarde nós seremos os pais. Se nós distinguirmos bem os erros
cometidos pelos nossos pais, isso talvez nos permita no futuro não cometermos
os mesmos erros.
Entre os
dois primeiros textos, escritos por alunos de escola popular, e o último texto,
têm várias diferenças. Uma diferença é que o nível de lingua-gem do último é
muito melhor. Mas tem outra diferença: os dois primeiros estão tentando
responder a questão: o que eles aprenderam. O terceiro está julgando as
matérias, a educação, está julgando a educação que recebe de sua família. Está
falando como se fosse um professor, falando das matérias. Tem, pois, outra
relação com o saber, com o mundo, com a educação. O que nos interessa é
pesquisar essa diferença de relação porque pensamos que é nessa diferença de
relação com a escola, mas também com o saber, que se constrói as histórias dos
chamados fracasso e êxito escolar.
Nossa
reflexão parte da famosa correlação estatística entre, de um lado, a origem
social e, de outro lado, o êxito, o fracasso escolar. Há 35 anos sabemos, no
mundo inteiro, que as crianças oriundas de uma família popular têm menos
chances de serem bem sucedidas na escola do que os filhos de família de classe
média. Não é necessário insistir nisto, não é uma descoberta. É depois que
começa o problema. O que significa essa correlação? Ocorreu um erro enorme
tanto da parte de jornalistas, como da opinião pública e dos próprios docentes,
quando traduziam essa correlação dizendo: a família popular é a causa do
fracasso escolar. A discussão não é para saber se essa afirmação é verdadeira
ou falsa, porque não tem sentido dizer isso. Pode haver uma correlação
estatística entre dois fenômenos sem que um seja a causa e outro a
conseqüência. Vou dar um exemplo: existe uma correlação estatística entre a
hora em que o galo canta e a hora em que eu me barbeio. Se uma pessoa anotar a
hora em que o galo canta e a hora em que eu faço a barba, encontrará uma
correlação estatística. Evidentemente, um destes fenômenos não é a causa do
outro, os dois fenômenos têm um terceiro fenômeno como uma causa comum, que é
o nascer do sol. Vou dar outro exemplo na área científica que encontrei, já faz
tempo, em uma revista5 de um organismo de estatística francês muito sério, o
INSEE 6 . O texto, sem nenhum distanciamento crítico, mostra que existe uma
correlação estatística entre, de um lado, a existência de banheiro na
residência dos alunos (apartamento, casa) e, de outro, o fato dos alunos (de 1ª
série ou de classe de alfabetização, o que na França é a mesma coisa)
aprenderem a ler. Isso significa que quanto maior o número de alunos,
matriculados no início do ano letivo, cujas residências dos pais possuem
banheiro, maior será o número de alunos alfabetizados no final do ano letivo.
Nesse exemplo tem uma correlação estatística que se pode verificar, mas,
evidentemente, não é o fato de tomar banho que vai ajudar na aprendizagem da
leitura. Existe uma correlação, mas não se trata de uma relação de causalidade.
Cada vez que se diz que a família é a responsável pelo fracasso ou pelo êxito
escolar, comete-se o mesmo erro ao dizer que ter banheiro na casa ajuda na
aprendizagem da leitura. Mas também nunca se deve esquecer que existe uma
desigualdade social frente à escola. Esse é um problema. Existe uma
desigualdade social, mas não se pode interpretar essa desigualdade social
frente ao saber e frente à escola atribuindo a causa do fracasso escolar à
família. Por exemplo, posso levantar a hipótese de que uma família que tem
dinheiro para comprar uma casa, um apartamento com banheiro, tem um determinado
nível de orçamento, tem práticas culturais para comprar jornais, livros e assim
a criança vai entrar em contato com a escrita muito cedo na sua vida o que irá
ajudá-la a ler mais rapidamente. Assim, existe uma relação entre o banheiro,
por um lado, e o fato de ela aprender a ler, por outro. Existe uma relação
entre a origem social e o fato de ser bem sucedido ou não na escola. Se não
existisse nenhuma relação, não existiria uma correlação estatística, mas não é
uma relação de causalidade. Para entender o que está acontecendo, se deve
descobrir, pesquisar, construir, entender o conjunto de mediações entre o êxito
ou o fracasso escolar. É este ponto que estamos pesquisando para entender quais
são essas mediações e assim poder mais bem entender porque existem filhos de
famílias populares bem sucedidos na escola. Há uma relação estatística entre a
origem social e o êxito ou o fracasso escolar, porque existe uma desigualdade
social frente à escola. Deve ficar claro esse fato. Não estou falando contra a
existência dessa relação, estou afirmando que, depois de constatar a
desigualdade social, é necessário entender como está se construindo e, assim,
lutar contra ela.
Há o que
chamamos de êxitos paradoxais, caso dos filhos de famílias populares que estão
na universidade. Conforme a Sociologia da Reprodução, eles estão fora da norma.
Também tem filhos das classes médias que fracassam na escola. São minorias, mas
existem. E são minorias importantes.
Na França,
16% dos estudantes são filhos de operários, mas se existisse uma justiça
social, uma igualdade social, eles deveriam representar 30 ou 35%. Tem uma
desigualdade social frente à escola, mas não podemos ignorar que 16% freqüentam
a escola. Isso significa que cada um de nós tem a sua história singular na
escola. O fato de ter uma história singular não significa que não somos seres
sociais. Não se pode opor de um lado a singularidade psíquica do indivíduo e,
de outro, o fato de cada um de nós sermos humanos.
Eu sou 100%
social, porque senão fosse social, não seria um ser humano, seria outra coisa.
Eu sou 100% social, mas também sou 100% singular, porque não existe nenhum outro
ser humano social igual a mim. Já Leibniz, filósofo do século XVII, disse que
se poderia procurar mas nunca encontrar duas folhas semelhantes. Até mesmo dois
irmãos, mesmo gêmeos, não têm a mesma história escolar. Todos nós somos 100%
singular e 100% social e o interessante é que o total não é 200%. O total ainda
é 100%. Para entender isso, em termos acadêmicos, é preciso considerar que a
relação entre a singularidade do ser humano e o caráter social do ser humano,
não é aditiva, é multiplicativa. O que temos que entender, particularmente nós
docentes, formadores, educadores, é esse enigma, que fica no centro de todas as
ciências humanas. Como um ser humano pode ser ao mesmo tempo totalmente
original, singular, e total-mente social? Como o social se constrói, dando
formas singulares aos seres humanos, como o ser humano singular se constrói
enquanto ser social? Para entender isto devemos mobilizar, simultaneamente, a
Psicologia, a Sociologia, a Antropologia e outras ciências humanas. Aqui há
uma base de interdisciplinaridade e não se pode entender a educação apenas a
partir de uma disciplina.
Mais dois
pontos e depois vou apresentar resultados de pesquisas.
A questão
das práticas das escolas e dos docentes é muito importante.
Quando o
aluno não entende nada e a professora continua ensinando, ela está construindo
o fracasso. O que é terrível é que é quase impossível levar em consideração
cada aluno na sua singularidade. Deve-se, então, entender que o fracasso
escolar se constrói também no dia-a-dia da sala de aula. Concordo quando se diz
que a responsabilidade está na desigualdade social, na globalização, mas não é
por essa razão que tenho o direito de deixar meu aluno sem entender nada do que
estou ensinando.
Temos que
considerar que nossas práticas são importantes. A partir de quantos alunos que
não entenderam o conteúdo dado uma professora deve continuar sua aula? Se tem
30 alunos e 25 não entenderam nada, ela vai explicar de novo? Se 10 não entenderam
nada, vai explicar novamente, ou não? E se cinco não entenderam, vai explicar
de novo, ou não? E ainda, se apenas um não entendeu nada, vai explicar, ou não?
A resposta é pedagógica, é profissional, mas é também política porque esse
aluno que não entendeu vai mergulhar ainda mais no fracasso escolar.
Essa questão
prática é também uma questão política, pois o que assim é levantado é a questão
da realização de uma escola democrática.
Estou
completamente de acordo com outras questões políticas que remetem à luta pela
defesa da escola pública, contra o neoliberalismo, contra a globalização. Mas,
se deve lutar em todos os níveis para democratizar a escola, inclusive no
dia-a-dia da sala de aula, sabendo que estamos enfrentando contradições
difíceis de serem resolvidas.
A questão do
saber é central na escola. Não se deve esquecer que a escola é um lugar onde
tem professores que estão tentando ensinar coisas para os alunos e os alunos
estão tentando adquirir saberes. Aí está a definição fundamental da escola.
Estou falando do saber num sentido geral, que inclui imaginação, exercício
físico, estético e sonhos também. Mas a escola é um lugar de saber e isso é
muito importante. A sociologia clássica dos anos de 1960, 1970 se desenvolveu
esquecendo de que a escola é um lugar do saber. Raros são os sociólogos que
falam do saber. Tem os ingleses, sobretudo os que desenvolveram a sociologia do
curriculum, mas Bourdieu quase não fala das práticas do saber. Dubet7 pesquisou
a experiência escolar nos bairros populares, mas não o saber. A escola é uma
experiência e enfrentar a questão do saber é muito importante, inclusive para
entender a violência. O fenômeno da violência não se encontra, ou pouco se
encontra, numa escola em que as crianças têm o prazer de estudar, o prazer de
aprender. Não estou dizendo que se vai resolver todo o problema da violência,
mas uma parte importante do problema de violência provém da relação com o
saber. Finalizo essa vertente da problemática e vou entrar um pouco nos
resultados das pesquisas.
Em primeiro
lugar, os alunos não estão refletindo em termos de dom, estão falando em termos
de trabalho. Estão dizendo fui bem sucedido porque trabalhei demais ou não fui
bem sucedido porque não trabalhei, não estudei o suficiente. Têm alguns que
falam de dons, por exemplo, este jovem que disse infelizmente não sou uma luz,
então vou fracassar na minha vida. Encontramos respostas como essas, mas são
raras. Inclusive, os bem sucedidos, que poderiam se apresentar como muito
inteligentes e gênios, respondem em termos de estudo, de trabalho. Nós pesquisamos
a relação com o estudo e chegamos a quatro processos.
O primeiro
dificilmente se encontra nos bairros populares. Trata-se de alunos que, no
sentido de Bourdieu, têm o habitus de estudar. São exemplos: os que começaram
aprender a ler com quatro anos e meio de idade e nunca pararam de estudar, os
que estudam nos finais de semana, durante as férias. É o estudo como segunda
natureza. É raro encontrar esse aluno em escolas de bairros populares.
Um segundo
processo é a “conquista cotidiana”. Estou pensando em José, filho de migrantes
portugueses, que nos disse: tirei uma boa nota, mas na próxima semana vai ter
mais uma prova, devo tirar mais uma boa nota. É assim sempre a mesma coisa. Na
França, a conquista cotidiana se encontra nos excelentes alunos de bairros
populares, muitas vezes filhos de migrantes. São alunos com uma grande
vontade, mas esta não é uma explicação porque depois de falar de vontade ainda
se deve explicar porque uns a têm e outros não. É como a preguiça. A preguiça
não explica nada porque quando um aluno não trabalha e a professora diz que é
por causa da preguiça ela não acrescentou nada. Deve-se desconfiar dessas
palavras que fecham em vez de abrir o questionamento. O que é preguiça? É o
fato de não trabalhar. Quando explico o fato de não trabalhar pela preguiça,
estou explicando o fato de não trabalhar pelo fato de não trabalhar. Logo, não
expliquei nada. Vontade também é um jeito de dizer as coisas, mas não é uma
explicação.
O terceiro
processo é o mais importante e voltarei a ele depois. O quarto processo trata
dos alunos que, de tão afastados da escola, poderíamos dizer que nunca
entraram na escola, no sentido simbólico do termo. Estiveram fisicamente
presentes, se matricularam, mas na verdade nunca entraram nas lógicas simbólicas
da escola. Pesquisadores, chefes de administração, entre outros, estão falando
de abandono8 . Mas esses alunos não estão se desligando porque nunca estiveram
ligados, não estão abandonando porque nunca entraram de fato na escola. Deve-se
prestar atenção aos termos dos questionamentos. Não são crianças que estão
abandonando a escola, são crianças que estão desistindo de entrar na escola.
Não são iguais as práticas a ser desenvolvidas quando se pensa que o aluno está
abandonando ou quando se pensa que ele nunca entrou na escola. Um exemplo
interessante é o de uma francesa, filha de imigrante da Argélia, de 16 anos.
Ela está tentando fazer as tarefas, mas está afastada da escola. Até mesmo
quando está tentando, não consegue estudar: é como de hábito, quando entro na
aula às 8 horas, em vez de ficar contente, fico decepcionada. Digo, ah! ela
(professora) ainda vai me encher a cabeça durante uma hora e é tudo sempre
igual, não muda nada! A expressão francesa é ainda mais forte: não é “encher a
minha cabeça”, é “prender a minha cabeça” (prendre la tête). Muitas vezes
encontramos adolescentes que dizem: a escola é sempre a mesma coisa, é sempre
igual, não se aprende nada, se fala sempre a mesma coisa. Eles estão reclamando
porque não existe uma aventura intelectual. Quando se entra na escola de manhã,
já se sabe tudo o que vai acontecer naquele dia. É chato! É aborrecido!
Vou retomar
a entrevista: O Francês, aquelas coisas de subordinadas, eu não entendo mais
nada. Estou toda confusa, não entendo mais nada. O inglês é sempre igual. A
Gramática, a História, Hitler e a cambada toda me enchem a cabeça, é sempre
igual, não muda nunca. São coisas velhas. Eles nos explicam. História são
coisas que aconteceram antes do meu nascimento. Não estava nem aí, ninguém nem
vivia e além do mais, ninguém vivia, não se pode verificar se é verdadeiro ou
se são mentiras. São coisas velhas (...) Eles nos ensinam História, tudo bem, é
legal durante uma hora, duas horas, três horas, tudo bem! Mas, um ano inteiro
não é possível, eu não consigo suportar.
O professor
não sabe do que a aluna está reclamando. Ele pode mudar os métodos, mas se não
conseguir mudar a relação do aluno com a História, não vai conseguir nada. Não
estou dizendo que todos os métodos são iguais. Estou dizendo que, neste caso, a
diferença entre os métodos é saber qual deles vai dar sentido para essa
situação.
Vou retomar
agora o terceiro processo, mais freqüente: aproximadamente 75% a 80% dos
alunos estudam para mais tarde ter um bom emprego. É uma questão de realismo o
qual se torna ainda mais realista se pensado na lógica de que para se ter um
bom emprego se deve ter um diploma e, para se ter um diploma, se deve passar de
uma série para outra. Deve-se ter diploma para ter emprego, deve-se ter emprego
para ter dinheiro e deve-se ter dinheiro para ter uma vida normal. Na
Sociologia muitas vezes se diz que eles não têm projeto. Evidentemente eles
têm um projeto, não um projeto de classe média, mas pretendem ter uma vida
normal. Nossos filhos quase têm a certeza de que terão uma vida normal. E nosso
projeto é para que subam na escala social. Para quem nasce num bairro popular
francês, numa favela, aqui, ter uma vida normal é uma conquista, não é uma
coisa dada no nascimento. O projeto é ter uma vida normal e para isso só a
escola ajuda. Pode-se ganhar dinheiro de outras formas, seja no Brasil seja na
França, com o tráfico de drogas, por exemplo, mas este não proporciona uma vida
normal e eles sabem disso pois tiveram a oportunidade de ver cole-gas mortos na
rua. Para ter uma vida normal, para quem nasceu numa família popular, o único
jeito é ser bem sucedido na escola e as famílias sabem disso. Os docentes
franceses dizem que as famílias populares não dão importância à escola. Não é
verdade. Eles dão grande importância à escola porque sabem que não tem outro
jeito para os filhos saírem das dificuldades da vida. Os filhos de classes
médias também acreditam que terão um bom emprego com diploma. A diferença é que
nos bairros populares, para muitos alunos o único sentido da escola está no
fato de proporcionar um bom emprego mais tarde. Eu, por exemplo, sou de família
popular, mas fui bom aluno, se não fosse bom aluno não estaria aqui. Eu odiava
duas matérias: Ciências Naturais e Química que, com todas as suas classificações,
demandavam memorização e muitas coisas que não têm sentido. Agora eu sei que
pode ser de outra forma. Se vocês quiserem que os alunos fracassem, o melhor
jeito é fazê-los memorizar coisas que não entendem. Apesar disso, na Química e
nas Ciências Naturais fui bom aluno. Eram matérias chatas, mas eu tinha o
projeto de ter uma vida melhor do que a de meus pais. Eu estava estudando, mas
também encontrei prazer e sentido em outras matérias, como História e Francês.
Os filhos de classes médias conhecem o prazer do
saber, o
sentido do saber por ter encontrado um sentido em algumas matérias. Em outras
matérias fazem o mesmo que os filhos dos meios populares. O problema dos
bairros populares na França, também já verificado em pesquisas no Brasil, é que
há uma maioria de alunos estudando apenas para ter um bom emprego, sem
encontrar o sentido e o prazer do saber. Esse é um ponto essencial.
Eu li um
texto que dizia: eu não gosto da escola, mas graças à escola vou ter um bom
emprego, mas no dia-a-dia da vida não gos
to da
escola. Há um fenômeno na França, chamado Buffon, o “bobo da corte”,
denominação atribuída aos bons alunos das escolas populares que recebem
insultos e até pancadas dos outros. Há uma lógica entre os que dão pancadas: na
França, a média na avaliação é 10 e o total é 20.
Para passar
o aluno deve tirar 10 e é inútil tirar 11, 13, 15 ou 16. Mas se numa sala de
aula tiver dois, três, quatro, cinco, seis alunos (sonho da professora) que
estão estudando para ter nota 16, 17, a professora se torna mais exigente e
quem tinha nota 10 – e estava passando – corre o risco de ter nota 9,0 e de ser
reprovado. A causa são os bons alunos que estudaram demais e que estão causando
danos aos outros. É como se fossem colaboradores do inimigo, como se fossem
traidores de classe.
São formas
populares de relacionamento com o saber. Considerar a origem social é,
portanto, importante, mas não como carência e sim para entender esses processos
de relacionamento com o saber.
Há muitas
outras questões que mereceriam ser tratadas, mas não será possível abordá-las
aqui. Levantarei apenas alguns pontos. Descobrimos que na mente do aluno é o
professor quem é ativo no processo de ensino-aprendizagem, a atividade é do
professor e não do aluno. E, além do mais, em francês, “apprendre” significa,
ao mesmo tempo, o que em português se traduz por “ensinar” e “aprender”: o
professor “apprend” (ensina) para o aluno que “apprend” (aprende). Aqui no
Brasil, o professor ensina para o aluno que aprende. Em francês, não. Pode-se
dizer que o professor “enseigne” (ensina), mas se pode também dizer que o
professor “apprend” para o aluno que “apprend”. A confusão se torna ainda
maior. Mas realmente para os alunos de bairros populares, é o professor que
cria o saber na cabeça do alunos, é o professor que tem a atividade no processo
de ensino-aprendizagem, não o aluno. O que deve fazer o aluno? Perguntamos para
eles: o que é um bom aluno? Responderam: é o aluno que chega na hora certa na
escola e que levanta a mão antes de falar na sala de aula. Não disseram que
era o que aprendeu muitas coisas. Ou seja, podem definir um bom aluno sem falar
do saber. A família é a causa disso? Não! A causa é a escola. O que a escola
francesa ensinou para o aluno? Ensinou que o mais importante é respeitar as
regras: chegar na hora certa e levantar a mão. Não ensinou que o mais
importante é aprender coisas na escola. Assim o aluno deve chegar na hora
certa, ficar quietinho, não fazer muito barulho, escutar o professor. O que vai
acontecer, depende do professor. Conforme os alunos, a primeira qualidade do
professor é explicar, sem insultar o aluno, explicar de novo, com palavras
novas, até que todos entendam. Na lógica do aluno, se o professor explicar
bem, e se o aluno escutar bem, o aluno vai saber. Se o aluno escutou e não sabe
é porque o professor não explicou bem. Portanto, é culpa do professor. Na
lógica do aluno tem uma coisa extraordinária e profundamente injusta quando ele
escutou e apesar de ter escutado tirou uma nota ruim, pois é o professor quem
não explicou bem e é o aluno quem tira uma nota ruim. É um escândalo! Porque é
o professor que merece a nota ruim. Eu escutei, fiz o que tinha que fazer, é
ele quem não explicou bem e além do mais, vai me dar uma nota ruim. É uma
injustiça profunda!
É nesta
lógica que eles estão raciocinando. Quem é ativo no ato de ensino /
aprendizagem é o professor. Estou pensando no aluno que disse:
eu não tinha
problema. O meu cérebro é como se fosse um gravador: o professor fala, a
cabeça grava. Um outro disse: ah, esse professor é ótimo, quando ele fala as
palavras entram diretamente no meu cérebro. É interessante levar a sério as
palavras deles, as explicações deles, porque o modelo é o da transmissão
direta da fala do professor para o cérebro do aluno. Isso significa que o
aluno não funciona numa lógica da atividade.
O que
devemos fazer, trabalhar com uma pedagogia ativa com um aluno que não pensa que
é ativo? Neste caso, há um problema concreto a ser resolvido. O aluno de bairro
popular não está esperando uma pedagogia ativa, ele está esperando uma
pedagogia segura, que lhe possibilite passar para a próxima série. O ideal do
aluno é preencher com cruzes o que é verdadeiro ou o que é falso. Nesse
procedimento, há uma chance sobre duas de encontrar a resposta. Esse é o ideal
do aluno. Mas, evidentemente, isso é contrário à formação. O aluno está
reclamando uma pedagogia sem risco. E, muitas vezes, o professor está tentando
fazer uma pedagogia sem riscos também. Mas, uma pedagogia sem risco é uma
pedagogia sem formação, pela qual não se aprende nada.
Um outro
resultado: descobrimos que há um processo que chamei de relação binária com o
estudo. Para os alunos ou se sabe ou
não se sabe.
Não existe nada entre saber e não saber. Vou dar um exemplo apresentado por uma
aluna minha. É de uma criança de oito anos que estava repetindo pela segunda ou
terceira vez a classe de alfabetização ou 1ª série, na França. Ela perguntou
para esse aluno:
“quando você
não pode ler uma palavra, o que você faz?”. Depois de hesitar, ele respondeu:
quando não posso ler uma palavra, leio uma outra. É lógico! Deve-se sempre
apostar que há uma lógica na resposta dos alunos, embora diferente da nossa. A
lógica é simples: se eu sei ler uma palavra, posso ler a palavra, se eu não
sei, não posso, então leio outra palavra. E, assim, a conseqüência é que posso
ler o que já sei ler. Um problema semelhante foi levantado há vinte cinco
séculos atrás, por um grande filósofo, Platão. No início de um de seus
diálogos, o Menão, Platão levanta a questão: como se pode aprender uma coisa?
Se eu já a conheço, não vou procurar aprender porque já conheço; se não a
conheço, não vou procurá-la pois não a conheço. Essa dificuldade o espírito
humano viveu durante sua história filosófica e cada um de nós a encontra,
muitas vezes, quando se depara com uma nova matéria, uma nova dificuldade. Já
encontrei, na universidade, na graduação, esta dificuldade. O estudante não
aceita
começar um trabalho por não saber bem como fazer este trabalho. O problema é
que, para aprender a fazer deve-se começar, tentar, pois é aos poucos que se
aprende, no próprio processo de fazer. Há conseqüências práticas que decorrem
deste resultado de pesquisa. Por exemplo: não se deve insistir com as crianças,
com os alunos que vão aprender a ler, sobre o fato de que aprender a ler vai
mudar suas vidas. Você vai ver, tem uma vida antes de ler, tem uma vida depois
de ler. Ao dizermos isso cavamos um fosso entre a situação atual de não saber e
a situação futura de saber. Construímos um processo binário e depois é difícil
ultrapassar esse fosso. Devemos dizer: você já sabe ler um pouco – o que é
verdade, pois já podem ler o nome e algumas palavras –, você vai aprender a ler
mais coisas, mais rápido, vai ser uma descoberta, um prazer.
Descobrimos
também que alguns jovens dizem que escutam a lição e outros dizem que escutam o
professor. Em geral, os primeiros (os que dizem que escutam a lição) são bem
sucedidos e os últimos são fracassados. Escutar o professor é escutar um
adulto dando explicações sobre o que tenho que fazer, trata-se de uma relação
entre duas pessoas. E escutar a lição é escutar um adulto que está falando numa
terceira coisa (num saber). É uma relação com três termos: o aluno, a
professora e um terceiro termo, um saber. Também perguntamos: quando você não
entende o que você faz? Os que “escutam a lição” respondem: vou tentar fazer
sozinho, vou refletir e se não conseguir, vou levantar a mão e perguntar ao
professor. Os que “escutam o professor” respondem de imediato: eu levanto a
mão pra pedir ajuda pra professora.
Tem uma
diferença: escutar a professora é viver num mundo em que tem um adulto que diz
o que devo fazer. Escutar a lição é viver num mundo em que existe o saber. Já
na Educação Infantil, é importante saber se o que estou fazendo é o que a
professora disse ou se estou enfrentando uma outra situação.
Há também
processos da família. Vou dar um exemplo: há um processo que chamo de
heterogeneidade na continuidade e de continuidade na heterogeneidade. Há
imigrantes que deixam o seu país ou a sua região para melhorar a sua vida.
Muitas vezes não conseguem mudar muito a sua vida e esperam que a mudança
desejada aconteça com os próprios filhos, graças à escola. Estou dizendo que a
escola dos filhos é o equivalente da migração dos pais. Se eu, imigrante,
quiser que os meus filhos sejam bem sucedidos na sua vida (o que muitas vezes
vai dar sentido à minha migração porque eu não mudei a minha vida graças à
migração, mas, talvez, graças a minha migração, meus filhos possam ter uma vida
melhor), eu devo aceitar que estes filhos sejam diferentes de mim para serem
bem sucedidos na escola. É a heterogeneidade dentro da continuidade. Vou dar o
exemplo de Malika, uma aluna de origem árabe, que nos disse: eu não falo árabe.
Perguntamos: você fala francês com seus pais? O problema é que minha mãe não
fala francês. Como vocês estão fazendo? Ah, eu falo francês, ela responde em
árabe, não tem problema! Esse é um bom exemplo, porque tem uma cumplicidade
entre a mãe e a filha, entre mulheres que sofrem a dominação dos homens. Para
uma mulher se liberar é mais fácil na França do que num país árabe, ao menos um
pouco, mas a mãe deve aceitar que a sua filha seja diferente dela. Malika está
explicando também que sua mãe vai preparar uma carne e que ela não vai comer
por razões religiosas, mas que prepara para os filhos. Os pais estão aceitando
que os filhos sejam diferentes deles, porque essa é uma necessidade para que
possam ser bem sucedidos na escola. Trata-se de um processo de continuidade na
heterogeneidade, que se encontra também nas histórias de migrações sociais. A
conseqüência desse processo está em que o êxito escolar dos meus filhos é, para
mim e também para eles, uma fonte de orgulho, mas também de sofrimento.
Orgulho-me dos meus filhos terem conseguido uma boa situação social, graças à
escola. Mas, ao mesmo tempo, há o sofrimento: sendo os filhos tão diferentes de
mim, não posso mais compartilhar a vida deles porque não há mais vida em comum.
São interesses diferentes. Orgulho e sofrimento também.
Um último
processo gostaria de salientar, embora existam outros:
aprender é
mudar, formar-se é mudar. Não se pode aprender sem mudar pessoalmente porque se
estou aprendendo coisas que têm um sentido, vou mudar minha visão do mundo,
minha visão da vida. Ao menos um pouco.
E se eu
estiver aprendendo coisas que não têm nenhum sentido, não estou aprendendo e
vou esquece-las depois da prova. Aprender é mudar. Isso é um problema para as
famílias populares. Mudar é trair ou não é trair? Vou destacar o exemplo de um
jovem que estava entrando no liceu, aqui corresponde ao Ensino Médio, e disse:
sou a última de todas as crianças que entraram na Escola Infantil comigo. Todos
desapareceram. Estão fora da escola. Sou a última, mas os professores não vão
ganhar de mim. Eles têm sim que ganhar dele porque se não aceitar mudar, vai
fracassar. Não se pode aprender sem mudar. Coloca-se, então, a questão de
saber: “Estou traindo? Estou traindo a minha mãe que não foi alfabetizada, ou
não? Estou traindo os coleguinhas que estavam comigo na Educação Infantil, na
1a série e que a escola excluiu? Estou traindo ou não estou traindo os meus?” É
um problema muito importante.
Tem,
ademais, outros processos psíquicos: encontramos jovens que não aceitavam que
os seus pais sejam diferentes deles. Assim, Malika nos disse: a minha mãe, ela
não sabe ler, mas ela me ensinou muitas coisas. Malika pode ser bem sucedida na
escola sem trair a sua mãe que não sabe ler. Mas Karim, filho de imigrante
Argelino, nos disse: o meu pai é um homem culto sem cultura porque na Argélia é
culto, na França ele não vale nada, ele cuida do lixo. Karim não aceitava ter o
pai que ele tinha. Ele escreveu uma mensagem para o seu professor de francês,
dizendo: professor, eu gostaria que você fosse o meu pai. O professor de
francês fez uma boa intervenção: você já tem um, eu não sou seu pai, mas se
você quiser falar comigo enquanto professor, ter uma fala mais particular
comigo, concordo, vamos falar, mas você já tem um pai. Existem dificuldades
entre os jovens dos meios populares em lidar com essas implicações psíquicas.
Não vou
fazer uma conclusão porque não se pode concluir o que não pode acabar. Assim,
vamos debater um pouco. Obrigado pela atenção.
Notas
1 Conferência
proferida por Bernard Charlot na Universidade Federal de Santa Catarina em
06/08/02. O presente texto foi transcrito pelas alunas Gabriela C. de
Andrade e Marilene de S. P. Virgílio e
revisado pelas professoras Nadir Zago e Olinda Evangelista.
2 Observação
do autor: Em francês não dizemos estudar, dizemos trabalhar. Tem uma diferença
entre o francês e o português. Na França dizemos trabalhar na escola e aqui se
diz estudar. Também na França se diz seguir a lição, seguir o professor,
enquanto no Brasil se diz acompanhar a lição, acompanhar o professor. Tem
diferenças entre as palavras e seus sentidos: na França tudo acontece como se
os alunos estivessem correndo atrás do professor, atrás da lição.
3 O autor
comenta que não entende porque dessa denominação uma vez que todas as
entrevistas, em pesquisa, são semi–estruturadas.
4 Observação
do autor: os estudos dos jovens pesquisados foram acompanhados durante um
período de dois ou três anos.
5 Trata-se
de uma revista local do INSEE, publicada
em uma ilha francesa que se chama Ilha da Reunião, próxima ao sul da África.
6 Instituto
Nacional de Estatística e de Estudos Econômicos.
7 Sociólogo
francês, autor do livro Sociologie de l’Expérience, Paris: Seuil, 1994.
8 Para esses
casos, na França, usa-se o termo décrochage escolar.
Perspectiva.
Florianópolis,v.20, n.Especial, p.
17-34, jul./dez.2002
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